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VANICLÉIA S.

SANTOS
LEOPOLDO AMADO
ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI
TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE
ORGANIZADORES

CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E


PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX)
Comitê Científico da área Ciências Humanas
Presidente: Professor Doutor Fabrício R. L. Tomio (UFPR – Sociologia)
Professor Doutor Nilo Ribeiro Júnior (FAJE – Filosofia)
Professor Doutor Renee Volpato Viaro (PUC – Psicologia)
Professor Doutor Daniel Delgado Queissada (UniAGES – Serviço Social)
Professor Doutor Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (UFBA – Sociologia)
Professora Doutora Marlene Tamanini (UFPR – Sociologia)
Professora Doutora Luciana Ferreira (UFPR – Geografia)
Professora Doutora Marlucy Alves Paraíso (UFMG – Educação)
Professor Doutor Cezar Honorato (UFF – História)
Professor Doutor Clóvis Ecco (PUC-GO – Ciências da Religião)
Professor Doutor Fauston Negreiros (UFPI – Psicologia)
Professor Doutor Luiz Antônio Bogo Chies (UCPel – Sociologia)
Professor Doutor Mario Jorge da Motta Bastos (UFF – História)
Professor Doutor Israel Kujawa (PPGP da IMED – Psicologia)
Professora Doutora Maria Paula Prates Machado (UFCSPA- Antropologia Social)

Editor Chefe: Sandra Heck


Diagramação e Projeto Gráfico: Brenner Silva
Revisão de Texto: A autora
Revisão Editorial: Editora Brazil Publishing
DOI: 10.31012/978-65-5016-042-5

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


BIBLIOTECÁRIA: MARIA ISABEL SCHIAVON KINASZ, CRB9 / 626
Cultura, história intelectual e patrimônio na África
C968 Ocidental (séculos XV-XX) / organização de Vanicléia S. Santos ... [et al.] – Curitiba: Brazil
Publishing, 2019.
368p.: il.; 23cm

Vários colaboradores
ISBN 978-65-5016-041-8

1. África – História intelectual. 2. África – Aspectos culturais. 3. África – História, séculos XV


-XX. I. Santos, Vanicléia S. (org.). II. Amado, Leopoldo (org.). III. Marcussi, Alexandre Almeida
(org.). IV. Resende, Taciana Almeida Garrido de (org.).

CDD 960 (22.ed)


CDU 94(6)

Curitiba / Brasil
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG

REITORA
Sandra Regina Goulart Almeida

VICE-REITOR
Alessandro Fernandes Moreira

COMITÊ COORDENADOR – CEA/UFMG (2018-2019)


Marcos Antônio Alexandre – Coordenador
Francisca Izabel Pereira Maciel (Faculdade de Educação da UFMG)
Mauro Martins Teixeira (Instituto de Ciências Biológicas da UFMG)
Uende Aparecida Figueiredo Gomes (Escola de Engenharia da UFMG)
Vanicléia Silva Santos (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
UFMG)

CONSELHO CONSULTIVO
Amadeu Chitacumula (Instituto Superior de Educação do Huambo,
Angola)
Ana Cordeiro (Ilhéu Editora, Cabo Verde)
Odete Semedo (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Guiné-Bissau)
Rafael Díaz Díaz (Pontifícia Universidad Javeriana, Colômbia)
Sônia Queiroz (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)
Tukufu Zuberi (University of Pennsylvania, Estados Unidos)
Vanicléia Silva Santos (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)

REVISÃO
Charley Worrison
SÉRIE ESTUDOS AFRICANOS
DA UFMG

O Centro de Estudos Africanos, criado oficialmente em 2012, é


o primeiro centro de estudos da UFMG no âmbito do projeto de interna-
cionalização da universidade. O CEA/UFMG tem a missão de promover
a internacionalização da UFMG no continente africano, proporcionar o
diálogo entre especialistas em estudos africanos da UFMG e de outros
países, assim como fortalecer e divulgar as pesquisas desenvolvidas sobre
o tema no âmbito da UFMG.
A Série Estudos Africanos foi criada em 2017 com o objeti-
vo de publicar obras que envolvam redes de pesquisadores, brasileiros e
estrangeiros, e que desenvolvem trabalhos com diferentes perspectivas,
visando a formação de um pensamento multidisciplinar, contemplando a
diversidade étnica característica de nossos povos. O foco é dar material-
idade à cooperação Brasil–África que vem sendo construída pelo CEA/
UFMG desde sua criação.

