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Nomeando o “identitarismo” de Roudinesco: do universalismo à mutação e hibridez da


psicanálise

Mariana Pombo
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Nomeando o “identitarismo” de Roudinesco: do universalismo à mutação e hibridez da

psicanálise

O filósofo queer Paul B. Preciado (2020) diz, em seu último livro, Je suis un monstre

qui vous parle1, que os psicanalistas contemporâneos não admitem a crise em que se encontra

a epistemologia da diferença sexual e insistem em sustentar a sua universalidade. O diagnóstico

da crise, feito por Preciado, é simples: quando questões novas se impõem e denunciam a

insuficiência de um dispositivo para respondê-las, é sinal de que está ultrapassado e precisa ser

substituído; isso, segundo ele, está acontecendo desde os anos 1950, com as transformações e

revoluções no campo da sexualidade e do gênero.

Na opinião do filósofo, o próprio Lacan, cuja teoria é concebida justamente no começo

da crise do paradigma da diferença sexual, já tenta responder à crise e desnaturalizar a diferença

sexual, mas sem sucesso, pois, embora se afastando da anatomia e recorrendo à linguística, o

pensamento do psicanalista acaba por reforçar o binarismo sexual e o patriarcado

heterossexual, no qual ele próprio estava imerso.

Ao movimento contemporâneo regressivo e resistente às mudanças Preciado (2020) dá

o nome de “reafirmações hiperbólicas do paradigma em crise”. Como a própria expressão

revela, trata-se de discursos que, em vez de acolher a crise e as mutações, se empenham, ao

contrário, em reiterar, muitas vezes de modo exagerado, pressupostos de uma epistemologia já

insuficiente e até sem sentido. Na psicanálise, não faltam exemplos de narrativas atuais que

alçam o binarismo sexual, o falo, o complexo de Édipo, o Nome-do-Pai, entre outros, ao

patamar de operadores universais do psiquismo, desconsiderando tanto a contingência histórica

desses construtos, como os efeitos, sobre as dissidências sexuais e de gênero, de seu emprego

atemporal e descuidado.

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Edição brasileira: Preciado, Paul B. (2022) Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de
psicanalistas. Rio de Janeiro: Zahar (N.E.)
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Recentemente, mais uma publicação psicanalítica encorpa o conjunto das “reafirmações

hiperbólicas do paradigma em crise” e tem sido, inclusive, bastante comentada no Brasil: o

último livro de Elisabeth Roudinesco, de 2021, traduzido para o português com o título O eu

soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. Nele, o “universal”, na forma de identidade, é

sustentado com afinco pela autora, incomodada com os movimentos minoritários e a

efervescência de novos nomes, lutas, experimentações e alianças, que, segundo ela, aboliriam

o sexo e a alteridade. Seu texto configura, assim, uma ocasião potente para pensarmos e

criticarmos a defesa do universalismo ainda hoje e suas implicações para a psicanálise, bem

como para ressaltarmos, na contramão disso, a importância das mutações e da hibridez para

nosso campo teórico e prático.

“Identitarismo”, identidade, identificações

De imediato, a leitura de O eu soberano evidencia a posição declinológica e nostálgica

de Roudinesco (2021) diante dos novos teóricos e militantes de esquerda, sobretudo, as

minorias sexuais e de gênero e as racializadas. Se por um lado a autora reconhece a importância,

no sentido da antinormatividade e da anticolonialidade, de pensadores de meados do século

XX, como Foucault, Césaire, Derrida e mesmo Fanon, por outro desvaloriza, julga como piores

e problemáticos os ativismos que florescem a partir dos anos 1980, 1990 e 2000. Vale ressaltar

que esses ativismos buscam revisar as estratégias políticas e discursivas até então hegemônicas

de luta, questionar o que é tido como universal (ocidental, branco, europeu, masculino,

heterossexual, cisgênero) e descentralizar as posições de enunciação.

