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Mariana Pombo
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psicanálise
O filósofo queer Paul B. Preciado (2020) diz, em seu último livro, Je suis un monstre
qui vous parle1, que os psicanalistas contemporâneos não admitem a crise em que se encontra
da crise, feito por Preciado, é simples: quando questões novas se impõem e denunciam a
insuficiência de um dispositivo para respondê-las, é sinal de que está ultrapassado e precisa ser
substituído; isso, segundo ele, está acontecendo desde os anos 1950, com as transformações e
sexual, mas sem sucesso, pois, embora se afastando da anatomia e recorrendo à linguística, o
insuficiente e até sem sentido. Na psicanálise, não faltam exemplos de narrativas atuais que
desses construtos, como os efeitos, sobre as dissidências sexuais e de gênero, de seu emprego
atemporal e descuidado.
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Edição brasileira: Preciado, Paul B. (2022) Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de
psicanalistas. Rio de Janeiro: Zahar (N.E.)
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último livro de Elisabeth Roudinesco, de 2021, traduzido para o português com o título O eu
efervescência de novos nomes, lutas, experimentações e alianças, que, segundo ela, aboliriam
o sexo e a alteridade. Seu texto configura, assim, uma ocasião potente para pensarmos e
criticarmos a defesa do universalismo ainda hoje e suas implicações para a psicanálise, bem
como para ressaltarmos, na contramão disso, a importância das mutações e da hibridez para
XX, como Foucault, Césaire, Derrida e mesmo Fanon, por outro desvaloriza, julga como piores
e problemáticos os ativismos que florescem a partir dos anos 1980, 1990 e 2000. Vale ressaltar
que esses ativismos buscam revisar as estratégias políticas e discursivas até então hegemônicas
de luta, questionar o que é tido como universal (ocidental, branco, europeu, masculino,
de criticar que eles, em vez de manterem o significado universal de identidade – que, para
Roudinesco (2021), já seria múltiplo e comportaria diferenças – e lutarem por uma “igualdade
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especificamente ao movimento e à teoria queer, aos quais Roudinesco (2021) dedica bastante
um “culto do caos desconstruído ao infinito”, uma tentativa de abolir toda identidade em prol
Aqui, é importante recordar, antes de mais nada, a crítica feita pelos autores e militantes
queer à lógica da política identitária, o que os afasta tanto do movimento feminista como dos
coletivos de gays e de lésbicas existentes à época. A proposta queer vai, inclusive, na direção
oposta ao que Roudinesco (2021) chama de “identitarismo”, porque se trata de unir minorias
diversas que, ultrapassando seus particularismos identitários, podem lutar e resistir, de modo
mais eficaz, à heteronormatividade (Dean, 2006). Nos termos de Teresa de Lauretis (2010),
queer é um gesto na direção de uma antinormatividade e, por isso mesmo, rompe com a ideia
Em seu artigo sobre as “multidões queer”, Preciado (2011) diz que a estratégia política
normalizantes e disciplinares de toda formação identitária e acredita que não há uma base
natural (“mulher”, “gay”, “lésbica” etc.) que possa legitimar a ação política. A multidão queer
não é uma formação identitária, um grupo que reuniria sujeitos a partir de sexo, gênero ou
desejo sexual em comum. É uma multidão que diz respeito, antes, a um movimento de
como propõe a teoria queer? Temos aqui um ponto fundamental, que é deixado de fora da
psicanalista francesa como “habitada pela liberdade, dividida, sempre ‘outra’ sendo si-mesma”
(Roudinesco, 2021, p. 6), é efeito de práticas e discursos hegemônicos e, por isso mesmo,
produz um campo de exclusão e de abjeção, formado pelos sujeitos que não se identificam com
Como bem coloca Judith Butler (1993/2019), toda vez que uma identidade é intensificada como
rejeitadas.
