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Elizete Passos

ETICA
E PSICOLOGIA
teoria e prática

VETOR
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T A ETICA E SEUS
JL FUNDAMENTOS
Apesar de nosso objetivo consistir no estudo da ética aplica­
da à Psicologia, faz-se necessário, antes de adentrarm os pela
tem ática específica, estabelecer as bases teóricas que darão
sustentação à m atéria. Assim, no presente capítulo, vamos
nos dedicar a discutir os conceitos básicos da ética.
Iniciaremos por um a reflexão sobre o ser hum ano e suas
ações, incluindo as de caráter moral; em seguida, analisare­
mos alguns conceitos de ética historicam ente construídos; as
condições de responsabilidade do agente moral para, no final,
apresentarm os o conceito de ética aqui adotado.

O SER HUMANO COMO O SUJEITO DA


MORAL1

A discussão sobre o ser humano, sobre a pessoa, sempre


ocupou lugar de destaque na história do pensam ento hum ano
e da ética. Isso porque, ela é o centro da filosofia ocidental,
assim como do com portam ento moral.
Buscando, em primeiro lugar, o conceito de pessoa, do latim
persona e do grego prosopon, os gregos a usavam no sentido

1 Parte desta seção é uma apropriação do que está publicado no capítulo O lugar do
ser humano nas organizações, do livro Ética nas organizações, de Passos (2004).
Elizete Passos

de m áscaras que as pessoas usavam nas representações das


tragédias e serviam para preservar o ator, ao mesmo tempo
em que revelava a personagem.
Os teólogos da era cristã optaram pela significação grega,
mas acrescentaram à palavraprosopon a latina hipostasis, que
significa substratum ou essentia, formando com isso a e stru ­
tu ra metafísica do ser. A idéia prevalente era a que afirm ava
ser a m áscara apenas o aspecto aparente do ser hum ano, que
preservava um a essência a ser descoberta.
Esse entendim ento leva a ou tra formulação, que consiste
em acreditar que o ser hum ano constituía-se por um a infe­
rioridade e um a exterioridade. A prim eira, que, para a ideo­
logia cristã, identificava-se com a alma, ganhou destaque e
suprem acia sobre a segunda. Santo Agostinho2, no início da
Idade Média, defendia essa posição, porque considerava que,
por meio do conhecimento da alma, se chegaria ao de Deus.
Além disso, ele é responsável por um a nova formulação do
conceito de pessoa, ao acrescentar aos conceitos grego e latino
apresentados outro tam bém de origem latina, relatio, que
significa relação entre as pessoas. Em um esforço de síntese,
Pegoraro (2002, p. 55) afirma:

[...] assim, tam bém a interioridade hum ana, para Santo


A gostinho, é relação consigo m esm o, com os outros e
com Deus [...] portanto, a pessoa hum ana é relação [...]
abertura, convivência com os outros, com o mundo e com
Deus.

A visão metafísica de ser hum ano, centrada no conceito de


essência, que prevaleceu ao longo da Antiguidade e da Idade
Média, começa a se desfazer n a Idade Moderna, a p artir do

2 Nasceu em 354 d.C., em Tagaste, na Numídia e faleceu em 430 d.C. Foi sacerdote
da Igreja Católica e bispo de Hipona.

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Ética e Psicologia: teoria e prática

século XVIII, apesar de ainda encontrarm os quem a defen­


desse, como K ant3. Seguindo igual tendência, porém, por
caminhos diferentes, ele fortificou a concepção transcendental
do ser hum ano por meio do seu conceito de liberdade hum ana.
O sujeito seria o seu próprio legislador, criador das norm as
que deviam reger o seu com portam ento e, por extensão, o
com portam ento de todos.
Visando a exemplificar, na Grécia antiga, Platão fortalecia
o conceito metafísico de pessoa, ao defender que o ser hum a­
no se definia e se destacava dos demais seres e da natureza
pela inteligência, oriunda de um mundo superior. A Idade
Média também confirmou essa tendência, pois o Cristianismo
colocava o ser hum ano como o filho de Deus, senhor e criador
de tudo e, como tal, herdeiro de um a essência divina e absoluta.
Enquanto para Kant, a transcendência do ser humano decorria
da liberdade que possuía para seguir apenas sua consciência.
Em síntese, essas três posições situam o ser hum ano fora
do âmbito da natureza, em posição diferente e acima dela, por
possuir um atributo transcendental que os entes da natureza
não possuíam.
A Idade Moderna, nascida sob o signo da razão, rompe com
a tradição metafísica de ser humano. Confiante no poder dessa
como capaz de produzir conhecimento e atingir a verdade des­
confiava dos princípios universais que cerceariam a liberdade.
Marx4vai contra o conceito metafísico de homem para tratá-lo
como anim al social, especialmente o ser que pode fazer proje­
tos e praticar atividades livres e conscientes. Assim sendo, ele
se caracteriza como o processo dos seus atos e pode criar sua
própria vida e controlar o seu “destino” (GRAMSCI, 1978).

