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REFLEXIVIDADE, INDIVIDUALISMO

E MODERNIDADE

José Maurício Domingues

O problema Três passos serão dados no sentido de es-


clarecer alguns aspectos fundamentais dessa
A questão da reflexividade, crucial para a problemática. Em primeiro lugar, delinearei bre-
construção da individualidade contemporânea, tor- vemente o significado do individualismo, com
nou-se um tema destacado nas ciências e na teoria referências gerais à vasta literatura sobre o tema,
sociais de nossos dias. Em um momento de radica- porém recuperando também o que, em outras
lização da modernidade, esse tema não poderia coordenadas e publicações, elaborei como ex-
deixar de ser amplamente ventilado nas agendas de plicação para os processos modernos, hoje radi-
pesquisa das ciências sociais. Um conjunto de ele- calizados, de individualização. O segundo tema
mentos complexos, como costuma ser o caso em será o da reflexividade que, a meu ver, precisa
qualquer discussão deste tipo, insinua-se quando ser considerado sob um outro ângulo, diferente
temos de confrontar a relação entre individualismo da perspectiva que assume o legado racionalis-
e reflexividade. Nem o primeiro se esgota nas con- ta, estreito e não tematizado, muito em voga em
siderações sobre o segundo, nem este deve ser res- discussões recentes (o que é especificamente o
tringido àquele. A reflexividade possui, na verdade, caso, por exemplo, de Crossley, 2001). Essa
um caráter em grande medida coletivo, sem prejuí- perspectiva acaba por limitar o enorme alcance
zo de seus aspectos individuais; outrossim o indivi- que esse conceito pode ter para a teoria social
dualismo e os processos de individualização só se contemporânea, inclusive nas coordenadas de
fazem inteligíveis ao levar-se em conta processos outros desenvolvimentos da modernidade, para
sociais mais profundos que a ele se vinculam. além de seu eixo ocidental.

RBCS Vol. 17 no 49 junho/2002


o
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Indivíduo e individualização seu lar. Ao lado disso, a crescente complexidade


da vida social, multiplicando as possibilidades de
É comum os antropólogos diferenciarem o engajamentos, projetos e identidades, se configu-
indivíduo biológico, que fornece o substrato de rou, mediante uma diferenciação social que, no
qualquer tipo de sistema social, do indivíduo con- entanto, não exclui processos de desdiferenciação
cebido como agente e categoria moral típico da – um dos quais, aliás, deságua na própria idéia de
modernidade ocidental. Assim, o indivíduo, nesse cidadania, universal, abstrata e consoante, a qual
segundo sentido, teria surgido no fim do Império os seres humanos são tomados como absoluta-
Romano, ainda “fora” deste mundo, de acordo mente homogêneos e indiferenciados. Em suma, o
com as idéias delineadas pelo cristianismo de San- individualismo contemporâneo, embora se possa
to Agostinho (Dumont, 1983). Outros constataram traçar origens históricas mais longínquas, surge a
a presença de tal indivíduo em períodos anteriores, partir de mecanismos especificamente modernos,
nas origens mesmo daquela religião (Mann, 1986, que possibilitam aos sujeitos uma autonomia apa-
pp. 301ss., 397-398, 412), ao passo que uma visão rentemente sem precedentes na história humana
mais tradicional apontaria o protestantismo como o (Domingues, 1999a, caps. 5, 7, e conclusão; 1999b).
momento em que o individualismo assumiu uma A radicalização desses processos acarreta uma cres-
feição moderna e generalizada (Weber, 1904-1905). cente dissolução de padrões morais, cognitivos e
Uma alternativa a essa versão de individualismo que estéticos, implicando precisamente a radicalização
implica uma introjeção das instâncias de controle da modernidade e do próprio individualismo. Com
moral pode ser assinalada no desenvolvimento de isso os indivíduos são obrigados a fazer uso tam-
uma outra versão, mais solta e menos comprometi- bém crescente de suas faculdades reflexivas.
da com as normas sociais que, destarte, permane- Dois autores recentes na literatura das ciên-
cem externas. Tal concepção medraria nos territó- cias sociais trataram da questão da radicalização
rios igual porém diferencialmente modernizados do individualismo, com enorme impacto nas dis-
da Contra-Reforma católica (Morse, 1982, cap. 1). cussões encetadas nas ciências sociais da virada
Quais as explicações para esse novo tipo de pa- do século XX. Em ambos os autores, cujas obras
drão civilizacional? Para versões materialistas, seria exerceram influência mútua, o tema do individua-
o desenvolvimento das forças produtivas que en- lismo acompanha o da reflexividade, e com a ca-
gendraria a destruição de comunidades originaria- racterização do que crêem ser uma nova fase da
mente inclusivas e coesas (Marx, 1857-1858); para modernidade. Se não chegam a constituir uma
abordagens funcionalistas, o desenvolvimento da “escola” de sociologia, pode-se discernir um ar de
divisão do trabalho social (Durkheim, 1893) ou a família em várias de suas principais obras. Idéias
diferenciação em geral – levando, por exemplo, ao e ilações muito interessantes e originais podem
“pluralismo de papéis” (Parsons, 1971) – oferece- ser daí derivadas, mas alguns problemas sérios se
riam a variável explicativa fundamental; para ou- apresentam em seus escritos.
tros autores, certos processos e matrizes culturais Primeiramente, indaguemos sobre o que Beck
estariam na base dessa concepção do indivíduo e Giddens definem como individualização. Beck
como agente moral soberano (Taylor, 1989). nega que os processos contemporâneos de indivi-
Em outras oportunidades, busquei apresentar dualização devam ser vistos como possuindo sinal
uma teorização deste processo que, inspirada nos negativo, levando à atomização, ao narcisismo e ao
trabalhos de Marx, Simmel, Giddens, e, em parte, isolamento. Malgrado ser este um tema decisivo em
de Parsons, enfatiza os processos de “desencaixe” seu mais famoso livro, Beck não apresenta uma de-
que arrancam as pessoas de contextos tradicionais, finição muito clara dos processos de individualiza-
rompendo relações de subordinação pessoal e ção da “modernidade reflexiva”, conquanto seja
destruindo identidades estáveis, ou, em princípio, patente que essas novas trajetórias individuais são
dadas como tais. Localizei na própria cidadania, mais abertas e impõem riscos mais agudos às
pensada como “abstração real”, a instituição na pessoas que têm de traçar planos de vida mais
qual o individualismo contemporâneo encontra contigentes. O avanço e a transformação da mo-
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dernidade liberam de todas as determinações de O idealismo alemão assim a empregou, seguindo