culturas minoritárias com a cultura universal, uma ordem excludente e normativa, não é
razoável. A luta política queer não almeja aceitação ou integração das diferenças ao sistema
preexistentes dentro desse regime, mas à própria rearticulação das possiblidades de enunciação,
de uma base natural ou biológica que a validaria; esse tipo de argumentação acaba por excluir
ainda mais certos sujeitos e corpos. No texto de Roudinesco (2021), por exemplo, chama muito
a atenção que, apesar de criticar essencialismos nos ditos movimentos identitários, a autora
de sexo. Para ela, tudo ia muito bem, no sentido da emancipação, enquanto o feminismo –
seguindo Simone de Beauvoir – diferenciava sexo e gênero, até que presenciamos, nas últimas
décadas, “um delírio conduzindo à abolição do sexo” (Roudinesco, 2021, p. 27), “uma
Charles Melman (2010) e Michel Schneider (2007), por compartilharem a preocupação com o
estruturalista de Françoise Héritier (1996) de que a “diferença irredutível dos sexos” está no
Roudinesco (2021, p. 65) entende que só existe uma “espécie humana”, determinada
pela existência universal de três dimensões (biológica, social e psíquica) e que qualquer
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Para maior aprofundamento das possibilidades subversivas propostas pela teoria queer, conferir
Pombo (2021).
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Preciado (2020) usa uma expressão parecida – “regressão discursiva” – para denunciar
justamente discursos, como o da psicanalista francesa, que não aceitam a crise da epistemologia
Antes de mais nada, o regime da diferença sexual que vocês consideram como universal
e quase metafisico, sobre o qual repousa e se articula toda a teoria psicanalítica, não é
uma realidade empírica, nem uma ordem simbólica fundadora do inconsciente. É
apenas uma epistemologia do vivo, uma cartografia anatômica, uma economia política
do corpo e uma gestão coletiva das energias reprodutivas (Preciado, 2020, pos. 437,
tradução minha).
E o filósofo denuncia, ainda, os efeitos dessa reafirmação, feita pela psicanálise, sobre
pessoas queer, como ele, que ousam transgredir a tal especificidade humana: elas são colocadas
(2021) afirma, essa humanidade universal não respeita e acolhe tantas diferenças assim.
Portanto, quando Butler (1990/2013) afirma que talvez o sexo sempre tenha sido o
gênero – ou seja, que a diferença binária entre os sexos é efeito, produto discursivo, da
coerência entre sexo e identidade de gênero, o que contribui para que mais sujeitos contem
como humanos e legítimos. O segundo é a possibilidade de ações políticas que não se baseiem
corpos oprimidos. Lembremos, por exemplo, que argumentos calcados na biologia foram
usados por setores radicais do feminismo para excluir do movimento mulheres trans, que,
segundo eles, não poderiam ser reconhecidas como mulheres por não terem nascido com uma
“vagina natural”.
Desse modo, a postura pós-identitária da teoria queer vai além dos que associam a
identidade à materialidade dos corpos, já que pensa os próprios corpos e suas diferenças como
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(Butler, 2004/2012) e a contrapartida disso é que os ativismos podem ser exercitados por
assim por diante). Ou seja, não é preciso se identificar como mulher para lutar contra o
machismo, nem como gay para lutar contra a homofobia, tampouco como trans para lutar
contra a transfobia – o que, mais uma vez, afasta definitivamente o movimento queer dos
pertencimento e de solidariedade, que não sigam a lógica identitária e que rompam com a
Chama a atenção, aliás, que Roudinesco (2021) não explore, como contraponto à
identidade, o conceito de identificação. Sabemos que essa noção é muito significativa para a
incoerências entre elas, já apontava seu caráter maleável, não permanente –, até os dias atuais,
quando continua sendo valorizada por psicanalistas contemporâneos, como Thamy Ayouch
(2014, 2015, 2019), que também enfatiza sua característica temporária e mutável. Já que o
campo normativo e, assim, para a possibilidade de uma identidade abrir espaço para novas
identificações e devires. Nessa mesma direção, Ayouch (2015) afirma que as formações do
inconsciente apontam para a hibridez e a fluidez do próprio psiquismo, que podem dissolver as
explica que não busca se instalar em uma identidade de gênero ou em uma sexualidade fixa, e,
sim, se desidentificar dos atributos normativos que lhe foram atribuídos e das posições
subjetivas definidas pelo paradigma da diferença sexual. Essa desidentificação, para ele, tem
percepções, maneiras de sentir e de amar, mesmo que essa ruptura implique sair da esfera do
humano e entrar em um espaço subalterno (a seu ver, porém, posição menos dolorosa que a
destruição da potência vital que seria efeito da aceitação da norma). Coletiva, porque desafia o
Do universal ao híbrido
Para Preciado (2020), da mesma forma que ele e outras pessoas queer e dissidentes de
desidentificar e se desbinarizar – o que conduz ao encontro, em si, de uma energia que abre a
desidentificar e se transmutar; isso, provoca o filósofo, deveria ocorrer tanto no plano teórico
como no das próprias experiências: “Viver além da lei patriarco-colonial, viver fora da lei da
diferença sexual, viver fora da violência sexual e do gênero é um direito que todo corpo vivo,
mesmo um psicanalista, deveria ter” (Preciado, 2020, pos. 387-392, tradução minha).
