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FOUCAULT

0 – Considerações preliminares/metodológicas
- A leitura deste capítulo de As Palavras e as Coisas pressuporia o conhecimento, ainda
que elementar, da diversidade de campos científicos (bem como respectivos estatutos
epistemológicos) e escolas teóricas existentes no interior daqueles.
- Logo, ao ser colocado como leitura preliminar e que abrirá os estudos sobre os
clássicos da sociologia, o texto deve ser apreendido particularmente no que diz
respeito à reflexão do autor sobre os dilemas e paradoxos enfrentados pelas ciências
humanas desde o seu início e desde os seus fundamentos epistemológicos.
- Daí a necessidade de se acompanhar as descobertas feitas por Foucault neste esforço
de natureza arqueológica – ou seja, na forma de uma escavação que buscou revelar
os fatores antecedentes históricos presentes no processo de constituição das ciências
humanas como campo do saber

I – O triedro dos saberes


[Do processo de construção dos fundamentos do conhecimento nas ciências humanas]
– Os dois papeis do ser humano: A) fundamento de todas as positividades
[positividade dos saberes]; e B) parte constitutiva do mundo empírico. ➔ “B” é,
portanto, “objeto” de “A”.

- As ciências humanas não receberam ou herdaram nenhum domínio epistemológico


que fundamentasse a proposição de conceitos e métodos para se fazer a análise do
humano como objeto → o Homem, portanto, não existia como preocupação da
epistemologia.

- Ao colocarem o ser humano (fundamento de todas as positividades) como objeto de


estudo, as ciências humanas acabam autorizando o questionamento de todo
conhecimento (pois que este se origina no Homem). ➔ as ciências humanas conflitam,
assim, tanto com as ciências naturais quanto com a filosofia (até então o campo em
que se discutia o ser humano)

- Diante deste risco, as ciências propriamente ditas se obrigam a buscar seus


fundamentos, a justificação de seus métodos e a purificação de sua história em um
lugar distante e protegido de “psicologismos”, “sociologismos” e “historicismos”.

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Na época clássica, o conhecimento assim procedia: ordenava a partir da identificação


de diferenças e definia as diferenças em função da instauração de uma ordem
(princípio ordenador) ➔ isso valia para as matemáticas, ciências da natureza e mesmo
para reflexões filosóficas e rudimentos de reflexões sobre o cotidiano social.

No séc. XIX (e além), o campo epistemológico se fragmenta. A episteme moderna


possui 3 dimensões (a cada uma delas correspondendo uma forma de conceber o
conhecimento específica):
1. Ciências matemáticas e físicas → a ordem é sempre um encadeamento
dedutivo, linear de proposições evidentes/verificadas
2. Ciências da linguagem, da vida, da produção/distribuição de riquezas →
busca-se estabelecer ligações entre elementos descontínuos mas análogos,
na expectativa de se extrair, daquelas, relações causais, as quais possam
sedimentar estruturas ordenadas.

OBS: haveria um campo comum entre as duas primeiras, admitindo-se, por


exemplo, o uso de matematizações na segunda, e de empiria na primeira.

3. Filosofia: esta estabelece campos comuns com as duas primeiras: filosofia


da vida, do conceito, dos símbolos; questionamentos filosóficos aos
fundamentos dos conhecimentos empíricos; e, na relação com as ciências
matemático-físicas, a filosofia se relaciona na forma da formalização do
pensamento.
- As ciências humanas não podem ser encontradas em nenhuma das 3 dimensões
anteriores em particular; por outro lado, Foucault sugere que elas possam ser
encontradas nos interstícios entre aquelas dimensões.

- Assim, as CH podem utilizar (ou podem ter a pretensão a utilizar) formalização


matemática; podem se inspirar em modelos e conceitos tomados às ciências empíricas
(biologia, economia, linguagem); ou investigar a forma do ser social do Homem como
conceito filosófico, embora de modo “concreto” ou “empírico”.

- Surgiria daí a precariedade epistemológica das ciências humanas, sua constante


sujeição a questionamentos (para que serve a sociologia?), mas, ao mesmo tempo,
sua condição de conjunto perigoso ou ameaçador de saberes → as CH representam
sempre um risco para os outros saberes.

