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Émile Durkheim e o delineamento da

matriz sociológica da “diferenciação social”

O ENR AIZ AMENTO DA SOCIOLOGIA NA CONFIGUR AÇÃO


EPISTEMOLÓGICA MODERNA

Ao definir a sociologia como um estudo com pretensões científicas do


“social como social”, tanto no nível “elementar” das relações interpessoais
quanto no “macroscópico” de vastos conjuntos, como as classes, as nações,
as civilizações ou mesmo as sociedades globais, Aron (2003) – explicitando
a dificuldade de se escrever uma “história da sociologia” que estabeleça
balizas precisas ao seu desenvolvimento – empreende uma ampla análise
do que designa “etapas do pensamento sociológico”. Tal empreitada, hoje
clássica, expressou-se a partir do que o autor denominou “galeria de retra-
tos intelectuais”, em meio à qual figuram como fundadores Charles-Louis
de Secondat (Barão de Montesquieu), Auguste Comte, Karl Marx e Alexis
de Tocqueville, e como geração da passagem do século XIX para o XX
Émile Durkheim, Vilfredo Pareto e Max Weber.40

40  Reconhecendo sua dívida intelectual para com Talcott Parsons, Aron (2003, p. XXI-
-XXII) afirma o seguinte: “Por que escolhi estes sete sociólogos? Por que razão Saint-
-Simon, Proudhon e Herbert Spencer não figuram em minha galeria? Poderia, sem
dificuldades, invocar motivos razoáveis. Auguste Comte por intermédio de Durkheim,
Marx graças às revoluções do século XX, Montesquieu por intermédio de Tocqueville, e
Tocqueville por intermédio da ideologia norte-americana, pertencem ao presente. Quanto
aos três autores da segunda parte, foram já reunidos por Talcott Parsons no seu primeiro
grande livro, The Structure of Social Action, e são estudados ainda nas nossas universidades
mais como mestres contemporâneos do que como autores clássicos”. Para outras análises
que contrastam esses autores clássicos, ver, por exemplo, Laval (2012) e Royce (2015). Para

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No que tange ao pensamento de Durkheim, relativamente ao qual
confessa sua antipatia, Aron (2003), relacionando-o aos de Pareto e de
Weber, ressalta, inicialmente, seus traços semelhantes. Aponta, em pri-
meiro lugar, a pretensão comum a todos de “fazer ciência”. Em seguida,
sublinha que todos também teriam partilhado a ideia de Comte de que
as sociedades somente poderiam manter a coerência por meio de crenças
comuns. Contudo, os três autores – constatando que as crenças comuns,
de contorno transcendente e legadas pela tradição, teriam sido abaladas
pelo desenvolvimento do pensamento científico – tendiam a considerar
que elas estariam experimentando uma erosão, possivelmente expressiva
de seu esgotamento, decorrente dos progressos científicos. Tal situação
conduzia-os a um dilema, pois, na qualidade de sociólogos, inclinavam-se
a acreditar que a coesão e a estrutura da sociedade demandavam, como
condição indispensável, a partilha de uma fé comum para reunir os mem-
bros da coletividade.
Segundo Aron (2003), esse seria o problema fundamental que
Durkheim, Pareto e Weber teriam procurado analisar. No tocante especi-
ficamente à posição de Durkheim, à qual atribui certa “ingenuidade pro-
fessoral”, Aron (2003) sustenta que, por ser tributária à de Comte, ela se
caracterizaria pela insistência na necessidade de crenças capazes de asse-
gurar uma base consensual para a sociedade. Disso decorreria a pretensão
de Durkheim de elaborar uma sociologia que servisse à fundamentação de
uma moral inspirada no “espírito científico”.41 Contudo, não cabe aqui re-
construir o “retrato intelectual” de Durkheim como ele se afigura na “gale-
ria” de Aron, inclusive porque o ângulo pelo qual tal retrato é captado, por

uma discussão acerca da importância dos clássicos no âmbito das ciências sociais contem-
porâneas, ver Alexander (1999).
41  Aqui vale lembrar a célebre afirmação de Durkheim de que suas pesquisas não vale-
riam uma hora de trabalho, se elas se mantivessem adstritas a um interesse especulativo.
Referindo-se à própria empreitada intelectual, Durkheim (2007, p. XXXVIII-XXXIX)
ressalta, textualmente, que “do fato de que nos propomos, antes de mais nada, a estudar a
realidade não resulta que renunciemos a melhorá-la: nós estimamos que nossas pesquisas
não seriam dignas de uma hora de trabalho, se elas somente tivessem um interesse especu-
lativo” (de ce que nous nous proposons avant tout d’étudier la réalité, il ne s’ensuit pas que nous
renoncions à l’améliorer: nous estimerions que nos recherches ne méritent pas une heure de peine
si elles ne devaient avoir qu’un intérêt spéculatif ). A respeito, ver, entre outros, Laval (2012).

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vezes, desfigura-o, acentuando demasiadamente seus traços desfavoráveis
em detrimento daqueles que exprimem sua potencialidade.42 Para os pro-
pósitos deste livro, o que interessa é a inscrição, feita por Aron (2003), do
pensamento do autor de Les règles de la méthode sociologique em um contexto
que, marcado por profundas transformações, ensejará um novo discurso
teórico sobre a sociedade.
Procurando captar a “ambição sociológica” em meio a esse novo e
complexo contexto social que se delineia a partir do século XIX, Christian
Laval (2012) ressalta que a elaboração de uma “galeria” de “retratos inte-
lectuais” singulares que podem até produzir ecos uns nos outros é, sem
dúvida, uma forma de tematizar o que é a sociologia. Entretanto, em seu
entendimento, perspectivas como as de Talcott Parsons (em The structure of
social action) e de Robert Nisbet (em The sociological tradition) seriam mais
consequentes para esse desiderato, uma vez que procurariam desenvolver
uma interpretação sistemática do conteúdo de pensamento central da so-
ciologia. Segundo Laval (2012), tanto Parsons quanto Nisbet teriam se in-
dagado acerca dos motivos que conduziram, no século XIX, à emergência
de um novo discurso teórico sobre a sociedade, não redutível ao de outras
disciplinas como a filosofia ou a economia política. Assim, as obras desses
dois grandes sociólogos americanos procurariam explicar os propósitos do
discurso sociológico, as razões de sua formação e as vicissitudes de seu
desenvolvimento no contexto das mutações que marcam a modernidade.43
Consequentemente, segundo Laval (2012), a sociologia não poderia
ser considerada uma especialização científica entre outras. Ao contrário,
ela teria progressivamente se afigurado como uma nova forma de pensar
o homem em um contexto social marcado pela relação de ruptura no que
tange às configurações anteriores. Analogamente, Berthelot (2008) asse-
vera que a sociologia moderna, cujo desenvolvimento ocorre no final do

42  Vale lembrar que Aron (2003, p. XXVI) admite que teria insistido, “mais do que seria
razoável, na parte mais contestável da sua obra, isto é, sua filosofia”.
43 Aliás, alinhando-se às perspectivas de Parsons e Nisbet, Laval (2012), referindo à
própria obra, afirma que ela teria o propósito de identificar o significado da sociologia,
reinscrevendo o seu nascimento e o seu desenvolvimento no contexto da mutação das so-
ciedades modernas.

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século XIX, teria assumido um conjunto de características teóricas, meto-
dológicas e institucionais que lhe conferiram o estatuto de uma disciplina
científica, passando, assim, a se distinguir da filosofia social e do ensaísmo
literário. Portanto, para esse autor, a civilização que se esboça a partir do
século XIX constituiria o horizonte da sociologia, ao qual se convencionou
designar de “modernidade”.
Sendo a modernidade o cenário em que se enraíza o discurso socioló-
gico, cabe aludir àquilo que a caracteriza fundamentalmente. A esse res-
peito, há certo consenso em considerá-la, em termos gerais, uma época que
procura extrair de si própria a sua normatividade, recusando-se, portanto,
a aceitar os modelos advindos de épocas passadas. Nesse sentido, como
observa Habermas (2000, p. 12), a modernidade não pode nem quer re-
correr a modelos de outras épocas para, a partir deles, obter critérios de
orientação; por isso, “ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade”.
Como enfatiza esse autor, a tomada de consciência do problema da fun-
damentação da modernidade a partir de si mesma teria ocorrido, pela pri-
meira vez, no âmbito da crítica estética, especialmente a partir do início do
século XVIII, com a célebre Querelle des anciens et des modernes. Segundo
Habermas (2000), isso explicaria a forte conotação estética que as expres-
sões “moderno” e “modernidade” consignam até hoje.44
Dado o caráter introdutório deste livro, não cabe aqui realizar mais
digressões a esse respeito. O que importa notar é a configuração social-
mente nova em que se enraíza o discurso sociológico. Relativamente a
essa questão, com base na obra do historiador alemão Reinhart Koselleck,
Habermas (2000, p. 19, p. 23) enfatiza que,

[…] no quadro de suas investigações sobre a história dos conceitos, R.


Koselleck caracterizou a consciência moderna do tempo, entre outros
modos, mediante a diferença crescente entre o “campo de experiên-
cia” e o “horizonte de expectativa”: “segundo minha tese, amplia-se
progressivamente na época moderna a diferença entre experiência e

44  Nesse particular, vale mencionar a primorosa análise que Habermas (2000) faz da obra
de Charles Baudelaire para ilustrar essa questão.

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expectativa; mais precisamente, a época moderna só se deixa com-
preender como um tempo novo desde o momento em que as expec-
tativas começam a se afastar cada vez mais de todas as experiências
feitas até então.” [...] O lugar dessas experiências legadas pelas gera-
ções precedentes é ocupado então por aquela experiência do pro-
gresso, que confere ao horizonte de expectativa, até aí ancorado com
firmeza no passado, uma “qualidade histórica nova, que sempre pode
ser encoberta pela utopia”. [...] O desacoplamento entre o horizonte
de expectativa e o potencial [sic] de experiência transmitido possibili-
ta, antes de tudo, como mostra Koselleck, a oposição entre um tempo
novo, que vive com seus próprios direitos, e aquelas épocas passadas,
com as quais a era moderna rompeu.45

De fato, Koselleck (2006, p. 269) – mobilizando a tese de uma “fra-


tura” entre o “espaço de experiência” (Erfahrungsraum), ou seja, o que o
passado nos legou, e o “horizonte de expectativa” (Erwartungshorizont),
isto é, o que se espera com relação ao futuro – caracteriza a modernidade
como uma época na qual ocorre uma progressiva ampliação da diferença
entre experiência e expectativa, de modo que a primeira deixa de ser o
solo no qual a segunda se funda. Justamente por isso, na modernidade,
o peso da tradição declina progressivamente. Trata-se de uma época que
não é mais determinada pelo passado, mas aberta ao futuro. A respeito,
Koselleck (2006, p. 269) sublinha que:

A partir do século XVIII, a historiografia fala cada vez mais de uma


“época contemporânea”. O conceito de “tempos modernos”, ou “mo-
dernidade” (Neuzeit) [...] só é documentado a partir de 1870 [...]. Embo-
ra possam ser apontados exemplos anteriores [...] o conceito de “mo-
dernidade” só veio a impor-se depois de decorridos cerca de quatro
séculos do período que ele englobava. Lexicalmente, só se implantou
no último quartel do século XIX. Essa constatação surpreendente não

45  Vale notar que o termo Erfahrungsraum, utilizado por Koselleck, encontra melhor tra-
dução, para o português, na expressão “espaço de experiência”.

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deve provocar nossa admiração [...]. Um período qualquer só pode ser
reduzido a um denominador diacrônico comum, a um conceito que
enfeixe estruturas comuns, depois de decorrido certo tempo.

AS MATRIZES DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO SOBRE A


MODERNIDADE

A sociedade, com a configuração que a modernidade lhe imprime, foi ob-


jeto das mais variadas abordagens sociológicas. É nesse sentido que Mar-
tuccelli (1999), em uma ampla e sofisticada análise acerca do que designa
de Sociologies de la modernité, ressalta que a modernidade, como objeto da
análise sociológica, teria sido descrita a partir de diferentes maneiras pelos
mais variados autores, decorrendo daí sua significativa porosidade con-
ceitual.46 Poder-se-ia afirmar, portanto, que a modernidade seria uma es-
pécie de “palavra plástica”, no sentido em que Uwe Pörksen (1995) define
as Plastikwörter.47 Assim, para a reconstrução e a articulação das diversas
abordagens sociológicas desenvolvidas sobre esse tema, o autor propõe a
utilização do conceito de “matriz”, que, segundo ele, consistiria em uma
forma de compreensão da continuidade da reflexão sociológica a respeito

46  Martuccelli (1999) sublinha que a dificuldade de propor uma definição peremptória à
“modernidade” decorre do fato de que a sua utilidade analítica provém justamente de sua
indecisão conceitual, do fato de dar conta de um número bastante amplo de fenômenos e
também de uma quantidade significativa de polêmicas.
47  Pörksen (1995) utiliza a expressão “palavras plásticas” (Plastikwörter) para descrever
vocábulos que são extraordinariamente maleáveis, porém vazios no que concerne a seu sig-
nificado real. Assim, as “palavras plásticas”, que entram sub-repticiamente na linguagem
cotidiana e passam a ditar nosso modo de pensar, seriam caracterizadas por definições
precisas e restritas quando usadas em um contexto científico ou tecnológico. Contudo, essa
precisão e definição desapareceriam quando difundidas amplamente no uso comum. O uso
do termo “plástico” para qualificar essas palavras visa sublinhar a sua flexibilidade, porém
exprime também a sua semelhança com os tijolos de plástico lego, que funcionam como
elementos modulares para construir compostos maiores. A língua alemã facilita a criação
de novas palavras compostas mediante a combinação de outras palavras. Entretanto, com-
pósitos análogos podem ser criados em outras línguas, mediante a união de várias palavras.
Para usos da noção de “palavras plásticas” (Plastikwörter) nas discussões das ciências so-
ciais, ver, por exemplo, Mattei e Nader (2008) e Villas Bôas Filho (2016a; 2016b).

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da modernidade e, por conseguinte, de articulação de distintas visões re-
lativamente a ela.48
Contudo, com o intuito de esclarecer o que entende por “matriz”,
Martuccelli (1999, p. 20) ressalta a necessidade de se realizar uma distin-
ção entre essa noção e as de “paradigma”, “ideia de base” e “escola”.49 Em
primeiro lugar, a “matriz” não chega a ser um “paradigma”, pois, entre
outros aspectos, ela não adquire a consistência lógica e a capacidade de es-
tabelecer quadros epistemológicos de explicação.50 Entretanto, a “matriz”
seria mais do que uma “ideia de base”, pois não pretende apenas “isolar” os
elementos constitutivos de diferentes sistemas de pensamento (utilitaris-
mo, idealismo, socialismo, entre outros), mas também fixar “grandes qua-
dros”, ou seja, o horizonte em que se inscrevem tais elementos.51 Por fim, a
noção de “matriz” não se confunde com a de “escola”, pois seu intui-
to não é apresentar distintos “modelos”, marcados pela permanência e

48  Vale notar que Martuccelli (2002, p. 27) utiliza a expressão “matrizes interpretativas da
modernidade” (matrices interprétatives de la modernité). Contudo, Martuccelli (2010, p. 63)
também usa as expressões “diagnóstico sociológico” (diagnostic sociologique) e “família de
análises” (famille d’analyses), imprimindo-lhes um sentido análogo ao do termo “matriz”.
Mais recentemente, ao referir-se ao que designa de “condição social moderna”, Martuccelli
(2017, p. 470-471) adota a expressão “matrizes de narração” (matrices de narration). Nesse
contexto, ressaltando que entende por “matriz” as “grandes semânticas históricas sedimen-
tadas de sentido”, afirma que a noção de “matriz de narração” auxiliaria na compreensão,
a partir de diversos “regimes de enunciação, de aparição e de inteligibilidade”, do modo
pelo qual os indivíduos constroem narrativas relativamente comuns acerca de sua relação
com o mundo.
49  Conforme Martuccelli (1999, p. 20), “as matrizes são menos do que um paradigma,
mais do que uma ideia de base, algo diferente de uma escola” (les matrices sont moins qu’un
paradigme, plus qu’une idée de base, autre chose qu’une école).
50  A respeito, Martuccelli (1999, p. 565) afirma que a sua noção de “matriz” consiste em
um “esquema histórico de interpretação da sociedade moderna” (schéma historique d’inter-
prétation de la société moderne). Vale notar que há autores que contestam a possibilidade de
unificação paradigmática no âmbito das ciências sociais. Eberhard (2010), por exemplo, as-
severa que no domínio das ciências sociais jamais teria havido uma unificação paradigmá-
tica comparável à das ciências exatas que serviram de base para a tese proposta por Thomas
Kuhn em sua análise da “estrutura das revoluções científicas”. Não obstante, Habermas
(2000) e Luhmann (1995), referindo-se a suas respectivas teorias, atribuem-lhes a estatura
de uma “mudança de paradigma”.
51  Cumpre notar que Martuccelli (1999, p. 20; p. 565) utiliza a expressão “ideia de base”
(idée de base) e, ao fazê-lo, remete às obras de Arthur O. Lovejoy e Robert Nisbet. Trata-se,
portanto, de uma tradução livre, para o francês, do conceito de “ideia-unidade” (unit-idea).
A respeito, ver Nisbet (2017, p. xii-xiii; p. 3-21).