A esses movimentos sociais e minoritários mais recentes, a autora francesa dá os nomes

pejorativos “identitarismos”, “derivas identitárias” e até “neuroses identitárias”, com o intuito

de criticar que eles, em vez de manterem o significado universal de identidade – que, para

Roudinesco (2021), já seria múltiplo e comportaria diferenças – e lutarem por uma “igualdade
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cidadã universal”, reforçariam experiências específicas e particularidades e, assim,

alimentariam comunitarismos, separatismos e hipertrofias do eu. No que diz respeito

especificamente ao movimento e à teoria queer, aos quais Roudinesco (2021) dedica bastante

espaço no livro, a crítica é igualmente contundente: haveria aí um “identitarismo da errância”,

um “culto do caos desconstruído ao infinito”, uma tentativa de abolir toda identidade em prol

de uma “identidade da identidade” (p. 108).

Aqui, é importante recordar, antes de mais nada, a crítica feita pelos autores e militantes

queer à lógica da política identitária, o que os afasta tanto do movimento feminista como dos

coletivos de gays e de lésbicas existentes à época. A proposta queer vai, inclusive, na direção

oposta ao que Roudinesco (2021) chama de “identitarismo”, porque se trata de unir minorias

diversas que, ultrapassando seus particularismos identitários, podem lutar e resistir, de modo

mais eficaz, à heteronormatividade (Dean, 2006). Nos termos de Teresa de Lauretis (2010),

queer é um gesto na direção de uma antinormatividade e, por isso mesmo, rompe com a ideia

de identidade, considerada normativa e conservadora.

Em seu artigo sobre as “multidões queer”, Preciado (2011) diz que a estratégia política

dessa multidão é, ao mesmo tempo, hiperidentitária e pós-identitária. O viés hiperidentitário

aparece no uso máximo da posição de identidade desviante e injuriosa, com o objetivo de

transformá-la em identificação que resista à norma e ao ponto de vista universal, branco,

colonial e heterossexual do humano. Já a faceta pós-identitária denuncia os efeitos

normalizantes e disciplinares de toda formação identitária e acredita que não há uma base

natural (“mulher”, “gay”, “lésbica” etc.) que possa legitimar a ação política. A multidão queer

não é uma formação identitária, um grupo que reuniria sujeitos a partir de sexo, gênero ou

desejo sexual em comum. É uma multidão que diz respeito, antes, a um movimento de

desconstrução e de rompimento com a própria categoria de identidade, de desontologização do

sujeito da política das identidades.


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E por que é tão importante resistir à normalização e à universalização das identidades,

como propõe a teoria queer? Temos aqui um ponto fundamental, que é deixado de fora da

análise de Roudinesco: toda identidade descreve, além de características ou atributos de

pessoas, normas de inteligibilidade. Ou seja, a identidade universal, tão defendida pela

psicanalista francesa como “habitada pela liberdade, dividida, sempre ‘outra’ sendo si-mesma”

(Roudinesco, 2021, p. 6), é efeito de práticas e discursos hegemônicos e, por isso mesmo,

produz um campo de exclusão e de abjeção, formado pelos sujeitos que não se identificam com

os seus termos (Butler, 1993/2013).

Em outras palavras, poderíamos dizer que a identidade universal é também a identidade

majoritária, que invariavelmente deixa as minorias fora da representatividade e da luta política.

Como bem coloca Judith Butler (1993/2019), toda vez que uma identidade é intensificada como

coerente e legítima, outras tantas possibilidades de identificação são deslegitimadas e

rejeitadas.

Essa ordem de repúdio não só culmina na rígida ocupação de identidades excludentes,


mas tende a cumprir esse princípio de exclusão a todo aquele que se enxergue desviante
de tais posições. Prescrever uma identificação exclusiva para um sujeito constituído de
formas múltiplas, da maneira como todos estamos sujeitos, é impor uma redução e uma
paralisia (Butler, 1993/2019, p. 202).

Por essas razões, a aposta de Roudinesco em assimilação, reconciliação ou partilha das

culturas minoritárias com a cultura universal, uma ordem excludente e normativa, não é

razoável. A luta política queer não almeja aceitação ou integração das diferenças ao sistema

normativo hegemônico, mas, antes, o questionamento e a subversão do próprio sistema. Como

elucida, com precisão, Butler (1993/2019), a ocupação e a ressignificação de uma posição

enunciativa marginalizada, no regime normativo contemporâneo, não visam à ascensão a locais


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preexistentes dentro desse regime, mas à própria rearticulação das possiblidades de enunciação,

com o alargamento das fronteiras do campo de inteligibilidade social2.