classe, estratificação, família, gênero e papéis fa- os passos do próprio Descartes; Kant, Hegel e
miliares: biografias referidas principalmente ao Husserl são marcos fundamentais nessa evolução
mercado de trabalho servem de fio condutor do pensamento filosófico sobre a reflexividade,
para indivíduos cada vez mais individualizados; conceituada, portanto, em termos eminentemente
e embora desigualdades permaneçam fundamen- racionalistas. O século XX, através do pragmatis-
tais, elas adquirem perfis singularizantes (Beck, mo, da psicanálise, do segundo Wittgenstein e
1986, pp. 87ss., 132ss.). Escorado agora em Gid- mesmo de certas correntes da fenomenologia, bus-
dens, Beck fala de processos de “desencaixe” e cou, implicitamente no mais das vezes, amiúde ela-
“reencaixe”, o que leva a novas formas de iden- borar alternativas a essa perspectiva, com sucesso
tidade moderna que, diferentemente da moder- variado, mas a própria sociologia reintroduziu em
nidade original, implicam que os indivíduos têm grande medida essa abordagem em seu arcabouço
de atuar como produtores de suas próprias bio- conceitual. Mediante uma clara oposição entre “vi-
grafias, que não são mais dadas (Beck, 1994, pp. vência” (Erlebnis) e reflexão (Reflexion), Husserl
13ss.). Por seu turno, Giddens observa que as (1931, § 15, pp. 72-75; ver também Crossley, 2001)
concepções de indivíduo se encontram presentes foi um dos últimos grandes filósofos clássicos a re-
em todas as culturas humanas, importando, por tomar o conceito naquela acepção racionalista (e
conseguinte, suas características específicas na dualista) – sem prejuízo de reverberações românti-
modernidade “tardia”. Em particular, ele chama a cas ou do empirismo anglo-saxão mediante os con-
atenção para as definições contemporâneas do ceitos de “vivência” e “experiência” (Erfahrung), e
self como um “projeto reflexivo” (Giddens, 1991, no que tange à própria teorização da reflexivida-
p. 75). Em uma situação de “desencaixes” acen- de. Essa concepção implica, ademais, uma aguda
tuados – conceito fundamental para sua explica- separação entre sujeito e objeto, com o primeiro
ção da especificidade da individualidade moderna tendo de se converter absoluta e claramente no se-
e de seu aprofundamento contemporâneo –, em gundo para que a reflexão possa ter lugar. Husserl
que “sistemas” abstratos, fichas simbólicas – como legou esse conceito à poderosa tradição fenome-
o dinheiro e “sistemas de peritos” – tornam-se nológica contemporânea.1
centrais na organização da vida social, as certezas Na sociologia, Schutz abraçou decisivamente
dos modos de vida pré-modernos são solapadas e essa perspectiva, incorporando-a a sua noção de
o indivíduo, arrancado dos contextos tradicionais, “mundo da vida”. Porém Weber, outra influência
locais e relativamente estáveis de existência. Com crucial sobre Schutz, já propusera uma definição e
a radicalização da modernidade, em parte por uma tipologia da ação social que reproduziam
conta do aprofundamento recente da globaliza- precisamente os mesmos problemas que se pode
ção, isso foi içado a patamares superiores de ex- encontrar na matriz racionalista ocidental. Mead,
tensão e intensidade (Giddens, 1990, pp. 21-29). autor que se achava no coração do pragmatismo
norte-americano, avançou no sentido de elaborar
uma concepção bastante distinta da fenomenoló-
Reflexividade e racionalidade gica, e Giddens conseguiu, em sua obra teórica
mais geral, dar alguns passos interessantes para
Mas o que quer dizer reflexividade? Curiosa- superar as limitações daquele ângulo tradicional e
mente, a despeito da centralidade do conceito nas estreito. Em sua obra sobre a modernidade, contu-
obras acima discutidas, ele não recebe nunca uma do, ele e Beck utilizam o conceito – ou talvez seja
definição precisa (conquanto no caso de Giddens, mais preciso dizer a “noção”, pois vaga – de refle-
como veremos, isso possua atenuantes, que não xividade de forma frouxa e ainda assim extrema-
são suficientes para salvaguardar seu arcabouço mente próxima e dependente daquela que confor-
teórico, pois se encontram demasiadamente dis- mou o núcleo fundamental da tradição ocidental.
tantes da questão). Classicamente, a reflexividade É interessante observar a ausência de traba-
apresentou-se quase como um sinônimo de razão. lhos sistemáticos sobre o conceito de reflexivida-
o
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de, não obstante ele cumprir um papel decisivo do da vida”, “atitude natural”, caráter “dado” da
na filosofia ocidental. De uma forma ou de outra, vida cotidiana e muitos outros trazem embutida
ele se refere ao que Descartes consagrou como o uma visão da ação e da consciência individuais
cogito, ou seja, a capacidade da consciência de como, em princípio, incapazes de tematizar a si
pensar-se a si mesma; refere-se, assim, ao papel mesmas, ou seja, nas palavras de Schutz, como
da razão, em geral abstrata, desvinculada da cor- “pré-reflexivas”, a não ser que haja um rompi-
poralidade e da experiência ou, ao menos, supe- mento com a “atitude natural” e um questiona-
rior a elas. A capacidade de o sujeito encarar a si mento racional dos diversos aspectos do mundo
mesmo e, sistemática e transparentemente, reco- da vida tal como se apresenta para a consciência
nhecer-se para além de suas experiências comuns individual. A própria “ação” – um fluxo contínuo
e não controlados pela consciência clara de si (no de vivência – só se torna reflexiva quando, a pos-
caso de Descartes, para além da “dúvida radical”), teriori, somos capazes de nos transformar em ob-
apresentava-se nessas coordenadas. Como se sabe, jeto de nossa própria atenção e a consideramos
o racionalismo cartesiano combinou-se com o uti- um “ato” completo (Schutz, 1932, pp. 15-25, 35-7,
litarismo nascente em Hobbes para dar origem a 56ss.; 1953, pp. 11-12; 1975, pp. 121, 131). Como
um indivíduo capaz de reconhecer seus interesses diz o autor em sua contribuição fundadora à fe-
com clareza e agir racionalmente em função deles. nomenologia sociológica:
Toda a tradição utilitarista e o individualismo me-
Muitas de minhas vivências não são nunca leva-
todológico em geral derivam dessa junção entre das à reflexão e permanecem fenomenais [...]. Te-
interesse, ação e consciência individual racional rei vivências, convertam-se estas em objetos de
(Domingues, 1995, caps. 1, 7). reflexão ou não. Essas vivências são as vivências
Em sua tipologia da ação social, Weber lan- essencialmente efetivas e pré-fenomenais e são a
çou marcos fundamentais para a análise sociológi- soma total de minhas vivências, mesmo se jamais
ca nesse sentido, abraçando a herança modernista reflito sobre elas. Para a constituição da “minhe-
e racionalista de que se afasta em outras passagens dade” (Je-Meinigheit) de todas as minhas vivên-
cias, basta meramente a forma-tempo interna do
de sua obra. Para ele a “ação racional-com-rela-
eu, a durée, ou, como Husserl a chama, a cons-
ção-a-fins” e a “ação racional-com-relação-a-valo- ciência-tempo interna, todas estas não sendo mais
res” distinguiam-se fundamentalmente da “ação do que expressões para a correlatividade da cons-
tradicional” e da “ação afetiva”, que, sobretudo a tituição do eu que permanece e da constituição
última, estavam na fronteira do próprio conceito da “minhedade” de todas as minhas vivências. É,
de ação social. Ao passo que a ação tradicional, portanto, incorreto dizer que minhas vivências
em particular, calcava-se na repetição e na rotina, são significativas meramente em virtude de serem
experimentadas ou vividas. Tal concepção elimi-
ou seja, era não-reflexiva, apenas as duas primei-
naria a tensão entre a vivência na corrente da du-
ras atribuíam sentido (Sinn) à ação, emprestando- ração e a reflexão sobre a duração assim vivida,
lhe um significado simbólico (Weber, 1921-1922, em outras palavras, a tensão entre vida e pensa-
pp. 12ss.). Além do mais, sob a dominação tradi- mento (Schutz, 1932, p. 70).
cional as pessoas, por definição, comportavam-se
de maneira não-reflexiva: o presente legitimava-se O “projeto” que delineia a ação no futuro,
pelo passado, pela manutenção inquestionada contemplando-a, todavia, como completa, como
dos padrões tradicionais (Weber, 1921-1922, pp. “ato”, é quase uma exceção a isso, mas nem tan-
122-176).2 Schutz recolheu a herança da filosofia to uma vez que implica uma reflexão sobre a ação
husserliana e combinou-a com a sociologia webe- como se esta estivesse já plenamente cumprida
riana, embora buscasse uma abordagem mais su- (Schutz, 1932, pp. 57-63). No curso da ação, o que
til do que a de seu predecessor (recusando, por parece escapar à visada retrospectiva do futuro
exemplo, a distinção entre “conduta” e “compor- parece ser somente a memória, o “estoque de co-
tamento” – não significativo). Acabou, entretanto, nhecimentos”, os tipos ideais que o sujeito possui,
enredado nos mesmos problemas que Weber. É que são fruto de sua experiência prévia, tendo se
assim que seus conceitos fundamentais de “mun- estabelecido como resultado de processos anterio-
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res de atribuição de significado, os quais foram sobre si mesma, que então se torna “consciente”
realizados, eles mesmos, por meio da reflexão (uma condição para o desenvolvimento da “men-
(Schutz, 1932, pp. 81-86, 163ss.). te”); ou à idéia de que “símbolos significantes” são
Nos quadros da fenomenologia deparamo- necessariamente conscientes; ou, mais ainda, a uma
nos, além do cunho amplamente racionalista – “co- equação entre consciência humana (antes um pro-
gitante” – dessa concepção, com mais uma limita- cesso, tanto interno ao indivíduo quanto social, que
ção da conceituação tradicional da reflexividade: uma substância) e racionalidade (Mead, 1927-1930,
ela se evidencia como essencialmente individualis- pp. 134, 77-82, 328-335). Mais especificamente o
ta. É o sujeito, percebido como consciência de si e “eu” (I) seria o elemento criativo, espontâneo e in-
em si, que “reflete” sobre si e sobre o mundo. Mes- certo da subjetividade (self – por definição reflexi-
mo em um segundo momento, isto é, após emigrar vo, isto é, que pode tornar-se seu próprio objeto,
para os Estados Unidos, onde sofreu a influência inclusive como organismo físico), que emerge
do pragmatismo, Schutz (1975) carrega essa heran- como resposta às atitudes dos outros e que se al-
ça; e embora fale da interação, sua unidade de aná- cança inteiramente apenas como uma “memória”; já
lise e ângulo de entrada na vida social continuam o “mim” (me) enseja um condicionamento social as-
a ser a consciência individual. Foi isso exatamen- sumido pelo sujeito, e é como um aspecto dele que
te que Habermas tentou superar, nesse sentido se tem experiência do “eu”. Para Mead, de qual-
rompendo fortemente com a associação entre in- quer forma, esses dois aspectos não são fictícios:
dividualismo e reflexividade. Habermas, contudo, eles coexistem, mas são sucessivos no tempo. Ele
recolhe o conjunto de problemas que podemos de- argumenta, em compensação, que embora um
tectar nos conceitos da fenomenologia: o “mundo caso limite possa ser imaginado, dificilmente há
da vida” e a “atitude natural” permanecem pré-re- experiência sem “consciência”, ou seja, reflexivi-
flexivos na teoria da ação comunicativa. Somente dade (Mead, 1927-1930, pp. 135ss., 173-178).
se daria um passo adiante com a tematização, em Podemos, contudo, ir mais adiante e sugerir
última instância pela ação comunicativa e sobretu- que seu conceito explícito de reflexividade não se
