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A R T I G O

COMUNIDADE, SOCIEDADE E SOCIABILIDADE:


REVISITANDO FERDINAND TÖNNIES
INTRODUÇÃO Con el lugar y condiciones de su vida coti- mirada percorre, portanto,
diana, modiican los hombres su tempera- desde os marcos conceituais
Um dos grandes expoen-
mento. que lidam com os níveis mais
tes e pioneiros da ciência social
elementares das relações sociais
alemã da última metade do F. TÖNNIES até as macro-estruturas, numa
século XIX e início do XX, cuja
verve inluenciada por pensa-
produção sem dúvida deixara
CASSIO BRANCALEONE* dores de grande estatura teórica
sua marca em autores seminais
como Karl Marx 2 e Thomas
como Max Weber e Georg Sim- RESUMO
Hobbes3.
mel, Ferdinand Tönnies aparece Um dos pioneiros da ciência social alemã, da
última metade do século XIX e início do XX, Estas considerações, em-
nos anais da sociologia muitas Ferdinand Tönnies aparece nos anais da sociologia bora salutares, não pretendem
vezes como um daqueles anô- moderna como mais um daqueles anônimos
autores menores. Paradoxalmente, é autor de uma transitar no sentido de contri-
nimos autores menores, cuja
fecunda contribuição que lançou importante base buir com algum tipo de reabili-
existência restringir-se-ia a ali- para a institucionalização científica da disciplina,
tação de sua “esquecida” igura.
mentar a imaginação de pesqui- e seus principais conceitos se encontram hoje
cristalizados e naturalizados como parte do típico Não se trata de encontrar para
sadores que cultivam alguma jargão sociológico. Este artigo pretende realizar um ele um lugar no ilustre pedestal
ordem de excentricidade teó- resgate pontual de duas categorias presentes na
dos clássicos da sociologia. O
rica. Salvo raríssimas exceções, mais conhecida obra de Tönnies, “Comunidade e
Sociedade”, ressaltando a importância de se retomar objetivo deste artigo é pon-
seu nome está invariavelmente a reflexão sobre elas para a elaboração de modelos tual e modesto: reconstruir
relacionado aos trabalhos de teóricos e descritivos que tenham os arranjos de
sociabilidade como unidade de análise. criticamente, através de um
investigadores ligados à escola
sucinto inventário dos princi-
sociológica de Chicago (1915-
pais conceitos utilizados por
1940), notadamente durante a
ABSTRACT Tönnies em sua mais conhecida
constituição do corpus teórico- Despite his role as one of the pioneers of sociology obra, seu modelo de carac-
metodológico que levaria o in Germany in the late nineteenth and early
twentieth century, Ferdinand Tönnies appears in terização, análise e descrição
nome de Ecologia Humana.
the annals of modern sociology as a lesser, almost dos arranjos de sociabilidade,
Sua magnum opus, “Co- anonymous figure. Paradoxically, he is the author
consolidado como constructo
munidade e Sociedade” (Ge- of important contributions, which made way for
the institutionalization of sociology as a scientific conceitual norteador do jargão
meinschaft und Gesellschaft),
discipline and is also the author of important sociológico através da oposição
foi publicada em 1887. Trata- concepts, which today have been incorporated and
binária Comunidade-Sociedade.
se de um esforço de grande crystallized by sociological jargon. In this article I
bring back to the fore two categories put forth in his O que não implica, por sua
envergadura analítica1, articu- most well-known writing, “Community and Society”. vez, ignorar tacitamente um
lando princípios gerais para My aim is to emphasize the importance of reflecting
upon these concepts in order to elaborate theoretical desdobramento quase natural
a ediicação de uma teoria da
and descriptive models focused on arrangements of dessa empreitada: estimular a
estrutura social, curiosamente, sociability. relexão sobre os instrumentos
sem se abdicar em formular
teóricos da ciência social que
uma percepção bem particular
* Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade buscam dar conta das possíveis
de uma teoria da ação, baseada (CEDES) e doutorando em sociologia pelo IUPERJ. conigurações de sociabilidade
esta última na idéia de vontade
E-mail: cassiobrancaleone@iuperj.br nas sociedades modernas.