Além disso, a insistência na identidade universal costuma vir acompanhada da defesa

de uma base natural ou biológica que a validaria; esse tipo de argumentação acaba por excluir

ainda mais certos sujeitos e corpos. No texto de Roudinesco (2021), por exemplo, chama muito

a atenção que, apesar de criticar essencialismos nos ditos movimentos identitários, a autora

demonstra um absoluto desconforto, quiçá indignação, com a desconstrução queer da categoria

de sexo. Para ela, tudo ia muito bem, no sentido da emancipação, enquanto o feminismo –

seguindo Simone de Beauvoir – diferenciava sexo e gênero, até que presenciamos, nas últimas

décadas, “um delírio conduzindo à abolição do sexo” (Roudinesco, 2021, p. 27), “uma

declaração de guerra à realidade anatômica em prol de um imperativo ‘generificado’”

(Roudinesco, 2021, p. 34).

Aqui, Roudinesco se aproxima de outros psicanalistas franceses contemporâneos, como

Charles Melman (2010) e Michel Schneider (2007), por compartilharem a preocupação com o

“esvaziamento”, a “abolição” ou o “apagamento” da diferença sexual, tida como um dado

incontornável da biologia e da anatomia. O pensamento da psicanalista, que defende um

culturalismo laico e republicano herdado de Lévi-Strauss, nos remete também à posição

estruturalista de Françoise Héritier (1996) de que a “diferença irredutível dos sexos” está no

fundamento da cultura, do pensamento e da subjetivação.

Roudinesco (2021, p. 65) entende que só existe uma “espécie humana”, determinada

pela existência universal de três dimensões (biológica, social e psíquica) e que qualquer

tentativa de desconstrução disso, que seria a “especificidade humana”, embaralharia as

diferenças e configuraria um “movimento de regressão normalizadora”. Vale lembrar que

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Para maior aprofundamento das possibilidades subversivas propostas pela teoria queer, conferir
Pombo (2021).
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Preciado (2020) usa uma expressão parecida – “regressão discursiva” – para denunciar

justamente discursos, como o da psicanalista francesa, que não aceitam a crise da epistemologia

da diferença sexual e insistem em reafirmá-la.

Antes de mais nada, o regime da diferença sexual que vocês consideram como universal
e quase metafisico, sobre o qual repousa e se articula toda a teoria psicanalítica, não é
uma realidade empírica, nem uma ordem simbólica fundadora do inconsciente. É
apenas uma epistemologia do vivo, uma cartografia anatômica, uma economia política
do corpo e uma gestão coletiva das energias reprodutivas (Preciado, 2020, pos. 437,
tradução minha).

E o filósofo denuncia, ainda, os efeitos dessa reafirmação, feita pela psicanálise, sobre

pessoas queer, como ele, que ousam transgredir a tal especificidade humana: elas são colocadas

na jaula da monstruosidade, da não humanidade, porque, ao contrário do que Roudinesco

(2021) afirma, essa humanidade universal não respeita e acolhe tantas diferenças assim.

Portanto, quando Butler (1990/2013) afirma que talvez o sexo sempre tenha sido o

gênero – ou seja, que a diferença binária entre os sexos é efeito, produto discursivo, da

reiteração de normas e performances de gênero –, ela contribui para dois movimentos

fundamentais. O primeiro é o rompimento com a suposta necessidade de concordância ou

coerência entre sexo e identidade de gênero, o que contribui para que mais sujeitos contem

como humanos e legítimos. O segundo é a possibilidade de ações políticas que não se baseiem

na noção de diferença sexual, o que legitima a participação e as alianças de uma pluralidade de

corpos oprimidos. Lembremos, por exemplo, que argumentos calcados na biologia foram

usados por setores radicais do feminismo para excluir do movimento mulheres trans, que,

segundo eles, não poderiam ser reconhecidas como mulheres por não terem nascido com uma

“vagina natural”.