do pelo “discurso”, em outras palavras, mediante a adequa à sua concepção implícita mais abrangen-
utilização de nossas faculdades racionais comuni- te: de modo geral, a reflexividade, para Mead,
cativas, daquilo que se toma como dado, não-refle- apresenta-se como uma propriedade fundamental
xivamente, no mundo da vida (Habermas, 1981, do sujeito humano, que não pode ser, ademais,
vol. 2, pp. 173-228). Com esse tipo de enfoque, no concebido em isolamento ou como existindo pre-
entanto, das duas uma: ou se está falando de uma viamente à sociedade. Ela se articula estreitamen-
vivência em que a memória significativa (simbólica) te à capacidade criativa, exclusivamente humana,
do sujeito reina absoluta e não pode haver criativi- de produzir de maneira contínua símbolos lingüis-
dade na ação, a não ser a posteriori, o que é uma ticamente mediados nos processos sociais interati-
contradição em termos – na verdade, em Schutz a vos, que constituem simultaneamente a sociedade
conseqüência é que não há qualquer mecanismo (na verdade, são a própria sociedade) e os indiví-
que possa dar conta da criatividade e da transfor- duos – como sujeitos individualizados, inclusive –,
mação do mundo da vida tal qual se apresenta à que se põem assim ambos como objetos. Ou seja,
consciência do sujeito, sendo que Habermas a re- a reflexividade não consiste nem num processo
duz ao exercício do discurso racional interativo; ou discreto e pontual – constitui-se como um fluxo
a ação simplesmente não é significativa, o que cer- contínuo –, nem se restringe ao indivíduo – é, em
tamente seria recusado por esses autores. grande parte, uma propriedade das relações so-
O pragmatismo de Mead pode nos ajudar no ciais interativas. Mas nada nos diz realmente que a
sentido de romper com este duplo vínculo do consciência, de que nos fala Mead, deva ser clara
conceito de reflexividade com o individualismo e e distinta, sistemática, muito menos “racional” em
o racionalismo.3 Ele mesmo oscila e acaba por in- sentido tradicional. Na verdade, ao referir-se à ati-
clinar-se a uma utilização tradicional da expressão, tude analítica e autocontrolada do sujeito na vida
ligando-a ao retorno da “experiência” (experience) cotidiana e em tarefas por assim dizer banais, ele
o
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chega, inclusive, a nos dar um ótimo exemplo de rigorosa, ainda que aponte para problemas reais.
reflexividade prática (Mead, 1927-1930, pp. 356- “Reflexão” implica conhecimento e controle, mas a
357ss.). Seria possível ainda questionar a separa- “reflexividade” diz respeito, ao contrário, a um
ção concreta entre “eu” e “mim”, pois a ela subjaz “autoconfronto com os efeitos da sociedade do ris-
uma concepção da experiência que não se mostra co”, isto é, aos efeitos colaterais sobre os quais não
capaz de se tematizar em seu próprio curso: es- temos controle nem dos quais com freqüência te-
pontaneidade e consciência seriam opostos, nem mos conhecimento (Beck, 1994, pp. 6, 176). Isso
que fosse por frações de segundo. É preciso per- realmente não se coaduna com sua discussão so-
ceber que não é apenas em “minha ação” como bre a emergência de uma “biografia reflexiva” (isto
“eu”, mas também como “mim”, que interpreto e é, “auto-reflexiva”), sugerida anteriormente como
construo o que suponho ser a visão dos outros so- uma conseqüência dos processos de individualiza-
bre a minha pessoa, o que se constitui em um ção, no contexto dos quais a sociedade deve ser
processo criativo e em parte espontâneo, jamais manipulada (cognitivamente) como uma “variá-
determinado externamente de forma absoluta, o vel”, ou com a assertiva segundo a qual a educa-
que, às vezes, Mead parece sugerir. Apenas ana- ção permite à pessoa um “conhecimento reflexivo
liticamente, portanto, essa distinção faria sentido das condições e dos prospectos da modernidade”,
se tomada em sua radicalidade. Por outro lado, com o que se converte em “um agente da moder-
“minha ação” como resposta pode ser duramente nização reflexiva” (Beck, 1986, pp. 135, 93). Per-
condicionada pelas relações sociais e pelas me- manecemos, não obstante flutuações e reservas,
mórias de que me fazem portador, mostrando-se, no campo do racionalismo, ainda que seja este um
assim, bastante previsível. Ademais, se uma noção racionalismo ciente de suas desventuras e limita-
de reflexividade menos racionalista, que se assen- ções; não há transbordamento para fora do quadro
ta em uma noção mais ampla e difusa da cons- conceitual tradicional da reflexividade.
ciência, é sustentada, aquela oposição perde, ao Para Giddens, por outro lado, a reflexivida-
menos parcialmente, o seu sentido, e pode-se de moderna apresenta-se também como um fenô-
pensar em um fluxo de experiência que não seja meno peculiar que ultrapassa o sentido mais geral
tomado como uma reflexividade exercida somen- de ser um traço comum a todas as sociedades hu-
te após o exercício espontâneo da criatividade. O manas. Genericamente, a reflexividade refere-se
vínculo imediato entre reflexividade e linguagem, ao “monitoramento” que é intrínseco a toda ativi-
tecido nas proposições de Mead, é um problema dade humana; na modernidade, trata-se de serem
adicional ao qual retornarei. todas as atividades sociais suscetíveis de revisão
Como irão Beck e Giddens lidar com essa sob a luz de nova “informação” e “conhecimento”;
herança? Claramente optam pela forma tradicional a própria reflexão se converte em tópico para re-
em que se oferece na filosofia racionalista ociden- flexão (Giddens, 1990, pp. 38-39; 1991, p. 20).
tal. A princípio, isso pode parecer uma tese esta- Aqui, creio, já se insinua o quanto a reflexividade as-
nha, uma vez que ambos os autores são críticos sume – ao menos modernamente – um cunho emi-
da concepção da Ilustração sobre a existência de nentemente racionalista. E isso claramente se opõe
uma capacidade humana de conhecimento abso- ao mero “monitoramento reflexivo da ação” nas or-
luta. Giddens, ademais, desenvolveu conceitos em dens sociais tradicionais – frase bastante obscura
obras anteriores que pareciam poder proporcio- que, entretanto, sugere sobretudo o enraizamento
nar alternativas àquela abordagem tradicional, po- da ação na “rotina”, conquanto seja esta significativa
rém este não foi o caso. – e à reflexividade (sistemática, ao que parece) apli-
Em Beck, a reflexividade apareceu inicial- cada à reprodução do passado como “reinterpreta-
mente como um conceito vago e impreciso, impli- ção e clarificação da tradição” (Giddens, 1990, pp.
cando meramente que a modernização se tornava 36-38, 104-105). Assim, Giddens parece oscilar en-
seu próprio “tema” (Beck, 1986, p. 19). Posterior- tre um compromisso com a herança dicotômica do
mente, uma distinção entre “reflexividade” e “refle- pensamento sociológico, que já comparece à sua
xão” foi sugerida, a qual, todavia, se mostra pouco caracterização da modernidade e da reflexividade,
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aproximando-se de Weber, e uma concepção mais suais e pacificados (Giddens, 1990, pp. 15-16;
ampla do conceito de reflexividade, que, todavia, 1991, pp. 18-21, 84).
não se completa. Contudo, quando ele conecta seu Ademais, os sistemas abstratos, mormente
raciocínio de forma explícita à herança cartesiana, os sistemas de peritos, subtraem dos sujeitos ha-
modernista e racionalista, é que a questão toma bilidades – que detinham em contextos “tradi-
contornos ainda mais distintamente definidos: cionais” –, bem como a capacidade de controle
local típica daqueles contextos, que implodem e
A dúvida, um aspecto generalizado da razão críti- passam a ser conformados por influências dis-
ca moderna, permeia a vida cotidiana bem como a tantes, introduzindo com isso sentimentos de
consciência filosófica, e forma uma dimensão exis- alienação na vida das pessoas. Articulado a isso,
tencial geral do mundo social contemporâneo. A
observa-se a substituição de questões morais co-
modernidade institucionaliza o princípio da dúvida
radical e insiste que todo conhecimento assume a tidianas por uma capacidade, conformada siste-
forma de hipóteses: afirmações que podem bem micamente (no sentido acima estabelecido), de
ser verdadeiras, mas que se acham em princípio controle e domínio, produzindo-se uma sensação
abertas à revisão e podem ter de ser abandonadas pessoal de falta de sentido para a vida, cujas
em algum momento (Giddens, 1990, p. 3). questões morais reprimidas forçam a passagem
mas não encontram respostas, sobretudo se para-
Não é preciso dizer que sua abordagem se mos de simplesmente manter a vida em curso,
contrapõe claramente ao pós-modernismo (Gid- como habitualmente fazemos (Giddens, 1990, pp.
dens, 1990, pp. 46ss.). Isso ocorre não apenas por 9, 202).4 Quando isso tem lugar, em compensa-
ele assumir uma postura racionalista, porém tam- ção, a reflexividade – com vestes abertamente ra-
bém por tentar argumentar que foi exatamente cionalistas – deve intervir. Porquanto seja o self um
esse o projeto de Nietzsche, o qual implicitamen- projeto reflexivo, “[a] cada momento, ou ao menos
te compartilha, de revelar a modernidade a si em intervalos regulares, ao indivíduo é demandado
mesma, radicalizando em relação a ela – e às cer- que conduza uma auto-interrogação em termos do
tezas que produziu ou em que gostava de acredi- que está acontecendo” – o que tem início com
tar, sobretudo aquelas elaboradas pela Ilustração “uma série de questões conscientemente pergunta-
– o princípio afinal cartesiano de dúvida radical das” (Giddens, 1991, p. 76). É verdade que essa li-
(Giddens, 1994a, p. 57). É necessário aduzir a isso nha de exposição corre o risco de não fazer justiça
que se a reflexividade evidencia um ângulo indi- a alguns elementos particularmente interessantes
vidual, a modernidade assenta-se em grande me- da original teoria da estruturação de Giddens. Afi-
dida na “reflexividade institucional”, que concer- nal, o que ele mesmo chamara de “consciência prá-
ne, em particular, à importância na vida cotidiana tica” serve como uma “âncora cognitiva e emotiva”
dos sistemas de peritos – sejam eles a psicanálise, para sentimentos de “segurança ontológica”, o que
a sociologia ou aqueles embutidos nas rotinas advém da “atitude natural” tal qual teorizada pela
mais imediatas, como os supostos pelo funciona- fenomenologia (Giddens, 1991, p. 36). Para deci-
mento do trânsito automobilístico, pela aviação, dirmos sobre o alcance, em geral e no contexto es-
pela engenharia ou pela medicina – e à “dupla pecífico de sua argumentação, do conceito de
hermenêutica” que esses sistemas mantêm com os consciência prática, é preciso que o reconstituamos
agentes “leigos”. O problema reside no fato de de modo mais pormenorizado.
que o conhecimento gerado por aqueles sistemas, O que se aproxima mais de uma definição
em lugar de garantir certezas, engendra cada vez dessas duas categorias sugere que a consciência
mais incertezas, instabilidade e efeitos inespera- discursiva “significa ser capaz de verbalizar as coi-
dos, o que acaba por afetar os próprios sujeitos. sas”, sem que, entretanto, a consciência prática
Estes, por sua vez, têm de atravessar a vida e implique qualquer noção de inconsciente (que ele
construir a si mesmos em meio às controvérsias apesar de tudo mantém, por outro lado, em uma
internas aos sistemas de peritos, que, muitas ve- versão freudiana aguada), caracterizando-se como
zes, não se mostram sequer internamente consen- “o monitoramento reflexivo da conduta”, em ou-
o
62 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

