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RESENHA REVIEW 349

Conhecimento e imaginário social. David mesmo cientistas de áreas exatas e aplicadas, que
Bloor. Tradução de Marcelo do Amaral Penna- compunham este campo de estudos e reconhe-
Forte. São Paulo: Editora Unesp, 2009, 300 p. ciam a obra de Bloor como uma das principais
inspirações para sua área de atuação. Sobretudo,
Maiko Rafael Spiess convém salientar que os quatro princípios esta-
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, belecidos para o ‘programa forte da sociologia
Brasil do conhecimento’ (causalidade, imparcialidade,
<spiess@ige.unicamp.br>
simetria e reflexividade), compartilhados pelos
colaboradores de Bloor na ‘Escola de Edimburgo’,
Em diversas áreas do conhecimento, existem obras e delineados no primeiro capítulo do livro, in-
clássicas que são amplamente reconhecidas e dis- fluenciaram, direta ou indiretamente, diversos
cutidas, e cuja importância e influência persistem autores seminais deste campo, tais como Harry M.
após muitos anos de sua publicação original. O Collins e até mesmo Bruno Latour. Assim, dado
livro Conhecimento e imaginário social, de David o contexto de seu surgimento e sua influência
Bloor, lançado originalmente em 1976, é certa- posterior, torna-se impossível negar o alcance e
mente uma destas obras. Desde seu lançamento, importância desta obra.
este livro – curiosamente, muitas vezes mais co- Por conta de seu conteúdo e ineditismo, a
mentado do que propriamente lido – é conside- edição lançada recentemente pela Editora Unesp,
rado como uma das principais portas de entrada com tradução de Marcelo do Amaral Penna-
para a então nascente sociologia do conheci- Forte, serve tanto ao leitor brasileiro das áreas
mento científico, que, sob a influência de pen- de filosofia e epistemologia, quanto ao leitor fami-
sadores como Mannhein, Kuhn e Wittgenstein, liarizado com os Estudos Sociais da Ciência e da
possibilitou a análise da produção científica Tecnologia. Trata-se de uma obra instigante (mas
através de uma perspectiva distinta da tradição também um tanto árdua para leitores menos fa-
mertoniana. De fato, a partir do marco simbólico miliarizados com certos debates filosóficos), que
representado pela obra A estrutura das revolu- se dedica principalmente à construção da legi-
ções científicas, de Thomas Kuhn (1962), o foco timidade da análise sociológica do ‘conteúdo’ do
de análise sociológica sobre a atividade cientí- conhecimento científico, justamente através da
fica foi sendo gradativamente alterado: ao invés descrição daquilo que o autor chama de ‘pro-
da investigação sobre os mecanismos de intera- grama forte’, e de sua aplicação aos casos mais
ção e as normas internas dos cientistas, a socio- extremos possíveis: a ‘lógica’ e o ‘conhecimen-
logia passou a investigar também o próprio to matemático’, ambas disciplinas consideradas
‘conteúdo’ da ciência. Em outras palavras, a exemplos de objetividade e neutralidade.
atividade científica passou a ser analisada como O livro está dividido em três grandes partes.
o resultado de determinadas práticas sociais es- A primeira parte, composta pelos quatro capítu-
pecíficas, mas não privilegiadas ou intrinseca- los iniciais, refere-se ao programa forte da socio-
mente distintas das demais atividades humanas logia do conhecimento científico, seus preceitos,
e, portanto, um objeto passível de análise socio- fundamentos e sua relação com a filosofia da
lógica (Knorr-Cetina & Mulkay, 1983). Neste ciência e também com as demais disciplinas
sentido, Conhecimento e imaginário social con- científicas. Nestes primeiros capítulos, o autor
tribuiu fundamentalmente para o processo de procura demonstrar que, para além da supera-
consolidação desta abordagem ao conhecimen- ção das acusações de ‘idealismo’ e ‘subjetivis-
to científico. mo’, o sucesso da sociologia do conhecimento
De fato, na ocasião do lançamento da segunda científico está relacionado, de fato, com a ado-
edição em inglês do livro, em 1991, a possibili- ção de uma postura científica tradicional, in-
dade de análise social a respeito da ciência já corporando “os mesmos valores assegurados em
havia se institucionalizado, resultando na emer- outras disciplinas” (p. 21).
gência de um prolífico campo multidisciplinar, Aparentemente, Bloor estava consciente das
conhecido internacionalmente como Science and possíveis consequências desta postura de ‘estu-
technology studies.1 Neste contexto, os leitores do científico da ciência’: ele reconhece que a
de Conhecimento e imaginário social eram soció- ideia de uma sociologia da ciência pode parecer
logos, filósofos, historiadores, antropólogos e até uma heresia, ou um ataque à ciência moderna,

Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 8 n. 2, p. 349-351, jul. /out.2010


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e sugere que a postura tradicional dos cientis- social em seu conteúdo. O quinto capítulo ini-
tas, de ausência total de questionamentos sobre cia-se apresentando a ideia da autoridade moral
a ciência, assemelha-se à manutenção da sacrali- imposta pelo caráter autoevidente e persuasivo
dade do conhecimento religioso, conforme estu- dos enunciados e sequências lógicas da matemá-
dado por Durkheim. A aura quase impenetrável tica. A partir disso, procura desconstruir esta
destas formas de conhecimento deve ser mantida autoridade, discutindo a ‘natureza’ das cons-
por seus praticantes, sob pena de a investigação truções matemáticas, opondo e reordenando as
sistemática de seu funcionamento acabar com ideias de pensadores como Mill e Frege, de mo-
seu caráter privilegiado. Em especial, para o autor, do a agrupar argumentos que possibilitem iden-
esta postura de preservação da ciência é justa- tificar os diversos elementos de causalidade do
mente a causa do ocultamento da influência dos conhecimento matemático (p. 160).
demais fatores sociais sobre a produção científica. No capítulo seguinte, Bloor expande esta
Apesar dos possíveis ataques e críticas de perspectiva, discutindo a ideia de que pode
cientistas e filósofos, Bloor insiste que existir “variação na matemática assim como há
variação na organização social” (p. 163), utili-
A poderosa imagem de Durkheim pode ser zando-se de exemplos de ‘matemática alternativa’,
empregada com a suposição de que, quando tais como o estilo cognitivo diferenciado da mate-
pensamos sobre a natureza do conhecimento, mática grega antiga (p. 167) ou as condições so-
o que estamos fazendo é, indiretamente, refle- ciais que permitiram o surgimento da noção dos
tir sobre os princípios segundo os quais a números irracionais (p. 184). Com isso, afirma
sociedade é organizada. (p. 85) que existe a possibilidade de variações no pen-
samento matemático, que podem ser explicadas
Desta maneira, é possível concluir que se através de causas sociais, ao mesmo tempo em
todo conhecimento diz algo a respeito da socie- que nega a existência de uma realidade mate-
dade onde ele foi criado, então o conhecimento mática definitiva, exterior aos indivíduos. Este
religioso e o conhecimento científico, ou as cren- raciocínio se aprofunda no capítulo sete, dedi-
ças ‘corretas’ e ‘erradas’ podem ser conside- cado ao processo de ‘negociação’ da lógica ma-
radas de modo ‘simétrico’, pois possuem valor temática, especialmente em relação aos contra-
explicativo semelhante: exemplos e processos de construção de provas
de determinados teoremas. Por exemplo, ao utili-
O mundo pode ser povoado por espíritos zar-se da análise de Lakatos sobre o teorema dos
invisíveis em uma cultura e por partículas poliedros de Euler (p. 219), Bloor demonstra o
atômicas sólidas e indivisíveis (mas igual- caráter negociado das definições matemáticas:
mente invisíveis) em outra (p. 70).
A invenção de novas ideias de prova ou de
Em outras palavras, este tratamento simé- novos modelos de inferência pode alterar
trico exposto acima e a busca pela ‘causalidade’ radicalmente o significado de um resultado
do conhecimento científico permitem construir lógico informal ou matemático informal.
uma perspectiva em que a disciplina sociológica (…) Essa abertura à invenção e negociação,
e os fatores sociais não sejam aplicados apenas com todas suas possibilidades de reorde-
para explicar os erros e distorções no conheci- nar a atividade matemática anterior, sig-
mento científico, mas principalmente para com- nifica que qualquer formalização pode ser
preender a determinação do contexto social sobre subvertida. Ou seja: quaisquer regras po-
as descobertas e enunciados científicos, o papel dem ser reinterpretadas e desenvolvidas de
da natureza e da experiência empírica no pro- novos modos (p. 228).
cesso de construção consensual da ‘verdade’, e
até mesmo as condições para a existência do pró- O capítulo oito apresenta sinteticamente as
prio conhecimento sociológico. conclusões decorrentes das reflexões teóricas e
Uma vez expostas estas premissas do progra- dos exemplos empíricos apresentados: inicial-
ma forte, a segunda parte da obra apresenta uma mente, Bloor insiste no caráter socialmente deter-
análise do conhecimento matemático, procuran- minado do conhecimento, da lógica e da noção
do identificar diversos aspectos da influência de objetividade. O conhecimento é concebido,