Desse modo, a postura pós-identitária da teoria queer vai além dos que associam a

identidade à materialidade dos corpos, já que pensa os próprios corpos e suas diferenças como
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construções performáticas. A identidade não é mesmo pré-requisito para a participação política

(Butler, 2004/2012) e a contrapartida disso é que os ativismos podem ser exercitados por

qualquer pessoa, independentemente de suas identificações (de gênero, sexualidade, raça e

assim por diante). Ou seja, não é preciso se identificar como mulher para lutar contra o

machismo, nem como gay para lutar contra a homofobia, tampouco como trans para lutar

contra a transfobia – o que, mais uma vez, afasta definitivamente o movimento queer dos

identitarismos e essencialismos apontados por Roudinesco. Não há reforço narcísico das

pequenas diferenças, como pensa a psicanalista, mas abertura para a constituição de

comunidades baseadas em múltiplas identificações e para a construção de novos laços de

pertencimento e de solidariedade, que não sigam a lógica identitária e que rompam com a

distância imaginária radical eu x outro.

Chama a atenção, aliás, que Roudinesco (2021) não explore, como contraponto à

identidade, o conceito de identificação. Sabemos que essa noção é muito significativa para a

psicanálise, desde Freud (1914/1996, 1921/1996, 1923/1996, 1924/1996) – que, ao definir o

emaranhado complexo formado pelas identificações, com ambivalências, desarmonias e

incoerências entre elas, já apontava seu caráter maleável, não permanente –, até os dias atuais,

quando continua sendo valorizada por psicanalistas contemporâneos, como Thamy Ayouch

(2014, 2015, 2019), que também enfatiza sua característica temporária e mutável. Já que o

sujeito se constitui e se transforma a partir de identificações com o outro, apropriando-se, em

diferentes momentos de seus elementos, atributos e traços, a identificação se situa sempre em

uma história subjetiva e coletiva e está sempre inacabada.

De modo análogo, a teoria queer aposta justamente em múltiplas identificações,

contingentes e sempre em movimento, no lugar de uma identidade fixa:

As identificações nunca estão completa e terminantemente acabadas; elas são


incessantemente reconstituídas e, como tal, estão sujeitas à lógica volátil de
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iterabilidade. Elas são constantemente reordenadas, consolidadas, cercadas, contestadas


e, ocasionalmente, obrigadas a ceder. (Butler, 1993/2019, p. 185)

Butler (1997/2017, 2004/2012), inclusive, entende o inconsciente e a pulsão como

conceitos potentes da psicanálise que apontam para improvisações e deslocamentos dentro do

campo normativo e, assim, para a possibilidade de uma identidade abrir espaço para novas

identificações e devires. Nessa mesma direção, Ayouch (2015) afirma que as formações do

inconsciente apontam para a hibridez e a fluidez do próprio psiquismo, que podem dissolver as

rigidezes identitárias em novos movimentos identificatórios.

Também Preciado (2008/2018, 2020), ao descrever seu processo de transição de gênero,

explica que não busca se instalar em uma identidade de gênero ou em uma sexualidade fixa, e,

sim, se desidentificar dos atributos normativos que lhe foram atribuídos e das posições

subjetivas definidas pelo paradigma da diferença sexual. Essa desidentificação, para ele, tem

importância individual e coletiva. Individual, porque é ocasião para novas experimentações,

percepções, maneiras de sentir e de amar, mesmo que essa ruptura implique sair da esfera do

humano e entrar em um espaço subalterno (a seu ver, porém, posição menos dolorosa que a

destruição da potência vital que seria efeito da aceitação da norma). Coletiva, porque desafia o

heteropatriarcado e a identidade, trazendo o embrião de uma revolução: “a desidentificação é

uma condição de emergência do político como possibilidade de transformação da realidade”

(Preciado, 2008/2018, p. 414).

Do universal ao híbrido

Para Preciado (2020), da mesma forma que ele e outras pessoas queer e dissidentes de

gênero tentam escapar da servidão ao regime da diferença sexual e se descolonizar, se

desidentificar e se desbinarizar – o que conduz ao encontro, em si, de uma energia que abre a

mudanças inesperadas –, também os psicanalistas deveriam sair dessa posição repetitiva, se


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desidentificar e se transmutar; isso, provoca o filósofo, deveria ocorrer tanto no plano teórico

como no das próprias experiências: “Viver além da lei patriarco-colonial, viver fora da lei da

diferença sexual, viver fora da violência sexual e do gênero é um direito que todo corpo vivo,

mesmo um psicanalista, deveria ter” (Preciado, 2020, pos. 387-392, tradução minha).