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irredutibilidade mútua, cuja sucessão, por vezes, apresenta-se em termos
evolucionistas. Assim, autores classificados como pertencentes a uma mes-
ma escola podem integrar matrizes distintas. Portanto, a noção de matriz
proposta por Martuccelli (1999, p. 21) designaria, sobretudo, um “espa-
ço de invenção teórica” e de descrição da modernidade que não poderia
ser reduzido a uma doutrina ou a um único modelo epistemologicamen-
te consistente.52
A partir dessa definição, Martuccelli (1999) aponta a existência de
três grandes matrizes sociológicas de descrição da modernidade, a saber:
a) “matriz da diferenciação social”; b) “matriz da racionalização”; c) “matriz
da condição moderna”.53 Para ele, a “matriz da diferenciação social” privi-
legiaria o processo de diferenciação da sociedade como forma de descrição
da modernidade. Essa matriz estaria estruturada a partir do pensamen-
to de Émile Durkheim, agregando autores como Talcott Parsons, Pierre
Bourdieu e Niklas Luhmann. A “matriz da racionalização” – articulada ao
redor das obras de Max Weber, Norbert Elias, Herbert Marcuse, Michel
Foucault e Jürgen Habermas – enfatizaria, ainda que sob perspectivas di-
ferentes e muitas vezes conflitantes, o processo de racionalização como
fator definidor do perfil da modernidade. Nesse contexto, mesmo diver-
gindo significativamente, as propostas de Weber, Elias, Marcuse, Foucault
e Habermas teriam em comum a problemática da racionalização como
pano de fundo de suas análises sobre a modernidade. Por fim, na “ma-
triz da condição moderna”, a reflexão sociológica estaria voltada à análise
dos paradoxos e das contradições insuperáveis da vida moderna – pautada
pela fugacidade e efemeridade engendradas por uma condição de cons-
tante mutabilidade –, cujo ritmo se torna cada vez mais acelerado. Nessa
matriz, o foco da análise estaria dirigido, acima de tudo, para a natureza

52  Martuccelli (1999, p. 565) aponta a afinidade da noção de “matriz”, por ele propos-
ta, com a de “themata”, formulada por Gerald Holton. Para uma análise da proposta de
Martuccelli, ver Villas Bôas Filho (2006; 2009; 2010a; 2010b) e Gonçalves e Villas Bôas
Filho (2013).
53  Vale notar que Martuccelli (1999, p. 547-562) também alude aos “discursos críticos”
que se delineiam como “contrapontos da modernidade”, em meio aos quais sublinha duas
tendências: 1. a sociologia e a narrativa da história; 2. as críticas pós-modernas. A respeito,
a partir de outra perspectiva, ver Habermas (2000).

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da relação social que o indivíduo (que não pode mais ser definido como o
sujeito coerente e homogêneo da consciência clássica) mantém com um
mundo que se tornou fragmentário. Tal matriz estaria articulada ao re-
dor de autores como Georg Simmel, Erving Goffman, Alain Touraine e
Anthony Giddens.54

Matrizes da Matriz Matriz sociológica Matriz sociológica


sociologia sociológica da da “diferenciação da “condição
“racionalização” social” moderna”
Preocupação Processo de Diferenciação da Paradoxos e
essencial da análise racionalização sociedade contradições da
social vida moderna
Descrição da Sociedade Funcionalmente Mundo social
modernidade “desencantada” diferenciada fragmentário e em
constante mutação
Autores Max Weber, Émile Durkheim, Georg Simmel,
fundamentais Norbert Elias, Talcott Parsons, Erving Goffman,
Herbert Marcuse, Pierre Bourdieu e Alain Touraine e
Michel Foucault e Niklas Luhmann Anthony Giddens
Jürgen Habermas

Quadro 1 – Matrizes sociológicas da modernidade55


Fonte: Gonçalves e Villas Bôas Filho (2013, p. 80).

Essa sucinta alusão à análise de Martuccelli (1999) acerca das matri-


zes sociológicas da modernidade tem por finalidade sublinhar não apenas
a importância de Durkheim no delineamento da matriz da “diferenciação
social”, mas também a inscrição, por ele realizada, de sua análise socio-
lógica do direito no âmbito de uma teoria social geral.56 Trata-se de um

54  Vale notar que Martuccelli (2001; 2002; 2010; 2017) concentra suas análises no âmbito
da “matriz da condição moderna”, sendo possível sustentar que a sua obra constitui, atual-
mente, uma importante expressão dessa matriz sociológica. Acerca da trajetória intelectual
de Martuccelli, ver Setton e Sposito (2013).
55  Esse quadro, originalmente publicado em Gonçalves e Villas Bôas Filho (2013), ao aludir
à “matriz da condição moderna”, não menciona os autores da “Escola de Chicago”, como
Robert Park, William Isaac Thomas, Florian Znaniecki e Louis Wirth. Considerando a
influência exercida por Georg Simmel sobre esses autores e a intensa crítica (quase que des-
qualificadora) que Durkheim endereça a este último, torna-se relevante mencioná-los aqui.
56  Como enfatizam Arnaud e Fariñas Dulce (1998, p. 48), no que concerne à dimensão
teórica da sociologia do direito, Durkheim sustentou um estreito vínculo entre direito e
sociedade.

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apontamento importante, pois, segundo autores como Serverin (2000),
Luhmann (2008) e Schluchter (2006), a sociologia do direito, na obra de
Durkheim, tal como ocorre com a de Weber, não seria apenas uma so-
ciologia especializada, e sim parte de uma teoria geral da sociedade. A
respeito, Arnaud e Fariñas Dulce (1998) observam que o problema central
da pesquisa empreendida por Durkheim teria consistido na típica questão
hobbesiana de como obter a coesão social e a socialização dos indivíduos,
ou seja, como estabelecer a ordem social.57

ÉMILE DURKHEIM E A QUESTÃO DA DIFERENCIAÇÃO SOCIAL

Para que se possa compreender aqui a centralidade de Émile Durkheim


no delineamento da matriz sociológica da “diferenciação social”, cabe fa-
zer uma breve digressão pelos aspectos fundamentais que a caracterizam.
Nesse particular, Martuccelli (1999) sustenta que o traço essencial dessa
matriz consistiria na relação entre diferenciação e integração social.58 As-
sim, os autores que a integram procurariam, cada um à sua maneira, lidar
com o problema decorrente da integração (ou não) dos indivíduos em uma
sociedade cada vez mais complexa e diferenciada internamente em domí-
nios sociais regidos por lógicas e dinâmicas díspares.59 Na perspectiva dos

57  Como notam Arnaud e Fariñas Dulce (1998), a resposta dada por Durkheim a essa
questão estaria fundamentada na pressuposição de que em todas as sociedades haveria uma
regulação da ação dos indivíduos por um conjunto de normas. Daí a importância por ele
atribuída ao direito. Sobre a leitura e o magistério de Durkheim acerca da obra de Hobbes,
é de muito interesse a edição feita por Jean-François Bert das anotações tomadas por Marcel
Mauss do curso ministrado pelo autor acerca do De Cive. A respeito, ver Durkheim (2011).
58  Aliás, quanto a esse aspecto, Martuccelli (2017, p. 233) ressalta que, em Durkheim,
a integração normativa nas sociedades modernas demandaria, em virtude do alto grau
de diferenciação que as caracteriza, uma “integração morfológica” (intégration morpholo-
gique), o que implica afirmar que o princípio de interdependência funcional constituiria
um primeiro passo em direção ao reconhecimento da vida em comum. É por esse motivo
que Habermas (1999; 2001) sublinha que, na teoria da solidariedade social de Durkheim,
as categorias de integração social e integração sistêmica estariam referidas uma à outra.
A respeito, ver, especialmente, Ingram (1994). Sobre a questão da integração social em
Durkheim, ver Martuccelli (1999) e Steiner (2005).
59  Como ressalta Martuccelli (1999), o essencial da “história” da “matriz da diferenciação
social” consistiria na oscilação entre diferenciação e integração social. Contudo, o autor,
com razão, observa que uma análise mais pormenorizada do pensamento de Durkheim

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sociólogos que integram essa matriz, a tensão que emerge da complexa
relação, muitas vezes incongruente, entre diferenciação social e integração
exprimiria o que a modernidade tem de mais próprio.
Ora, na medida em que a tensão entre diferenciação social e integra-
ção constitui o problema fundamental que os integrantes dessa matriz so-
ciológica identificam na modernidade, torna-se evidente a importância de
Durkheim em seu delineamento. Como bem observa Martuccelli (1999),
um dos aportes mais inovadores trazidos por Durkheim à compreensão
da sociedade moderna teria consistido na tese de que a divisão do traba-
lho social seria fonte de integração. Essa tese, à primeira vista paradoxal,
expressa-se claramente como a questão central da primeira grande obra
do autor, De la division du travail social, publicada, como mencionado, em
1893. Já no prefácio à primeira edição desse livro Durkheim afirma que sua
intenção consiste em abordar as relações entre a “personalidade individual”
e a “solidariedade social”, o que implica explicar como pode o indivíduo
se tornar ao mesmo tempo mais autônomo e mais dependente da socieda-
de.60 Sem desconsiderar as formas anormais (fundamentalmente a anômi-
ca e a forçada) que a divisão do trabalho social pode vir a experimentar,
Durkheim (2007) sustenta que ela, em sua dinâmica normal, engendra a
solidariedade social.61
Nesse sentido, Durkheim lança as bases para o delineamento de
uma matriz sociológica que se desdobrará por importantes sociólogos
ao longo do século XX, como Talcott Parsons, Pierre Bourdieu e Niklas
Luhmann.62 Todos eles, a partir de pressupostos distintos e chegando a

implicaria distinguir “integração social” e “regulação social”. Essa questão é brevemente


tratada no glossário deste livro. A respeito, ver, especialmente, Steiner (2005).
60  Essa passagem da dependência pessoal para uma dependência da coletividade – e, por-
tanto, anônima e impessoal – consistiria, segundo Martuccelli (2017, p. 383), naquilo que
Durkheim designou de “dependência liberadora” (dépendance libératrice).
61  A esse respeito, Martuccelli (2017) observa que Durkheim teria identificado a soli-
dariedade entre desconhecidos como uma das mais significativas conquistas das socieda-
des modernas.
62  Não podem ser desconsideradas as reverberações de Durkheim inclusive em autores
das outras matrizes sociológicas identificadas por Martuccelli. Assim, no que tange à “ma-
triz da racionalização”, Durkheim e Mead são mobilizados intensamente na arquitetu-
ra argumentativa da Teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas. A respeito, ver,

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conclusões díspares, partirão desse problema identificado por Durkheim
já no último decênio do século XIX.63 Como enfatiza Martuccelli (1999),
o grande mérito de Durkheim teria consistido na identificação da moder-
nidade com o processo de diferenciação social e, sobretudo, na tentativa de
encontrar em tal processo a resposta para os problemas de integração na
sociedade moderna.64 Conforme mencionado, a tese central do autor é a de
que a divisão do trabalho social engendraria uma mudança estrutural na
sociedade, pois conduziria à emergência de um tipo social novo, marcado
pelo primado da solidariedade orgânica.
Quanto a esse ponto, é importante frisar que, rejeitando a visão utili-
tarista de que a sociedade seria o resultado das ações (intencionais) de indi-
víduos direcionados à consecução de seus interesses pessoais,65 Durkheim
(2007) enfatiza que a divisão do trabalho social não consistiria em um fe-
nômeno redutível ao âmbito econômico. Contrariamente, ela seria passível
de ser observada nos mais distintos domínios sociais, na medida em que
as funções políticas, administrativas, judiciárias estariam em um processo
de progressiva especialização. Aliás, segundo ele, o mesmo ocorreria no
plano artístico e científico. Assim, conforme Durkheim (2007), para além
dos “serviços econômicos” que possa vir a proporcionar, a divisão do tra-
balho social teria como verdadeira função a produção de um sentimento

especialmente, Habermas (1999; 1997c). No que tange à “matriz da condição moderna”,


é preciso considerar seus reflexos em autores como Erving Goffman e Anthony Giddens.
Sobre esses reflexos, ver, respectivamente, Keck (2012) e Giddens (1993).
63  Procurando apontar a heterogeneidade de perspectivas internamente à “matriz da di-
ferenciação social”, Martuccelli (1999) observa que, na obra de Parsons, a tensão entre
diferenciação e integração se resolveria em prol de uma “integração moral da sociedade”;
na de Bourdieu, a questão traduzir-se-ia na estreita imbricação entre agentes e campos, or-
ganizada ao redor da noção de habitus. Nessa perspectiva, são sublinhados, empiricamente,
os desacordos e a inadaptação. Por fim, no que tange à teoria dos sistemas de Luhmann,
o problema da integração da sociedade seria sacrificado em prol da diferenciação social.
64  Nesse particular, Martuccelli (1999) ressalta que Durkheim, como outros autores ante-
riores e posteriores a ele, considerava-se vivendo em um contexto de transição. A respeito,
especialmente, Aron (2003), Cuin (2011), Laval (2012) e Martuccelli (1999).
65  Para uma ampla análise dessa questão, ver Laval (2012). Colliot-Thélène (2011) enfa-
tiza, no que tange à crítica de Durkheim ao utilitarismo, a própria rejeição à possibilidade
de deduzir a sociedade a partir do indivíduo.

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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de solidariedade.66 O que o autor pretende enfatizar é o efeito moral que
decorre da divisão do trabalho.
Assim, alinhando-se em certa medida ao pensamento de Auguste
Comte, Durkheim (2007) afirma que a divisão do trabalho seria, se não
a única, pelo menos a principal fonte de solidariedade,67 entendida esta
última como o modo de coesão das sociedades que faz delas totalidades
superiores e distintas do mero somatório dos indivíduos que as compõem.
É nesse contexto que o autor, não sem certa adesão ao ideário evolucionista
de sua época, propõe a célebre distinção entre as formas de solidariedade
social – mecânica e orgânica – e a tendência de preponderância progressiva
desta sobre aquela.68 Enunciando uma suposta “lei da história”, Durkheim
(2007, p. 149) sustenta que a “solidariedade mecânica”, típica das socieda-
des segmentárias pré-modernas, tenderia a paulatinamente perder terreno
para a “solidariedade orgânica” característica das sociedades modernas,
marcadas pela diferenciação funcional. A tese proposta por Durkheim im-
plica, portanto, a correspondência entre dois “tipos sociais” e duas “formas
de solidariedade”.69

66  Acerca dessa questão, ver Jones (2001) e, sobretudo, Martuccelli (1999).
67  Nesse ponto, Durkheim (2007, p. 26) é taxativo ao afirmar que “a divisão do trabalho é
a fonte, se não única, ao menos principal da solidariedade social” (la division du travail est
la source, sinon unique, du moins principale de la solidarité sociale).
68  Baechler (2011), ao analisar o que designa de “aparentes fraquezas” da tese exposta
por Durkheim (2007), ressalta a ambiguidade de seu posicionamento acerca da substi-
tuição da “solidariedade mecânica” pela “solidariedade orgânica”. Segundo o autor, não
fica claro se Durkheim considera que a segunda triunfa de modo a excluir a primeira ou
se se trata apenas do primado de uma (a orgânica) sobre a outra (a mecânica). Por sua vez,
Deliège (2006) considera que Durkheim seria expressão da passagem do evolucionismo
para o funcionalismo.
69  Segundo Durkheim (2007, p. 149), “deve haver dois tipos sociais que correspondam a
essas duas sortes de solidariedade” (il doit y avoir deux types sociaux qui correspondent à ces
deux sortes de solidarités). Durkheim (2007) ressalta ainda que a escolha da palavra “mecâ-
nica” para qualificar o primeiro tipo de solidariedade ocorreria por analogia com a coesão
que une entre si os elementos dos “corpos brutos”, por oposição àquela que faz a unida-
de dos corpos vivos. No que concerne à escolha da palavra “orgânica” para qualificar a
solidariedade produzida pela divisão do trabalho, o autor também afirma que ela teria
ocorrido por analogia com o que seria observável nos “animais superiores”, nos quais cada
órgão teria fisionomia própria e autonomia, sendo, ademais, a unidade do organismo tanto
maior quanto mais acentuada a individuação de suas partes constitutivas. Referindo-se às
expressões “solidariedade mecânica” e “solidariedade orgânica”, Castel (1999) aponta as