3Immanuel Kant (1724-1804) manteve a posição metafísica de ser humano, embora


por caminhos diferentes. Para ele, o ser humano era livre para criar suas leis morais
e ser seu próprio legislador.
4 Karl Marx (1818-1883).

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Ao distanciar o ser humano dos determinismos instintivo e


histórico também o liberta da sina da submissão e o afirma como
ser de consciência e de ação, capaz de refletir sobre si e sobre
os outros e de criar e recriar suas condições de vida e sua vida.
Ele não pode romper com sua realidade material e concreta sob
pena de se aniquilar. Como afirma Fromm (1977, p. 80):

[...] o homem não só tem um a m ente e necessita de um


sistem a de orientação que lhe perm ita compreender e es­
truturar o mundo que o rodeia; ele também tem coração
e um corpo que precisam ser ligados em ocionalm ente ao
mundo - ao homem e à natureza.

O ser hum ano precisa de laços com a cultura e com as


pessoas dentro dos princípios harmoniosos da fraternidade
e da solidariedade, sem restrições das suas dimensões inte­
lectuais, afetivas e da sua liberdade. Diferentemente dos demais
animais, ele não necessita apenas g aran tir suas necessidades
físicas, de alim entação e segurança, precisa, igualm ente, pro­
duzir cultura. “Ele não só quer saber o que é necessário para
sobreviver como tam bém quer com preender de que se tra ta
a vida h um ana.” (FROMM, 1977, p. 83).
Ele é, portanto, criador de cultura e de valores, o que levou
Gramsci (1978, p. 39) a concebê-lo como “[...] um a série de
relações ativas (um processo), no qual, se a individualidade
tem a m áxima im portância não é, todavia, o único elemento
a ser considerado.” Como o reflexo da hum anidade, cada
individualidade é constituída do indivíduo, assim como de
outros indivíduos e da natureza.
A relação que m antém com esses elem entos é ainda mais
complexa. Com os primeiros, por meio de inter-relação social,
e com o segundo grupo, por intermédio do trabalho e da técnica.
Técnica é aqui entendida não só como a ciência aplicada,
m as como conhecim ento, como “in stru m en to s m e n ta is”.
Relações baseadas na consciência, no conhecimento e na ação,

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Ética e Psicologia: teoria e prática

donde advém o poder do ser hum ano em criar a si e ao mundo


que o rodeia, sendo, portanto, o centro das relações.
Admitindo ser o indivíduo fruto dessas relações, tam bém a
identidade hum ana deve-se dar a p a rtir da consciência desse
processo. O que não é fácil, pois em alguns pode acontecer
de form a profunda, em outros superficial, voluntária ou não.
A complexidade, desse modo, decorre do fato de a individua­
lidade conter o universal: “[...] já que todo indivíduo é não
som ente a síntese das relações existentes, m as tam bém a
história destas relações, isto é, o resum o de todo o passado.”
(GRAMSCI, 1978, p. 40).
A sede de tudo é o ser humano, não como indivíduo isolado,
mas como aquele que conhece, quer e realiza. O ser de possibi­
lidades, geradas nas relações com os outros e n a vida social e
física (natureza). E ainda o autor citado quem nos ensina que
o ser humano é um devenir, qual seja, de modificação, de tran s­
formação, que acompanha as modificações sociais, o que implica
aceitá-lo como “conjunto das suas condições de vida”.
Evidencia-se que não existe um único conceito de ser
humano. Eles variam indo desde aqueles que destacam um a
consciência m etafísica, aos que discordam dessa posição
essencialista, pronta e acabada, para defenderem um ser de
existência, que se constrói socialmente.
N a atualidade, o ser hum ano continua ocupando um a
posição hegemônica, porém ela não se origina de qualidades
transcendentais, mas da sua capacidade de com preender o
m undo e estabelecer as relações que desejar m an ter com os
outros, com a n atureza e com o cosmos. Isso quer dizer que
ele é o único ser que pode compreender o sentido da vida, não
como portador de um a consciência sobrenatural, mas histórica
e social. De igual modo, ele, como pessoa, difere do indivíduo,
por não se fechar em si mesmo, mas abre-se para o outro, para
as relações, até porque é incompleto e sua completude só se
dará por meio da convivência com outros seres. No dizer de
Pegoraro (2002, p. 27):

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L...J a pessoa é um ser aberto ao mundo, não só porque


é capaz de entendê-lo, m as tam bém , porque é um ser
carente, necessitado, incompleto que vai se completar na
convivência com todos os outros seres naturais e artifi­
ciais produzidos pela tecnociência.