- Até o seu surgimento, o Homem (gênero humano) era soberano inquestionável em


sua relação com o mundo, com a natureza, com o universo físico e metafísico
(filosófico); agora, esta posição se vê literalmente sob questionamento (pela ciência
social).

- Não é, pois, a densidade extrema de seu objeto (relações entre seres gregários
dotados de autoconsciência) que explica a instabilidade das ciências sociais ou sua
dificuldade de se estabelecer como campo do saber legítimo, reconhecido,
consagrado: e, sim, a sua complexidade epistemológica, descrita nos termos acima

HIPÓTESE: esta confusão ou sobreposição de modelos epistemológicos reflete a


própria situação paradoxal do objeto das ciências humanas, um objeto finito que é ao
mesmo tempo sujeito (que aspira a ser) transcendente → tem-se, assim, o “paradoxo”
das ciências humanas: o sujeito do saber, ao eleger a si mesmo como objeto, coloca
em questão sua própria natureza de fonte de um saber transcendente → logo, o saber
não é transcendente, sendo finito assim como seu sujeito/objeto]
- Ciências Humanas: ciências da representação (do ser humano (auto)representável)

II – A forma das ciências humanas


- Qual a forma da positividade das ciências humanas?
- Elas podem se servir do instrumental matemático (quantificação),
especialmente após o recuo da máthêsis [universalis – a crença cartesiana na
possibilidade de converter todo conhecimento filosófico e científico da natureza à
matemática]
- Elas podem se servir da biologia (vida, funções, sistemas), da economia
(trabalho, produção da vida) e da filologia (sinais, signos, significações)

- Demarcando a diferença entre as ciências da linguagem (filologia),


trabalho/produção (economia) e corpo humano/agregados humanos (biologia) e as
ciências humanas: porque enquanto aquelas primeiras se referem a aspectos
quantificáveis, significáveis/estruturáveis e fisiológicos do ser social, as ciências
humanas partem de onde aquelas terminam: da condição do ser humano poder se
relacionar livremente com aqueles aspectos, significá-los, representá-los, debatê-los,
reinventá-los em boa medida etc. Aqueles aspectos designam positividades
constitutivas do ser humano, mas as ciências humanas estão entre aquelas e os modos
como os indivíduos se relacionam com elas e para além delas.

- Foucault: “Vê-se que as ciências humanas não são uma análise do que o
homem é por natureza; são antes uma análise que se estende entre o que o homem é
em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser
saber (ou buscar saber) o que é a vida, a essência do trabalho e suas leis, e de que
modo [e o que] pode falar” (p. 488).
- Naquilo que singulariza o ser humano (e que não pode ser resumido nem à
sua anatomia, nem ao modo como trabalha e produz, nem ao modo como se comunica
com outros) e que está o alvo principal das ciências humanas segundo Foucault: não
existe ontologia porque não existe natureza. É o que ele se refere ao ser humano como
"ser que não deve sua finitude senão a si mesmo".

III – Os três modelos


- O domínio das ciências humanas seria coberto por três “ciências” [regiões
epistemológicas]: biologia (de onde se originaria a “região psicológica”), economia (de
onde se originaria a “região sociológica”), filologia (região literária, mitológica,
cultural).
- Das três regiões citadas advêm modelos conceituais, categoriais utilizáveis e
utilizados pelas ciências humanas.