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Nessa perspectiva, as sociedades às quais corresponde a “solidariedade
mecânica” deveriam ser concebidas como uma espécie de “massa homogê-
nea”, cujas partes não se distinguiriam umas das outras e, por conseguinte,
seriam carentes de arranjo entre si.70 Logo, observar-se-ia a ausência de
forma definida e de organização nesse tipo social. Durkheim (2007, p. 149)
qualifica essa situação como um “protoplasma social”, ou seja, como o
germe do qual brotariam todos os tipos sociais, e qualifica como “horda”
(horde) o “agregado” (agrégat) assim constituído. Evidentemente que, em se
tratando de um tipo (no sentido weberiano, ou seja, em uma descrição que
exacerba certos traços de uma realidade para concebê-la em sua expressão
mais pura),71 o autor assevera que essa situação não seria observável tal qual
na realidade; seria, portanto, apenas postulada. Contudo, para Durkheim
(2007, p. 149), o fato de as configurações por ele designadas “sociedades
inferiores”,72 concebidas como mais próximas desse “estágio primitivo”,
caracterizarem-se pela “simples repetição de agregados” (simple répétition
d’agrégats) daria plausibilidade à sua hipótese.
Assim, desenvolvendo o seu argumento, Durkheim (2007, p. 150-152)
intitula “clã” a horda que deixou se ser independente para se tornar ele-
mento de um grupo mais extenso. Segundo ele, esse termo teria a conve-
niência de exprimir a natureza mista (simultaneamente familiar e política)

limitações encontradas por Durkheim no vocabulário da época para exprimir adequada-


mente as suas intuições.
70  A respeito, Bourdieu (2012, p. 318) afirma que, para Durkheim, nas sociedades primi-
tivas, religião, ciência, economia, rito, política e (poder-se-ia acrescentar) direito estariam
misturados. Assim, corroborando a tese de Durkheim, Bourdieu sustenta que, à medida
que as sociedades evoluem, observar-se-ia a sua diferenciação em “universos separados e
autônomos” (univers séparés et autonomes).
71  Nesse particular, a semelhança com a noção de “tipo ideal” de Weber é flagrante. Refe-
rindo-se às sociedades que têm por base a “solidariedade orgânica”, Durkheim (2007, p. 166)
afirma que “portanto, se esse tipo social não se observa em lugar algum no estado de pureza
absoluta, do mesmo modo que em lugar algum a solidariedade orgânica se encontra só,
pelo menos ele se diferencia cada vez mais do amálgama, na medida em que ela se torna
cada vez mais preponderante” (si donc ce type social ne s’observe nulle part à l’état de pureté
absolue, de même que, nulle part, la solidarité organique ne se rencontre seule, du moins il se dégage
de plus en plus de tout alliage, de même qu’elle devient de plus en plus prépondérante). Sobre essa
questão, ver Javeau (1994).
72  Note-se que a expressão “sociedades inferiores” (sociétés inférieures) reforça um certo viés
evolucionista na obra de Durkheim.

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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da agregação a que se refere. Feito isso, propõe chamar os povos cons-
tituídos pela associação de clãs de “sociedades segmentárias”, pois nelas,
analogamente ao que ocorre com os anéis dos anelídeos, observar-se-ia a
repetição de agregados semelhantes entre si. Ora, sendo essa a estrutura
desse tipo social, ele não comportaria outro tipo de solidariedade além da
que deriva das similitudes, uma vez que suas partes componentes são for-
madas por “segmentos similares”.73 Durkheim chama de “mecânica” essa
forma de solidariedade.74 Em seguida, a partir das análises de Fustel de
Coulanges, associa a esse tipo social características como a presença in-
tensa da religião75 e o comunismo.76 O autor assevera, ademais, que num
contexto como esse haveria a forte presença de uma “consciência coletiva”,
manifestada pela “moral comum” e pelo “direito repressivo” e uma escassa
divisão do trabalho. Os indivíduos, por sua vez, seriam dotados de uma
personalidade coletiva.
A essas “sociedades segmentárias”, constituídas pela repetição de seg-
mentos similares e homogêneos, Durkheim (2007, p. 157) opõe as so-
ciedades sobre as quais prepondera a “solidariedade orgânica”, formada

73  Ao fazer alusão a essa composição social, Durkheim (2007, p. 152) afirma que a sua re-
flexão já não estaria mais no domínio da “pré-história” e das “conjecturas”, uma vez que nela
nada há de hipotético, sendo, ao contrário, a regra entre as ditas “sociedades inferiores”.
74  Segundo Durkheim (2007, p. 157), “existe, portanto, uma estrutura social de natureza
determinada à qual corresponde a solidariedade mecânica. O que a caracteriza é que ela
é um sistema de segmentos homogêneos e semelhantes entre si” (il y a donc une structure
sociale de nature déterminée, à laquelle correspond la solidarité mécanique. Ce qui la caractérise,
c’est qu’elle est un système de segments homogènes et semblables entre eux).
75  No que tange à religião em tais sociedades, Durkheim (2007, p. 154) afirma que “sabe-
mos que a religião penetra toda a vida social, mas é porque a vida social é composta quase
exclusivamente por crenças e práticas comuns que extraem de uma adesão unânime uma
intensidade bastante particular” (nous savons que la religion y pénètre toute la vie sociale, mais
c’est parce que la vie sociale y est faite presque exclusivement de croyances et de pratiques communes
qui tirent d’une adhésion unanime une intensité toute particulière).
76  Quanto ao comunismo, Durkheim (2007, p. 154) sustenta que “o comunismo, de fato,
é o produto necessário dessa coesão especial que absorve o indivíduo no grupo, a parte
no todo. A propriedade é, em última instância, apenas a extensão de uma pessoa sobre as
coisas. Logo, onde existe apenas a personalidade coletiva, a propriedade em si não pode
deixar de ser coletiva” (le communisme, en effet, est le produit nécessaire de cette cohésion spéciale
qui absorbe l’individu dans le groupe, la partie dans le tout. La propriété n’est en définitive que
l’extension de la personne sur les choses. Là donc où la personnalité collective est la seule qui existe,
la propriété elle-même ne peut manquer d’être collective).

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por um sistema de órgãos distintos, cada um direcionado à consecução
de uma função específica. Nessas sociedades egressas, como se verá, da
divisão do trabalho, os indivíduos não estariam mais agrupados segundo
relações familiares, mas a partir da natureza particular da atividade social
à qual se consagram. Logo, em tal contexto, não seriam mais os laços de
consanguinidade, real ou fictícia, que fixariam a posição de cada um na
estrutura social, e sim a função desempenhada.77 Como decorrência disso,
nas sociedades desse tipo, nas quais se impõe progressivamente a persona-
lidade individual, observar-se-iam uma “moral profissional” e o primado
do “direito restitutivo”. Aliás, tais sociedades somente seriam capazes de
se manter em “equilíbrio” graças à especialização de funções engendrada,
em última instância, pela divisão do trabalho.
Assim, contrapondo esses dois tipos sociais fundados em duas for-
mas distintas de solidariedade social, Durkheim (2007) sustenta que a vida
social derivaria de uma dupla fonte. De um lado, estaria a similitude de
consciências e, de outro, a diferenciação de funções, ensejada pela divisão
do trabalho social.78 No primeiro caso, o processo de socialização levaria
o indivíduo a se confundir com os seus pares em meio a um mesmo tipo
coletivo. No segundo, o indivíduo, tendo fisionomia e atividade pessoais
distintas das dos demais, deles dependeria justamente na medida em que
deles se distingue, motivo pelo qual, nesse caso, a sociedade resultaria de

77  A respeito, ver, por exemplo, Beriain (1990; 2008), Castel (1999) e Steiner (2005).
78 Cuin e Gresle (2017a) sublinham a inevitabilidade da divisão do trabalho social;
Durkheim, entretanto, não a afirma expressamente. Aliás, sua estratégia consiste em situar
esse problema para além do horizonte de sua pesquisa. Assim, Durkheim (2007, p. 330,
em nota) afirma que “não nos cabe investigar aqui se o fato que determina os progressos da
divisão do trabalho e da civilização, isto é, o aumento da massa e da densidade sociais, ex-
plica-se mecanicamente; se ele é um produto necessário de causas eficientes, ou se um meio
imaginado tendo em vista um fim desejado, um maior entrevisto. Contentamo-nos em
propor essa lei da gravitação do mundo social, sem remontarmos mais alto” (nous n’avons
pas à rechercher ici si le fait qui détermine les progrès de la division du travail et de la civilisation,
c’est-à-dire l’accroissement de la masse et de la densité sociales, s’explique lui-même mécanique-
ment; s’il est un produit nécessaire de causes efficientes, ou bien un moyen imaginé en vue d’un but
désiré, d’un plus grand bien entrevu. Nous nous contentons de poser cette loi de la gravitation du
monde social, sans remonter plus haut).

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sua união.79 Conforme se verá adiante, para Durkheim (2007), a simi-
litude de consciências engendraria regras jurídicas que, sob a ameaça de
“medidas repressivas”, imporiam a todos crenças e práticas uniformes. A
divisão do trabalho daria progressivamente origem a regras jurídicas que
regulam as funções partilhadas socialmente, mas cuja violação acarretaria
medidas reparatórias, porém sem “caráter expiatório”.80

79  Como observa Castel (1999), seria justamente essa diferenciação que constituiria a ri-
queza da sociedade de caráter “orgânico” por oposição às simples justaposições “mecânicas”
de similitudes. Contudo, segundo o autor, com o propósito de elidir os riscos de desagre-
gação social, o jogo complexo entre diferenças e interdependências precisaria ser tanto
mais cuidadosamente preservado conforme maior seja o progresso da divisão do trabalho.
80  Durkheim (2007) sustenta, ademais, que esses dois “corpos de regras jurídicas” se-
riam acompanhados por um “corpo de regras puramente morais”. Assim, para ele
(DURKHEIM, 2007, p. 206), “onde o direito penal é muito voluminoso, a moral comum
é muito extensa: isto é, há uma multidão de práticas coletivas postas sob a salvaguarda da
opinião pública. Onde o direito restitutivo é muito desenvolvido, há para cada profissão
uma moral profissional” (là où le droit pénal est très volumineux, la morale commune est très
étendue: c’est-à-dire qu’il y a une multitude de pratiques collectives placées sous la sauvegarde de
l’opinion publique. Là où le droit restitutif est très développé, il y a pour chaque profession une
morale professionnelle).

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A obra de Émile Durkheim em meio às

“abordagens clássicas da sociologia do direito”

O DELINE AMENTO DA SOCIOLOGIA DO DIREITO A PARTIR DO


SÉCULO XIX

Évelyne Serverin (2000) observa que, embora a expressão “sociologia do


direito” somente tenha surgido em 1913, a partir da clássica obra Fun-
damentos da sociologia do direito (Grundlegung der Soziologie des Rechts), de
Eugen Ehrlich, o seu programa – consistente em estudar a maneira pela
qual o “direito”, concebido como conjunto relativamente estruturado de
regras, princípios e decisões, entabula relações com o “corpo social” – não
seria novo. Segundo a autora, esse tipo de indagação já estava presente em
“disciplinas” mais antigas, em meio às quais ela situa a própria “sociologia
geral”.81 Analogamente, Carbonnier (2004) ressalta que, se comparada à
“sociologia geral”, cuja gênese, segundo ele, remontaria à obra de Auguste
Comte, a “sociologia jurídica” teria uma fundação mais recente que reme-
teria aos trabalhos de autores como Émile Durkheim, Max Weber e o já
mencionado Eugen Ehrlich. Assim, considerando a “sociologia jurídica”
como uma disciplina constituída a partir da “sociologia geral”, Carbonnier,

81  Vale notar que Serverin (2000) estabelece uma distinção entre a abordagem da relação
entre direito e sociedade feita pela “sociologia”, em sentido genérico, e pela “sociologia do
direito”. Assim, ao referir-se às “disciplinas mais antigas” do que a “sociologia do direito”, a
autora alude à “filosofia”, ao “direito”, à “sociologia”, à “antropologia” e à “história”.

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sem menosprezar a importância de seus precursores, considera que, em
termos próprios, é no século XX que ela deve ser situada.82
Abordando essa questão, Luhmann (2008) enfatiza o caráter inova-
dor assumido pela “sociologia do direito” (Rechtssoziologie), por ele situa-
da já no contexto do século XIX, relativamente à “tradição doutrinária”
(Lehrtradition), desenvolvida na Europa, no que concerne à abordagem da
relação entre direito e sociedade. Segundo Luhmann, nessa tradição, o
direito era encarado como um dado essencial e inerente às “associações
humanas” (menschlicher Verbände), de modo a ser concebido como imanente
à natureza e enredado indissoluvelmente a outros traços característicos da
sociedade, como as relações de “amizade” (Freundschaft), as “relações de
hierarquia” (Rangverhältnissen) e as de “dominação” (Herrschaft).
Portanto, segundo Luhmann (2008), para o “pensamento jusnatura-
lista” (naturrechtlichen Denken), o convívio na sociedade humana delinea-
ria não apenas uma normatividade abstrata, como forma de expressão do
“dever-ser”, mas, além disso, normas determináveis em sua substância e
capazes de reivindicar para si um surgimento e uma verdade naturais. Nes-
se sentido, além de sustentar a ligação indissolúvel entre direito e socieda-
de, essa tradição pressuporia uma segunda tese consistente na existência
de certas normas que seriam igualmente válidas a todas as sociedades.83
Entretanto, segundo Luhmann, as próprias comparações históricas e
etnográficas, realizadas a partir do século XIX, ao indicarem o caráter

82 Referindo-se à “sociologia jurídica”, Carbonnier (2004, p. 61) sustenta que “c’est au


XXe siècle qu’il faut la placer”. Assim, o autor propõe uma cisão (assaz imprecisa, diga-se
de passagem) entre o que intitula “sociologia jurídica do século XX” e “sociologia jurídica
antes do século XX”. Em meio a essa última, ele situa os autores que considera “precursores
da sociologia jurídica”. Nesse particular, é muito mais consequente a distinção proposta
por Arnaud e Fariñas Dulce (1998), que, mobilizando a noção de paradigma proposta
por Thomas Kuhn, distinguem o que denominam de “paradigmas fundadores” e de “pa-
radigmas emergentes”. Vale notar que Arnaud (2003) conjuga as definições de paradigma
propostas por Thomas Kuhn e Jean-Michel Berthelot. Entretanto, autores como Eberhard
(2010) contestam a possibilidade de unificação paradigmática no campo das ciências so-
ciais. Por esse motivo, conforme mencionado, a noção de matriz, proposta por Martuccelli
(1999), afigura-se mais adequada para a análise dessas ciências.
83  Para uma análise dessa questão, ver, por exemplo, Weinreb (1997).

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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contingente da formação do direito, teriam solapado essa pretensão de pos-
tular invariâncias normativas.84
É nesse ponto que, segundo Luhmann (2008), a sociologia do direito,
que surge na segunda metade do século XIX, se afastaria dessa tradição
que lhe precedeu no que tange à análise da relação entre direito e socieda-
de.85 Segundo o autor, a sociologia poderia muito bem aceitar a tese do lia-
me indissolúvel entre direito e sociedade, porém não a postulação que dela
se segue de que, em virtude desse liame, haveria certas normas jurídicas
igualmente válidas para todas as sociedades. Nesse sentido, a sociologia
enfocaria o direito como um construto em princípio indispensável, porém
formado a partir da contingência das relações humanas, sendo, portanto,
também ele contingente e desprovido de normas com pretensão de valida-
de geral. É, aliás, por esse motivo que o autor sublinha o impulso científico
que a perspectiva sociológica teria proporcionado às investigações direcio-
nadas ao direito.86

84  A respeito, ver, especialmente, Rouland (1988; 1995; 2003; 2018) e Vanderlinden (1996).
85  Para referir-se ao movimento intelectual que emergiu no contexto do final do século
XIX, cujos desdobramentos conduzem à “moderna sociologia do direito”, Hunt (1978) pre-
fere utilizar a expressão “movimento sociológico no direito” (sociological movement in law).
Segundo Hunt (1978, p. 3), o “movimento sociológico” teria assumido características pró-
prias, em contraste com as escolas históricas anteriores, em virtude de sua orientação explí-
cita em direção à sociologia. Assim, o período do “movimento sociológico” seria marcado
pela crescente ascendência intelectual da sociologia. Nesse contexto, Durkheim e Weber,
considerados por Hunt os dois sociólogos-chave no bojo do “movimento sociológico”, com-
partilhariam pelo menos uma orientação fundamental: a preocupação em delimitar a “es-
fera” ou “território intelectual” da sociologia e, dentro dela, subsumir os fenômenos sociais,
incluindo o direito, a um modo de análise especificamente sociológico, claramente distinto
de outras orientações intelectuais. Portanto, segundo Hunt, o “movimento sociológico do
direito” constituiria um “movimento” em virtude de um empreendimento persistente e
generalizado no sentido de desenvolver uma “análise sociológica do direito”.
86  A respeito, Luhmann (2008) assevera que a sociologia teria impulsionado o interesse
científico na abordagem da relação entre direito e sociedade, distinguindo-se, assim, da
tradição europeia de pensamento que a precedeu. Arnaud e Fariñas Dulce (1998) também
enfatizam a pretensão de cientificidade como característica da perspectiva sociológica no
que tange à análise da relação entre direito e sociedade.