No que diz respeito à teoria e à prática psicanalíticas, Preciado defende que, se houver

um engajamento dos psicanalistas, no sentido de uma mutação da psicanálise à altura da

mutação de paradigma em curso, seria possível a emergência de uma psicanálise mutante: uma

psicanálise que reconheça sua posição política situada e, por isso mesmo, se dedique a

questionar, problematizar e transformar seus referenciais teóricos e instrumentos clínicos.

A mutação da psicanálise, que envolve autocrítica e revisão, corresponde, nas palavras

do autor, a “um processo de depatriarcalização, de des-heterosexualização e de descolonização

da psicanálise, como discurso, narrativa, instituição e prática clínica” (Preciado, 2020, pos.

863-868, tradução minha). Esse movimento vai, portanto, na direção oposta à reafirmação da

universalidade de paradigmas e dispositivos, reafirmação que, segundo o filosofo, além de

corroborar o regime patriarco-colonial e suas violências, traz um risco à sobrevivência da

própria psicanálise.

Nesse contexto, o discurso de Roudinesco (2021) exemplifica, mais uma vez, a posição

criticada por Preciado, contrária à mutação da psicanálise e em defesa da universalidade, tanto

do “humano”, como já vimos, como do arcabouço teórico psicanalítico. Mesmo quando não

está ainda se referindo especificamente à psicanálise e sim aos novos estudos e movimentos

queer e decoloniais, fica evidente a enorme dificuldade da psicanalista em acolher e escutar o

que surge de novo no campo social e político: ela critica e debocha da emergência de novos

modos de enunciação, que qualifica de obscuros, e de novos termos, que estariam inspirados

nas classificações da psiquiatria e dos quais “hibridismo” seria a palavra-chave. “A cada vez,

a mesma ação se repete como se fosse necessário destruir os significantes da velha ordem para
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dar lugar ao advento de um mundo melhor” (Roudinesco, 2021, p. 208). E não é disso mesmo

que precisamos? A dificuldade, aos seus ouvidos e pensamento estruturalistas, parece ser a de

abrir mão de categorias estanques e rígidas em prol de novas referências possíveis para

descrever uma multiplicidade de experiências e de diferenças.

Em se tratando da psicanálise de modo mais específico, Roudinesco tampouco se

mostra minimamente disponível a se engajar na revolução a que Preciado convoca. Ao

contrário, no livro, a autora apoia o grupo de 80 psicanalistas que se manifestou na tribuna do

Le Monde, em setembro de 2019, para informar ao “cidadão democrata” sobre o perigo que o

pensamento decolonial representaria para as ciências humanas e a psicanálise e, mesmo, para

os valores democráticos e republicanos. Segundo o manifesto, tratar-se-ia de uma “ideologia”

que nega a especificidade do humano, que perverte o uso da linguagem e o sentido das palavras,

ameaçando a psicanálise, que “é um universalismo, um humanismo” e “visa à palavra

verdadeira, em prol da singularidade do sujeito e de sua emancipação” (Collectif de

psychanalystes, 2019, s/p., tradução minha). Ou seja, contestar o “universal” ou “a verdade”

da psicanálise é uma afronta aos olhos desses psicanalistas, que afirmam, ainda, que a

constituição psíquica, para Freud, não é um particularismo, mas depende da tensão entre o

singular e o universal.

Roudinesco, além de explicitar sua identificação com esse manifesto, desqualifica e

ironiza a manifestação que houve na sequência, publicada na tribuna do Libération e assinada

por 150 psis e intelectuais. Esse segundo texto, ao contrário do primeiro manifesto, aponta a

importância de a psicanálise reconhecer e se abrir ao debate com perspectivas críticas

contemporâneas, como os estudos decoloniais, que contestam um discurso unitário, além de

estar atenta a modos de subjetivação diferentes dos majoritários.

O universalismo “humanista” republicano, estabelecido como ideal abstrato, não pode


se tornar o princípio em nome do qual seria legítimo censurar a vida dos outros,
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reduzidos a não serem mais tidos como humanos semelhantes (Groupe de


psychanalystes et d’intellectuels, 2019, s/p., tradução minha).