tras palavras, “as circunstâncias em que as pes- ou opera independentemente dela? Como relacio-
soas prestam atenção ao que se passa a sua volta nar experiência – ou vivência no jargão fenome-
de tal modo a relacionar sua atividade àqueles nológico – e reflexividade? Essas perguntas são
eventos” (Giddens, 1984, pp. 44-45). Mesmo que respondidas de forma obscura por Giddens, que
Giddens seja no geral profícuo em fornecer es- só tratou do tema da ação, fundamental para sua
quemas que sintetizam suas principais idéias, isso teoria da estruturação, com mais detalhes anterior-
nunca acontece em relação a essas duas formas mente à introdução dos conceitos de consciência
de consciência, já para não falar da brevidade de prática e discursiva, delineados no contexto de seu
sua discussão naquela que seria sua suma teórica confronto com o estruturalismo. Inicialmente
– A constituição da sociedade. Creio que isso se aquela distinção entre “ação” e “atos” já aparecia
deve a uma certa confusão e a flutuações na arti- em seus escritos, e “intenções” e “propósitos” não
culação e na utilização dos conceitos. Em passa- manifestavam caráter inteiramente consciente.
gens de livros anteriores, ele recusara a idéia de Abraçando explicitamente a fenomenologia, ele
que as coisas são necessariamente conscientes ou afirmava que aquela “corrente da conduta”, que
inconscientes em sentido absoluto – pode haver constituía a vida cotidiana, era pré-reflexiva, e que
coisas que não estão discursivamente disponíveis, a reflexividade era “íntima e integralmente depen-
nem sequer sendo, por vezes, o agente capaz de dente do caráter social da linguagem”, embora
formular as regras que segue em seu comporta- decerto houvesse algum tipo de “monitoramento”
mento (caso das regras e dos recursos que regem pelo ator de sua própria “atividade” (Giddens,
a linguagem, exemplo recorrente em seus escri- 1976, pp. 20, 75-76). A definição de “atos” discre-
tos): o monitoramento reflexivo responderia por tamente concebidos se realiza apenas, aí sim, refle-
essa atividade da consciência prática (Giddens, xivamente, e o oferecimento de “razões” conduz à
1979, p. 25). Apenas de maneira fragmentária os “racionalização da ação” (Giddens, 1976, pp. 82-
atores são capazes de articular lingüisticamente o 83). É verdade que aquele monitoramento da ação,
“conhecimento tácito” – prático e contextual – pre- nessa mesma passagem, é inadvertidamente cha-
sente nesses processos, conquanto, em passagem mado de “reflexivo”. Todavia, a direção do argu-
de difícil compreensão, ele afirme, seguindo a mento leva fortemente a uma separação entre ação
mesma linha de raciocínio, que a “[l]inguagem de modo geral e reflexividade, nos quadros típicos
apareça [...] como o veículo da prática social” (Gid- da fenomenologia – e é difícil até mesmo entender
dens, 1979, p. 40). Giddens aproxima-se aqui como a “atitude natural” seria “significativa”, uma
muito da fenomenologia – ainda que recorra tam- vez que é a reflexividade que se articula à lingua-
bém à herança de Wittgenstein – ao afirmar que gem. Os problemas de Weber e da fenomenologia
a “ação” é uma “corrente contínua de conduta”, são aí patenteados. Na verdade, creio que eles,
distintamente de “atos” discretos, que apenas o malgrado os esforços de Giddens para amenizar a
ator, por meio de uma atenção específica e con- dureza das formulações originais, transmigram
centrada, pode delimitar, rompendo com aquele para as definições de consciência prática e cons-
processo contínuo, ainda que seja ela mesma “in- ciência discursiva, com o que, não obstante o
tencional”.5 Diferentemente de Husserl e Schutz, conteúdo um tanto vago desses conceitos, a pri-
contudo, ele sublinha que aqui opera aquilo que meira implica mera atenção geral e a segunda,
definira como “monitoramento reflexivo”. Por seu foco e controle definidos da parte do ator. Ade-
turno, a consciência discursiva se apresenta como mais, a linguagem – e portanto a significação mais
uma outra maneira de conceituar o que ele defi- ampla da conduta, para além da rotina, não obs-
ne como a “racionalização da ação”, a capacidade tante o que é sugerido nos escritos de Giddens
dos agentes humanos de “explicar”, “dar razões” sobre a tradição, ao tratar ele da modernidade –
para sua conduta (Giddens, 1979, pp. 55-57). só comparece de fato ou ao menos de pleno di-
Mas afinal o que se quer dizer com “monito- reito à consciência discursiva.
ramento reflexivo”? Apenas uma atenção difusa? A Não se trata de negar a máxima wittgenstei-
consciência prática articula-se na e pela linguagem niana a respeito dos jogos de linguagem e a capa-
REFLEXIVIDADE, INDIVIDUALISMO E MODERNIDADE 63