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 53

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AS “ABORDAGENS CL ÁSSICAS DA SOCIOLOGIA DO DIREITO”

Segundo Luhmann (2008, p. 12), o distanciamento em relação à “visão


interna” (Innenansicht) do direito e a pretensão de sua fundamentação mo-
ral caracterizariam os esforços do que ele denomina “abordagens clássi-
cas da sociologia do direito” (klassische Ansätze zur Rechtssoziologie). Para
Luhmann, essas abordagens seriam compreendidas como sociológicas jus-
tamente em virtude desse distanciamento87 e da avaliação moral a partir
de perspectivas incongruentes. Nesse contexto, apesar das diferenças entre
as diversas versões dessas abordagens clássicas da sociologia do direito,
seria possível reconhecer algumas premissas que lhes seriam comuns, quais
sejam: 1. o direito é diferenciado como estrutura normativa da sociedade,
como um conjunto fático de vida e de ação;88 2. o direito e a sociedade
passam a ser definidos como duas variáveis dependentes entre si, cuja cor-
relação, no século XIX, era concebida, em sua variação, em termos evo-
lucionistas, como expressão de um progresso regular da civilização; 3. em
tais condições são estabelecidas “hipóteses empiricamente controláveis e
verificáveis” (empirisch überprüfbare Hypothesen) sobre a relação entre di-
reito e sociedade a partir de observações da correlação em suas variações.
Com o intuito de elucidar os pressupostos e as limitações das “aborda-
gens clássicas da sociologia do direito”, Luhmann (2008) realiza uma breve
compilação comparativa de algumas de suas mais expressivas variações.
Para tanto, reconstrói, em linhas gerais, as perspectivas de Karl Marx,
Henry J. Sumner Maine, Émile Durkheim e Max Weber, na qualidade
de “autores típicos” dessa abordagem clássica, e de Eugen Ehrlich e de
Talcott Parsons como “autores atípicos”.89 Para os propósitos deste livro,

87  Em sua última grande obra dedicada ao direito, Luhmann (2004, p. 59 e ss.; p. 423
e ss.) refere-se à especificidade da abordagem sociológica acerca do direito em termos de
“descrição externa”.
88  Luhmann (2008, p. 12) sintetiza esse aspecto afirmando que “o direito não é mais a
sociedade” (das Recht ist nicht mehr die Gesellschaft).
89 Ao aludir ao que ele designa de “abordagens clássicas da sociologia do direito”,
Luhmann (2008) as faz remontar a autores como Henry J. Sumner Maine, Karl Marx,
Émile Durkheim e Max Weber. Vale notar que Alan Hunt diverge da interpretação de
Luhmann na medida em que exclui autores como Savigny e Maine do que considera ser

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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não cabe senão aludir, em termos bastante genéricos, a esses autores para, a
partir daí, centrar o foco no pensamento de Durkheim. Como se procurará
mostrar, o autor, comparado aos demais, especialmente em sua obra De
la division du travail social, teria dado particular centralidade e relevo ao
direito no bojo da análise da sociedade.90
Em uma alusão bastante concisa ao que designa de “teoria da socie-
dade” de Marx, Luhmann (2008) observa que ela constituiria uma espécie
de reação a um traço fundamental do desenvolvimento social moderno: a
transição da política para a economia no que tange ao primado sobre a de-
terminação do sentido social. Assim, segundo o autor, tomando por pres-
suposto fundamental a relação da economia com a materialidade das neces-
sidades humanas, Marx teria concebido o primado da economia em termos
de uma “verdade antropológica trans-histórica”91 e, assumindo-a como um
quadro de referência, teria nela inscrito sua teoria “natural-dialética” do
desenvolvimento social. Daí a tese de que as alterações nas forças produti-
vas e nas relações de produção que satisfazem as necessidades materiais fi-
gurariam como propulsão para o desenvolvimento social. Para Luhmann,
na perspectiva de Marx, o direito desempenharia um papel decisivo na
fixação das contradições sociais que emergem no decorrer do desenvolvi-
mento da produção e da satisfação de necessidades, uma vez que atribuiria

uma “análise sociológica” do direito. Segundo Hunt (1978, p. 3), o “movimento sociológico
no direito” (sociological movement in law) pode ser caracterizado como uma “tendência inte-
lectual” (intelectual trend) que surge no final do século XIX e que desdobra até a “sociologia
moderna do direito” (modern sociology of law). A orientação específica desse movimento
consiste em submeter o fenômeno jurídico à análise sociológica. Assim, a característica
essencial do “movimento sociológico” se expressaria no projeto de desenvolver uma análise
do direito a partir da teoria e do método da sociologia. Segundo Hunt (1978), essa caracte-
rística permitiria distinguir o “movimento sociológico do direito” de tendências anteriores,
especialmente da “ciência do direito continental” (continental jurisprudence) e da “teoria
política” (political theory), que já haviam situado a análise do direito em seu contexto social.
Segundo o autor, Maine e Savigny, figuras centrais no âmbito das “Escolas históricas do
direito” (schools of historical jurisprudence), seriam exemplos dessas tendências que antece-
dem o “movimento sociológico do direito”.
90  No que concerne à centralidade do direito no bojo da sociologia de Durkheim, Hunt
(1978, p. 60) afirma que ele teria sido o primeiro entre os sociólogos a devotar atenção
substancial ao direito como um “fenômeno social” (social phenomenon).
91  Referindo-se ao primado da economia na obra de Marx, Luhmann (2008, p. 13) utiliza
a expressão “überhistorisch-antropologische Wahrheit”.

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 55

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condições desiguais aos indivíduos, mediante a regulação da concessão e
da garantia da propriedade.92
Assim, conforme Luhmann (2008), na teoria social de Marx, a pro-
priedade constituiria o horizonte em que se fundem o direito às oportuni-
dades de satisfação das necessidades com “interesses familiares” articula-
dos a posições privilegiadas nas tomadas de decisão.93 Portanto, no bojo de
uma concepção como essa, o direito é considerado, em sua integralidade,
um instrumento moldado aos interesses dos proprietários e por eles admi-
nistrado para sua consecução, decorrendo justamente disso a necessidade
de uma “revolução” para a modificação da forma jurídica, mediante a so-
cialização da propriedade que permitiria substituir a orientação por inte-
resses de classe por uma efetiva racionalidade.94 Não cabe aqui recuperar
em pormenor a concisa (e pouco fundamentada) análise que Luhmann
faz da teoria social de Marx.95 O que importa notar aqui é a ênfase dada
pelo autor ao caráter unilateral da sociologia jurídica de cunho marxista.

92  A respeito, Habermas (1997a) afirma que, na concepção de Marx, o direito faria parte
de uma superestrutura da base econômica de uma sociedade, na qual a dominação de uma
classe social sobre as outras seria exercitada a partir do poder de disposição privado sobre
os meios de produção. Nesse sentido, Habermas (1997b) ressalta que Marx e Engels teriam
tomado da economia política os argumentos com os quais denunciam a ordem jurídica
burguesa como expressão jurídica de condições de produção injustas. É nesse sentido que
Miaille (1980) correlaciona direito e violência.
93  Esse caráter instrumental assumido pelo direito no âmbito do pensamento marxista
é particularmente enfatizado por autores como Bourdieu (1986b) e Miaille (1980; 1992).
94  Nesse particular, Aron (2003) observa que Durkheim se opunha à doutrina marxista
em dois pontos essenciais: 1. a rejeição dos meios violentos como instrumentos fecundos
de mudança social e a não atribuição de centralidade à luta de classes na caracterização da
sociedade contemporânea e no impulsionamento do desenvolvimento histórico; 2. a recusa
em considerar que a solução dos problemas sociais modernos decorreria de uma reorga-
nização econômica. Steiner (2005) observa que Durkheim não ignora a obra de Marx;
mesmo que dela tenha um conhecimento superficial, o sociólogo francês a cita em alguns
artigos e a critica, sobretudo, por considerar que ela insiste no primado da economia em
detrimento da religião.
95  Vale notar que a abordagem feita por Luhmann (2008) sobre o pensamento de Marx
é particularmente concisa e não dá conta das nuanças que a sua obra e a ampla e variada
recepção por ela experimentada consignam. Luhmann propõe uma interpretação do que
designa “doutrina marxista”, com pretensão de abranger tanto o “marxismo oficial” quanto
a literatura nele inspirada. Contudo, além de não fundamentar devidamente a sua análise,
Luhmann faz generalizações que desconsideram a heterogeneidade das perspectivas ins-
piradas em Marx.

56 Direito e sociedade na obra de Émile Durkheim:


bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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Isso ocorre porque, como ressalta Bourdieu (1986b), ao conceberem o di-
reito como uma espécie de “utensílio” a serviço dos dominantes, os autores
marxistas (mesmo os estruturalistas, como Louis Althusser)96 tenderiam a
reduzi-lo a um mero “reflexo” direto das relações de força existentes ou a
um simples “instrumento de dominação”.97 Visto por esse ângulo, o direi-
to seria reduzido, em última instância, como afirma Habermas (1997a), à
condição de uma espécie de epifenômeno superestrutural embotado diante
das relações de produção.98
Segundo Luhmann (2008), outro aspecto do mesmo problema vis-
lumbrado por Marx seria identificável na pretensão de Henry J. Sumner
Maine de caracterizar o desenvolvimento do direito, das sociedades anti-
gas às contemporâneas, em termos de um “movimento do status ao con-
trato”.99 Para Luhmann, os conceitos de status e de contrato não seriam
expressão de institutos jurídicos exclusivamente lógicos, mas sim de prin-
cípios básicos da construção da ordem jurídica e da distribuição de direitos

96  A caracterização feita por Bourdieu (1986b) do pensamento de Althusser é assaz sinté-
tica e insiste apenas na questão da dominação. Para uma abordagem que explora as nuanças
do pensamento de Althusser, ver, por exemplo, De Sutter (2010).
97  Não há como recuperar aqui a análise que Bourdieu (1986b) empreende do que designa
de “instrumentalismo”, consistente em conceber o direito como mero “reflexo” das relações
de força ou como simples “utensílio” a serviço dos dominantes. Bourdieu ilustra essa ten-
dência mediante uma alusão crítica às obras de Louis Althusser e Edward P. Thompson e a
contrapõe ao que designa de “formalismo”, por ele associado a autores como Hans Kelsen
e Niklas Luhmann.
98  A literatura existente sobre o pensamento de Marx e sobre o marxismo é monumental.
À guisa de exemplo de uma clássica análise do pensamento de Marx, com ampla difusão
no Brasil, ver Aron (2003). Entretanto, a mais densa análise do autor sobre Marx está
consignada em Aron (2002). Vale ainda notar que Aron (1970) empreende uma inten-
sa crítica às vertentes existencialista e estruturalista do marxismo na França, focalizando
especificamente as obras de Jean-Paul Sartre (Critique de la raison dialectique) e de Louis
Althusser (Lire le Capital), as quais, segundo ele, teriam em comum o estilo, a pretensão e
a ignorância. O marxismo também teve uma significativa influência no âmbito da socio-
logia jurídica. No que concerne à tradição francesa, na qual se inscreve o pensamento de
Durkheim, Arnaud (1998) e Arnaud e Noreau (1998) lembram a importância de autores
como Nikos Poulantzas, Bernard Edelman, Michel Miaille e Antoine Jeammaud, que
obtiveram significativa repercussão no Brasil.
99  A respeito, Maine (1986, p. 165) afirma que “o movimento das sociedades em pro-
gressão tem sido, até agora, um movimento do status para contrato” (the movement of the
progressive societies has hitherto been a movement from status to contract). A respeito, ver
Kuper (2008), Rouland (1988 e 1995) e Villas Bôas Filho (2011/2012).

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e deveres que devem ser considerados à luz das estruturas sociais que lhes
dão esteio. Nesse sentido, para Maine (1986), nas “sociedades primitivas”,
os direitos e as obrigações seriam fixados de forma rígida por seu status, ao
passo que, posteriormente, como decorrência do crescimento da mobilida-
de social dos diversos grupos, os direitos e as obrigações passariam a ser
determinados pelo princípio do contrato.
Assim, segundo Maine (1986), no direito das “sociedades primitivas”
(society in primitive times), os indivíduos estariam submersos no grupo, ou
seja, não seria possível afirmar a existência de indivíduos isolados, como
a unidade básica da vida social, previamente à constituição do grupo ao
qual integram. Como decorrência dessa dissolução do indivíduo no gru-
po, não haveria nas “sociedades primitivas” o correlato do que se entende
modernamente por direitos e obrigações individuais. A estrutura do “di-
reito primitivo” (primitive law) estaria ajustada a um sistema de pequenas
corporações independentes, de modo que as transações jurídicas seriam
entabuladas a partir da relação entre tais corporações, e não mediante o
intercurso entre indivíduos. Nessa perspectiva, até mesmo o crime não
consistiria numa ação individual, mas sim num evento coletivo (crime is a
corporate act).100
Logo, segundo Luhmann (2008), na concepção de Maine, em socie-
dades fundamentadas no princípio do parentesco e divididas em famílias e
linhagens, a participação no direito ficaria condicionada à inclusão nessas
sociedades e ao grau de inserção em termos de status, pois dele decorreria
a capacidade jurídica, o que implica afirmar que tal capacidade não seria
generalizada, e sim atribuída de forma diferenciada e concreta conforme o
status. Entretanto, paulatinamente, o desenvolvimento social engendraria

100  Conforme ressalta Maine (1986, p. 122), “se a comunidade peca, sua culpa é muito
mais que a soma das ofensas cometidas por seus membros; o crime é um ato corporativo,
e suas consequências atingem muito mais pessoas do que as envolvidas na perpetração de
fato” (if the community sins, its guilt is much more than the sum of the offences committed by its
members; the crime is a corporate act, and extends in its consequences to many more persons than
have shared in its actual perpetration). Aliás, quanto a esse aspecto, Peña (2002) observa que
a obra de Maine consignava uma preocupação concernente às relações entre indivíduo e
grupo e às condições por intermédio das quais os indivíduos poderiam se tornar sujeitos
de direito.

58 Direito e sociedade na obra de Émile Durkheim:


bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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uma elevação do nível de complexidade (decorrente, sobretudo, do aumen-
to do volume quantitativo e das interdependências econômicas) que for-
çaria uma maior mobilização das relações jurídicas, levando à dissolução
de formas convencionais demasiadamente compactas, transmitidas por
tradição, com validade apenas local e dependentes de condições socioes-
truturais que lhes seriam determinantes. Com isso, a dominação política
desvincular-se-ia das antigas ordens familiares e de linhagens permitindo,
assim, a concessão de maior grau de liberdade e mobilidade aos indivíduos.
Desse modo, no final do século XVIII, com a dissolução da ordem
estamental, os indivíduos, tomados a partir da própria personalidade abs-
trata, tornar-se-iam detentores de direito não em virtude da posição na
estrutura social, ou seja, em razão de seu status, mas porque passariam a ser
considerados seres humanos. Em decorrência, tal como observa Luhmann
(2008), tornar-se-ia progressivamente possível ao indivíduo reivindicar di-
reitos não pelo fato de ser judeu, protestante, católico, alemão, italiano,
entre outros exemplos, mas sim por ser um ser humano. Com a dissolu-
ção da ordem estamental, fundada no status como forma demasiadamente
concreta de distribuição de direitos e de obrigações, um novo instrumento
distributivo de direitos e obrigações passaria a se impor historicamente: o
contrato.101 Contudo, segundo esse autor, a tese proposta por Maine não
seria suficiente para explicar sociologicamente, em termos mais efetivos, a
conversão da vontade individual e do cálculo utilitário, expressos na ideia
de contrato, em direito.102
De acordo com Luhmann (2008), a questão da conversão da vontade
individual e do cálculo utilitário, expressos na ideia de contrato, em ter-
mos jurídicos, teria recebido um impulso, pela primeira vez propriamente

101  Referindo-se a esse processo, Maine (1986, p. 163) ressalta que “tampouco é difícil ver
qual tipo de ligação entre homens substitui gradativamente tais formas de reciprocidade
nos direitos e deveres que eram originárias da Família. Trata-se do Contrato” (nor is it diffi-
cult to see what is the tie between man and man which replaces by degrees those forms of reciprocity
in rights and duties which have their origin in the Family. It is Contract).
102  Vale notar que essa assertiva de Luhmann (2008) é feita de forma abrupta, e não
devidamente demonstrada. O autor interpreta a tese de Maine segundo os pressupostos de
sua teoria dos sistemas e, a partir daí, propõe essa conclusão, que, apesar de plausível, não
é devidamente exposta no que tange a seus fundamentos.