O autor citado tam bém afirm a que o ser hum ano, além de
conceder sentido ávida e às coisas, pode questionar o presente
e preparar o futuro. E conclui:

[...] enfim, a pessoa não é um dado substancial com ru­


m os traçados pela natureza, mas é um a existência que
se dá um rumo, um horizonte a ser perseguido por toda
a vida, pelo exercício da liberdade, levando em sua com­
panhia todos os outros seres naturais e tecnocientíficos,
com os quais deve conviver em solidariedade antropocós-
mica. (PEGORARO, 2002, p. 72-73).

Assim, o que define a diferença e a superioridade da pessoa


diante dos seres do mundo da n atu reza são a inteligência e
a liberdade.

CONDIÇÕES DAS AÇÕES HUMANAS

O conceito de ser hum ano direciona suas ações e as qua­


lifica. Por exemplo, a posição metafísica, que considera o ser
hum ano como portador de um a essência, exige que ele aja
de forma coerente com sua herança sobrenatural, que con­
siste em te r com portam entos preestabelecidos e absolutos.
O ser hum ano, nessa perspectiva, não possui escolha e suas
ações acom panham sua essência, p red eterm in ad a e sem
possibilidades.
A idéia de possibilidade pressupõe a de liberdade, o poder
fazer coisas ou declinar delas, ser criativo e inventor em

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Ética e Psicologia: teoria e prática

todos os sentidos, e até criar conhecimento, novas culturas


ou reinventar outras. Essa condição tem sido um dos pilares
da concepção de ser hum ano que prevalece desde a Idade
Moderna. Nela o sujeito não está pronto, mas vai se fazendo
com base em suas ações e nas relações que m antém com o
m undo social e físico. Seus atos são, portanto, livres, e ele
responsável pelas escolhas que faz e pelas ações praticadas.
D iante da im portância da liberdade e da consciência como
condições para as ações hum anas responsáveis e da existência
de conceitos diversos sobre elas, vamos nos deter um pouco
mais na busca de um conceito, para nós, satisfatório.

Liberdade
Os conceitos de liberdade são m uitos e de diferentes abor­
dagens. A metafísica fala de um a liberdade apriori, fruto da
herança transcendental que os sujeitos possuem e que é sua
origem e seu fim.
A tendência filosófica existencialista considera que liber­
dade é poder escolher o que se quer ser, e os seres hum anos
são naturalm ente livres. Também nos dirá que da liberdade
são gerados todos os significados, pois não existem fins fora
do indivíduo. A posição é criticada como sendo oriunda de um
conceito de liberdade que não considera o tempo e o espaço e
se caracteriza como um a postura especulativa.
A concepção dialética vai tra z er novos olhares sobre o
conceito de liberdade, em que alguns pressupostos são fun-
dantes: o ser hum ano só se conhece na relação com o outro;
a subjetividade surge da comunicação e não existem projetos
de vida individuais. Segundo Garoudy (1982, p. 21):

[...] desde a primeira reflexão, desde o primeiro projeto,


eu sou, pois, habitado por toda a humanidade passada e

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Elizete Passos

atual. Donde conclui-se que as escolhas são feitas a partir


das possibilidades e a liberdade nasce com a possibilidade
de projetar o maior número de atos possíveis.