cidade de os agentes seguirem as regras como o Isso nos ajudaria a superar inclusive um pro-
que define, praticamente, seu conhecimento das blema apontado por Lash (1994, pp. 135ss.) nos
regras. Mas cabe perguntar se separar aqueles textos de Beck e Giddens, qual seja, a concepção
dois universos faz sentido e se não haveria melhor restritiva da reflexividade em termos quase que
solução para a questão. Afinal, por exemplo, ao exclusivamente cognitivos, conquanto ambos
pegar um ônibus como atividade cotidiana, em dêem certo espaço para questões morais, o que
sua “atitude natural”, o sujeito não deixa de, em Lash não percebe por confundir moral e comuni-
certa medida, articular sua conduta em termos dis- dade, misturando as duas categorias.6 Seja como
cursivos, ainda que internos. Não é preciso aceitar, for, Lash está correto ao salientar a reflexividade
por exemplo, a hipótese forte de Vigotski segundo estética, tanto analítica quanto historicamente,
a qual todos os processos intrapsicológicos foram para uma análise da modernidade avançada. Por
internalizados em algum momento após haverem consistir em uma reflexividade que deita raízes
sido processos sociais (interpsicológicos), para tanto em processos individuais quanto sociais pré-
concordar com a idéia de que as atividades práti- vios e mostrar-se individual e socialmente corpo-
cas implicam uma conversação interna – simboli- rificada, essa reflexividade apóia-se em memórias
camente mediada – do sujeito consigo mesmo. É individuais e coletivas, mas pode também propor-
verdade ainda que a linguagem da “fala interior” é cionar uma criatividade constante, a qual outros-
particular e, em grande medida, elíptica, com sin- sim não depende necessariamente – em geral, na
taxe particular, porém sua relação com a lingua- verdade, não depende em absoluto – da “dúvida
gem como fenômeno social é primordial (Vigotski, radical”, ligando-se aos contextos práticos e flui-
1934, cap. 7; 1980, cap. 4). O fluxo da consciência dos da vida cotidiana. Apenas em certas situações
assim se mostra efetivamente tanto significativo a reflexividade deixaria seu caráter prático para as-
quanto reflexivo – embora essa não seja uma re- sumir um aspecto racionalizante, assumindo cará-
flexividade sistemática, trazida ao controle do ter discursivo ou não, ao passo que se exercita
agente e a sua atenção concentrada. Ela se conec- imagística e acusticamente no inconsciente, isto é,
ta de modo geral à rotina, àquilo que, pode-se di- em absoluto sem a linguagem. E somente em con-
zer, os atores fazem com um pé nas costas, por dições extremas a reflexividade racionalizante po-
conseguinte sem demandar atenção focada. É deria inclusive assumir uma postura que configura
possível que em muitos aspectos o sujeito não seja claramente uma relação entre sujeito e objeto, não
capaz de dar conta discursivamente de todos os obstante as ideologias racionalistas das quais Beck
aspectos de seu comportamento, mas nem sempre e Giddens se fazem continuadores.7
esse é o caso, e, no entanto, nem assim opera-se Assim, creio ser possível avançar um concei-
necessariamente em um plano para além da práti- to de reflexividade capaz de abarcar multidimen-
ca. Mas é mister não vincular a reflexividade de sionalmente sua articulação na vida social e nos
maneira absoluta à linguagem, pois ela é antes processos mentais individuais. O quadro abaixo
cognição prática e produção simbólica em geral. sintetiza essas idéias fundamentais:
Como já observei, Mead, por exemplo, dá
ênfase exagerada à linguagem. Outros tipos de REFLEXIVIDADE Não-identitária Prática Racionalizante