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 59

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sociológico, a partir da obra de Émile Durkheim na medida em que o autor
examina, como se sabe, as bases não contratuais (e, portanto, sociais) do
contrato. Assim, ressaltando a centralidade assumida pela tese da diferen-
ciação social no pensamento do autor francês,103 Luhmann enfatiza que a
crescente disseminação das regulações contratuais nas sociedades diferen-
ciadas em virtude da “divisão do trabalho social” não alteraria o fato de
que o direito, como regra moral, seria uma expressão da “solidariedade” vi-
gente em uma configuração social específica. Logo, tanto o direito quanto
a solidariedade seriam condicionados pela forma da diferenciação social.104
Por conseguinte, procurando analisar o desenvolvimento social a partir
da passagem da diferenciação segmentária para a funcional, Durkheim
(2007), opondo-se à tese de Herbert Spencer,105 ressalta que as relações
contratuais, disseminadas nas sociedades modernas, não teriam por fun-
damento apenas a livre troca entre os indivíduos. O seu fundamento seria,
em última instância, social.
Como mencionado, Durkheim (2007) caracteriza a diferenciação
segmentária por uma subdivisão interna em unidades similares de baixa
complexidade, ou seja, organizações familiares ou tribais. Em tais con-
figurações, a integração social ocorreria pela partilha e submissão a uma
consciência coletiva cuja transgressão acarretaria uma reação de caráter
repressivo. Contudo, a diferenciação funcional, engendrada pela divisão
do trabalho social, ordena a sociedade em partes distintas voltadas à con-
secução de funções específicas, o que acarreta aumento de complexidade
social. Nas sociedades assim estruturadas, ocorreriam uma progressiva in-
dividualização e, consequentemente, uma diminuição da intensidade do
conjunto de crenças e sentimentos comuns. Essa alteração na estrutura da
sociedade estaria refletida na paulatina substituição do “direito repressivo”

103  Cumpre ressaltar que a interpretação de Luhmann corrobora a tese de Martuccelli


(1999) acerca da importância de Durkheim no delineamento da matriz sociológica da dife-
renciação social, enfocada no capítulo precedente.
104  Para uma importante análise que, no Brasil, a partir da perspectiva de Luhmann,
sublinha a relação entre direito e diferenciação social, ver Campilongo (2011).
105  A crítica de Durkheim ao pensamento de Spencer é explicitada, especialmente, no
capítulo VII do Livro I de De la division du travail social.

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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pelo “direito restitutivo”. Assim, conforme se verá no próximo capítulo, na
perspectiva de Durkheim, haveria uma espécie de homologia entre a forma
social e a jurídica, pois, como assevera Luhmann (2008), a tese expressa
no livro De la division du travail social pressuporia a “covariação” entre di-
reito e sociedade.
Mesmo considerando, com razão, que Durkheim prioriza a análise
do tipo de diferenciação social, e não a do direito, relegando-o, assim, a
um plano secundário, Luhmann (2008) ressalta que o autor francês, ao
abordar a questão de como se manifestam as reações às transgressões jurí-
dicas, teria captado o direito a partir de um aspecto central, ainda que o te-
nha feito de modo unilateral e, nessa medida, insuficiente. Para o autor de
Rechtssoziologie, o contraste dos tipos de sanção feito por Durkheim expli-
citaria, de fato, uma dimensão essencial da regulação jurídica. Permitiria,
ademais, apontar a maior variabilidade, mensurabilidade e adaptabilidade
das “sanções restitutivas”, que caracterizam o direito nas sociedades mo-
dernas, com relação às “sanções repressivas”, pois mostraria que, no caso
de incidência das primeiras, haveria o equacionamento do julgamento de
cada transgressão às consequências que lhe são correspondentes. Contudo,
segundo Luhmann, a explicitação desse implemento de adaptabilidade e
de admissibilidade de alternativas seria apenas um dos diversos aspectos
que caracterizam o direito na sociedade moderna, motivo pelo qual a tese
de Durkheim, apesar de importante, remanesceria parcial, como ocorre
com as de Marx e de Maine.106
Essa incapacidade dos autores citados em fornecer uma compreen-
são mais efetiva do direito no bojo da sociedade moderna seria, confor-
me Luhmann (2008), uma característica das “abordagens clássicas da

106  Evidentemente que essa avaliação de Luhmann (2008), no que tange ao pensamento
de Durkheim acerca do direito, é passível de ser contraditada. Trata-se de uma apreciação
que tem por base exclusivamente a tese expressa no livro De la division du travail social de
modo a não considerar adequadamente os desenvolvimentos posteriores que a questão do
direito e de sua evolução experimentam no pensamento do autor francês, especialmente a
partir do artigo Deux lois de l’évolution pénale, publicado no volume 4 de L’Année Sociologi-
que. A respeito, ver, por exemplo, Steiner (2005), Schuluchter (2006) e Vogt (1993). Para
um contraste dos pensamentos de Durkheim e de Luhmann, ver Clam (2012), Teubner
(1996) e Villas Bôas Filho (2010a; 2017c).

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 61

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sociologia do direito” de modo a abranger, inclusive, o pensamento webe-
riano. É por esse motivo que o autor, procurando complementar o pano-
rama por ele esboçado, também realiza uma sintética digressão pela obra
de Max Weber, sublinhando nela o tema da “racionalização” como traço
fundamental do desenvolvimento da sociedade ocidental moderna.107 Por-
tanto, enfoca a clássica tese do “desencantamento do mundo” (Entzau-
berung der Welt), conjugada com a questão da constituição de uma relação
mais racional com o mundo e com o progressivo desenvolvimento da eco-
nomia capitalista, para, a partir daí, relacioná-las com o direito, de modo a
nele identificar as suas condições e consequências. De fato, como enfatiza
Raynaud (2006), o direito ocidental caracterizar-se-ia, na perspectiva de
Weber, pela relação do processo de racionalização com a expansão da bu-
rocracia e o desenvolvimento do capitalismo.108
Como sublinha Luhmann (2008), Max Weber, no bojo de sua análise
acerca da modernização da sociedade ocidental, teria enfocado a questão da
desmaterialização do direito, consistente na sua progressiva desvinculação
relativamente a conteúdos éticos, eudemonistas ou utilitaristas determina-
dos e, por conseguinte, na aquisição de qualidades em princípio formais,
ou seja, abstratamente especificadas em termos conceituais e passíveis de
uma otimização prática à luz da experiência.109 Como ressalta Raynaud
(2006), uma leitura possível da Rechtssoziologie de Weber consistiria justa-
mente em lhe atribuir a descrição de um processo de racionalização do di-
reito que o conduziria de uma configuração “carismática” (ou seja, revelada
e, enquanto tal, irracional) a uma configuração “moderna”, caracterizada
pela racionalidade tanto no que tange às regras (apresentadas em forma

107  Nesse particular, vale lembrar que Martuccelli (1999) sustenta que Max Weber deli-
nearia as bases da “matriz da racionalização” no âmbito das “sociologias da modernidade”.
Acerca da racionalização social no pensamento weberiano, ver, entre outros: Aron (2003),
Cohn (2003), Colliot-Thélène (2006), Fleury (2009), Freund (1987), Martuccelli (1999) e
Schluchter (1981). Quanto à racionalização do direito, ver, especialmente: Coutu (1995),
Freund (1978), Kronman (2009) e Schluchter (2006).
108  De fato, Weber (2002, p. 559) afirma que o “alargamento do mercado” e a “burocra-
tização” seriam “duas grandes forças de racionalização”. Sobre esse ponto, ver também
Freund (1978) e, especialmente, Kronman (2009).
109  A respeito, ver, especialmente Coutu (1995), Freund (1978) e Kronman (2009).

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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quase dedutiva) quanto no que concerne aos procedimentos (que passam a
ostentar uma crescente tecnicidade).110
Ademais, como ressalta Luhmann (2008), Weber também teria apon-
tado os processos de crescente diferenciação e autonomização das normas
jurídicas, ou seja, a progressiva desvinculação funcional de tais normas
relativamente a outras estruturas sociais. Com isso, teria apontado as ten-
dências de superação de elementos arbitrários na aplicação do direito, de
um lado, e de desvinculação relativamente a costumes e concepções morais
de grupos específicos transmitidos pela tradição, de outro. Como conse-
quência disso, ocorreria, segundo Weber, um paulatino aumento da possi-
bilidade de cálculo abstrato e de previsibilidade em um horizonte de cres-
cente complexificação social, em substituição às antigas formas concretas
de confiança e de conhecimento pessoal.111 Tornar-se-ia possível, assim, o
advento da uma administração legalmente programada tal como a que se
observa na atualidade.112
Contudo, apesar de seus indiscutíveis aportes para a análise socio-
lógica do direito, os pensamentos de Weber, Marx, Maine e Durkheim
também seriam caracterizados, segundo Luhmann (2008), pela acen-
tuação unilateral de certos aspectos em detrimento de outros e por uma
fundamentação teórica insuficientemente desenvolvida. A esse respeito,
Luhmann atribui a Weber, especialmente, a carência de uma concepção
de racionalidade social que possa ser destacada da “ação individual” e o
não desenvolvimento de uma teoria sociológica consequente do “dever-ser”
normativo. Desse modo, ao aludir sinteticamente às obras de Marx, Mai-
ne, Durkheim e Weber, Luhmann (2008) procura apontar as limitações

110  Essa questão é enfocada especialmente no bojo da análise feita por Weber (2002) acer-
ca das “qualidades formais do direito moderno”. Vale notar que Freund (1978) desenvolve
uma primorosa análise da racionalização do direito no pensamento weberiano, ressaltando
a centralidade desse tema na obra do grande sociólogo alemão, especialmente no bojo de
sua “sociologia da religião” (Religionssoziologie). Ademais, após analisar a concepção geral
de racionalização de Weber, Freund (1978) examina o processo de racionalização do direito
a partir de seus aspectos interno e externo. Sobre essa questão, ver também Hunt (1978).
111  Quanto a essa questão, ver, especialmente, Kronman (2009).
112  Para uma excelente análise da relação entre racionalização do direito e poder burocrá-
tico no pensamento de Max Weber, ver Raynaud (2006).

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que, em seu entendimento, caracterizariam as “abordagens clássicas da so-
ciologia do direito”.113 Apesar disso, reconhece que tanto Weber quanto
Durkheim teriam lançado as bases para a configuração de uma “teoria
sociológica geral”, que, em virtude de procurar definir os sistemas sociais a
partir da essência de suas estruturas normativas, poderia ser caracterizada,
em última instância, como uma “sociologia do direito”.114

A SOCIOLOGIA DO DIREITO DE ÉMILE DURKHEIM

Referindo-se à importância atribuída ao direito no âmbito das ciências so-


ciais na passagem para o século XX, Parsons (1977) considerava um mis-
tério o desinteresse apresentado pelos autores posteriores a Durkheim e a
Weber por tal objeto.115 Não cabe aqui examinar a “constelação de fatores”
que o grande sociólogo americano associava a esse estado de coisas. O que
importa notar é que, de fato, teóricos considerados por Luhmann (2008)
como representativos das “abordagens clássicas da sociologia do direito”
conferiam significativa relevância ao direito no bojo de suas análises. No
que tange especificamente a Durkheim, é possível afirmar que, embora sua
atenção estivesse dirigida prioritariamente ao tipo de diferenciação social
e apenas secundariamente à forma jurídica, esta última não deixava de
assumir inquestionável centralidade em sua obra. Assim, se compararmos
a sua construção teórica com as de Karl Marx e Henry J. Sumner Maine, e
mesmo com a de Max Weber, nota-se que ela se afigura como aquela que,
inclusive em termos metodológicos, atribui mais importância ao direito.116

113  A ênfase da análise de Luhmann (2008) recai sobre as obras de Durkheim e de Weber,
aos quais associa, respectivamente, as questões da “objetividade das estruturas sociais nor-
mativas” e da “contingência da ação subjetiva”. A respeito, ver também Luhmann (2006).
114  Nesse particular, Luhmann (2008) alude à interpretação de Talcott Parsons acerca de
Durkheim e de Weber.
115  A respeito, ver também Commaille (2016) e Commaille e Duran (2009).
116 Aliás, como nota Assier-Andrieu (2000, p. XXXV), “Montesquieu, Marx,
Tocqueville, Maine, Morgan e Weber, ilustres fundadores da sociologia e da antropologia,
eram todos juristas e, para cada um deles, o ponto inicial do que iria tornar-se uma teoria
geral do homem e da sociedade foi uma reflexão sobre o direito”.

64 Direito e sociedade na obra de Émile Durkheim:


bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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Ao comparar a obra de Durkheim com a de seus contemporâneos,
Lenoir (1994) observa que ela expressaria um cabedal sem paralelo de co-
nhecimentos sobre o direito que, em seu conjunto, estaria apoiado na mo-
bilização tanto de disposições jurídicas quanto de trabalhos elaborados por
juristas, especialmente historiadores do direito. Lenoir observa, ademais,
que diversos interlocutores de Durkheim eram importantes juristas, como
Léon Duguit, Maurice Hauriou, François Gény, Édouard Lambert e Ray-
mond Saleilles.117 Além disso, Durkheim entabulou relevantes controvér-
sias com Gabriel Tarde e Joseph Barthélemy. Por fim, encarregou-se, com
Paul Fauconnet, de duas rubricas de L’Année Sociologique nas quais eram
resenhadas e comentadas as obras jurídicas interessantes para a sociologia
de época. Por todas essas razões, compreende-se que o direito não seja um
objeto de análise ocasional para o sociólogo francês.
Analogamente, Schluchter (2006), ao contrastar os pensamentos de
Durkheim e de Weber, ressalta que, para ambos, a sociologia do direito
não constituiria uma sociologia especializada, sendo, ao contrário, con-
cebida como parte de uma “teoria geral da sociedade”. Contudo, segundo
esse autor, para Durkheim o direito seria compreendido como a condição
constitutiva da vida social, enquanto para Weber ele representaria uma
condição entre outras.118 Haveria, consequentemente, mais centralidade
dessa temática no bojo da obra do sociólogo francês do que na do ale-
mão. É nesse sentido que Schluchter (2006) ressalta que o ponto central
da “física dos costumes e do direito” (physique des mœurs et du droit) de

117  A respeito, ver, por exemplo Soubiran-Paillet (2000) e Massella (2014).


118 Para uma extensa e clássica análise das teorias de Durkheim e de Weber, ver
Parsons (1949). Conforme enfatiza Luhmann (2008), Parsons teria procurado conjugar os
pensamentos de Durkheim e de Weber. Cohn (2003), entretanto, frisa o distanciamento
das obras desses dois autores, a despeito da tentativa empreendida por Parsons de aproxi-
má-las. Para uma análise do modo pelo qual Parsons se apropria da obra de Durkheim e
de Weber, ver Alexander (1999), Giddens (1993), Habermas (1999) e Martuccelli (1999).
Para análises comparativas entre o pensamento de Durkheim e o de Weber, além do re-
ferido artigo de Wolfgang Schluchter, ver também Aron (2006; 2008), Boudon (1998b) e
Cuin (2011). Acerca da questão dos direitos humanos nesses dois autores, ver: Joas (2011).
Para um contraste dos dois autores no âmbito dos “regimes de conhecimento” sociológico,
ver Delpeuch, Dumoulin e Galembert (2014). Javeau (2013) chega, inclusive, a projetar
um diálogo imaginário entre Durkheim e Weber no que concerne ao determinismo e à
liberdade.