Assim, o ser livre é aquele que faz projetos, que vê adiante,


é o ser do devenir. Dela decorre a possibilidade de responsa­
bilidade, o que não seria possível sem o pressuposto de que
o indivíduo dispõe de certa liberdade de decisão, fincada n a
consciência e no poder de realização.
Tugendhat (2000, p. 386) nos diz: “[...] a liberdade é um a
das necessidades fundam entais do ser hum ano.” E que o seu
conceito não pode anteceder ao de direitos fundamentais do ser
humano. Também adverte que a liberdade vem sendo traduzida
como dignidade hum ana, integridade física, cuidado, ajuda,
educação e participação política e que essa visão ampliada sobre
ela, estendendo-a aos direitos sociais, é problemática, porque
uma pessoa pode te r condições materiais para ajudar, por exem­
plo, mas pode faltar-lhe a capacidade para colocá-la em prática,
como ocorre com aquelas doentes, velhas ou crianças.
Assim, não se pode querer que a liberdade seja ausência de
condicionamentos e que o agir hum ano seja totalm ente livre.
Os impedimentos existem, vindos do social, econômico, polí­
tico e, até mesmo, da natureza, entretanto, ainda que sejam
elementos limitadores, não impedem o exercício da liberdade.
Como nos lem bra Pegoraro (2002, p. 26): “ [...] a liberdade
subsiste no em aranhado das circunstancias diárias, pessoais
e coletivas, que lim itam a ação livre.”
Admitindo que a liberdade é possível, mesmo diante de
elem entos lim itadores, voltamos a perseguir um conceito,
com base nos a n terio rm en te apresentados, que consiste
na possibilidade de o sujeito fazer escolhas, não de forma
ilimitada, mas dentro das possibilidades oferecidas pela vida
real. Nesse sentido, a liberdade “[...] é a faculdade pela qual
o homem pode determ inar a si, frente a um fim [...] é sempre
um ato concreto, que requer um a decisão, um a possibilidade
de escolha.” (KISNERMAN, 1991, p. 21).

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Ética e Psicologia: teoria e prática

Esse conceito, com o qual concordamos, que não pressupõe


a liberdade absoluta, encontra fundam entação em autores
de m om entos históricos diversos. Por exemplo, Espinosa5
afirm ava que nenhum a alm a era absolutam ente livre e que a
liberdade só seria conquistada por meio da razão e da vontade,
do conhecimento de si mesmo e da eliminação das paixões,
para ele, fonte de toda alienação.
P ara Hegel6, a liberdade era de ordem intelectual e não
estava ao alcance de todos. Ela não era dada ao sujeito,
m as conquistada por meio da razão. Em seu mais famoso
livro Fenomenologia do espírito, na conhecida passagem
A dialética do senhor e do escravo, ele expõe o impasse da
liberdade subjetiva. Diz que o senhor é reconhecido como
ta l porque o escravo assim o reconhece. Vê nisso u m a
relação dinâmica entre os dois e ainda a posição do escravo,
pois sua consciência é que reconhece o senhor. D iante disso,
“ [...] o escravo, dependente em princípio do senhor, torna-se
senhor da consciência de seu próprio am o.” (ABRÃO, 1999,
p. 352). O im passe se caracteriza n a possibilidade de um a
liberdade que se dá em decorrência da dominação do outro.
P ara fugir dessa condição, a liberdade nega o m undo objeti­
vo e refugia-se na subjetividade, tornando-se um a liberdade
lim itada ao eu interior.
Enfim , como afirm am os anteriorm en te, consideram os
como livre o indivíduo que pode escolher e tem condições de
se responsabilizar pelos atos praticados. Desse modo, a liber­
dade consiste em não se subm eter nem subm eter o outro a
um a posição de dominação, pois essa atitude transform aria
o sujeito em objeto e seria um ato de violência contra si e
contra o outro.

5Baruch Espinosa nasceu no ano de 1632, em Amsterdam, e faleceu em Haia, no ano


de 1677. Filho de imigrantes judeus, foi acusado de heresia e sacrilégio, tendo que
se mudar de sua cidade natal, passando a viver em várias cidades como polidor de
lentes. Enquanto isso, estudava e escrevia. Entre suas obras, destacam-se Princípios
da filosofia cartesiana e Ética, que só puderam ser publicadas após sua morte.
6 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).

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A autonomia, que é própria do sujeito livre, é um dos pilares


do com portam ento moral, pois, sem ela, não haverá reflexão,
escolha nem responsabilidade. Por conseqüência, não podere­
mos falar em ética, um a vez que ela não pode ser constituída
por atitudes pautadas na obrigação e no medo da punição,
m as naquelas que sejam frutos de escolhas conscientes.