VOLUMES PUBLICADOS
1. VANICLÉIA SILVA SANTOS (Org.). O Marfim no Mundo Moderno:
comércio, circulação, fé e status social (Séculos XV-XIX). CEA/UFMG e
Editora Prismas.
2. WELLINGTON MARÇAL. A defesa incansável da esperança: feições da
Guiné-Bissau na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila. CEA, Ku Si Mon
Editora e Editora Prismas.
3. RAISSA BRESCIA DOS REIS, TACIANA ALMEIDA G.
RESENDE E THIAGO MOTA (Orgs.). Estudos sobre África Ocidental:
dinâmicas culturais, diálogos atlânticos. UFMG e Editora Prismas.
4. RAISSA BRESCIA DOS REIS, TACIANA ALMEIDA G.
RESENDE (Orgs.). Cultura e Mobilização – Reflexões a partir do I
Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros.
5. FELIPE MALACCO. O Gâmbia no mundo Atlântico. Fulas, jalofos e
mandingas no comercio global Moderno (1580 - 1630). CEA/UFMG, Ku Si
Mon Editora e Editora Prismas.
6. CAROLINA PERPÉTUO CORRÊA. Tráfico negreiro, demografia e
famílias escravas em Santa Luzia, Minas Gerais, séc. XIX. CEA/UFMG e
Editora Prismas.
7. VANICLÉIA SILVA SANTOS, EDUARDO FRANÇA PAIVA E
RENÉ LOMMEZ GOMES (Orgs.). O comércio de marfim no Mundo
Atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX). CEA/UFMG e
Editora Clio.
8. VANICLÉIA SILVA SANTOS, EDUARDO FRANÇA PAIVA E
RENÉ LOMMEZ GOMES (Orgs.). O comércio de marfim no Mundo
Atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX), 2. ed. - E-book. CEA/
UFMG e Editora Clio.
9. VANICLÉIA SILVA SANTOS, LUÍS SYMANSKI E AUGUSTIN
HOLL. (Orgs.). Arqueologia e história da cultura material na África e na
diáspora Africana. CEA/UFMG, Ku Si Mon Editora e Publishing Brazil.
10. VANICLÉIA SILVA SANTOS, LEOPOLDO AMADO,
ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI, TACIANA ALMEIDA
GARRIDO DE RESENDE. (Orgs.). Cultura, história intelectual e patri-
mônio na África Ocidental (séc. XVI-XX)
AGRADECIMENTOS