O comentário de Roudinesco (2021) sobre essa manifestação crítica ao universalismo

reforça, no entanto, e mais uma vez, a própria ideia de universal, pois a autora retruca que

ninguém demonstrou como os novos conceitos das teorias decoloniais e queer permitiriam

tornar Freud mais universal.

Thamy Ayouch (2019), um dos psicanalistas que assinam o segundo manifesto, propõe

que esse universalismo seja combatido por meio da hibridação da psicanálise, tanto com sua

época e cultura como com outros saberes. Uma psicanálise hibridada, ou uma psicanálise

menor, como o autor sustenta, parece se aproximar da psicanálise mutante imaginada por

Preciado, pois preconiza partir das vozes e dos processos de subjetivação minoritários para

desconstruir noções ultrapassadas do discurso psicanalítico majoritário e, assim, criar novas

possibilidades de teoria e de escuta, que acolham particularidades de gênero, sexualidade,

cultura, classe e raça.

É interessante que tanto Preciado, ao sugerir uma psicanálise mutante, como Ayouch,

ao nomear uma psicanálise hibridada ou menor, fazem questão de se afastar de uma proposta

identitária, isto é, da criação de um nicho da psicanálise que acolheria especificamente as

minorias – inclusive porque não se acredita que elas requereriam uma abordagem analítica

diferente da empregada com sujeitos identificados com a heterocisgeneridade –, enfatizando

que se trata, antes, de submeter a psicanálise, como prática e discurso, a questionamentos e

revisões. Psicanálise menor alude à literatura menor proposta por Deleuze e Guattari e pretende

desterritorializar a linguagem psicanalítica maior, que toma como modelo de sujeito um

homem branco, cis, heterossexual, de classe média ou privilegiada.

Ayouch (2019) sugere que os psicanalistas empreguem, em sua prática teórica e clínica,

uma ferramenta desconstrutivista para questionar o caráter universal das normas e dos modos
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de subjetivação e não reproduzir discursos e categorias totalizantes e reducionistas de gênero e

de raça, que limitam a compreensão e a escuta dos sujeitos. Aqui, mais uma vez, os limites do

universalismo estão colocados, porque, quando não se abandonam modelos de inteligibilidade

historicamente situados, o outro e o estranho acabam sendo reduzidos ao mesmo e ao familiar

e, dessa maneira, a escuta analítica não acontece. Na contramão disso, a psicanálise menor é,

então, psicanálise do devir, que se abre ao ininteligível, sem procurar enquadrá-lo em modelos

rígidos e opressores de inteligibilidade, entendendo que esses modelos são históricos e,

portanto, passíveis de mudança.

“Como podemos então ouvir o ininteligível? Como não o descartar, à primeira vista,

como alteridade total e inacessível nem, ao contrário, reduzi-lo a modelos familiares? (Ayouch,

2019, p. 19). O psicanalista defende que a desconstrução do universal deve ser constante e

ocorrer em três esferas: no discurso do analista, no discurso do analisando e no funcionamento

da teorização analítica. O autor entende que todo analista precisa submeter à análise da

contratransferência suas posições imaginárias e fantasmáticas em relação às particularidades

de gênero, raça e classe dos sujeitos, posições engendradas por representações, conscientes ou

inconscientes. Ou seja, o analista também deve ser capaz de se mover no conjunto de normas,

certezas e convicções que constitui o próprio analista em si.

No que diz respeito ao analisando, a proposta da psicanálise menor é a de que qualquer

paciente, em posição social minorizada ou não, possa perceber a contingência de suas

representações e reconstruir sua relação com as normas de uma perspectiva absolutamente

singular. Já no que tange à desconstrução do universal, no âmbito das teorias e categorias

analíticas, a ideia é a de que o movimento de questionamento e de confrontação das normas

hegemônicas deve estender-se ao interior dos próprios discursos e práticas psicanalíticas que,

muitas vezes, incorrem em exclusões, homofobias e transfobias.