Consciência

Ao lado da liberdade, a consciência é um dos pilares e


condição fundam ental para a possibilidade da ética. Tradicio­
nalm ente, ela vem sendo concebida como de ordem racional e
saber de si mesmo, ou seja, “[...] um a espécie de saber conco­
m itante (con-scientia) acerca da existência psíquica própria
e dos estados em que ela se encontra num dado m om ento.”
(BRUGGER, 1977, p. 106). Em seguida, alargou seu horizonte
e se tornou saber do ser ou ontologia. Epistemologicamente, ela
foi tom ada como a prim eira e mais segura fonte da verdade.
Além dessas formas de entendim ento sobre a consciência,
outras poderiam ser elencadas, entretanto, para os interesses
deste estudo, trabalharem os com a consciência moral. Nesse
aspecto, tam bém existem posições diferentes: ela pode ser
vista como um a capacidade inerente ao ser hum ano para
com preender os valores ou para identificar o comportamento
m oralm ente certo e prevenir-se contra aqueles reprováveis.
Os seguidores dessa linha afirm am que o ser hum ano possui
essa faculdade porque é portador de atributos divinos. Usam
como principal argum ento para sua comprovação a existência
do arrependimento do ser hum ano diante de um a ação que
ele julga inadequada ou prejudicial aos outros.
A consciência moral seria auxiliada pela educação e pelo
esclarecimento que ajudariam o ser hum ano a fazer as esco­
lhas eticam ente acertadas, pois, sem dúvidas e baseadas em
certezas práticas.
Ética e Psicologia: teoria e prática

O utra vertente de compreensão do que seja a consciência


é apresentada pelo m aterialism o histórico dialético. Para ele,
a consciência não é um atributo divino, m as social e cultural­
mente determinada, pois entende que agimos quase autom ati­
cam ente seguindo regras impostas pela sociedade. Ela regula
intim am ente nosso comportamento, nossa conduta.
A consciência individual é tida como a soma do que o indi­
víduo aprende na sociedade, entretanto a atitude do indivíduo
não deve ser a de conformação. Cumpre a ele, entender seu
estado de condicionamento e procurar as saídas, rom per com
a ordem social que determ ina tal submissão. Isso nos leva a
um conceito de consciência que, a nosso ver, é mais acertado
do que aquele que a define como parte da n atu reza de Deus
no ser humano. A consciência como conhecimento da situação
de explorado e a necessidade de superação dela.
D iante do explicitado, a verdadeira consciência leva o ser
hum ano a identificar sua situação de explorado e lu ta r por
um a sociedade em que todos tenham direitos e oportunidades.
Não desconhecemos que a sociedade possui grande força com­
pulsória para m anter os indivíduos atrelados aos seus ditames;
entretanto, a ru p tu ra pode ocorrer, pois os condicionamentos
são restritivos, mas não impeditivos. Para isso, faz-se neces­
sário o compromisso do sujeito, o seu querer e um a vontade
posta em ação. No dizer de Ash (1965, p. 104):

N esse com prom isso, tom am os não apenas um a decisão


sobre nossa própria conduta ética, mas expressamos tam ­
bém um a preocupação prática pela conduta de todos os
outros, trabalhando por um a forma de organização so­
cial na qual - por se caracterizar pela abundancia para
todos ao invés da escassez m anipulada - “ser bom ” no
mais pleno sentido humano não será apenas fazer a coisa
“certa”, mas tam bém a coisa que for natural.

Essa posição rompe com a concepção idealista, bem como


metafísica, em que a consciência não tem nenhum compro­

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Elizete Passos

misso com a m udança social. Nessa concepção, ela é condição


para a ação transform adora e fonte de liberdade e em basa a
ação do sujeito sobre a realidade, visando à sua transformação.
O autor nos ensina:

[...] uma compreensão profunda da transformação social


que é a condição de agir livrem ente num sentido ético
depende, na verdade, de nossa disposição de nos modi­
ficarmos [...] modificar-nos é a maior liberdade que po­
demos conhecer, e onde a liberdade é maior, é possível a
m ais elevada forma de moral. (ASH, 1965, p. 127-128).

Com isso, fica evidenciada a im portância de discutirmos


os conceitos de liberdade e de consciência antes de falarmos
de moral e de ética. O com portam ento ético pressupõe um
sujeito livre e consciente, capaz de se responsabilizar por
suas ações. Somente um sujeito nessas condições tem o poder
de decidir entre um a ou outra ação e sua grandeza reside na
possibilidade de rom per com os determ inism os e fazer suas
escolhas, de form a livre, consciente e responsável.