símbolos, em particular por imagens, e mesmo de Cognitiva


conceitos, pré-lingüísticos (cf. Bloch, 1991), têm
de ser levados em conta para que um quadro Moral

completo da reflexividade possa ser traçado. A Expressiva


psicanálise de Freud soube especialmente reco-
nhecer este tipo de problema e formulá-lo em co- Não posso, neste contexto, pormenorizar
nexão estreita com a questão do inconsciente, que esse feixe de conceitos, o que fiz em outra oca-
se conforma por aquilo que não pode – “tópica” sião (Domingues, 1999a, cap. 2). Basta apresentar
e não descritivamente apenas – emergir à cons- seus elementos fundamentais. A reflexividade é
ciência (ver, em particular, Freud, 1915 e 1923). exercida em três esferas fundamentais, em princí-
o
64 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

pio analiticamente talhadas, pois se entrecruzam Reflexividade e modernidade


na maioria dos fenômenos concretos com que nos
deparamos: a cognitiva, a moral (que inclui lato Com isso movemo-nos, quero crer, para
sensu a ética, se não nos atemos à distinção hege- além da oposição entre tradicional e moderno (ra-
liana) e a estética (tanto em sentido lato quanto cional) em Weber e entre vivência e reflexão na
técnico). A identidade conforma-se na articulação fenomenologia, retomadas e sintetizadas por
dessas três esferas. Ela se exerce, entretanto, em Schutz. Avançamos igualmente em relação a sua
três dimensões. A primeira diz respeito à reflexivi- forma refraseada em Giddens, um tanto ambígua
dade não-identitária típica do processo primário, mas creio que evidente e tributária da fenomeno-
do “isso”, para retomar os termos freudianos (sem logia, ao opor um “monitoramento” prático sim-
que seja possível, por definição, separar aqui ples e na verdade mal definido à “dúvida radical”
aquelas três esferas, pois no isso não opera a lógi- (aparentemente da consciência discursiva) e, ainda
ca da identidade que permite distinguir entre cate- mais vagamente, em Beck, ao falar da modernida-
gorias e domínios); a segunda refere-se à reflexivi-
de reflexiva. A concepção duplamente tripartide
dade prática, que carateriza a maior parte de nos-
que apresentei da reflexividade faculta uma aborda-
sa vida, ações e movimentos; e a terceira, à refle-
gem mais adequada da modernidade, em particular
xividade racionalizante, quando nos distanciamos,
da modernidade contemporânea. Possibilita-nos
em graus variados, do mundo e de nós mesmos, e
pensar ainda a própria modernidade como possui-
buscamos sistematicamente dirigir nossa atenção e
dora de suas tradições reflexivamente organizadas e
nossas faculdades para aspectos que concernem a
de outras tradições como elas também, desde sem-
nós como indivíduos, para nossa ação e para o
pre, reflexivamente tecidas, nas três dimensões as-
mundo. Distintamente da tradição fenomenológi-
sinaladas, ontem e hoje.
ca, com forte separação entre sujeito e objeto e
sua articulação então à reflexividade, essa noção Podemos, assim, deixar de lado os fortes ecos
de reflexividade racionalizante não recusa o cará- modernistas que prejudicam sobremaneira a inter-
ter reflexivo à reflexividade prática; ao contrário, pretação de Giddens e Beck e tratar o tema da tra-
a requer, pois se trata, de fato, de um continuum. dição de forma muito mais adequada. Aí se deve
Vale enfatizar que essas são categorias analíticas; incluir as próprias tradições modernas, como o es-
somente teoricamente aparecem de forma distin- tado racional-legal, a família nuclear, a economia
ta, em sua pureza. capitalista, o individualismo utilitário e moral, e as-
Além disso, é no jogo mútuo entre a memória sim por diante; tradições que não são, aliás, sem-
reflexivamente organizada – com suas dimensões pre compatíveis entre si, até porque duas fontes
individual e variavelmente coletiva, compartilhada – fundamentais da modernidade são a Ilustração e o
e a criatividade diuturna dos agentes – indivíduos e Romantismo, que a empurram em direções muitas
subjetividades coletivas – que todos aqueles seis as- vezes distintas. As concepções de Beck e Giddens
pectos analiticamente distintos se consubstanciam ficam aquém da tarefa por pensarem uma tradi-
no curso das interações que compõem o próprio te- ção, inclusive a moderna, que contudo não lo-
cido da vida social, como sugerido na figura que se gram definir como tal, como quase ou verdadei-
segue. ramente anti-reflexiva em sentido amplo e forte,
e por tratarem a modernidade hoje como, esta
sim, “reflexiva”, nesse caso implicando porém um
MEMÓRIA CRIATIVIDADE racionalismo que a tudo permeia, a despeito das
conseqüências não intencionais e incontroladas
que se multiplicam hoje. Ao contrário, é possível
REFLEXIVIDADE pensar em “tradições”, muito variadas e com carac-
Sujeito – Interação terísticas que não podem ser subsumidas pela idéia
Subjetividade Coletiva modernista de “tradição” no singular, compartilhan-
do contudo uma complexa imbricação das três for-
REFLEXIVIDADE, INDIVIDUALISMO E MODERNIDADE 65

mas de exercício da reflexividade, nas três dimen- individualizada e pluralizada das biografias con-
sões, ademais, que introduzi anteriormente. A mo- temporâneas significa a imposição de “oportunida-
dernidade, com suas próprias tradições, é uma das des” e “limitações” para a “escolha”: não há como
direções de reencaixe de que indivíduos e grupos não “decidir” sobre quais rumos tomar; esses são,
dispõem hoje, para se reinserir nas relações sociais em larga medida, contingentes. Beck remete com
e reconstruir identidades. Outras direções são pro- freqüência essa questão às relações entre homens
vidas por tradições diversas, mais ou menos vivas e mulheres e à família. De acordo com Giddens
nas sociedades modernas contemporâneas, desta- (1991, pp. 5, 80, 214), com a perda de autoridade
cando-se, é claro, em sociedades modernas não da tradição, as “escolhas” de “estilo de vida” têm de
ocidentais, nas quais a modernidade surgiu origi- ser negociadas entre uma pluralidade de opções.
nalmente como uma imposição ou uma importa- Nenhuma cultura pode “eliminar” completamente
ção, ou seja, como fenômeno não autóctone. O as escolhas no dia-a-dia, mas a modernidade leva
Brasil é um caso em certa medida deste tipo, ainda isso a limites radicais, pois se trata de uma socieda-
que tenha sofrido grande influência da modernida- de ou cultura “não fundacional”. Disso decorre a
de ibérica em seus primórdios e deva sua existên- constituição de uma “política dos estilos de vida”.
cia à expansão ocidental que contribuiu para a ges- Embora ele não o diga explicitamente, não have-
tação da modernidade. Assim, diversas tradições, ria como não ligar a política dos estilos de vida e
reflexivamente trabalhadas, misturam-se e confor- o caráter “não fundacional” da modernidade a sua
mam uma modernidade plural e diferenciada, me- reflexividade típica; em outras palavras, articular
diante reencaixes de múltiplos tipos e conteúdos de forma bastante direta, se não absoluta, esco-
(Domingues, 1999a, caps. 5 e 7; 1999b; 1999c). lhas e dúvida radical, o que equivale a dizer, es-
Não se deve supor, em contrapartida, que a colha e reflexividade racionalizante. No cerne
reflexividade exercida nesses processos evidencia mesmo de sua teoria sobre os rumos dos proces-
o caráter racionalista, cartesiano, que Giddens e sos de individualização, portanto, Beck e Giddens
mesmo Beck supõem que ela possua. Em certos introduzem a tradicional razão ocidental, ainda
momentos é possível que atores individuais e sub- que ela não seja capaz de garantir certezas, em
jetividades coletivas se voltem para o exercício da parte em virtude de seu exercício contínuo e de
“dúvida radical”, em que projetos claramente de- uma espiral de reflexividade que assim se produz.
lineados para o futuro se contrapõem à situação Se levarmos em conta que o que na verdade
presente do sujeito tendo como pano de fundo perpassa a vida social é o tipo prático de reflexi-
sua história pregressa. Uma definição em termos vidade, é possível e necessário oferecer uma ou-
de relação entre sujeito – o indivíduo ou até uma tra definição de “escolha”, mais fluida em seus
subjetividade coletiva altamente centrada, com for- elementos constituintes, na intencionalidade da
te identidade e organização que a torne capaz de conduta, na clareza de metas estabelecidas, na se-
produzir um movimento fortemente intencional – e leção de meios para chegar aos objetivos que o
objeto – o indivíduo ou a coletividade, seus “alter ator e as subjetividades coletivas se colocam. Na
egos” e relações sociais, seu meio material, enfim vida individual e social “escolhas” racionalizadas,
sua situação mais ampla – pode desencadear um a não ser em situações particulares, não são tão
processo no qual uma reflexividade de cun0ho al- comuns, sequer na modernidade avançada, que
tamente racionalizante estaria, com certeza, em de fato abriu as tradições, incluindo a tradição
causa. Na maioria das vezes é uma reflexividade moderna, a torções e mudanças mais freqüentes e
prática, mas nem por isso menos significativamen- por vezes mais radicais, sem todavia instituciona-
te orientada e variavelmente auto-referida, que se lizar a dúvida de forma cartesiana. Até mesmo nos
acha em pauta, a partir da qual “escolhas” são fei- campos científicos seria preciso tratar a questão de
tas, rumos na vida tomados e caminhos traçados. forma mais circunspecta, porquanto em muitos de-
A essa altura é preciso que nos detenhamos les não seja isso de forma alguma o que se passa,
no conceito de “escolha” de Beck e Giddens.8 Para se bem que as “ciências humanas” – seja a socio-
Beck (1986, pp. 116, 135-136), a nova dimensão logia, a ciência política, a economia (no momento
o
66 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 49