Em março de 2017, o Centro de Estudos Africanos da UFMG


da Universidade Federal de Minas Gerais/CEA-UFMG, Brasil realizou
uma missão de prospecção ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa
(Inep), de Guiné-Bissau, com o foco de firmar um acordo de cooperação
bilateral entre as duas referidas instituições. A equipe brasileira era for-
mada por duas pessoas: a professora Vanicléia Silva Santos, então coorde-
nadora do Centro de Estudos Africanos, e o então Diretor da Biblioteca
Universitária, Wellington Marçal de Carvalho. Do lado da equipe gui-
neense estiveram presentes o então diretor do Inep, professor Leopoldo
Amado e alguns membros do Inep, tais como, a escritora e investigadora
Odete Semedo, o historiador João Paulo Có, e a pesquisadora e investiga-
dora do gabinete de gestão de projetos Marília Lima.
Após alguns dias de trabalho, deixamos a Guiné com um acordo
de cooperação que incluía a realização em nossas instituições de dois se-
minários internacionais sobre história da Guiné e da África Ocidental. O
primeiro seria, em 2017, em Belo Horizonte e o segundo seria em 2019,
em Bissau. O convênio ainda previa intercâmbio de professores e estu-
dantes, bem como a oferta de um Mestrado Interinstitucional/MINTER
aos pesquisadores do Inep. Seis meses depois da visita, foram realizadas as
primeiras atividades previstas no Acordo: aconteceu o primeiro seminário
internacional na UFMG e foi ofertada no Programa de Pós-Graduação
em História da UFMG uma disciplina sobre História Contemporânea da
Guiné pelo professor Leopoldo Amado.1
Para a efetivação do evento, contamos com diversos apoios do
Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, do Centro de
Estudos Africanos/CEA-UFMG, da Diretoria de Relações Internacionais
da UFMG e do Diretor do Inep, que não mediu esforços para honrar o
acordo de cooperação, contudo, a Guiné-Bissau e ele próprio foram dura-
mente penalizados por isso.

1 Resultados parciais desse trabalho foram objeto de notícias veiculadas na página eletrônica da
UFMG. Um exemplo delas pode ser visto no seguinte endereço: http://ufmg.br/comunicacao/
noticias/ufmg-e-instituto-de-pesquisas-da-guine-bissau-formalizam-acordo-de-cooperacao.
Também fomos apoiados pela Escola Superior Dom Helder
Câmara, que em diversos momentos, tem sido parceira da UFMG em
relação à pauta dos estudos africanos. Assim, nominalmente, agradecemos
aos professores Franclim J. Sobral Brito, José Adércio Leite Sampaio e
Kiwonghi Bizawu (coordenador do AfroDom), que também organiza-
ram, via Programa de Pós-Graduação em Direito da Dom Helder, o se-
minário “‘Direitos Culturais, Tradição e Meio Ambiente na África’” com
os professores Karin Barber e Paulo de Moraes Farias.
Reconhecemos igualmente todos os pesquisadores e pesquisa-
doras que aceitaram nosso convite e chegaram de diferentes partes da
África e da diáspora africana para compartilhar os resultados de suas
investigações, nomeadamente, Abdulai Sila (Escritor, Guiné-Bissau),
Carlos Cardoso (Instituto Amílcar Cabral da Guiné-Bissau), Erika
Bispo (Instituto Federal do Rio de Janeiro), Hassoum Ceesay (curador
do Gambia National Museum), João Paulo Có (Inep - Guiné-Bissau),
Leopoldo Amado (Inep - Guiné-Bissau), Odete Semedo (Inep - Guiné-
Bissau), Karin Barber (University of Birmigham), Felix Kaputu (UFMG/
Icon), Paulo de Moraes Farias (University of Birmigham), bem como a
todos os professores, estudantes de Pós-Graduação e de Graduação que
vieram apresentar suas pesquisas. Os professores Barber e Moraes Farias,
gentilmente aceitaram realizar o prefácio dessa obra.
Agradecemos ainda aos bolsistas do CEA/UFMG, Gabriel e
Marina, à Comissão Organizadora2 que fizeram com que tudo ocor-
resse conforme planejado, e à Comissão Científica3 pelo rigor na aná-
lise das propostas.
Por fim, penhoramos nossa gratidão à professora Sônia Queiroz,
integrante do Comitê Coordenador do CEA(2012-2018), cuja com-
petência foi fundamental para realização deste e de outros projetos do
Centro.