No que diz respeito à teoria e à prática psicanalíticas, Preciado defende que, se houver
mutação de paradigma em curso, seria possível a emergência de uma psicanálise mutante: uma
psicanálise que reconheça sua posição política situada e, por isso mesmo, se dedique a
da psicanálise, como discurso, narrativa, instituição e prática clínica” (Preciado, 2020, pos.
863-868, tradução minha). Esse movimento vai, portanto, na direção oposta à reafirmação da
própria psicanálise.
Nesse contexto, o discurso de Roudinesco (2021) exemplifica, mais uma vez, a posição
do “humano”, como já vimos, como do arcabouço teórico psicanalítico. Mesmo quando não
está ainda se referindo especificamente à psicanálise e sim aos novos estudos e movimentos
que surge de novo no campo social e político: ela critica e debocha da emergência de novos
modos de enunciação, que qualifica de obscuros, e de novos termos, que estariam inspirados
nas classificações da psiquiatria e dos quais “hibridismo” seria a palavra-chave. “A cada vez,
a mesma ação se repete como se fosse necessário destruir os significantes da velha ordem para
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dar lugar ao advento de um mundo melhor” (Roudinesco, 2021, p. 208). E não é disso mesmo
que precisamos? A dificuldade, aos seus ouvidos e pensamento estruturalistas, parece ser a de
abrir mão de categorias estanques e rígidas em prol de novas referências possíveis para
Le Monde, em setembro de 2019, para informar ao “cidadão democrata” sobre o perigo que o
que nega a especificidade do humano, que perverte o uso da linguagem e o sentido das palavras,
da psicanálise é uma afronta aos olhos desses psicanalistas, que afirmam, ainda, que a
constituição psíquica, para Freud, não é um particularismo, mas depende da tensão entre o
singular e o universal.