Comportamento ético7

Historicam ente, a ética vem sendo relacionada a princí­


pios abstratos sem referência ao mundo concreto e à vida
real. Interessava-se apenas pelo com portam ento hum ano e
pelas relações que os seres hum anos m antinham entre si.
Nessa perspectiva, era tida, por quem olhava o mundo por
parâm etros diferentes do metafísico, como im peditiva para o

7 Em alguns dos meus livros, como Ética nas organizações (PASSOS, 2004), discuti
os conceitos de ética e moral separadamente, tomando a primeira como ciência da
moral. No presente, seguirei a orientação de Tugendhat (2000, p. 35), de tratá-las
como intercambiáveis, pois, como afirma o autor: “[...] não se trata de uma distinção
necessária.”

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Ética e Psicologia: teoria e prática

crescimento hum ano, para a produção da ciência e de novas


formas de compreensão do mundo.
Da segunda m etade do século XX em diante, com o avanço
do conhecimento científico, ela precisou refazer suas bases
teóricas, a fim de ser capaz de abarcar a nova realidade que se
im punha. Agora, precisaria tra ta r o comportamento hum ano
não m ais como restrito à sua suposta essência, m as como
dinâmico, histórico e concreto.
A realidade colocou novos problemas para a ética, que ela
não supunha ser da sua alçada e que a ciência e a tecnologia
se julgavam capazes de resolvê-los por si mesmas. Tanto um a
quanto a outra com eteram enganos que as levaram a capitu­
lar e reconhecer a im portância da ética, no caso da ciência e
dos cientistas, e abarcar as questões postas pela ciência, no
caso da ética.
D iante dessa nova realidade, a ética precisou refazer suas
bases teóricas, a fim de ser capaz de abarcar os problemas
em ergentes que se im punham . D iante disso, o conceito de
ética modificou-se, flexibilizou-se, pois ela não pode continuar
como princípios absolutos a serem seguidos pelos indivíduos.
Como afirm a Pegoraro (2002, p. 24):

[...] assim , a ética não pode se apresentar como um siste­


ma pronto, que julga todos os comportamentos humanos
e todos os fatores científicos com base em suas premissas
absolutas. Não há mais lugar para esta ética imparcial.

Posto isso, em que consiste a ética hoje? A idéia de se pen­


sar em um conceito de ética que difere do passado e responde
às necessidades do m omento confirma sua historicidade, sua
dinâmica, bem como a orientação teórica que a orienta. E n ­
tretanto, ela tem sido considerada sempre como um a form a
de ser no mundo, um estilo de vida. Como indica a própria
etimologia da palavra ética, do grego ethos, que quer dizer
modo de existir humano. Coerente com esse entendim ento,
Pegoraro (2002, p. 28) assim a conceitua:

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Elizete Passos

[...] ela é antes de tudo um a concepção da vida, um estilo,


um modo de existir do hom em [...] ética é um horizonte
que exprime o sentido, o rumo que damos ao nosso viver,
o rumo que procuramos traçar para a história, humana
e cósmica.

Assim, possuir um horizonte ético é um a característica


de todo ser hum ano. Não há quem não o tenha, ainda que de
m aneira deturpada e avessa ao bem-estar individual e coletivo.
Na prática, ele se configura em norm as de conduta que são
provisórias, assim como as ações hum anas. Então, a proviso-
riedade não é do horizonte ético, de tê-lo ou não, mas sim das
norm as e das ações que elas orientam . Isso porque, as pessoas
se modificam, do mesmo modo que a sociedade, exigindo novas
formas de com portam ento dos seres humanos.
Em todos os tempos, existiu um horizonte ético. P ara os
gregos, ele se caracterizava como viver bem, te r um a vida
individual boa, centrada na amizade, justiça e n a solidarie­
dade. A ética aristotélica visava a encontrar o equilíbrio das
paixões, o meio term o e fugir dos extremos. O ideal ético
consistia em procurar viver sem conflitos e em um a sociedade
que fosse boa para todos os seus membros. N a Idade Média, o
leme apontava para a vida eterna, e o ideal ético consistia na
santidade, no amor e em toda orientação revelada por Deus. A
Idade Moderna, centrada na razão e no poder do ser humano,
sintetizou seu ideal na liberdade hum ana, n a igualdade e na
fraternidade. Contem poraneam ente, há um m aior destaque
para a im portância do ser hum ano, o valor intrínseco de
cada indivíduo, independentem ente de raça, credo, gênero
ou condição social. Em síntese, o ideal ético não tem variado;
ele vem se repetindo como o direito do ser hum ano viver de
forma digna, hum ana, ju sta e feliz.
Posto o nosso entendim ento do que seja a ética, para efeito
de m aior aprofundam ento e para dirim ir possíveis dúvidas,
vale lem brar pelo menos as duas maiores orientações filosó­