2 Alexandre Marcussi (UFMG), Felipe Silveira de O. Malacco (UFMG), Gabriel Alexandre


Prado de Oliveira (UFMG) Leopoldo Amado (Inep), Marília Lima (Inep), Taciana Garrido
(IFMG), Vanicléia Silva Santos (UFMG) e Wellington Marçal (UFMG).
3 Alexandre Marcussi (UFMG), Manuel Jauará (UFJF), Nazareth Fonseca (PUC-Minas), Silvio
Marcus Correa (UFSC), Sônia Queiroz (UFMG), Taciana Garrido (IFMG), Toby Green (King’s
College London) e Vanicléia Silva Santos (UFMG).
Things fall apart
Este livro foi idealizado quando havia um movimento em curso na
UFMG, de fortalecimento da vertente de internacionalização na perspec-
tiva sul-sul. Entre 2012 e 2017, vivíamos um momento de grandes trans-
formações na política e educação do Estado brasileiro, que levava grandes
investimentos do Brasil para o continente africano, e como parte de sua
política soft power, também investia recursos para as universidades brasileira
desenvolverem pesquisa em parceria com universidades africanas.
Neste contexto, o CEA realizou alguns dos mais importantes
debates com intelectuais africanos residentes na África e na diáspora e
aproximou-se de algumas das principais universidades africanas. Além
disso, em 2017, foi criado o selo editorial chamado “Estudos Africanos
na UFMG”, do qual este livro é o décimo volume. A maior parte é de co-
letâneas, resultantes dos eventos que realizamos com intelectuais africa-
nistas da África e da diáspora, em torno de temas escolhidos em parceria,
acompanhando uma agenda atualizada dos debates internacionais. A obra
Arqueologia e história da cultura material na África e na diáspora Africana (v.
9), por exemplo, é considerada a primeira sobre Arqueologia na África e
na diáspora Africana, publicada em língua portuguesa.
Para parafrasear o escritor nigeriano Chinua Achebe, autor da
premiada obra Things fall apart, a partir do final do ano de 2017, o mundo
desmoronou para os estudos africanos na UFMG. O corte dos recursos
de projeto de Internacionalização da UFMG (2014-2017) que estava
fortemente voltado para as relações Sul-Sul, trouxe uma triste realidade.
Somava-se a isso, a nível local, a mudança da administração da UFMG, e
a nível nacional, os retrocessos da política diplomática para com os países
africanos, pós golpe parlamentar de agosto de 2016.
Esse contexto levou ao protelamento da publicação desse livro.
O atraso não se deu apenas pela perda da sala onde funcionava o Centro
de Estudos Africanos ou pela desarticulação do staff que trabalhava para
o CEA4 e outros centros, mas pela falta de vontade política da UFMG

4 De 2014 a 2018, o CEA possuía um acervo de Estudos Africanos no 4o. Andar da Biblioteca
Central da UFMG, vinculado à DRI/ Diretoria de Relações Internacionais da UFMG. Em
para com o continente africano. No plano Sul-Sul, a América Latina foi
mantida na agenda da universidade, em nome de uma agenda regional;
mas a África foi anulada e o Norte voltou a ocupar o posto absoluto
na cartela de preferências do “diálogo acadêmico de excelência”. Assim,
a UFMG retomava o seu lugar do passado e agora vislumbra apenas se
destacar nos rankings internacionais a partir do fortalecimento da relação
com Europa e América do Norte.
Como a crônica de uma morte anunciada, o CEA/UFMG está
sendo lentamente colocado em algum limbo. Mas, ressalte-se, teve um pa-
pel fundamental na produção de um conteúdo essencial para um melhor
conhecimento da história do continente africano e de sua relação com o
mundo. Assim, este livro é mais um dos resultados deste esforço do CEA
em mostrar a força das pesquisas produzidas em diálogo com africanistas
nacionais e estrangeiros, especialmente os africanos e africanas.

julho de 2018, a DRI solicitou a sua disvinculação do referido acervo e o doou para a Biblioteca
Central da UFMG. Desde então, o CEA não possui mais um local de funcionamento, tendo
todas as suas atividades desarticuladas e o acervo tornou-se parte das coleções dos Acervos
Especiais da referida Biblioteca.
PREFÁCIO