social (MIRANDA, 1995). Sua

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I – O HOMEM FEITO: VONTADE NATURAL E tações coletivas do grupo. Quando orientado pelo
VONTADE ARBITRÁRIA primeiro tipo de vontade, o grupo social (a união)
seria concebido pelos agentes em interação como
Se pudéssemos lançar mão da adaptação de algu- entidade natural e durável. Quando pela segunda,
ma assertiva genealógica para começar, talvez, numa como entidade artiicial e mutável, submetida aos
redução grosseira da teoria de Tönnies, mas nem por interesses individuais.
isso menos verossímil, valeria então aludir: no início Para Tönnies, portanto, é fundamental, antes de
havia a interação. Este me parece o ponto de partida se estabelecer uma descrição hipotética dos padrões
de nosso autor. Tönnies se referia em seus escritos ao de sociabilidade, desvelar a que tipo de inclinações os
processo permanente de inter-ações humanas através agentes estariam sujeitos. Em seu modelo explicativo,
do termo vontade. Os agentes, atualizando para as o tipo de vontade dominante seria um dos elementos
categorias de nosso tempo, são vontades humanas em mais importantes na determinação da coniguração
múltiplas relações, vontades realizadas e/ou sofridas, das relações sociais, apontando as tendências de
conservando e/ou destruindo outras vontades. Que organização institucional, moral e morfológica dos
ique claro que vontades não seriam necessariamente agregados humanos.
e em princípio indivíduos, pelo menos no sentido De tal modo, parecia sugerir um esquema
cultural moderno, enquanto atores monádicos rele- do ponto de vista lógico, linear e evolutivo, onde a
xivos, mas antes de tudo unidades biológicas dirigidas
vontade social se transformaria no processo natural
por instintos, orientadas por motivações de origem
e ordinário de orientação da intervenção humana
orgânica como a nutrição, a auto-preservação e a
no mundo, com o desenvolvimento das sociedades
reprodução. A vontade humana, assim nesse estado
se realizando basicamente através de duas matrizes
mais “bruto”, equivalente psicológico do corpo, foi
designada por ele como vontade natural. morfológicas de sociabilidades ou dois imperativos
Tönnies comunga da noção aristotélica do organizacionais de coletividades, relativamente opos-
homem como animal gregário, de modo que as tos: as relações comunitárias e as societárias.
ações oriundas das vontades e suas forças, quando
no sentido de conservação (e podem sê-lo em ou-
tro, no de destruição) formariam uma união. Esta, II – O COLETIVO REALIZADO:
quando conigurada predominantemente pela von- GEMEINSCHAFT E GESELLSCHAFT
tade natural, seria caracterizada como comunidade
Por relações comunitárias (gemeinscht) Tönnies
(gemeinschat).
entendia toda vida social de conjunto, íntima, interior
A vontade humana pode, entretanto, ser guiada
e exclusiva. As relações societárias (gesellschat), ao
por outros móbiles, transcendendo os determinantes
do “orgânico”, partindo de representações ideais e contrário, se constituiriam justamente como a so-
artiiciais sobre os homens e o mundo ao seu redor. ciabilidade do domínio público, do mundo exterior
Quando ela assume caráter deliberativo, propositivo e (TÖNNIES, 1947: 20). Um corpo comunitário existi-
racional, se manifesta como vontade arbitrária. Assim, ria muito antes da constituição social de indivíduos e
uma união de homens ediicada predominantemente seus ins, ainda que isso não implique sua restrição a
pela vontade arbitrária, por sua vez, seria denominada tais condições sócio-genéticas. Estas relações seriam
como sociedade (gesellschat). Pela vontade natural, as primordialmente sustentadas por elementos de uma
relações entre os homens teriam valor por si mesmas, cultura holista, por “hombres que se sienten y saben
sendo intrínsecas, não dependendo de propósitos como perteneciéndose unos a otros, fundados en
exteriores ou ulteriores a elas. Já a vontade arbitrária la proximidad natural de sus espíritus” (TÖNNIES,
se pautaria na diferença entre meios e ins, sendo 1942: 45).