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 65

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Durkheim repousaria sobre a análise comparativa das regras de conduta
respaldadas por sanções.
Referindo-se ao curso ministrado por Durkheim na Universidade de
Bordeaux, entre 1877 e 1878, Schluchter (2006) ressalta que nele já estariam
presentes as principais características do objeto e da metodologia da “nova
ciência” proposta pelo autor de De la division du travail social, quais sejam:
1. o pressuposto de que cada sociedade possuiria certo número de “ideias e
de sentimento comuns” (idées et de sentiments communs), transmitidos entre
gerações e irredutíveis ao plano da consciência individual, o que remeteria,
a partir de uma inspiração na “psicologia dos povos” (Völkerpsychologie) de
Wilhelm Wundt, à necessidade de uma “psicologia social”; 2. a sustentação
de que algumas dessas “ideias e sentimentos comuns”, por decorrerem de
práticas inscritas na vida social, seriam obrigatórias, constituindo, assim,
“máximas” endereçadas de modo impositivo aos indivíduos; 3. a suposição
de que algumas dessas “máximas” ostentariam tamanha importância para
a sociedade que esta constituiria certas instâncias incumbidas de assegurar
o seu respeito a sua observação; 4. a afirmação de que mesmo fenômenos
econômicos, expressivos acima de tudo do interesse pessoal deveriam ser
abordados a partir dos pressupostos delineados supra.
Assim, sublinhando a centralidade das análises sociojurídicas nos pri-
meiros estudos de Durkheim e, em especial, no livro De la division du
travail social, Schluchter (2006) salienta que o autor francês teria proposto
uma espécie de “taxonomia das regras” constituída de modo a distinguir
as “regras de conduta sancionadas” das que não o são. Feito isso, caberia,
no âmbito das “regras de conduta sancionadas”, examinar o tipo de sanção
que as caracteriza. Nesse sentido, seria possível diferenciar, de um lado, as
“sanções exortativas”, que, mediante um apelo à consciência, caracterizam
as regras morais, e, de outro, as “sanções coercitivas”, que seriam típicas
das regras jurídicas. As “sanções coercitivas” poderiam ser subdivididas
em dois grupos distintos conforme tenham uma qualidade “vindicativa”
ou sirvam para o restabelecimento do status quo anterior. No primeiro caso,
estar-se-ia diante do “direito repressivo” (droit répressif ), típico das socieda-
des pré-modernas, marcadas pela “solidariedade mecânica”, e, no segundo

66 Direito e sociedade na obra de Émile Durkheim:


bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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caso, tratar-se-ia do “direito restitutivo” (droit restitutif ), próprio das socie-
dades modernas, fundadas na “solidariedade orgânica”.

Regras técnicas Regras normativas


(não sancionadas) (sancionadas)

Regras morais Regras jurídicas

Regras jurídicas Regras jurídicas


restitutivas repressivas

como regras de como regras Direito penal


pura abstenção de cooperação

Direitos pessoais Direito da


e direitos reais cooperação
(direito de família,
direito contratual,
direito comercial,
direito processual,
direito administrativo
e direito constitucional)

Direito restitutivo Direito repressivo

Quadro 2 – Tipologia das regras de conduta segundo Durkheim.


Fonte: Schluchter (2006, p. 8).

Refletindo em si as formas essenciais da solidariedade social, o di-


reito assume uma inquestionável relevância na obra de Durkheim. Como
assinala Schluchter (2006), mesmo que, após a publicação de Les règles de
la pensée sociologique, em 1895, o “fato religioso” adquira progressiva cen-
tralidade em detrimento do direito, este constitui o elemento fundamen-
tal de suas primeiras análises.119 Conforme mencionado, concebido como
expressão de algo que lhe transcende – a solidariedade social, que em si
própria não presta à observação direta ou à mensuração efetiva –, o direi-
to afigura-se para Durkheim (2007), inclusive em termos metodológicos,

119  A respeito, ver também Lenoir (1994) e Steiner (2005).

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 67

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como um objeto de primeira grandeza, pois permite a apreensão de um
fenômeno moral (a solidariedade) por ser uma “virtualidade intangível”.120
Assim, como sublinha Massella (2014, p. 293),

o direito, suas regras, sanções e classificações constituem, assim, o


meio empregado por Durkheim para articular, de forma concreta, a
sua visão sobre a solidariedade social e evitar um discurso abstrato
baseado em supostas inclinações da natureza humana.

Isso conduz, como se verá no próximo capítulo, à suposição de uma


homologia entre a forma jurídica e a social.

E XCUR SO SOBRE ALGUNS TEMAS FUNDAMENTAIS DA


SOCIOLOGIA JURÍDICA DURKHEIMIANA

Com o intuito de sublinhar a potencialidade das contribuições de


Durkheim para a análise sociológica do direito, será feita a seguir uma bre-
ve digressão por três questões fundamentais por ele amplamente tratadas:
1. a ligação consubstancial entre direito e moral; 2. a relação inextricável
entre crime e pena; 3. as bases sociais do contrato.

A ligação consubstancial entre direito e moral

É possível afirmar que a ligação consubstancial entre direito e moral decor-


re, fundamentalmente, da base social subjacente a ambos.121 Como ressalta

120  Sobre essa questão, Durkheim (2007, p. 32) afirma que “nosso método, portanto, já
está todo traçado. Uma vez que o direito reproduz as formas principais de solidariedade
social, temos apenas de classificar as várias espécies de direito para, em seguida, procurar
quais são as diferentes espécies de solidariedade social que lhes correspondem” (notre mé-
thode est donc toute tracée. Puisque le droit reproduit les formes principales de la solidarité sociale,
nous n’avons qu’à classer les différentes espèces de droit pour chercher ensuite quelles sont les diffé-
rentes espèces de solidarité sociale qui y correspondent).
121 Como ressalta Durkheim (2007), as regulamentações morais e/ou jurídicas ex-
primiriam necessidades sociais que repousariam na opinião coletiva. A respeito, ver
Lenoir (1994).

68 Direito e sociedade na obra de Émile Durkheim:


bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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Durkheim (2007), o direito e a moral constituiriam um conjunto de vín-
culos que nos ligam uns aos outros e à sociedade, de modo a tornar a massa
dos indivíduos em um “agregado” coeso e coerente.122 Nessa perspectiva,
como sublinham Lukes e Prabhat (2011), no bojo da tese proposta no livro
De la division du travail social, direito e moral não são concebidos como
domínios distintos.123 Consequentemente, para Durkheim, as regras jurí-
dicas não se distinguiriam das morais em virtude de seu caráter, conteúdo,
forma ou da natureza do comportamento por elas regulado. Como se verá
adiante, o critério por ele utilizado para distinguir esses dois âmbitos de
regulação social seria o modo pelo qual, em cada um deles, as sanções são
aplicadas.
Como se sabe, Durkheim (2007) sustenta que a divisão do trabalho,
que constitui o objeto de seu estudo, estaria inscrita no domínio da socio-
logia em virtude de constituir um fato moral. Assim, rejeitando reduzir a
divisão do trabalho apenas à dimensão econômica, o autor enfatiza o “efei-
to moral” por ela produzido: criar um sentimento de solidariedade entre as
pessoas.124 A solidariedade social é concebida por Durkheim (2007) como
um fenômeno moral que, enquanto tal, não seria passível de observação
direta nem muito menos de uma mensuração efetiva. Logo, segundo o
autor, seria necessário procurar desvelar esse fato interno que escapa à ob-
servação por um fato exterior que o simboliza. O direito seria esse símbolo
visível da solidariedade social, pois, ao codificar as regras imperativas da

122  Durkheim (2007, p. 393-394) é taxativo ao afirmar que “o direito e a moral são o
conjunto de vínculos que nos ligam uns aos outros e à sociedade, que fazem da massa de
indivíduos um agregado coeso e coerente” (le droit et la morale, c’est l’ensemble des liens qui
nous attachent les uns aux autres et à la société, qui font de la masse des individus un agrégat et
un cohérent).
123  A respeito, ver, por exemplo, Cotterrell (1999), Isambert (1991), Lenoir (1994) e Mas-
sella (2014).
124  Segundo Durkheim (2007, p. 26) “a divisão do trabalho é, se não única, ao menos a
fonte principal da solidariedade social” (la division du travail est la source, sinon unique, du
moins principale de la solidarité sociale). Vale sempre lembrar que uma característica funda-
mental da concepção de Durkheim (2007) acerca da divisão do trabalho social consiste na
rejeição da redução desse fenômeno apenas a sua dimensão econômica. Segundo o autor,
ela consistiria em um fato social que somente pode ser devidamente explicado a partir
da função social e moral por ela garantida: o estabelecimento da solidariedade orgânica.
Quanto a essa questão, ver, por exemplo, Steiner (2005) e Nisbet (1965).

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 69

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vida social, reproduziria as formas fundamentais que expressam a soli-
dariedade. Nesse sentido, o argumento de Durkheim é de que o direito,
como “regra de conduta sancionada”, variaria conforme as relações sociais
por ele reguladas, prestando-se, assim, a figurar como indicador da forma
de solidariedade social vigente em uma dada sociedade em um momento
determinado.125 Assim, como observa Lenoir (1994), Durkheim recorre ao
direito em caráter não meramente ocasional, e sim como uma estratégia
que resulta diretamente da própria construção de seu objeto de pesquisa.126
Lukes e Prabhat (2011), apoiando-se na interpretação de Georges
Davy, sublinham o lugar central da moralidade na obra de Durkheim.127
Segundo os autores, a concepção durkheimiana caracterizar-se-ia pela
atribuição de um domínio extremamente vasto à moralidade, nela in-
cluindo questões tanto triviais quanto fundamentais.128 Nesse contexto,
o direito assume um papel importante no projeto de Durkheim (2007) de
desenvolver um estudo empírico da moralidade. Muito embora Durkheim
considere que as regras jurídicas constituam apenas um subconjunto das
regras morais, de modo a não recobrirem integralmente o âmbito da mora-
lidade, elas seriam particularmente adequadas à sua observação empírica.
Isso ocorre porque, conforme salienta Assier-Andrieu (2000), no entendi-
mento de Durkheim, o direito fixaria e regularia os tipos essenciais da soli-
dariedade social, motivo pelo qual serviria como indicador da organização
social (e, consequentemente, da forma de moralidade que a estrutura) na-
quilo que há de mais estável e preciso.129

125  Hart (1967) critica essa tese de Durkheim. Sobre essa questão, ver, especialmente,
Lukes e Prabhat (2011).
126  No mesmo sentido, ver Steiner (2005) e Lukes e Prabhat (2011).
127  A respeito, ver também Cotterrell (1999) e Lenoir (1994).
128  Para uma crítica ao “moralismo” no pensamento de Durkheim, ver, especialmente:
Luhmann (2006, 2013). Sobre essa questão, ver Rodríguez Mansilla e Torres Nafarrate
(2008) e Neves (2018). Para um contraste do “moralismo” de Durkheim com o “relativismo
de valores” de Weber, ver Müller (1994).
129  Como ressalta Durkheim (2007, p. 29), “a vida social, onde quer que exista de maneira
duradoura, tende, inevitavelmente, a tomar uma forma definida e a se organizar, e o direito
nada mais é que essa mesma organização no que ela tem de mais estável e de mais preciso”
(la vie sociale, partout où elle existe d’une manière durable, tend inévitablement à prendre une

70 Direito e sociedade na obra de Émile Durkheim:


bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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Vale notar que Keck e Plouviez (2008) ressaltam o caráter ambivalen-
te do termo “moral” no pensamento de Durkheim, uma vez que ele desig-
naria tanto as regras de conduta e as práticas por elas engendradas quanto a
especulação teórica dirigida a tais regras de conduta.130 Portanto, as regras
morais existiriam como fatos sociais e, enquanto tais, seriam suscetíveis
a uma investigação científica, a partir do que o autor designa de “física
dos costumes” (physique des mœurs) ou “ciência positiva da moral” (science
positive de la morale),131 cujo propósito não seria prescrever o que deve ser
a realidade moral, mas sim a observar, descrever e definir;132 não se trata,
portanto, de uma “ciência normativa”, como a “filosofia moral” de sua épo-
ca a concebia. Ademais, Durkheim (2010a), a partir de uma estreita apro-
ximação entre direito e moral, faz alusão a uma “física dos costumes e do
direito” (physique des mœurs et du droit), cujo objeto seria o estudo dos fatos
morais e jurídicos considerados, ambos, regras de conduta sancionadas.133
Aliás, como enfatiza Lenoir (1994), Durkheim teria constantemente justa-
posto e, inclusive, confundido os termos “moral” e “direito”.
No mesmo sentido, Chazel (1991), ao analisar as classificações mo-
bilizadas por Durkheim e seus colaboradores para a organização dos as-
suntos tratados nas diversas seções de L’Année Sociologique, sublinha a “uni-
dade profunda” entre direito e moral. Segundo ele, a própria designação

forme définie et à s’organiser, et le droit n’est autre chose que cette organisation même dans ce qu’elle
a de plus stable et de plus précis).
130  Vale lembrar que Durkheim (2007) concebe o liame social como essencialmente mo-
ral. Sobre essa questão, ver, especialmente, Steiner (2005).
131  Lenoir (1994, p. 26) observa que Durkheim, em seu último escrito, teria especificado
o sentido dessas expressões de modo a relacionar a “ciência ou física dos costumes” (science
ou physique des mœurs) com a “moral que é efetivamente observada entre os homens” e a
“ciência da moral ou ciência dos fatos morais” (science de la morale ou science des faits moreaux)
com os “preceitos morais em sua pureza e impessoalidade”.
132  Como ressalta Lenoir (1994, p. 25-26), é preciso considerar que, para Durkheim, o
“fato moral” (fait moral) tomaria duas formas: 1. a dos “costumes” (mœurs), consistentes em
“relações sociais”; 2. a da “moral” (morale), relativa às “regras de conduta”.
133  Vale notar que, segundo Durkheim (2010a, p. 41), a “física dos costumes e do direito”
teria os seguintes objetos de pesquisa: 1. como as regras (morais e jurídicas) são constituí-
das historicamente, ou seja, quais são as causas que as suscitaram e os fins úteis que elas
satisfazem; 2. a maneira pela qual elas funcionam na sociedade, isto é, como elas são aplica-
das pelos indivíduos”. Acerca dessa aproximação entre direito e moral, ver, especialmente,
Isambert (1991), Lenoir (1994) e Lukes e Prabhat (2011).

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 71

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“sociologia jurídica e moral”, utilizada na referida revista, seria expressão
da ligação consubstancial desses dois domínios.134 De todo modo, a des-
peito das justaposições e, por vezes, confusões, Durkheim (2007) procu-
rou caracterizar direito e moral como formas de regulação social distintas,
mobilizando, para tanto, o critério da sanção. Ressaltou-se que, para ele,
direito de moral consistiria em “regras de condutas sancionadas”. Contudo,
a moral se expressaria a partir de regras de condutas atreladas a “sanções
difusas”, ao passo que, no direito, as regras ostentariam “sanções organi-
zadas”.135 Assim, como observa Isambert (1991), Durkheim utilizaria o
critério do tipo de sanção (difusa e organizada) para diferenciar essas duas
formas de regulação social.
Como ressaltam Lukes e Prabhat (2011), para Durkheim, direito e
moral não constituiriam domínios distintos, ou seja, as regras jurídicas não
se distinguiriam das morais em virtude de seu caráter, conteúdo, forma ou
da natureza do comportamento por elas regulado. Tratar-se-ia, em ambos
os casos, de “regras de conduta sancionadas”. No entanto, as sanções morais
seriam “difusas”, ou seja, aplicadas por todos indistintamente, e as sanções
jurídicas, em virtude de demandarem uma aplicação por intermédio de or-
ganismos formais, seriam “organizadas”.136 Nesse sentido, Isambert (1991)
observa que a moral, em si, constituiria uma espécie de “direito enfraque-
cido ou embrionário”.137 Ressalta, todavia, que a moral estaria articulada
com o direito a partir de duas formas: 1. mediante o conteúdo moral de que
uma regra jurídica pode vir a se revestir (caso do crime, por exemplo); 2. a

134  Lenoir (1994) também recorre às classificações mobilizadas por Durkheim e seus co-
laboradores em L’Année Sociologique para sublinhar uma ligação consubstancial entre direi-
to e moral.
135  A respeito, ver, entre tantos outros, Cotterrell (1999), Isambert (1991), Lenoir (1994),
Lukes e Prabhat (2011) e Massella (2014). Vale notar que a utilização do critério do tipo de
sanção para distinguir direito e moral se reflete diretamente no pensamento de Radcliffe-
-Brown (1952).
136  Cotterrell (1999) observa que esses “organismos formais” ou “órgãos específicos” aos
quais Durkheim (2007) faz alusão seriam, especialmente, os “representantes autorizados”.
137  Isambert (1991, p. 53) afirma textualmente que a moral pareceria um “direito enfra-
quecido ou embrionário” (droit affaibli ou embryonnaire).