Nós, a antropóloga e o historiador que assinam este prefácio,


participamos ativamente em Belo Horizonte, em outubro de 2017, da
V Jornada do Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). O fulcro da jornada foi o I Seminário
Internacional organizado pelo CEA em parceria com o Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas (Inep) da Guiné-Bissau. “Patrimônio, História
Intelectual e Cultura na África Ocidental” foi o tema do seminário. Nas
várias sessões deste houveram audiências numerosas, nem sempre restritas
a professores e alunos.
Fomos testemunhas diretas da riqueza das discussões durante o
seminário. Não esqueceremos aquela robusta evidência da vitalidade dos es-
tudos africanos e do estudo da história sul-atlântica conduzidos dos dois la-
dos do oceano. Ademais, ficou claro que o debate e a cooperação entre estu-
diosos africanos e brasileiros enriquecem as pesquisas e fortalecem as insti-
tuições acadêmicas em ambos os continentes. Em reconhecimento disso, ao
final do seminário foi assinado um Acordo de Cooperação entre a UFMG
e o Inep, que prevê a realização de seminários bienais no Brasil e na Guiné-
Bissau. Essa é uma notícia alvissareira, cuja enorme significação irá sendo
revelada ao longo dos anos. Merecem parabéns o Inep e o Departamento
de História da UFMG pelo descortino que manifestam com essa iniciativa
pioneira. Juntam-se em aliança profícua duas instituições de vanguarda, que
atraem toda uma nova geração de estudiosos e estudiosas.
Embora a cooperação da UFMG com os países africanos este-
ja no momento mais centrada em países lusófonos na África continen-
tal, na verdade ela já se ramifica através de outros países. Do seminário
de outubro de 2017 participaram pesquisadores da Nigéria, República
Democrática do Congo, da Gâmbia, de Cabo Verde, da Guiné e do
Camarões. Resultados de pesquisas em arquivos no Senegal, na Gâmbia,
em Cabo Verde, e em Portugal vieram à luz durante os debates. Essa di-
versificação só tenderá a crescer a partir do núcleo inicial. O importante
agora é sustentar esse núcleo.
O presente volume reúne versões revistas de vários dos trabalhos
apresentados em Belo Horizonte. Não nos atribuímos aqui a tarefa de
resumi-las ou de analisá-las em detalhe, mas buscaremos rapidamente sa-
lientar alguns dos seus temas, sobretudo aqueles que estabelecem ligações
entre diferentes capítulos.

Memória, e agência cultural africana (mesmo sob o domínio colonial)


Em sua contribuição sobre os “Panos de Pente”, a celebrada po-
eta e antropóloga guineense Odete Semedo nos oferece uma trama de
perspicazes análises e deciframentos dos laços entre tecidos, memória e
oralidade nas tradições da Guiné-Bissau. Ela nos faz compreender que
é possível dizer que os belíssimos panos artesanais lá produzidos consti-
tuem “uma das memórias coletivas” desse país “multi-étnico-linguístico
e pluricultural”. Sejam eles de luto ou de festa, “os panos falam” e são
aparentados com a poesia e as cantigas. O capítulo contém as palavras
de uma cantiga em crioulo, daquelas cantigas que colonos desdenhosos
chamavam de “cantigas de preto”, mas cuja poderosa beleza conquistava e
colonizava a sensibilidade, e despertava a empatia, de observadores portu-
gueses como o Cônego Marques de Barros.
Em “Nesse angu tem mosquitos”, Wellington Marçal de
Carvalho faz uma valiosa análise crítica do viés ideológico colonialista do
Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, sublinhando ao mesmo tempo que
essa publicação é “ainda hoje, fonte de informação preciosa no campo da
administração colonial e no âmbito cultural”, portanto preserva uma parte
da memória histórica do país. E o autor chama a atenção dos leitores e
leitoras para aquilo que, na linguagem colonial, foi chamado de “cafrea-
lização”, isto é, as situações em que colonos na Guiné, a despeito da pre-
sunção de superioridade cultural europeia, eram na verdade colonizados e
assimilados pelas culturas locais em lugar de aportuguesá-las.
Em “Turismo memorial na África ocidental: diálogos possíveis
entre história pública e história leiga”, Sílvio Marcus de Souza Correa de-
senvolve uma instigante abordagem, dotada de sólido embasamento teo-
rético e bibliográfico, dos “lugares de memória” ligados ao tráfico atlântico
de pessoas escravizadas que têm sido monumentalizados na região nas
últimas décadas. O capítulo é ainda enriquecido pelas experiências vividas
pelo autor durante visitas suas a dois desses sítios monumentalizados, a
maison des esclaves de Agbodrafo (no Togo), e a ainda mais famosa maison
des esclaves na ilha de Gorée, no Senegal.