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Ética e Psicologia: teoria e prática

ficas que vêm sendo usadas para defini-la: a tradicional, que


se baseia na Lei N atural ou Positiva, e a atual, de enfoque
dialético.
A prim eira parte de conceitos abstratos e absolutos, como
os que ensinam: “faça o bem e evite o m al”; “faça aos outros o
que você deseja que seja feito a você”. Essa concepção acredita
que a lei moral está no íntim o de cada ser hum ano e corres­
ponde a sua essência, que tem origem em Deus. Também não
tem dúvidas quanto ao que é bem e mal. O prim eiro é todo
com portam ento que não vai de encontro a nossa suposta
essência, ao contrário, estaríam os no campo do mal.
A segunda tendência difere fundam entalm ente da prim ei­
ra, por considerar que o próprio universo m oral se e stru tu ra
com a cultura, bem como as decisões e norm as de compor­
tam ento que ele alicerça. D iante do que, a ética vai sendo
continuadam ente inventada, pois ela aponta para a sociedade
e para as pessoas os rum os a serem seguidos. A diferença
da tendência tradicional tam bém se caracteriza pela forma
de vivenciar as orientações apresentadas pela cultura. Nada de
segui-las mecanicamente, nada de cumpri-las sem consciência
do que são e de onde levarão. Elas precisam ser entendidas,
escolhidas e praticadas ou não. Como dissemos em passagem
anterior, essa condição que define a postura do sujeito moral,
não se dá fora de condicionamentos sociais, econômicos, polí­
ticos e ideológicos, entretanto reafirmamos que esses lim itam
a liberdade do sujeito, m as não a elimina. Ele precisa, com
boa vontade e sabedoria, encontrar as “brechas” deixadas por
tais determ inism os e ultrapassá-las, pois só assim exercitará
sua liberdade e poderá modificar o cenário social.
Com o intuito de dirim ir dúvidas e enfatizar o que consi­
deramos como ética, tratarem os agora daquilo que o senso
comum considera como ético, mas que nós interpretam os
como um entendim ento destorcido: código de prescrições de
comportamento, religião, ações meramente individuais.

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Elizete Passos

É b astante comum encontrarm os pessoas, algum as até


que se dedicam a falar profissionalmente do assunto, tam bém
m anuais de ética que a definem como norm as, princípios a
serem seguidos inquestionavelm ente, códigos deontológicos.
De orientação livre, consciente e reflexiva sobre a vida, ela se
reduz a norm as burocráticas a serem seguidas, certam ente
quando o sujeito estiver diante da possibilidade de algum
tipo de punição, de Deus, dos pais, dos professores, do chefe
ou da sociedade.
A ética tradicional, por te r n a religião um a das suas p rin ­
cipais fontes, vem sendo confundida com ela, especialmente
com aquela de base cristã. Nossa cultura, im pregnada de
religiosidade, em que os representantes da igreja têm o po­
der de definir, em grande parte, o com portam ento moral das
pessoas, tam bém pode ser um a das causas de tal confusão.
Contudo, ela não é coerente, até porque a ética antecede ao
cristianism o e a ocidental teve como berço à Grécia antiga,
onde os pensadores daquele momento, grandes teorizadores
do assunto, tom ava-a como um a vida ju sta e boa.
Quanto à tendência de considerá-la como um a prática in­
dividual, vale lem brar o seu caráter social. O sujeito não age
isoladamente, porque ele é um ser político, como preconizou
Aristóteles. Vive na pólis, em comunidade, relacionando-se
com os outros sujeitos. Ela se refere a essas relações, bem
como com o produto das ações hum anas, como a ciência e a
tecnologia, e com o meio ambiente. Portanto, a ética não pode
ser individual, ela é sempre relacionai.
Sintetizando, reafirm am os que ela não pode consistir em
valores abstratos e metafísicos; que o horizonte ético, ainda
que centrado em pilares que não devem ser abandonados,
tais como justiça, honestidade, verdade, democracia, direi­
tos hum anos entre outros, não pode ser tomado como ideal
abstrato, pois vai sendo elaborado socialmente com base nas
condições concretas.