- Da biologia: funções, que levam mais tarde ao surgimento de normas sociais


médias de ajustamento para o exercício de funções. (funções-normas)
- Da economia: necessidades, desejos, conflitos e contradições, que precipitam
o surgimento de regras móveis, que limitam mas também dilatam os conflitos.
(conflitos-regras)
- Da linguagem: condutas e seus significados ocultos e sutis, o sentido de suas
manifestações, objetos, hábitos, discursos, que leva a um sistema de signos. (sentido-
sistema)

Foucault: “Assim, estes três pares [função-norma, conflito-regra, significação-


sistema] cobrem, por completo, o domínio inteiro do conhecimento do homem” (p.
494).
- Sobre a dificuldade de fixar limites epistemológicos às ciências humanas (p. 494-495):
“todas as ciências humanas se entrecruzam e podem sempre interpretar-se umas às
outras, que suas fronteiras se apagam, que as disciplinas intermediárias e mistas se
multiplicam indefinidamente, que seu objeto próprio acaba mesmo por dissolver-se”
(Foucault).
- A superposição de modelos não é defeito metodológico, desde que os modelos sejam
ordenados e explicitamente articulados uns com os outros.
- Por sua vez, o entrecruzamento dos modelos não se justifica, para Foucault, pela
complexidade do ser (social) humano, mas sim pelo “jogo de oposição que permite
definir cada um dos 3 modelos em relação aos dois outros” (p. 496).

- Os 3 modelos poderiam representar/indicar toda a história das ciências humanas:


uma primeira fase inspirada no modelo biológico (Comte), a segunda fase no modelo
econômico (Marx) e a terceira no reino filológico/linguístico (Freud).

- Não obstante, como cada modelo é um par de fatores constituintes – função/norma,


conflito/regra, significação/sistema –, é possível se traçar a história das ciências
humanas em termos de uma reversão do primeiro termo de cada par, implicando o
avanço do segundo termo.
- Por exemplo, enquanto, no modelo biológico, o termo “função” prevalecia
sobre o termo “norma”, as explicações científicas da sociedade repousavam
mais sobre caracterizações como normalidade e patologia (o normal preserva
a função, a patologia a prejudica); enquanto o conflito prevalecia sobre a regra,
explicavam-se as interações sociais mais em termos de conflitos incontornáveis
ou inevitáveis.
- Numa segunda configuração, quando a análise passa para os termos das
normas, regras e sistemas, ocorre uma unificação epistemológica das
humanidades.

- Resta ainda o problema do papel da representação nas ciências humanas.


- O que é a representação? Representação é a manifestação da consciência do
indivíduo, o reflexo do espaço em que se situa de fato o sujeito
(auto)consciente: numa palavra, a condição do indivíduo humano de ser
expressão de uma subjetividade (propriedade de todo sujeito).

- Os pares função/norma, conflito/regra e significação/sistema, que abarcam


todo o campo das ciências humanas, são o que oferecem um saber possível,
pois que aproximado, do ser social:
- 1) O par função/norma mostra os termos aos quais a representação é possível
dentro de estruturas vitais, gerais e limitantes.
- 2) O par conflito-regra coloca a representação em contato com a dimensão da
necessidade, manifesta nos processos produtivos, no trabalho, na distribuição
e na (in)satisfação de interesses e demandas dessa natureza.
- 3) O par significação/sistema, finalmente, permite que nos aproximemos da
representação pela dinâmica da linguagem, dos significados compartilhados
pelos indivíduos, mas que preexistem à dimensão da consciência (introjetamos
tais referenciais, que se tornam parte do plano inconsciente, antes de nos
descobrirmos como seres conscientes e que se auto representam).

- FIM (Foucault, páginas grafadas no final do capítulo).


OBS: WEBER
- Individualismo metodológico: embora a sociologia estude fenômenos coletivos,
como ciência ela deve partir sempre do empírico concreto, ou seja, do indivíduo que
age em interação com outros e atribuindo sentidos a tais interações.
- Weber é contra conceitos coletivos porque estes dizem respeito apenas a
construções hipotéticas, mentais, que buscam representar teórica ou idealmente os
fenômenos sociológicos reais, mas que não existem senão como puras criações da
mente do pesquisador.
- Como a sociologia, para Weber, consiste fundamentalmente na análise científica
dos sentidos aos quais os agentes sociais reais atribuem às suas ações, considerar
conceitos coletivos como objetos da análise não faria sentido, pois que estes, além
de serem meras representações hipotético-ideais do movimento real, obviamente
não podem encerrar sentidos específicos a si próprios, pois que são entidades
“inanimadas” ou estáticas (a religião não “age”, e sim o religioso).

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