Epistemologias do Sul
Carlos Cardoso, em seu “Produção de conhecimento”, mobiliza
sua vasta bagagem intelectual para conduzir uma investigação crítica da
produção de conceitos na África e no “Sul global”. Adota uma produtiva
perspectiva histórica e dialoga com a obra de Boaventura de Sousa Santos,
Walter Mignolo, Achille Mbembe, e outros.
Luana Akinruli e Samuel Ayobami Akinruli, em “Descolonizando
práticas e saberes”, também trabalham esse importante tema, mas voltan-
do-se em particular para a Nigéria e, sobretudo, para o povo Yorùbá, sua
herança literária, e sua produção intelectual recente.

Cabo Verde e o partido pró-Brasil, e a África na retórica política


do baiano Cipriano Barata
Eduardo Pereira contribui um capítulo fascinante sobre “Métodos
e fontes de pesquisa em Cabo Verde: o caso da revolta dos rendeiros do
interior da ilha de Santiago (1822-1841)”. É uma contribuição extrema-
mente bem-vinda, que analisa as relações entre arquivo e sociedade e as
disputas pela terra em Cabo Verde. Ademais, o capítulo lança luz sobre a
formação do “partido pró-Brasil” no interior da ilha de Santiago.
Alexandre Bellini Tasca e Felipe Malacco, em outra contribui-
ção de grande interesse, “Encontros atlânticos nas páginas do Sentinela da
Liberdade”, examinam a mobilização de dados da história africana pelo jor-
nalista e ativista político Barata para debates no Brasil na década de 1820.

Colonialismo e relacionamentos amorosos


No capítulo “Fatoo Khan, a amante do comissário colonial”,
Hassoum Ceesay, Curador do Museu Nacional da Gâmbia, estuda o en-
trecruzamento de relações íntimas e relações de poder entre colonizadas
e oficiais coloniais no âmbito da Gâmbia na primeira metade do século
vinte. Seu texto amplifica a muito aplaudida conferência de encerramento
que pronunciou no seminário de Belo Horizonte.

Educação islâmica na Senegâmbia


Thiago Henrique Mota, em “Educação islâmica e patrimônio
intelectual: o desenvolvimento do método de aprendizagem corânica na
Senegâmbia, séculos XV a XX, apresenta sobre o assunto um estudo mui-
to bem fundamentado e de marcada originalidade. O capítulo incorpora
os resultados de pesquisas em arquivos em Banjul, Dakar e Lisboa, e se
apoia também em uma vasta bibliografia.

Literatura oral e escrita, e o tema da identidade nacional na obra


do renomado escritor guineense Abdulai Sila
O capítulo “Tradições orais nigerianas” de Felix U. Kaputu é um
irresistível convite à pesquisa e reflexão a respeito da literatura oral africa-
na e da atual, e potencial, contribuição da herança oral à literatura escrita
e às artes em geral, no continente e no resto do mundo. O autor dedica
particular atenção à famosa literatura impressa do mercado de Onitsha.
O tratamento do tema da identidade nacional por Abdulai Sila
está duplamente apresentado neste volume. De um lado, temos a confe-
rência do próprio Sila sobre “O papel do escritor na construção da iden-
tidade nacional”), que ouvimos com prazer durante o seminário de Belo
Horizonte, e cujo texto será lido agora com idêntico prazer. Do outro lado,
o capítulo de Suely Santos Santana oferece uma aguda “Leitura do pan-a-
fricanismo na trilogia romanesca de Abdulai Sila”, e analisa as estratégias
mobilizadas pelo autor para a “(re)construção da nação bissau-guineense”.
Bastará esta enumeração levemente comentada do conteúdo do
volume para que os leitores e leitoras tenham uma primeira ideia do seu
largo escopo e grande interesse.
Boa leitura!
Karin Barber,
Membro da Academia Britânica,
Centennial Professor of Anthropology, London School of Economics,
e Emeritus Professor of African Cultural Anthropology, University
of Birmingham.