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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exigência moral de respeito à regra jurídica, mesmo quando esta consigna
um caráter especializado ou técnico.
Referindo-se a um extrato do prefácio suprimido das edições pos-
teriores do livro De la division du travail social, Lenoir (1994) insiste na
atribuição de uma “íntima união” entre direito e moral por parte do grande
sociólogo francês.138 Desse modo, no pensamento de Durkheim, a regra
jurídica constituiria a forma “cristalizada”, “organizada”, “estável” e “endu-
recida” das regras morais que, em si mesmas, seriam “flutuantes”, “difusas”,
“plásticas” e “indecisas”, motivo pelo qual o direito seria concebido como
uma espécie de “conservador” dos valores sociais. Conforme mencionado,
o enraizamento social da moral seria, segundo Durkheim (2007), a base da
autoridade das regras que a expressam. Isso ocorre porque, como as regras
morais são feitas pela sociedade e para a sociedade, elas se beneficiam da
autoridade que esta detém relativamente aos indivíduos.139 Ora, para Mas-
sella (2014), o mesmo raciocínio seria aplicável às regras jurídicas, pois,
como pensa Durkheim, se as ideias morais formam a alma do direito, a
autoridade de um código seria advinda dos ideais morais que ele veicula a
partir de fórmulas definidas.
Como observa Lenoir (1994, p. 30), para Durkheim, o direito desem-
penharia uma função de formalização140 que consistiria, fundamentalmen-
te, em “duas séries de fatores”, parcialmente independentes. A primeira
seria relativa aos efeitos inelutáveis que decorrem da institucionalização da
vida social. Nesse particular, como se sabe, Durkheim (2007) afirma que a
vida social, onde quer que exista de maneira durável, tende inevitavelmen-
te a assumir uma forma definida a se organizar, sendo o direito justamente

138  Segundo Lenoir (1994, p. 27), Durkheim, no referido extrato, afirmaria o seguinte:
“acreditamos que esses dois domínios [o direito e a moral] estão intimamente unidos para
poderem ser radicalmente separados” (nous croyons ces deux domaines [le droit et la morale]
trop intimement unis pour pouvoir être radicalement séparés).
139  Aliás, Durkheim (2007, p. XLI) sustenta que a moral consistiria em um “sistema de
fatos realizados, ligado ao sistema total do mundo”, que, como tal, não se modificaria de
maneira voluntarista, “num passe de mágica” (en un tour de main), pois, sendo solidário de
outros fatos, não poderia ser alterado sem que estes também fossem atingidos.
140 Como ressalta Lenoir (1994, p. 29), “o direito é, para Durkheim, essencialmente,
formulação” (le droit est, pour Durkheim, essentiellement formulation). A proximidade com o
que sustenta Bourdieu (1986a, 1986b, 2016) é evidente a esse respeito.

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 73

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essa organização no que ela ostenta de mais estável e preciso.141 A segunda
relacionar-se-ia especificamente às funções sociais engendradas pela co-
dificação, em especial a sua tendência à elisão de contestações. Quanto a
esse aspecto, Durkheim (2007) enfatiza o implemento de precisão que a
codificação produz na resolução de controvérsias.142
Diversas questões complexas emergem do tratamento dado por
Durkheim (2007; 2010a) à ligação consubstancial entre direito e moral,
como a relativa ao “estranho tipo de moralidade” que Cotterrell (1999)
considera existir entre o “direito restitutivo” e a moralidade que lhe é cor-
relata143 ou a que remete às limitações na fundamentação moral do “di-
reito restitutivo”, identificadas por Macneil (2009).144 Tais questões, por
demandarem digressões incompatíveis com as dimensões e propósitos des-
ta análise, não podem ser desenvolvidas aqui. Entretanto, para o escopo
desta abordagem introdutória ao pensamento de Durkheim, uma questão
mostra-se particularmente significativa no que tange à relação entre direi-
to e moral. Trata-se do que poderia advir do eventual descompasso entre
essas duas ordens de regulação social. Ora, sendo as regras jurídicas uma
“cristalização” das regras morais, caberia perguntar acerca do que decorre-
ria do eventual divórcio ou oposição entre elas.145

141  Sobre essa questão, ver também Massella (2014).


142  A esse respeito, Durkheim (2007, p. 41) afirma que, “quando um direito consuetudi-
nário passa ao estado de direito escrito e se codifica, é porque questões litigiosas reclamam
uma solução mais definida” (quand un droit coutumier passe à l’état de droit écrit et se codifie,
c’est que des questions litigieuses réclament une solution plus définie). Vale notar que a afinidade
da perspectiva de Durkheim com a questão da “codificação” em Bourdieu (1986a, 2016) é
bastante expressiva. A respeito, ver também Massella (2014).
143  Cf. Cotterrell (1999) considera que a moralidade correlata ao “direito restitutivo” con-
sistiria, em última instância, em uma espécie de “código de gerenciamento social” que
diferiria drasticamente do tipo de moralidade fundada nos sentimentos produzidos pela
“consciência coletiva”. Sobre essa questão, ver, especialmente, Massella (2014).
144  Macneil (2009, p. 92) considera que Durkheim teria caído na “armadilha individua-
lista” consistente em tratar as pessoas como “átomos livres das forças moleculares de sua
sociedade”. A respeito, ver Massella (2014).
145  Segundo Massella (2014, p. 276), “nem mesmo a maior presença da atividade legis-
lativa consciente no direito moderno nos autoriza, segundo Durkheim, a abrir mão da
íntima interdependência entre o direito e a vida social. [...] A legislação eficaz reflete os
valores morais vigentes na sociedade e não seria, portanto, uma fonte de direito que anula

74 Direito e sociedade na obra de Émile Durkheim:


bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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A esse respeito, Lenoir (1994) ressalta que, em diversas ocasiões (es-
pecialmente no livro De la division du travail social), o sociólogo francês
teria se interrogado acerca do problema da inadequação ou mesmo da opo-
sição entre regras morais e jurídicas. De fato, Durkheim (2007) enfoca
diretamente esse assunto a partir de duas considerações reciprocamente
relacionadas. Em primeiro lugar, assinala que o direito refletiria apenas
uma parte da vida social, o que implica admitir que uma parte das rela-
ções sociais poderia se “fixar” sem que fosse preciso, para tanto, assumir
uma forma jurídica. Desse modo, na medida em que o direito constituiria
apenas os “contornos gerais”, ou seja, as “grandes linhas” das relações so-
ciais, não seria necessário (aliás, sequer possível) que nele tudo estivesse
expresso. No entanto, em segundo lugar, Durkheim (2007) observa que,
por vezes, verificar-se-ia um desacordo entre os costumes (mœurs) e o di-
reito.146 Em tais situações, o sociólogo francês considera que o direito se
“manteria” pela “força do hábito”, mesmo não correspondendo mais ao es-
tado da sociedade. Entretanto, tal como sublinha Assier-Andrieu (2000),
essa situação só poderia ocorrer excepcionalmente e em casos perigosos
ou patológicos.

A relação inextricável entre crime e pena

Durkheim (2007) sustenta uma relação inextricável entre crime e pena,


considerando-os, como destaca Chazel (1991), uma espécie de “casal inse-
parável” (couple inséparable). No que concerne ao crime, Durkheim (2007)
define-o como “um ato contrário aos estados fortes e definidos da cons-
ciência coletiva”. Nessa perspectiva, assevera que um ato não ofenderia
a consciência coletiva por ser criminoso, mas seria criminoso justamen-
te porque ofenderia a consciência coletiva.147 Isso significa que o crime

as fontes provenientes da vida social”. Essa posição de Durkheim é fortemente criticada


por Luhmann (2006).
146  Vale lembrar que, conforme ressalta Lenoir (1994), para Durkheim, o “fato moral”
tomaria duas formas indissociáveis: a dos “costumes” (mœurs) e a da “moral” (morale).
147  Durkheim (2007, p. 47) afirma expressamente que “um ato é criminoso quando ofen-
de os estados fortes e definidos pela consciência coletiva” (un acte est criminel quand il offense

A obra de Émile Durkheim em meio às “abordagens clássicas da sociologia do direito” 75

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não seria socialmente reprovado por ser um crime. Ele seria um crime
precisamente porque sobre ele incidiria a reprovação social. Contudo, se-
gundo Durkheim (2007), o crime também apresentaria como atributo o
fato de determinar uma pena que consistiria em uma “reação passional”,
que, nas sociedades modernas, caracterizar-se-ia por sua intensidade gra-
duada e por ser exercida por intermédio de um corpo constituído contra
aqueles que violam certas regras de conduta, ou seja, na forma de uma
sanção organizada.148
A relação entre crime e pena, constantemente reiterada por Durkheim
(2007), decorre do fato de que, em seu entendimento, é justamente a pre-
sença de um dos elementos que qualifica o outro.149 O sociólogo francês
ressalta que o vínculo de solidariedade correspondente ao “direito repres-
sivo” constituiria precisamente aquele em cuja ruptura consiste o crime.
Entretanto, o autor acrescenta que o crime se referiria a todo ato que,
em algum grau, determina contra o seu autor a reação para a qual, por
convenção, designamos de pena. Para desenvolver sua análise acerca des-
sa questão, Durkheim (2007) realiza uma definição do que entende por
“consciência coletiva” ou “comum” nos seguintes termos: tratar-se-ia do
conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma
mesma sociedade que, não se confundindo com as consciências dos parti-
culares, teria vida própria, configurando-se, portanto, como uma realidade
distinta que estaria difusa por toda a extensão da sociedade.
Ora, o crime, ao afetar a “consciência coletiva” ou “comum”, acarre-
taria a reação social denominada pena. É por esse motivo que Durkheim
(2007) afirma que a característica fundamental do crime seria o fato de
ele ensejar a incidência de uma pena. Logo, para defini-lo, tornar-se-ia
necessário explicar o que, em última instância, o qualifica, ou seja, a pena.

les états forts et définis de la conscience collective). A respeito, ver Smith (2014).
148  Para boas análises da concepção durkheimiana do crime no âmbito da literatura socio-
lógica brasileira, ver, por exemplo, Oliveira (2015) e Weiss (2013). Na literatura francófona
recente, ver, especialmente, Fassin (2018) e Mucchielli (2018).
149 Como ressalta Durkheim (2007, p. 52) “o que caracteriza o crime é o fato de ele
determinar a pena” (ce qui caractérise le crime, c’est qu’il détermine la peine). Essa questão é
amplamente tratada por Smith (2014).

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Para tanto, sublinha, em primeiro lugar, que a pena consistiria em uma
“reação passional” (réaction passionnelle). Alinhando-se ao pensamento
evolucionista recorrente em sua época, Durkheim (2007) sustenta que essa
característica seria tanto mais aparente quanto menos “cultas” fossem as
sociedades. Afirma, aliás, que nas “sociedades primitivas” (a expressão é
dele) o direito seria “inteiramente penal”.150 No entanto, em seu entendi-
mento, nas sociedades modernas a natureza da pena teria mudado: a pena
teria deixado de se afigurar como vingança para se tornar um instrumento
de defesa, ou seja, a sua incidência visaria não a satisfação a uma paixão,
mas a incitação de um temor capaz de aplacar intencionalidades crimino-
sas. Desse modo, assevera que não seria mais a cólera, mas a previdência
refletida que determinaria a repressão.
Contudo, a despeito dessa tendência de se transformar em instrumen-
to de prevenção, a pena, mesmo hoje, teria, segundo Durkheim (2007),
preservado, pelo menos em parte, seu vínculo com o instinto de vingança.
Por esse motivo afirma que a pena, apesar de se direcionar à proteção fu-
tura, mediante a dissuasão de intencionalidades maléficas, ainda remanes-
ceria, antes de mais nada, uma “expiação do passado”. Por conseguinte, a
pena não teria mudado essencialmente. Na verdade, teria ocorrido apenas
um melhor direcionamento da vingança, pois o despertar de seu caráter
preventivo teria limitado o campo, outrora ilimitado, à “ação cega da pai-
xão”. É nesse sentido que Durkheim (2007, p. 57), procurando exprimir o
perfil assumido pela pena, define-a como uma “reação passional de inten-
sidade graduada”.
Isso conduz Durkheim (2007) à questão de elucidar de onde emana
a reação que se designa de pena. Seria ela proveniente do indivíduo ou da
sociedade? A resposta do autor consiste, evidentemente, em sustentar o ca-
ráter social da pena. Não pretendendo reconstruir as digressões feitas pelo
sociólogo francês acerca do caráter religioso da pena nas “sociedades infe-
riores” (sociétés inférieures), cabe notar aqui que ele, procurando caracterizar
a repressão legal, define-a enquanto tal por ser “organizada”. Isso o obriga

150  Cabe notar que Malinowski (1961) critica Durkheim por essa suposição.

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a explicar em que consistiria essa organização que especifica a repressão
legal. Para tanto, Durkheim (2007) assevera que o caráter organizado da
repressão legal decorreria do fato de a infração, nesse caso, em vez de ser
julgada difusamente, ou seja, por qualquer um, seria, ao contrário, subme-
tida à apreciação de um “corpo constituído”. Com isso, em virtude de ter
como intermediário um “órgão definido”, a reação coletiva deixaria de ser
difusa e passaria a ser organizada. Assim, complementando a definição
que esboçara inicialmente, Durkheim (2007, p. 64) afirma que a pena seria
uma “reação passional, de intensidade graduada, exercida pela sociedade
por intermédio de um corpo constituído contra aqueles de seus membros
que violaram certas regras de conduta”.151
Ao analisar o caráter social da pena, Durkheim (2007) observa que
ele derivaria da natureza social dos sentimentos ofendidos. Seu argumento
consiste em atribuir tais sentimentos a todas as consciências de modo a
inferir, a partir daí, que a infração, por atingir sentimentos partilhados
de forma generalizada, produziria uma reação geral e coletiva: a “cólera

151  É de supor que esse “órgão definido” que serve de intermediário à reação coletiva de
modo a torná-la não mais difusa, mas organizada, seja o Estado. Entretanto, Durkheim
(2007) não afirma isso expressamente. Essa suposição se faz, todavia, plausível porque
Durkheim (2007, p. 207) sustenta que “há sobretudo um órgão em relação ao qual nosso
estado de dependência aumenta cada vez mais: o Estado” (il est surtout un organe vis-à-vis
duquel notre état de dépendance va toujours croissant: c’est l’État). A esse respeito, vale notar
que Durkheim (2007) define o Estado pela inclusão dos “grupos secundários”. Segun-
do o autor, a atividade coletiva seria sempre demasiadamente complexa para se expressar
unicamente pelo órgão do Estado, que, além disso, estaria demasiadamente distante dos
indivíduos para que possa penetrar nas consciências individuais e as socializar interior-
mente. Daí a necessidade de “uma série de grupos secundários”, próximos dos indivíduos,
para atraí-los de modo a produzir coesão. Por isso, o declínio das formas de intermediação
entre indivíduo e Estado (tais como a família, a igreja, as corporações etc.) constituiria
uma patologia. Nesse particular, no prefácio à segunda edição do livro De la division du
travail social, Durkheim assevera que uma sociedade composta de uma “poeira infinita de
indivíduos desorganizados” (poussière infinie d’individus inorganisés) que um Estado hi-
pertrofiado se esforça por encerrar e reter constituiria uma “monstruosidade sociológica”.
Assim, quando o Estado se afigura como o único meio encontrado pelos indivíduos para
formar-se na prática da vida comum, ocorreria, em suma, desagregação social. Portanto,
apesar de fortemente centralizado, o Estado moderno não poderia nem deveria procurar
suprimir os corpos intermediários. Sobre a concepção de Durkheim acerca do Estado e de
algumas consequências que dela decorrem, ver, por exemplo, Birnbaum (1976) e Colliot-
-Thélène (2011).