30
Ética e Psicologia: teoria e prática

Mesmo defendendo essa posição, não negamos a existência


de inúm eras tendências da ética, convivendo juntas, desde
as de tradição metafísica até aquelas de inspiração história.
Igualm ente verdadeira é a existência de visões conceituais
que tom am a ética como lei, religião ou até moralismo. Para
nós, entretanto, ela é filosofia moral, ou seja, reflexão sobre
o com portam ento m oral e seus fundam entos.
Também firmamos o conceito que o com portam ento moral
é exclusivo dos seres hum anos, pois pressupõe um agir cons­
ciente e livre, por conseqüência, responsável. O sujeito ético
não se preocupa apenas com seus interesses, mas em agir de
modo que inclua o bem -estar coletivo. Pensar apenas em si
mesmo pode não ser antiético, mas não realiza o indivíduo,
pois suas conquistas não são partilhadas e acabam não tr a ­
zendo prazer e alegria. Contudo, a escolha é do próprio indiví­
duo. É ele quem dá direção e sentido a sua vida, a suas ações,
podendo escolher o caminho da aflição, do individualismo ou
da alegria e da felicidade, mesmo diante das limitações a que
todos estão sujeitos, pois, como vimos, elas não impedem a
liberdade, apenas a dificultam.
Isso nos leva a o u tra dimensão da ética tom ada como lei,
que consiste nas sanções a que o indivíduo se encontra sujeito
no caso de um comportamento ser considerado mau, do ponto
de vista moral. Costumeiramente, acreditamos que é bom tudo
aquilo que ten h a um produto considerado proveitoso, bené­
fico, etc. Tomamos a idéia como universal e acreditam os ser
possível aplicá-la em toda e qualquer situação. Na sociedade,
um a pessoa tem um bom com portam ento quando cum pre as
leis estabelecidas: paga seus impostos, não infringe os códigos
socialmente convencionados. Do contrário, ela será penalizada
com sanções que vão desde a repreensão até o cerceamento
dos seus direitos civis, como o de ir e vir, escolher onde quer
estar e com quem, por exemplo.
Do ponto de vista do com portam ento moral, não se pode
falar de um único bom, pois ele se revela de formas diferentes

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Elizete Passos

com base nas circunstâncias e nas orientações filosóficas.


Para K ant, o bom era o com portam ento que visasse ao cum­
prim ento do dever. Tinha, portanto, um a fundam entação
absoluta. Hum e vai definir o bom como aquilo que seja alvo
da escolha do m aior núm ero de pessoas. H á tam bém quem o
defina como o comportamento útil, apenas para citar algumas
tendências.
As norm as morais diferenciam-se das convenções, quase
sempre de adesão aparente por parte do sujeito, tam bém do
bom como utilitário. O ato moral não se to rn a bom por ser es­
colhido pelo maior núm ero de pessoas, mas porque é escolhido
por ser bom. Ele não é de ordem material, como podemos falar
de um bom profissional no sentido de com petente tecnica­
mente. O bom moral só se refere às ações hum anas e tem como
sentim ento um tipo de vergonha que provoca sentim entos de
revolta, indignação, alegria, e não apenas do dever cumprido,
ainda que ele em nada contribua para o crescimento pessoal
e para o bem coletivo (TUGENDHAT, 2000).
Disso decorre um tipo de sanção que só se dá quando o su­
jeito internaliza o significado do seu ato. Diferentemente das
sanções legais que independem de tal convicção e são praticadas
por instituições sociais, ainda que o indivíduo não ten h a se
convencido de que mereça a repreensão. A sanção moral é um a
sanção interna, que depende da sua consciência moral.
A consciência moral dá ao indivíduo a clareza de que faz
parte de um todo e deve agir de modo a não ferir os outros.
Nas palavras de T ugendhat (2000, p. 64):

[...] ele se entende como pertencente a uma totalidade de


pessoas que, mediante a sanção interna da indignação e
da vergonha, exigem reciprocamente um as das outras que
estas normas constitutivas das identidades não sejam fe­
ridas.

Logicamente, a vergonha advinda da quebra de um a norm a


m oral só ocorrerá se ele tiver consciência de sua participação

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Ética e Psicologia: teoria e prática

no todo social e sua responsabilidade para com ele. O autor


citado nos diz: “[...] sem este querer - pertencer, ele não pode
sen tir vergonha quando fere as norm as correspondentes,
nem indignação quando outros as ferem .” (TUGENDHAT,
2 0 0 0 , p . 6 4 ).

Por fim, retornam os à nossa síntese. O com portam ento


moral não pode decorrer apenas da obrigação ou do medo de
infringir as norm as estabelecidas e ser socialmente punido.
Ao contrário, ele precisa ser um ato de vontade, de escolha e
de consciência.

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