Paulo Fernando de Moraes Farias,


Ex- Coordenador do Setor de Estudos Históricos do
Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal
da Bahia,
Membro da Academia Britânica,
Membro Correspondente da Academia de Letras da Bahia,
Honorary Professor of African History, University of Birmingham.
ABSTRACT

This book presents a number of studies on topics related to cultur-


al phenomena, intellectual production and social memory in West Africa,
in different societies and times. West Africa comprises many different so-
cieties (located between the Mediterranean Sea to the north, the Atlantic
Ocean to the west and south, and Lake Chad to the east) and is charac-
terized by a rich and long history of cultural exchanges and by complex
oral and written traditions that predate the contacts with European mer-
chants in the Atlantic by centuries. The development of commercial em-
pires, the multiple interactions between different religions and the variety
of forms of resistance to colonial and neo-colonial domination all testify
to the complexity and profusion of West African intellectual and cultur-
al production. Studies here presented challenge consolidated dichotomies
such as those that oppose intellectual work to oral tradition or to material
culture, demanding that Intellectual History is considered in articulation to
Cultural Heritage and to broader aspects of social life and political thought.
By choosing different themes in a broad geographical and chronological
scale, the authors illuminate the fluid borders and the vigorous exchanges
between intellectual, aesthetic and artistic productions, social memory, and
the material dimensions of West African societies.
SUMÁRIO

FONTES, MÉTODOS E TEORIAS PARA REPENSAR A HISTÓRIA


CULTURAL DO OESTE AFRICANO ............................................... 23
Vanicléia Silva Santos; Leopoldo Amado; Alexandre Almeida Marcussi & Taciana Almeida
Garrido de Resende

PARTE 1
HISTÓRIA INTELECTUAL / INTELECTUAIS, LITERATURA E
PUBLICAÇÕES NA ÁFRICA OCIDENTAL...................................... 43

CAPÍTULO 1
PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E O DESAFIO DA TEORIZAÇÃO
EM CIÊNCIAS SOCIAIS: A CONTRUBUIÇÃO DOS INTELECTUAIS DA
ÁFRICA OCIDENTAL ............................................................................................45
Carlos Cardoso

CAPÍTULO 2
DESCOLONIZANDO PRÁTICAS E SABERES: UM EXERCÍCIO DE
REFLEXÃO SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS NA ÁFRICA OCIDENTAL
– O CASO DA NIGÉRIA E DO POVO YORÙBÁ ...............................................67
Luana Carla Martins Campos Akinruli; Samuel Ayobami Akinruli

CAPÍTULO 3
O PAPEL DO ESCRITOR NA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE NACIONAL ...................................................................................95
Abdulai Sila

CAPÍTULO 4
A ÁFRICA DEVE UNIR-SE: LEITURA DO PAN-AFRICANISMO NA
“TRILOGIA” ROMANESCA DE ABDULAI SILA ..........................................105
Suely Santos Santana

CAPÍTULO 15
ENTRE A ÁFRICA OCIDENTAL E O IMPRESSO BRASILEIRO:
ENCONTROS ATLÂNTICOS NAS PÁGINAS DO SENTINELA
DA LIBERDADE .....................................................................................................137
Alexandre Tasca & Felipe Malacco