racional e motivada por inalidades exteriores às re- De modo que as relações comunitárias pres-
lações estabelecidas socialmente. O tipo de vontade cindiriam, pelo menos a priori, da necessidade de
predominante tem, por sua vez, um papel simbólico igualdade e liberdade das vontades. Em grande me-
e imaginário precioso na construção das represen- dida, se constituiriam por razões de determinadas

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desigualdades “naturais”, como aquelas encontradas Interessante que, para as comunidades de sangue
entre sexos, idades ou forças físicas e morais distintas, e lugar, atribuiu a constituição de vínculos de natureza
como se dão nas condições materiais de existência. própria da vida animal, enquanto a comunidade de
Sua origem repousaria na consciência da dependência espírito, por sua vez, articularia vínculos típicos da
mútua determinada pelas condições de vida comum, vida mental. Isso explica a idéia forte presente em
pelo espaço compartilhado e pelo parentesco: por seu argumento, de alto corte biologista, segundo a
isso se realizaria como comunidade de bens e males, qual níveis mais primários de comunidade existiriam
esperanças e temores, amigos e inimigos, mobilizada entre todos os seres orgânicos (TÖNNIES, 1947: 45),
pela energia liberada por sentimentos envolvidos questão depois apropriada, a seu modo, pela ecologia
como afeto, amor e devoção (ibidem: 39). humana.
Para Tönnies, uma teoria da comunidade teria Esses padrões de relações comunitárias se
que adensar fundamentalmente sua raiz nas dispo- realizariam territorialmente através de três núcleos
sições gregárias estimuladas pelos laços de consan- espaciais: a casa, a aldeia/vila e a cidade. Ainda que se
güinidade e afinidade (sejam relações “verticais”, possa ponderar a predominância da sociabilidade de
entre pais e ilhos, ou “horizontais”, entre irmãos e família na casa, de vizinhança na vila, e de ainidade
vizinhos), se caracterizando pela inclinação emocio- espiritual na cidade, enquanto formas comunitárias
nal recíproca, comum e unitária; pelo consenso e o de sociabilidade, Tönnies imaginava os três padrões
mútuo conhecimento íntimo. Postulou, assim, o que imbricados em cada uma de suas extensões espaciais,
seriam suas “leis principais”: a) parentes, cônjuges, de maneira que a cidade, enquanto o possível locus
vizinhos e amigos se gostam reciprocamente; b) entre mais evoluído desse esquema, compartilharia, a seu
os que se gostam, há consenso; c) os que se gostam, se modo, de todos os elementos das formações sócio-
entendem, convivem e permanecem juntos, ordenam espaciais precedentes, pelo menos em um primeiro
sua vida em comum (TÖNNIES, 1947: 41). momento, e em uma morfologia mais rudimentar. Po-
Partindo destes princípios de convivialidade, rém, admitia que na cidade a irmandade proissional
registrou a existência de três padrões de sociabili- seria a mais alta expressão da idéia de comunidade
dade comunitária: os laços de consangüinidade, de (ibidem: 43).
coabitação territorial e de ainidade espiritual, cada Na passagem do modo de vida rural para o
qual convergindo para um respectivo ordenamento urbano, teríamos o desencadeamento de uma rup-
interativo, como comunidade de sangue (parentesco), tura na organização desses núcleos de sociabilidade.
lugar (vizinhança) e espírito (“amizade”) (ibidem: 33). Quanto mais se multiplicava a vida da cidade – ou
Apesar de argumentar que tais dimensões estariam seja, à medida que o mercado estimulava o desenvol-
em grande maioria interconectadas, Tönnies por vimento hipercefálico da urbe –, mais perdiam forças
vezes se referia a elas como elementos de um mesmo os círculos de parentesco e vizinhança como motivos
plano de desenvolvimento cadenciado, um surgindo de sentimentos e atividades comunitários.