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bases de uma matriz teórica para os estudos sociojurídicos

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pública”.152 Consequentemente, a pena desempenharia um papel útil, não
no sentido de correção do culpado ou de intimidação de seus potenciais
imitadores;153 no entendimento do autor, a verdadeira função da pena
seria manter intacta a coesão social, preservando, assim, a vitalidade da
“consciência coletiva”.154 Trata-se, portanto, de uma reação coletiva, de ca-
ráter organizado, dirigida a uma conduta ofensiva aos estados fortes da
“consciência coletiva”, cujo efeito fundamental é reafirmá-la diante do de-
lito que a afronta.
Contrapondo-se às perspectivas que consideram o crime um fato
social patológico que deveria ser extirpado, Durkheim (2010b) insiste na
normalidade que lhe seria constitutiva.155 Segundo ele, o crime seria ine-
rente a todas as sociedades conhecidas e não haveria nenhum indício plau-
sível a sustentar a suposição de que a taxa de criminalidade decresceria ao
longo da evolução da sociedade, ou seja, da passagem da “solidariedade
mecânica” para a “solidariedade orgânica”. Para o autor, a supressão do
crime em determinada sociedade implicaria supor que os estados fortes e
definidos da “consciência coletiva” recobririam com igual intensidade to-
das as consciências individuais. Contudo, tal uniformidade não seria con-
cebível nem mesmo nas sociedades fundadas na “solidariedade mecânica”,
ou seja, pré-modernas. Entretanto, a pretensão de reforçar a “consciência

152  Vale notar que, segundo Durkheim (2007), é a “solidariedade mecânica”, engendrada
pelas semelhanças, que está expressa no “direito repressivo”.
153  Durkheim (2007) considera que a eficácia dessas duas finalidades, comumente asso-
ciadas à pena, seria duvidosa e, quando muito, medíocre.
154 Nesse particular, é oportuno notar que, segundo Durkheim (2007), o efei-
to do crime seria aproximar as “consciências honestas” e concentrá-las. A respeito, ver
Carbonnier (2004).
155  Nesse particular, é muito interessante a divergência de Durkheim (2007; 2010b) em
relação à criminologia italiana de sua época, especialmente no que tange à obra de Raffaele
Garofalo. Vale também aludir a um contemporâneo brasileiro de Durkheim, Paulo Egídio
de Oliveira Carvalho, que, debruçando-se sobre a tese do autor francês acerca da normali-
dade do crime, procura rejeitá-la. A respeito, ver Salla e Alvarez (2000). Segundo Carbon-
nier (2004), Durkheim teria realizado um deslocamento progressivo da criminalidade para
a penalidade de modo a fundar, em contraste com a sociologia criminal, uma verdadeira
“sociologia do direito penal”. Sobre as relações entre criminologia e sociologia, ver Belley
(1986) e Carbonnier (2004). Cabe ainda observar que Delmas-Marty (2010) mobiliza o
argumento de Durkheim acerca da inerência do crime à sociedade para apontar a baixa
efetividade das medidas repressivas para contê-lo.

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coletiva” com o intuito de, mediante esse procedimento, aplacar o crime
não teria, em seu entendimento, outro resultado senão fazê-lo recrudescer,
pois transformaria aquilo que outrora era considerado mera indelicadeza
em um ato delituoso. Assim, como observa Steiner (2005), em virtude de
consistir em um fenômeno geral, o crime seria um fato social normal.156
Para Durkheim (2010b), o crime, porém, não seria apenas um fato so-
cial inelutável, mas também útil à evolução regular da moral e do direito.157
Nessa perspectiva, o crime poderia servir de veículo de explicitação de mu-
danças vindouras. Coerente com os pressupostos de sua tese, Durkheim
(2010b) afirma que as transformações sociais somente poderiam ocorrer,
se admitidas pelos sentimentos coletivos que fundamentam a base moral
da sociedade. Isso implica supor que sentimentos coletivos demasiada-
mente intensos e homogeneamente onipresentes perante as consciências
individuais constituiriam, em última análise, um obstáculo à mudança.
A pressão social seria tamanha que inibiria a novidade. No entanto, se os
sentimentos comuns não se afiguram nesses termos, haveria espaço para a
originalidade individual e, consequentemente, à possibilidade de infrações
à moralidade dominante.
Por fim, no que concerne à relação inextricável entre crime e pena,
é fundamental aludir ao célebre artigo intitulado Deux lois de l’évolution
pénale, publicado no volume 4 de L’Année Sociologique, entre 1899 e 1900,
no qual Durkheim – apesar de continuar a dar preponderância às questões
genéticas e se preocupar com o aprofundamento de sua análise sociológica
da pena – retifica parcialmente a posição veiculada no livro De la divi-
sion du travail social, de modo a torná-la mais complexa. Em tal estudo,

156  Em uma assertiva muito expressiva, Durkheim (2010b, p. 180) ressalta que “o crime
é algo normal, pois uma sociedade que não o tenha é simplesmente impossível” (le crime est
normal parce qu’une société qui en serait exempte est tout à fait impossible). Essa questão é muito
bem sintetizada por Steiner (2005) e Giddes e Sutton (2016).
157  Durkheim (2010b, p. 184) afirma textualmente que “o crime é, portanto, necessário;
ele está ligado às condições fundamentais de toda a vida social, mas, por essa mesma razão,
ele é útil; pois essas condições, das quais ele é solidário, são indispensáveis à evolução nor-
mal da moral e do direito” (le crime est donc nécessaire; il est lié aux conditions fondamentales
de toute vie sociale, mais, par cela même, il est utile; car ces conditions dont il est solidaire sont
elles-mêmes indispensables, à l’évolution normale de la morale et du droit). A respeito, ver, por
exemplo, Juan (2019).

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Durkheim passa a distinguir dois fatores independentes da evolução penal:
1. a intensidade da pena seria tanto maior conforme as sociedades em que
elas se aplicam fossem menos evoluídas e caracterizadas por um poder cen-
tral absoluto; 2. haveria uma progressiva tendência de as penas privativas
de liberdade se transformarem no tipo normal da repressão penal.158 As-
sim, Durkheim (1899-1900) passa a sustentar a tese de que a intensidade
da pena tenderia a diminuir em configurações sociais mais complexas, nas
quais o poder absoluto experimentaria um progressivo declínio.159

As bases sociais do contrato

Durkheim (2007) define o contrato a partir de duas condições necessárias:


1. o livre acordo de vontades contratantes; 2. a regulamentação social que
sobre ele incide. Disso decorre a sua célebre definição de que “nem tudo é
contratual no contrato”.160 Isso quer dizer que, para obrigar socialmente,
a dimensão contratual deve ser completada pela não contratual. A partir
dessa definição, Durkheim pretende opor-se à concepção dominante no
século XIX de que o livre acordo de vontades seria condição suficiente para
perfazer o contrato. Assim, para o autor, o livre consentimento, pressupos-
to como condição do contrato, seria complementado pela regulamentação
social que, em última instância, cinge-lhe. Nessa perspectiva, o livre con-
sentimento individual que se expressa contratualmente somente seria fonte
de direito se respeitasse os valores sociais vigentes. Consequentemente, na
perspectiva de Durkheim, o contrato pode ser compreendido como uma

158  Hunt (1978) comenta essas duas leis ressaltando que uma é de natureza quantitativa,
a outra qualitativa.
159  Sobre essa questão, ver, por exemplo, Chazel (1991), Hunt (1978), Smith (2014), Stei-
ner (2005) e Weiss (2013).
160  Durkheim (2007, p. 189) enfatiza, expressamente, que “tout n’est pas contractuel dans
le contrat”. Essa questão é bem sintetizada por Massella (2014) e Nisbet (1965). Contudo,
Bourdieu (2012) parte dessa constatação de Durkheim para sustentar que a ordem social
repousaria sobre um nomos ratificado inconscientemente que, por esse motivo, transcende-
ria o contrato. Por fim, Boudon (2008), fundamentando-se em Randall Collins e Jeffrey
Alexander, ressalta que a ênfase de Durkheim nas bases não contratuais do contrato decor-
reria de sua intenção de erigir um “muro” entre a sociologia e a economia.

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instituição social que utilizaria as vontades individuais para a realização de
finalidades sociais.161
Evidentemente que Durkheim (2007) não desconsidera que somente
os compromissos emanados da livre vontade dos indivíduos são passíveis
de ser considerados expressão de um contrato. Daí, inclusive, a sua afir-
mação de que obrigações carentes de mútuo consentimento não teriam
qualidade contratual. Contudo, mobilizando diversos exemplos, sustenta
que, a despeito de ser expressão do livre acordo de vontades, onde quer que
tenha existido, o contrato sempre estaria submetido a uma regulação social
que o autoriza e sustenta. Por conseguinte, sua argumentação conduz à
afirmação de que, em última instância, o contrato não seria suficiente por
si próprio, de modo a demandar, como condição de possibilidade, uma
regulação de origem social. Isso significa que sua força obrigatória decor-
reria de um fundamento social, e não meramente pactual. Para o autor, o
respaldo social dado aos contratos implicaria a possibilidade de conciliação
do que neles é acordado com os objetivos fixados socialmente. Logo, um
contrato fundado em condições não aceitas socialmente seria desprovido
de valor e, por isso, destituído de autoridade.
Trata-se de um entendimento que torna o conteúdo pactuado no con-
trato tributário de uma chancela social que, entretanto, não ocorre de for-
ma automática ou passiva. Assim, longe de ser portador de obrigatoriedade
intrínseca, o contrato somente seria passível de adquiri-la mediante sua
conformidade com as exigências sociais. Nessa perspectiva, a adequação
do conteúdo pactuado de um contrato aos valores da sociedade em que ele
se inscreve seria condição indispensável à sua validade e obrigatoriedade.
Desse modo, como observa Terré (2011), haveria uma preeminência do
aspecto social sobre o contratual no pensamento de Durkheim.162 Logo,
um contrato que porventura viole o que a sociedade considera admissí-
vel ou justo não seria socialmente respaldado, ainda que seja a expressão

161 A respeito, ver, especialmente, Durkheim (2010a). Luhmann (2008) é particular-


mente enfático ao apontar esse aspecto como um aporte significativo do pensamento de
Durkheim no bojo do que ele designa de “abordagens clássicas da sociologia do direito”.
162  A respeito, ver Serverin (2000). Vale notar que Terré (2011) mitiga a influência de
Durkheim na sociologia jurídica do contrato que o sucedeu.

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da vontade consentida dos contratantes. Portanto, conforme Aron (2003),
Durkheim contrapõe-se à perspectiva de Herbert Spencer e às teorias eco-
nômicas clássicas para as quais a sociedade moderna estaria fundamentada
essencialmente em acordos livremente entabulados pelos indivíduos.163
Para Durkheim (2007), a possibilidade de progressiva ampliação de
uma esfera de livre acordo entre particulares em interação implica que a
sociedade detenha uma estrutura jurídica que admita e sustente a realiza-
ção de contratos fundados em decisões individuais e autônomas. É por esse
motivo que, para ele, os ajustes interpessoais estariam situados dentro de
um contexto social que não é determinado pelos próprios indivíduos que
os realizam. Consequentemente, apesar de exprimirem mútuos acordos de
interesses individuais, os contratos encontrariam suas condições básicas
fixadas socialmente por uma base legal que, ao traduzir a concepção que
a sociedade tem do que é justo e do que é injusto e do que é tolerável ou
proibido, fixa o horizonte de possibilidades para a manifestação das von-
tades individuais.164 Por conseguinte, segundo Aron (2003, p. 469-470),
no pensamento de Durkheim, “a divisão do trabalho pela diferenciação é a
condição primordial da existência de uma esfera de contrato. Encontra-se
aqui o princípio da prioridade da estrutura social sobre o indivíduo [...]”.

163  De fato, referindo-se particularmente ao pensamento de Spencer, Durkheim (2007)


sublinha que, se a sociedade moderna fosse fundada apenas em contratos livremente fir-
mados por particulares, ela seria caracterizada pela instabilidade. A respeito, aludindo à
crítica de Durkheim à perspectiva de Spencer, Hunt (1978) observa que os ataques dele são
direcionados particularmente a Spencer, mas, por via de consequência, também a Maine.
Sobre a crítica de Durkheim ao pensamento de Spencer, ver Massella (2014). Como exem-
plo de uma frutífera reverberação contemporânea dessa tese, ver Macneil (2009).
164  Conforme sustenta Durkheim (2007, p. 82), “não se deve esquecer que, se o contrato
tem o poder de ligar, é a sociedade que lhe confere esse poder. Suponham que ela não
sancione as obrigações contratadas; estas se tornariam simples promessas sem mais ne-
nhuma autoridade moral. Portanto, todo contrato pressupõe que, por trás das partes que o
estabelecem, há a sociedade pronta para intervir a fim de fazer respeitar os compromissos
assumidos; por isso, ela só outorga essa força obrigatória aos contratos que, por si mesmos,
têm valor social, isto é, que são conforme às regras do direito” (il ne faut pas oublier que, si le
contrat a le pouvoir de lier, c’est la société qui le lui communique. Supposez qu’elle ne sanctionne pas
les obligations contractées; celles-ci deviennent de simples promesses qui n’ont plus qu’une autorité
morale. Tout contrat suppose donc que, derrière les parties qui s’engagent, il y a la société toute
prête à intervenir pour faire respecter les engagements qui ont été pris; aussi ne prête-t-elle cette
force obligatoire qu’aux contrats qui ont par eux-mêmes une valeur sociale, c’est-à-dire qui sont
conformes aux règles du droit).

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Por essa razão, Luhmann (2008) enfatiza o “impulso propriamente
sociológico” proporcionado pela obra de Durkheim ao desenvolvimento
da sociologia do direito. Segundo o autor alemão, ao evidenciar as “bases
não contratuais (e, portanto, sociais) do contrato”, Durkheim teria reso-
lutamente colocado em questão as teorias que fundamentavam a ordem
social no cálculo utilitário e na livre vontade individual.165 Como men-
cionado, no bojo da argumentação desenvolvida em De la division du tra-
vail social, as vontades individuais somente são reputadas fonte de direito
quando se conformam à regulamentação social e respeitam os valores so-
ciais.166 Consequentemente, Luhmann (2008) observa que, na perspecti-
va de Durkheim, a disseminação de relações contratuais em sociedades
diferenciadas pela divisão do trabalho social não alteraria o fato de que o
direito, como regra moral, remanesceria expressão da “solidariedade” que
caracteriza certa sociedade.
Cabe notar também que, para Durkheim (2007), as relações contra-
tuais experimentariam um progressivo desenvolvimento com a divisão so-
cial do trabalho. Isso ocorreria porque, em seu entendimento, a divisão do
trabalho implicaria a realização de trocas que encontrariam no contrato a
sua formalização jurídica. É por isso que o autor afirma, expressamente,
que a “solidariedade contratual” seria uma das variedades mais relevantes
da “solidariedade orgânica” que, como ressaltado, é engendrada pela divi-
são do trabalho social. Muito embora assevere que seria equivocado con-
siderar que todas as relações sociais tenham caráter contratual, Durkheim
admite o progressivo ganho de importância do contrato nas sociedades
modernas. Assim, a partir de uma posição de viés evolucionista, ao con-
trastar “sociedades primitivas” e “povos civilizados” (as expressões são do
próprio autor), sustenta que, nestas últimas, observar-se-ia um “direito

165 Nesse particular, Luhmann (2008, p. 15) ressalta que “Émile Durkheim aponta,
polemizando intencionalmente, para as bases não contratuais (e, portanto, sociais!) do
contrato” (Émile Durkheim weist in gezielter Polemik auf die nichtvertraglichen (und damit:
gesellschaftlichen!) Grundlagen des Vertrags hin). A respeito, ver também Aron (2003) e Villas
Bôas Filho (2017c).
166 Essa questão é particularmente sublinhada por Parsons (1949), que contrasta
Durkheim e Pareto. A respeito, ver também Aron (2003).

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contratual” cada vez mais “volumoso”, cujo objetivo consistiria, em seu
entendimento, em assegurar o concurso regular das funções articuladas a
partir da divisão do trabalho social.167
Após afirmar que, em uma dada sociedade, cada objeto de troca de-
tém, em dado momento, um valor socialmente determinado que represen-
ta a quantidade de trabalho útil nele contida, Durkheim (2007) sustenta
que um contrato somente poderia ser considerado plenamente consentido
se os serviços nele trocados possuírem valor social equivalente, pois, em tal
situação, uma parte receberia aquilo que deseja mediante a entrega de algo
com valor correspondente. Segundo ele, o contrato regrado juridicamente
implica o estabelecimento de condições exteriores iguais aos contratantes,
o que remete a uma pretensão de justiça social. Assim, uma grande dispa-
ridade de classes que ensejasse a submissão, a qualquer preço, dos serviços
de uma à outra acarretaria uma situação de imposição injusta entre elas.

167  Durkheim (2007) chega mesmo a afirmar que o contrato consensual somente teria
aparecido em uma época relativamente recente, o qual ele teria constituído um primeiro
progresso no sentido da justiça.

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