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Nomear a norma

Usando os termos de Ayouch, poderíamos dizer que falta a Roudinesco (2021) e a tantos

psicanalistas atuais, que continuam defendendo o universal, a aplicação da ferramenta

desconstrutivista a seus próprios discursos, que não enxergam como majoritários, excludentes

e reducionistas. Aqui, nomear como majoritário e, portanto, violento, o que se apresenta como

universal, como norma, pode ser um primeiro passo fundamental rumo à mudança, como

defende Jota Mombaça (2021), ao propor uma redistribuição desobediente de gênero e

anticolonial da violência. “A não marcação [da norma] é o que garante às posições privilegiadas

(normativas) seu princípio de não questionamento, isto é: seu conforto ontológico, sua

habilidade de perceber a si como norma e ao mundo como espelho” (Mombaça, 2021, p. 75).

Roudinesco (2021) se posiciona de modo contrário à nomeação ou marcação da norma

quando, por exemplo, defende como forma de combate ao racismo a retirada do termo “raça”

do primeiro artigo da constituição francesa, com o argumento de que raça não existe do ponto

de vista científico – retirada que não aconteceu devido à crítica e à reprovação dos próprios

movimentos racializados. Se a norma tem seu privilégio garantido porque é o que não se

nomeia, como coloca Mombaça, retirar “raça” da constituição significaria não confrontar o fato

de que as pessoas são classificadas, hierarquizadas, recompensadas ou punidas de acordo com

a norma da branquitude. Ou seja, quando a norma não é nomeada, tanto os sujeitos em posição

majoritária não têm seu privilégio marcado, como os sujeitos minoritários são hipermarcados

e deslegitimados em suas diferenças.

A ideia de que a desconstrução do racismo ou da branquitude como norma poderia

ocorrer por meio da omissão ou exclusão de uma palavra da constituição soa bastante inusitada

quando é defendida por uma psicanalista, conhecedora do mecanismo do recalque e dos efeitos

sobre o psiquismo das lacunas deixadas pelos esquecimentos forçados. Na contramão disso,

lembremos também da estratégia política da teoria queer para desconstruir e subverter a norma
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e, desse modo, contestar a realidade (Butler, 1993/2019): diante de discursos machistas,

homofóbicos, transfóbicos, racistas e afins, a estratégia consiste, não em repreendê-los (muito

menos em ignorá-los, poderíamos acrescentar), mas em se deixar ocupar por seus termos, em

repeti-los em outras direções que invertam os objetivos originários de insulto e de violação.

Ou seja, é preciso haver a reapropriação das normas homofóbicas, misóginas e racistas

da cultura branca heterossexual para que outras referências de sexualidade, raça e classe

possam ser trazidas para o regime normativo; para isso acontecer, mais uma vez, a norma

precisa ser nomeada, ter sua historicidade revelada, obrigando os discursos majoritários a se

reverem e transformarem:

Nomear a norma é devolver essa interpelação e obrigar o normal a confrontar-se


consigo próprio, expor os regimes que o sustentam, bagunçar a lógica de seu privilégio,
intensificar suas crises e desmontar sua ontologia dominante e controladora (Mombaça,
2021, p. 76).

Nesse sentido, este texto representa uma tentativa, tomando o livro de Roudinesco

(2021) como exemplo, de nomear, confrontar e desnaturalizar discursos psicanalíticos que se

apresentam como universais e inabaláveis às contingências históricas. Que este seja, então,

mais um passo e uma oportunidade para a psicanálise historicizar, repensar e recriar seus

enunciados e referenciais teóricos, lembrando que, nas palavras de Preciado (2020, pos. 527-

532, tradução minha), “esses processos não podem ocorrer sem uma análise exaustiva de seus

pressupostos. Não os recalquem, não os neguem, não os reprimam, não os desloquem”. Ou,

nos termos de Ana María Fernández (2017), a única via para evitarmos a cristalização dos não

pensados de nossa teoria, que compõem seu domínio inconsciente, é encarar o desafio de

produzir pensamento no limite do que não se sabe, ali onde não se conta com a base epistêmica

necessária.
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Referências

Ayouch, T. (2014). A diferença entre os sexos na teoria psicanalítica: aporias e desconstruções.


Revista Brasileira de Psicanálise, 48(4), 58-72.
Ayouch, T. (2015). Psicanálise & homossexualidades: teoria, clínica, biopolítica. Curitiba:
CVR.
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Butler, J. (1990/2013). Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de
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Butler, J. (1993/2019). Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-
1 Edições.
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