como conseqüência e desdobramento natural de seu Enquanto o chefe de família – seja citadino ou
antecessor. camponês – teria seu olhar voltado para dentro, para
Ele ainda classiicou as relações comunitárias, o interior da comunidade, os novos atores despertos
segundo sua forma, em três tipos: a) as relações auto- pelas potências do mercado urbano (como a classe
de comerciantes), por sua vez, dirigiriam sua atenção
ritárias, de modo geral predominantes, repousando na
para fora, para transpor territórios. Esse processo
desigualdade de poder e querer, de força e autoridade
Tönnies descreveu, esquematicamente, como a tran-
(o modelo ideal seria a relação entre pais e ilhos); b)
sição da predominância social da vontade natural
as relações de companheirismo, com origem na isono-
para a vontade arbitrária, que em termos espaciais
mia geracional (relação entre irmãos); c) e as relações
se deu como a submissão do campo ou da pequena
mistas, que combinariam as duas formas (relação
cidade à dinâmica da vida metropolitana; e pode
entre cônjuges) (TÖNNIES, 1942: 54-75).
também ser traduzido, em termos de sociabilidade,

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como enfraquecimento das relações mediadas pela O dinheiro, como equivalente geral, é um ele-
consangüinidade, os costumes e a tradição por aquelas mento importante na estruturação dessa sociabilidade
mediadas pela razão, o cálculo e o interesse. Aqui, societária e urbana, pois aprofunda um estado de
nosso autor se baseia, sobremaneira, numa perspec-
isonomia social sem precedentes, podendo ser tudo e
tiva do argumento marxista, de acordo com a qual
todos (pessoas, lugares, objetos, posições de prestígio)
a história econômica da sociedade moderna, e por
decorrência o motor dessas transformações, residiria por ele cambiáveis.
no movimento de oposição crescente entre cidade e A sociedade, na argüição de Tönnies e na esteira
campo (ibidem: 316). de Marx, se constituiu essencialmente sob a hege-
Nestes termos, Tönnies formulou sua teoria da monia dos capitalistas e para a sua plena realização
sociedade e da comunidade: se na comunidade os enquanto classe. A cidade é, desta maneira, o berço
homens permanecem unidos apesar de todas as sepa-
da burguesia e o lugar por excelência da exploração
rações, na sociedade permaneceriam separados não
da classe trabalhadora4.
obstante todas as uniões (ibidem: 65). Na sociedade,
cada vontade seria reconhecida socialmente como Entretanto, o mesmo fenômeno que deposita no
unidade subjetiva, moralmente autônoma, inde- coração do homem urbanizado o interesse e a razão
pendente e auto-suiciente, estando para si em um instrumental como móbiles da interação entre seus
estado permanente de tensão com as demais, sendo pares, diagnosticado pela hegemonia da sociabilidade
as intromissões de outras vontades, na maioria das mercantil, também seria indissociável da emergência
vezes, aludida como ato de hostilidade.
da vida e do pensamento livres; pelo menos destituído
No circuito das relações societárias, Tönnies
de toda ordem de coerções estamentais. Tal inter-
denominou por vontade arbitrária aquilo que é pro-
duto da sociabilidade mercantil, orientada em grande pretação não fez Tönnies deixar de reconhecer que a
medida pelo cálculo, o tráico e o contrato. Indivíduos vivência efetiva dessas liberdades prenunciadas pela
autoconscientes de seus interesses entrariam em re- sociabilidade societária e urbana seria condicionada
lação uns com os outros, instrumentalizando meios pela posição ocupada pelos indivíduos nas condições
que lhes estivessem ao alcance, considerando pura, sociais de produção da vida material.