em menor grau), seja as diversas psicanálises, psi- assinalara.9 Assim, a autora observa que as mu-
cologias e terapias – absorvam com muito mais in- lheres pobres também sustentam projetos orien-
tensidade as controvérsias que circulam na vida tados para o futuro – referência fundamental do
social do que as ciências da natureza e os sistemas individualismo – para si ou para seus filhos (cen-
técnicos a elas associados. Os “sistemas de perito” trados, sobretudo, na idéia da educação como
são variados e a “dúvida radical” (racional) não canal de ascensão social), sem prever necessaria-
pode ser vista como possuindo a mesma intensi- mente o apoio de um companheiro homem. O
dade em todos os campos, conquanto até mesmo trabalho remunerado cumpre papel de plana em
em áreas hard o agravamento da crise ecológica, suas vidas, não meramente como necessidade po-
por exemplo, produza peritos “alternativos”, capa- rém também, a despeito de certa ambigüidade,
zes de problematizar algumas certezas de alguns como possibilidade de autonomização, apesar de a
dos principais paradigmas vigentes hoje (como presença masculina na família lhe tirar o sentido de
sugere Beck, 1986, cap. 7). Muito do que aconte- obrigatoriedade. Vaitsman quer ver esses discursos
ce nesses campos, contudo, segue ainda a forma como que clivados entre o tradicional e o moder-
institucionalizada de ciência normal que Kuhn no, porém seria mais correto caracterizá-los como
(1962), quaisquer que fossem suas limitações, cor- que atravessados por concepções oriundas de di-
retamente assinalou. Uma mistura de reflexividade versos estágios da própria modernidade, cuja tradi-
racionalizante e reflexividade prática intensamente ção define o espaço doméstico como a esfera por
vinculada à rotina se faz presente e dominante. De excelência de inserção da mulher. Com uniões ins-
fato, a reflexividade racionalizante – voltada para táveis, sobretudo no caso das mais jovens (por de-
a adequação técnica de meios a fins – permeia serção masculina e a necessidade de assumir a
muito da vida social, inclusive o âmbito das ciên- chefia da família em condições de pobreza acen-
cias humanas, que comporta áreas não voltadas tuada ou por decidirem livrar-se de seus homens),
para a interpretação, muito menos para a emanci- e uma relação complexa em que concepções dis-
pação, mas para o controle e a adaptação do com- tintas sobre trabalho e domesticidade se interpe-
portamento (cf. Habermas, 1965). Todavia, ela é netram, uma maior e inevitável plasticidade da
exercida amiúde em contextos mais amplos de re- identidade se impõe. Os meios de comunicação
flexividade prática, nos quais de modo algum há de massa, observa a autora, são um elemento fun-
lugar para a dúvida radical. damental como mediação nesses novos processos
Por fim, gostaria de discutir um aspecto no de construção identitária.
qual as preocupações de Giddens se mostram O problema é que Vaitsman (1997, pp. 317-
mais agudas, área em que Beck depositou igual- 318) compartilha com Giddens a idéia de que as
mente boa parte de seus esforços: a biografia in- tradições, no caso as tradições de gênero, só po-
dividual reflexivamente construída. O exemplo de dem ser mantidas doravante por intermédio de jus-
mulheres de classe popular da periferia de uma tificativas discursivas (o que remete à consciência
grande metrópole brasileira será bastante instruti- discursiva e à dúvida radical), embora ela mesma
vo nessas coordenadas. reconheça que há amiúde contradições entre o dis-
Primeiramente Vaitsman (1994) estudou o curso e a prática. Isso certamente se deve não ape-
estabelecimento de formas descentradas de casa- nas a sua concepção teórica, mas também à forma
mento e paternidade compartilhada nas classes como a pesquisa foi conduzida, por entrevistas, nas
médias do Rio de Janeiro. Como acabou detectan- quais a discursividade articulada – em outras pala-
do modificações nas formas de pensar o mundo vras, a reflexividade racionalizante dos atores – não
e agir também em mulheres de baixa renda da pode ser senão exercida. Talvez a observação parti-
periferia daquela cidade, passou a questionar, cipante demonstrasse que essa nova organização
em instigante artigo posterior, a restrição do con- simbólica, significativa do mundo, é mais fluida,
ceito de individualismo e reflexividade àqueles varia mais, tem momentos mais articulados e ou-
estratos mais abastados (Vaitsman, 1997), ponto tros menos, mostrando-se incapaz de verbalização
que Giddens (1991, p. 8; 1994b, p. 188), aliás, já em muitos contextos e ocasiões.
REFLEXIVIDADE, INDIVIDUALISMO E MODERNIDADE 67

Seria possível perceber, assim, como esses Mesmo quando são formuladas novas idéias, ou,
temas se articulam por meio da reflexividade prá- ao contrário, o sujeito se prende a concepções an-
tica – e provavelmente nas manifestações internas tiquadas, sua prática pode seguir um sentido
e externas da reflexividade não-identitária, o que, oposto, contraditório. Ou seja, isso ocorre tanto
ademais, aparece na própria forma pela qual a quando as mudanças na ação do sujeito não são,
discursividade das mulheres entrevistadas se apre- ou são apenas parcialmente, acompanhadas por
senta –, fragmentária, um tanto confusa, repleta novas idéias, quanto quando se observa uma
de desejos contraditórios, marcada por camadas transformação no âmbito das idéias, porém afer-
distintas de conceitos de origem e temporalidade rando-se as ações a padrões anteriores. Essas in-
distintas. O que esse breve painel sugere mais em- versões acontecem porque o “senso comum” é
pírica e cabalmente, creio, é que a reflexividade normalmente “heteróclito” e impregnado de com-
não pode ser compreendida de forma racionalista binações “bizarras”, como diz Gramsci (1927-
em princípio, mas como um processo em que 1937, pp. 11-20), de acordo com quem todos so-
idéias surgem e desaparecem, formulações sobre
mos filósofos, independentemente de fazermos
a vida e o destino se entrecruzam de formas con-
recurso ao pensamento sistemático ou não.10
traditórias, valores distintos se manifestam, dese-
A reflexividade mostra-se, portanto, como
jos e medos se sobrepõem. Não se trata de supor
um vasto continente, permeado por acidentes
que se estabelecem “dúvidas radicais”, às quais
geográficos que se recobrem com diversos e dís-
essas mulheres sistematicamente respondem, bus-
pares conteúdos, evidenciando ênfases distintas
cando novas significações e símbolos intencional
ao longo da história e da própria modernidade.
e claramente, contrabalançando fatores, possibili-
Uma conceituação que rompa com o racionalis-
dades, desejos, custos e benefícios, mesmo que,
mo, não com a intenção de recusá-lo, mas de re-
até certo ponto, elas realmente o façam, mas sim
reconhecer um processo no qual sobretudo pe- servar-lhe o espaço empírica e normativamente
quenas transformações, mais ou menos (im)per- adequado, faz-se necessária. Foi para isso que
ceptíveis e obscuras para os próprios sujeitos, este artigo procurou, enfim, contribuir.
para essa subjetividade coletiva assim como para
outras, têm lugar. E não há razão afinal para pen-
sar a reflexividade como sendo relativa a um NOTAS
“projeto” bem definido, nem como algo que sur-
1 Heidegger (1927) e Sartre (1943) apresentam concei-
ge apenas quando o “ato” se vê completo; em lu- tuações que avançam em certos aspectos em relação
gar disso, ela está presente em grau variável ao a essa formulação racionalista. Para Heidegger, aliás,
longo de todo o processo, que, de modo algum, o problema é, em certa medida, o inverso: trata-se
especialmente na vida cotidiana, possui em geral de uma concepção quase anti-racionalista, com a se-
limites agudos que justifiquem o tipo de tese paração entre sujeito e objeto sendo reduzida ao mí-
nimo. Em contrapartida, Sartre não se desprende da
abraçada pela fenomenologia.
camisa de força da separação tradicional entre sujei-
A reflexividade da experiência organizada to e objeto.
simbolicamente perpassa diversos contextos coti-
2 O parentesco entre a tradicionalmente moderna di-
dianos e várias de suas dimensões racionalizantes cotomia tradicional-moderno e as teorias recentes
chegam aos atores de forma bastante difusa: uma da reflexividade foi exposto e criticado por Alexan-
conversa com o médico, o exemplo de uma “pa- der, 1996.
troa”, o comentário de um jornalista na televisão 3 Observe-se, porém, que outros pragmatistas têm
são situações cotidianas interativas de diversas or- abordagens diversas sobre o tema. Para Dewey
dens em que o sujeito pode colher alguma idéia – (1916, pp. 1-3, 6) reflexividade refere-se a um contí-
sistematicamente elaborada por outros e, talvez, nuo que tem seu cume meramente no pensamento
sistemático, que se torna, assim, objeto de si próprio
por ele mesmo – que a partir daí pode ajudá-lo, – isto é, “[a] consideração ativa, persistente e cuida-
em graus variáveis, a imprimir um novo sentido à dosa de qualquer crença ou forma suposta de co-
vida ou impulsioná-lo em alguma outra direção. nhecimento à luz das razões que a suportam [...]”; Ja-
o
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mes (1892, cap. 2), entretanto, apresenta uma leitu- BIBLIOGRAFIA