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afinal, como conjectural e relativo, tão subordi- Notas


nado ao contexto social de sua produção, quanto
à realidade material que ele analisa. Além disso, 1 No Brasil, este campo ficou conhecido como “Estu-
o autor reafirma a necessidade de associar as dos Sociais da Ciência e da Tecnologia” (ESCT).
ciências sociais, tanto quanto possível, ao mé-
todo das ciências tradicionais; afinal, a ciência 2 “A more controversial question is whether socio-
é a “nossa forma de conhecimento” (p. 240), e logy can touch the very heart of mathematical
somente assim a sociologia do conhecimento knowledge” (Bloor, 1991, p. 84).
poderia encontrar seu devido lugar entre as
demais ciências.
Finalmente, na terceira parte do livro (apre-
sentada na forma de posfácio), Bloor analisa al- Referências
gumas das críticas à primeira edição da obra,
notadamente em relação às acusações recorren- BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery.
tes sobre a ingenuidade, idealismo, imparciali- Chicago: The University of Chicago Press, 1991.
dade do programa forte. Sem grande surpresa,
Bloor indica que muitas das críticas são basea- KNORR-CETINA, K; MULKAY, M. Introduction:
das em entendimentos incorretos a respeito das Emerging Principles in Social Studies of Science.
teses do livro, decorrentes principalmente da In: KNORR-CETINA, K; MULKAY, M (Ed.). Science
resistência generalizada ao processo de dessa- Observed. Perspectives on the Social Study of Tech-
cralização da ciência, possivelmente decorrente nology. Sage Publications: London/Beverly Hills/New
das aplicações do programa forte. De modo sig- Delhi, 1983.
nificativo, o autor volta-se para a própria obra
para defendê-la, tornando o posfácio uma parte KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções cien-
interessante e historicamente relevante, mas tíficas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
realmente dispensável para a compreensão geral
das teses do livro. ROOSTH, Sophia; SILBEY, Susan. Science and
Em relação à edição brasileira, o projeto grá- Technology Studies: From Controversies to Post-
fico é agradável e a tradução é fiel ao tom origi- Humanist Social Theory. In: TURNER, Bryan S.
nal da escrita de Bloor. Todavia, é necessário The New Blackwell Companion to Social Theory.
ressaltar a existência de alguns poucos erros de London: Blackwell Publishing Ltd, 2009.
tradução e digitação como, por exemplo, na pá-
gina 131 onde se lê “Questão mais controversa
é se a sociologia pode atingir o âmago do conhe-
cimento sociológico [sic, grifo nosso]”, quando
na realidade o original refere-se ao conhecimen-
to matemático.1
Em linhas gerais, para o leitor brasileiro con-
temporâneo, Conhecimento e imaginário social é
uma obra importante para a compreensão da
emergência e consolidação de uma área especia-
lizada das ciências humanas, os Estudos Sociais
da Ciência e da Tecnologia. Mais especificamente,
para o leitor pouco familiarizado com este campo,
ou para aqueles que abordam a questão através
da filosofia ou da matemática, trata-se de um
livro desafiador, que faz jus às ciências exatas,
ao mesmo tempo em que expõe algumas de suas
particularidades e inconsistências internas, que
normalmente são obscurecidas pelas reconstru-
ções históricas de seus próprios praticantes.

Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 8 n. 2, p. 349-351, jul. /out.2010

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