fria e simplesmente regras estabelecidas no plano
Se temos de um lado um movimento de trans-
contratual. É o domínio da racionalidade, como ates-
formação dos padrões de sociabilidade comunitário
tava: “sociedad no es otra cosa que la razón abstracta”
(ibidem: 72). para societário com o desenvolvimento da sociedade
A característica dessa sociabilidade é dada, urbana, a força gravitacional que a grande cidade
fundamentalmente, pelo registro dos efeitos do co- exerce sobre os demais núcleos urbanos e rurais
mércio como ocupação econômica de maior peso e provoca, por sua vez, um movimento expansivo do
visibilidade sócio-cultural, sendo gesellschat para as demais espacialidades e territórios
(...) el intercambio de palabras y favores, en
em relação a ela “satelitizados”, atestando a força ex-
el que parece que todos estén a la disposici- pansiva da dinâmica de vida da metrópole, ungida por
ón de todos y que cada cual considere como suas propriedades e potencialidade para centralizar
iguales suyos a los demás, cuando en reali- as grandes instituições econômicas e as esferas de
dad cada cual piensa en sí mismo y procura poder. De forma que, quanto mais se realiza o estado
imponer su importancia y ventajas en oposi- de sociedade em um país, mais ele se assemelharia a
ción con todos los demás (ibidem: 81).
uma grande cidade (ibidem: 307).

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E sendo, na opinião de Tönnies, a comunidade cício, como modiicación de un substancial
mais uma relação de corpos, de caráter orgânico, a de la misma índole ya anteriormente exis-
sociedade estaria, por sua vez, intrinsecamente vin- tente, progresando de lo general al especial.
culada à existência do Estado, como espírito humano De esta suerte, és in de sí mismo, aunque
projetado, exacerbando, portanto, suas características en relación necesaria con aquel todo a que
mais abstratas e artiiciais. Isto é corroborado, aludin- pertenece y donde procede, que es él mismo
do-se suas duas respectivas ordenações normativas manifestándose de modo peculiar. Con ello
de convivência: aquilo que o costume e a religião re- se presupone una humanidad unida como
presentariam para uma suposta “idade comunitária”, existencia natural y necesaria; es más, se
a legislação, a ciência e a opinião pública assumiriam presupone un protoplasma de derecho como
para uma “idade societária”. producto originario y necesario de la vida y
Talvez possamos compreender melhor o senti- pensamiento conjuntos de la humanidad...
do dessa dualidade quando de sua explicitação por (TÖNNIES, 1947: 201-2).
Tönnies, em termos da oposição entre uma cultura de
povo (folk) versus uma civilização de Estado (ibidem: Apesar de todo um conjunto de transformações,
304), ressaltando o poder das relações comunitárias entre algumas apresentadas neste artigo, apontar para
em orientar a constituição de identidades locais, ou a tendência de uma progressiva transição da huma-
nidade de uma suposta idade comunitária para uma
seja, de participar das dinâmicas da sociabilidade que
idade societária, conforme categoria lançada pelo
levam em consideração o aspecto do singular, em de- próprio Tönnies em algumas passagens de seus textos,
corrência da força das relações societárias em articular nosso autor tem clareza de que quer, com isso, nada
identidades extra-locais, exacerbando, com isso, a mais do que acentuar a preponderância de certos pa-
relação da sociabilidade com o tema do universal, do drões de sociabilidade nos modernos agrupamentos
cosmopolita, e por derivação, a sua importância para a sociais; e, em sua leitura, o registra através da categoria
consolidação de uma ideal de humanidade5. Assim, gesellschat e vontade social arbitrária. Esta ressalva se
faz necessária, pois assim se pode compreender que
(…) a medida que se desarrolla, lo artiicial padrões de sociabilidade comunitária continuam a
existir na sociedade urbana e capitalista, marginal e
aumenta costas de lo natural, pues cada vez
residualmente, na maioria dos casos, segundo esta
adquiere mayor importancia y participación
perspectiva, e possibilitando a articulação até mesmo
lo especiicamente humano y particulamente de outras sociabilidades “híbridas”. O melhor exemplo
la fuerza mental de la voluntad, hasta que notiicado por Tönnies foi o fenômeno do cooperati-
acaba formándose con (relativa) libertad de vismo entre o movimento de trabalhadores, produ-
su base natural y hasta poniéndose en opo- zindo uma nova cultura de comunidade, em meio a
sición con ésta. Así hay que entender todo padrões societários de convivência (ibidem: 313).