ra mais tradicional do conceito, conquanto o insira
dentro da “corrente da consciência” e do pensamen- ALEXANDER, Jeffrey C. (1996), “Critical reflection
to em geral, sem opô-lo à experiência. on ‘reflexive modernization’”. Theory,
4 A dívida de Giddens para com a teoria weberiana Culture & Society, 13.
da racionalização, embora não explicitada, é óbvia.
BECK, Ulrich. (1986), Risk society. Londres, Sage,
Cf. Weber, 1919.
1992.
5 Nessa passagem, “agência” (agency) e “ação” (ac-
tion) são sinônimos. Isso não o impede de dizer _______. (1994), “The reinvention of politics: to-
alhures que a “agência” não se refere à intenciona- wards a theory of reflexive moderniza-
lidade, mas à capacidade de fazer coisas, de formas tion”, in Ulrich Beck, Anthony Giddens &
distintas (Giddens, 1984, p. 9).
Scott Lash, Reflexive modernization,
6 Lash quer ver a “comunidade” como articulada e Cambridge, Polity.
centrada, com uma identidade dada por elementos
significativos e explícitos comuns, ao passo que “so- BLOCH, Maurice. (1991), “Language, anthropo-
ciedades” (conceito que inclui, por exemplo, classes logy and cognitive cience”. Man, 26.
e partidos) seriam conjuntos de indivíduos vincula-
dos meramente por interesses. Para deixar de lado BOURDIEU, Pierre. (1980), Le sense pratique. Pa-
tal distinção, que além de tudo tem sabor por de- ris, Minuit.
mais antiquado, sua substituição pela idéia de sub-
jetividades coletivas mais ou menos (des)centradas CROSSLEY, Nick. (2001), “The phenomenological
seria decisivamente eficaz. habitus and its construction”. Theory and
7 Mas isso nos permitiria também escapar ao caráter Society, 30.
fundamentalmente anti-reflexivo presente nas defi-
nições de Bourdieu (1980) da “lógica da prática” e DEWEY, John. (1916), How we think. Chicago,
do habitus. Tais definições fornecem “esquematas” Boston, New York, D. C. Heath & Co.
que fogem quase totalmente ao conhecimento dos
atores e não são, de fato, abertos a sua intervenção DOMINGUES, José Maurício. (1995), Sociologi-
criativa, localizando-se sobretudo em seu corpo an- cal theory and collective subjectivity.
tes que em sua mente. Londres/Nova York, Macmillan/Saint
8 É indubitável a influência a esse respeito de Sartre Martin’s Press.
(e, em menor medida, de Heidegger), porém deixa-
rei em aberto o quanto o uso de Giddens e Beck é _______. (1999a), Criatividade social, subjetividade
próximo ao de cada um daqueles autores. Basta no- coletiva e a modernidade brasileira con-
tar que Giddens é, inclusive, muito mais cartesiano temporânea. Rio de Janeiro, Contra Capa.
que o próprio Sartre.
_______. (1999b [2000]), “Desencaixes, abstrações
9 Melucci (1996, pp. 45, 147-148) observa, vale lem-
brar, que a desigualdade de recursos para o exercício
e identidades”, in Leonardo Avritzer &
da reflexividade é fundamental no mundo contempo- José Maurício Domingues (orgs.), Teoria
râneo. Não discuti seu trabalho porque as noções de social e modernidade no Brasil, Belo Ho-
reflexividade e escolha apontadas por ele não apre- rizonte, Editora UFMG.
sentam novidade, e também porque sua concepção
sobre a individualização depende excessivamente _______. (1999c), Sociologia e modernidade: para
de processos sistêmicos. entender a modernidade contemporânea.
10 Embora seja isso que ele até certo ponto almeje, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
com o desiderato do estabelecimento do “bom
senso” em lugar do mero “senso comum” e de uma DUMONT, Louis. (1983), Études sur l’individualis-
nova visão de mundo ligada à “filosofia da práxis”, me. Paris, Seuil.
e utilizar-se do termo “reflexividade” para essa ati-
vidade crítica de construção sistemática de um DURKHEIM, Emile. (1893), De la division du tra-
pensamento consciente. vail social. Paris, Alcan.
REFLEXIVIDADE, INDIVIDUALISMO E MODERNIDADE 69

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RESUMOS/ABSTRACTS/RÉSUMÉS 169

REFLEXIVIDADE, INDIVIDUA- REFLECTIVITY, INDIVUALISM RÉFLEXIVITÉ, INDIVIDUALIS-


LISMO E MODERNIDADE AND MODERNITY ME ET MODERNITÉ

José Maurício Domingues José Maurício Domingues José Maurício Domingues

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Reflexividade; Modernidade; Desen- Reflectivity; Modernity; Embedding; Réflexivité; Modernité; Déboîte-
caixe; Individualismo; Brasil Individualism; Brazil ment; Individualisme; Brésil

O artigo visa a discutir o problema The article aims to discuss the pro- L'article a pour but de discuter le
da reflexividade, com referência em blem of reflectivity, with particular problème de la réflexivité, par
particular às teorias recentes sobre a reference to recent theories about l'abordage, en particulier, des théo-
questão, com dois objetivos: 1) apre- the issue, aiming two goals: 1) to in- ries récentes sur la question, suivant
sentar um conceito menos racionalis- troduce a less rationalistic and res- deux objectifs: 1) présenter un con-
ta e restrito de reflexividade, também tricted concept of reflectivity, which cept moins rationaliste et restrictif
pouco marcado pela divisão entre must be also less marked by the di- de la réflexivité, moins marqué par
sujeito e objeto, e que se desdobra, vision between subject and object, la division entre le sujet et l'objet, et
portanto, em outras dimensões; 2) therefore unfolding it into other di- qui se déplie, pourtant, en d'autres
pensar como as diversas modernida- rections; 2) to think how the several dimensions; 2) penser comme les
des, com suas múltiplas tradições, kinds of modernities, with their mul- diverses modernités, avec ses multi-
podem ser analisadas fazendo-se uso tiple traditions, can be analyzed ma- ples traditions, peuvent être analy-
desse conceito de reflexividade mo- king use of such a transformed con- sées en faisant emploi de ce concept
dificado, em grande medida de cará- cept of reflectivity, to a great extent de réflexivité, modifiant, en grande
ter prático, inclusive no que diz res- practical in its use, including here partie, le caractère pratique, même
peito ao caso brasileiro. the Brazilian case. en ce qui concerne le cas brésilien.

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