por 150 psis e intelectuais. Esse segundo texto, ao contrário do primeiro manifesto, aponta a
reforça, no entanto, e mais uma vez, a própria ideia de universal, pois a autora retruca que
ninguém demonstrou como os novos conceitos das teorias decoloniais e queer permitiriam
Thamy Ayouch (2019), um dos psicanalistas que assinam o segundo manifesto, propõe
que esse universalismo seja combatido por meio da hibridação da psicanálise, tanto com sua
época e cultura como com outros saberes. Uma psicanálise hibridada, ou uma psicanálise
menor, como o autor sustenta, parece se aproximar da psicanálise mutante imaginada por
Preciado, pois preconiza partir das vozes e dos processos de subjetivação minoritários para
É interessante que tanto Preciado, ao sugerir uma psicanálise mutante, como Ayouch,
ao nomear uma psicanálise hibridada ou menor, fazem questão de se afastar de uma proposta
minorias – inclusive porque não se acredita que elas requereriam uma abordagem analítica
revisões. Psicanálise menor alude à literatura menor proposta por Deleuze e Guattari e pretende
Ayouch (2019) sugere que os psicanalistas empreguem, em sua prática teórica e clínica,
uma ferramenta desconstrutivista para questionar o caráter universal das normas e dos modos
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de raça, que limitam a compreensão e a escuta dos sujeitos. Aqui, mais uma vez, os limites do
e, dessa maneira, a escuta analítica não acontece. Na contramão disso, a psicanálise menor é,
então, psicanálise do devir, que se abre ao ininteligível, sem procurar enquadrá-lo em modelos
“Como podemos então ouvir o ininteligível? Como não o descartar, à primeira vista,
como alteridade total e inacessível nem, ao contrário, reduzi-lo a modelos familiares? (Ayouch,
2019, p. 19). O psicanalista defende que a desconstrução do universal deve ser constante e
da teorização analítica. O autor entende que todo analista precisa submeter à análise da
de gênero, raça e classe dos sujeitos, posições engendradas por representações, conscientes ou
inconscientes. Ou seja, o analista também deve ser capaz de se mover no conjunto de normas,
hegemônicas deve estender-se ao interior dos próprios discursos e práticas psicanalíticas que,
Nomear a norma
Usando os termos de Ayouch, poderíamos dizer que falta a Roudinesco (2021) e a tantos
desconstrutivista a seus próprios discursos, que não enxergam como majoritários, excludentes
e reducionistas. Aqui, nomear como majoritário e, portanto, violento, o que se apresenta como
universal, como norma, pode ser um primeiro passo fundamental rumo à mudança, como
anticolonial da violência. “A não marcação [da norma] é o que garante às posições privilegiadas
(normativas) seu princípio de não questionamento, isto é: seu conforto ontológico, sua
habilidade de perceber a si como norma e ao mundo como espelho” (Mombaça, 2021, p. 75).
quando, por exemplo, defende como forma de combate ao racismo a retirada do termo “raça”
do primeiro artigo da constituição francesa, com o argumento de que raça não existe do ponto
de vista científico – retirada que não aconteceu devido à crítica e à reprovação dos próprios
movimentos racializados. Se a norma tem seu privilégio garantido porque é o que não se
nomeia, como coloca Mombaça, retirar “raça” da constituição significaria não confrontar o fato
a norma da branquitude. Ou seja, quando a norma não é nomeada, tanto os sujeitos em posição
majoritária não têm seu privilégio marcado, como os sujeitos minoritários são hipermarcados
ocorrer por meio da omissão ou exclusão de uma palavra da constituição soa bastante inusitada
quando é defendida por uma psicanalista, conhecedora do mecanismo do recalque e dos efeitos
sobre o psiquismo das lacunas deixadas pelos esquecimentos forçados. Na contramão disso,
lembremos também da estratégia política da teoria queer para desconstruir e subverter a norma
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menos em ignorá-los, poderíamos acrescentar), mas em se deixar ocupar por seus termos, em
da cultura branca heterossexual para que outras referências de sexualidade, raça e classe
possam ser trazidas para o regime normativo; para isso acontecer, mais uma vez, a norma
precisa ser nomeada, ter sua historicidade revelada, obrigando os discursos majoritários a se
reverem e transformarem:
Nesse sentido, este texto representa uma tentativa, tomando o livro de Roudinesco
apresentam como universais e inabaláveis às contingências históricas. Que este seja, então,
mais um passo e uma oportunidade para a psicanálise historicizar, repensar e recriar seus
enunciados e referenciais teóricos, lembrando que, nas palavras de Preciado (2020, pos. 527-
532, tradução minha), “esses processos não podem ocorrer sem uma análise exaustiva de seus
pressupostos. Não os recalquem, não os neguem, não os reprimam, não os desloquem”. Ou,
nos termos de Ana María Fernández (2017), a única via para evitarmos a cristalização dos não
pensados de nossa teoria, que compõem seu domínio inconsciente, é encarar o desafio de
produzir pensamento no limite do que não se sabe, ali onde não se conta com a base epistêmica
necessária.
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Referências