Na expectativa de visualizar o modelo comu-
derecho comunal como producto del espíri-
nidade-sociedade de Tönnies, tendo em vista suas
tu humano, pensador: um sistema de ideas,
potencialidades em nossa leitura dos arranjos de
reglas, normas, comparable, como tal, a un sociabilidade, podemos apresentá-lo de um modo
órgano o obra, surgido por la reiterada acti- sucinto e resumido como neste esquema, de acordo
vidad correspondiente de si mismo, por ejer- com o que já foi tratado ao longo desta seção:

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O MODELO COMUNIDADE-SOCIEDADE
COMUNIDADE SOCIEDADE
Modo de união afetivo Modo de união objetivo-contratual
Convivência Tipo de ocupação Convivência externa Tipo de ocupação e
externa e tendência tendência dominante de
dominante de orientação espiritual
orientação espiritual

Vida de família Economia doméstica Vida na metrópole – Comércio –


–hábitos convenção contrato
Vida de aldeia Agricultura Vida nacional – Indústria –
–costumes política/Estado planejamento
Vida urbana –religião Arte Vida cosmopolita Ciência – imprensa/opinião
–opinião pública pública
Fonte: Baseado em Tönnies, F. (1947: 313-5).

III – REVISITANDO TÖNNIES: O MODELO fora do escopo deste trabalho, não me deterei nesse
COMUNIDADE-SOCIEDADE ENTRE UMA problema. Basta assinalar que a maior contribuição
TEORIA DA MUDANÇA SOCIAL E UM de Tönnies à sociologia de um modo geral talvez te-
MAPA ANALÍTICO DAS SOCIABILIDADES nha sido a de estimular uma relexão importante, em
uma certa geração de cientistas sociais preocupados
Não chega a ser complicado para o leitor pouco com a questão mais elementar de nossa episteme, a
versado em Tönnies apontar as características mais formulação de uma leitura muito singular sobre o ca-
marcantes no conjunto de suas relexões. A começar nônico “mal de origem” da sociologia: o permanente
por sua própria sociogênese: a curiosa recusa do tensionamento entre agência e estrutura social. Mas
historicismo, caro aos intelectuais alemães de seu também não foi esse o mote privilegiado por esse
tempo, e a tenacidade ao tomar partido pelo outro trabalho para a aproximação com sua sociologia.
lado, assumindo o compromisso de buscar leis e in- Penso que, no núcleo de sua teoria, existem
variantes sociológicas universais. Depois, a inluência peças elaboradas de modo minimamente satisfatório
e reverberação do processo político alemão em sua para sustentar algo que possa ser ou servir, ao mesmo
epistemologia: até que ponto o movimento de passa- tempo, à composição de uma teoria da mudança social
e de um mapa analítico das sociabilidades, duas fer-
gem do gemeinschat ao gesellschat não respondia às
ramentas heurísticas que parecem ser fundamentais
alições coletivas e pessoais, em relação aos desaios
para se levar adiante algum projeto de interpretação
de um povo pulverizado que buscava se articular
dos processos e fenômenos que teriam dado à luz na
em Estado-Nação para concretizar um projeto de e/ou através da cidade moderna a certas conigurações
unidade geopolítica? Além do mais, determinismo, de sociabilidades. Isso porque seu modelo, ao mesmo
evolucionismo, organicismo, e holismo são outros tempo em que contribui para organizar, conceitual-
destes “apelidos politicamente incorretos”, mas não mente, as possíveis conigurações das relações sociais
necessariamente destituídos de alguma razão, atri- em sua dimensão histórica, lida também de modo ori-
buídos a sua teoria. ginal e fecundo com a morfologização e espacialização
Como advertido, não sendo meu objetivo reali- dos processos interativos, conferindo-lhes inteligibili-
zar nenhuma reabilitação de sua igura, por se situar dade para variadas formas de manipulação analítica.

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Certamente que com toda uma camada de problemas vínculos fundados e estabelecidos entre si, podemos
a serem solucionados ou minimizados, desde os já ter algo a mais que um valioso instrumento teórico
apontados àqueles que podem ser levantados. para mapear arranjos existentes e possíveis de socia-
Se boa parte das categorias de Tönnies foi forjada bilidade, indissociado de elementos conceituais para
para lançar as bases da sociologia enquanto disciplina reletirmos sobre a constituição de determinadas
cientíica, fundamentando uma teoria da estrutura ordens sociais existentes e mundos possíveis.
social e da agência, sua utilização pelo autor não se
furtou de ser realizada diacronicamente. Aliás, ainda
que seu esquema seja amarrado em um agrupamen- NOTAS
to dual de conceitos contrastantes, de modo algum 1 O sentido de sua produção teórica é tributário tanto das
características do meio social e intelectual da Alemanha do
Tönnies os pensava de maneira estanque, isolada e século XIX, como da posição ainda incipiente da sociologia
estática, e sim apontando as dinâmicas de longo prazo enquanto disciplina legitimada academicamente. Tamanha
que eles representavam, isto é, o desenvolvimento da era sua preocupação analítica que sua sociologia pode ser
sociedade de seu tempo. Creio que Tönnies agia desse considerada, em algumas passagens de suas obras, como
modo estimulado por sua leitura do marxismo. formalista, estática e descritiva (GURNEY & AGUIRRE,
1980).
A acusação de que ele privilegiava algum tipo de
2 Para mais informações sobre Tönnies leitor de Marx, ver
juízo de valor em relação à sociabilidade comunitária Miranda (1998).
contra a societária, como se aquela indicasse alguma
3 Tönnies produziu uma tese substantiva, tendo o pensamento
“idade de ouro” da humanidade, como ocorreu a de Hobbes como objeto de estudo (TÖNNIES, 1988).
alguns analistas que incorporaram elementos de sua 4 Certamente que poderíamos pontuar muitas descontinuidades
teoria, não parece muito convincente, pelo menos entre o pensamento de Tönnies e o de Marx, e caberia citar
em termos de sua preocupação cientíica que era aqui, pelo menos, a centralidade que ele, ao contrário de
claramente a de estabelecer parâmetros sociológicos Marx, atribuía ao papel social representado pelo comerciante
formais e conceituais, como ele mesmo relatou em (Ibidem: 305-307).
prefácio de uma obra sua publicada na década de 5 Tema que mais tarde seria desenvolvido, magistralmente, por
Norbert Elias (1993).
1930 (TÖNNIES: 1942: 11).
E se a concepção de vontade social estiver carre-
gada de metafísica e psicologismo à moda de Hobbes,
isto não desqualiica as potencialidades descritivas da
modelagem gemeinschat-gesellschat, se admitimos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
a relevância não daquilo que é genético na mani- ELIAS, N. (1993). O processo civilizador. Vol. I. Rio de Janeiro:
festação de padrões de sociabilidade comunitário e Zahar [1939].
societário, mas sim como, onde e sob quais condições GURNEY, P. & AGUIRRE, B. (1980). La teoria sociologica de
por excelência estes se manifestam e se reproduzem Ferdinand Tönnies. Revista Interamericana de sociologia,
enquanto tal. Suas categorias fornecem elementos México, vol. IX, n.29.
ainda hoje válidos e até mesmo implícitos em muitas MIRANDA, O. (1995). A dialética da identidade em Ferdinand
pesquisas e teorias sociológicas, tanto através como Tönnies. In: MIRANDA (org). Para ler Ferdinand Tönnies.
também além do que foi desenvolvido pela escola da São Paulo: EDUSP.
ecologia humana. __________ (1998). Tönnies e Marx: Utopia, Valor e
Em realidade, tomando o “natural” e o “arbitrá-
Contradição. Revista da USP, São Paulo, v. 36.
rio” não como conteúdos, em si, da vontade social,
TÖNNIES, F. (1942). Principios de Sociologia. México: Fondo de
ou sua tradução mais imediata na dinâmica das
Cultura Económica. [1931].
interações, mas como um dado conjunto simbólico
____________ (1947) Comunidad y Sociedad. Buenos Aires:
de inclinações que fundamenta a constituição das
Losada. [1887].
representações coletivas dos grupos sociais, apon-
____________ (1988). Hobbes, vida y doctrina. Madrid: Alianza
tando para orientações que organizam o imaginário
e a percepção dos agentes quanto à “natureza” dos Editorial [1878].

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