CAPÍTULO 6
NESSE ANGU TEM MOSQUITOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
O BOLETIM CULTURAL DA GUINÉ PORTUGUESA ..................................161
Wellington Marçal de Carvalho
CAPÍTULO 7
FATOO KHAN, A AMANTE DO COMISSÁRIO COLONIAL: UM
RELACIONAMENTO AMOROSO NA GÂMBIA COLONIAL ..................183
Hassoum Ceesay

PARTE 2
PATRIMÔNIO E CULTURA NA ÁFRICA OCIDENTAL ............... 213
CAPÍTULO 8
TRADIÇÕES ORAIS NIGERIANAS: HERANÇA HISTÓRICA, UM
PATRIMÔNIO PARA A LITERATURA LOCAL E GLOBAL E PARA
AS ARTES .................................................................................................................... 215
Felix U. Kaputu

CAPÍTULO 9
EDUCAÇÃO ISLÂMICA E PATRIMÔNIO INTELECTUAL:
O DESENVOLVIMENTO DO MÉTODO DE APRENDIZAGEM
CORÂNICA NA SENEGÂMBIA (SÉCULOS XV A XX) ................................249
Thiago Henrique Mota

CAPÍTULO 10
MÉTODOS E FONTES DE PESQUISA EM CABO VERDE: O CASO DA
REVOLTA DOS RENDEIROS DO INTERIOR DA ILHA DE SANTIAGO
(1822-1841) ..............................................................................................................275
Eduardo Adilson Camilo Pereira

CAPÍTULO 11
TURISMO MEMORIAL NA ÁFRICA OCIDENTAL: DIÁLOGOS
POSSÍVEIS ENTRE HISTÓRIA PÚBLICA E HISTÓRIA LEIGA...............317
Sílvio Marcus de Souza Correa

CAPÍTULO 12
PANOS DE PENTE, TRADIÇÃO, CANTO E POESIA: SIMBOLISMO E
LUGAR DA MEMÓRIA COLETIVA GUINEENSE .......................................339
Odete Semedo

SOBRE OS AUTORES E ORGANIZADORES ............................... 363


FONTES, MÉTODOS E TEORIAS PARA
REPENSAR A HISTÓRIA CULTURAL DO
OESTE AFRICANO

Vanicléia Silva Santos


Leopoldo Amado
Alexandre Almeida Marcussi
Taciana Almeida Garrido de Resende

Apresentação do tema
Ao pensarmos em história intelectual da África Ocidental, ge-
ralmente somos remetidos para a produção escrita em árabe, em que se
destacam autores clássicos como al-Bakrî (século XI), al-Idrîsî (século
XII), Ibn Battûta, al-‘Umarî, Ibn Khaldhûn (século XIV), al-Sa‘dî, au-
tor do Ta’rîkh al-Sûdân, e Ibn al-Mukhtâr e seu neto, que escreveram o
Ta’rîkhal-Fattash, os dois últimos elaborados por volta de 1655.
Além dos escritos em árabe de autores andaluzes e de outros que
nasceram ou viveram no oeste da África, como Leo Africano (c. 1494 - c.
1554), por exemplo, também são bem conhecidos os autores africanos
que escreveram em línguas europeias. Desde o século XV, acentuou-se a
produção de documentos de autoria de africanos do Oeste, em línguas
ocidentais tais como André Alvares Almada (c. 1594)5, André Donelha6
e Francisco Lemos Coelho7 (século XVII), nascidos em Cabo Verde. A
coletânea Monumenta Missionária Africana reúne várias cartas produzidas

5 ALMADA, André Álvares de. Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio de
Sanagá até os baixos de Santa Ana de todas as nações de negros que há na dita costa e de seus costumes,
armas, trajos, juramentos, guerras…, [ed. do Ms. 603 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, de
1594], leitura, introdução e notas de António Brásio, Lisboa, Editorial L. I. A. M., 1964.
6 DONELHA, André. Descrição da Serra Leioa e dos rios de Guiné do Cabo Verde (1625). Introdução,
notas e apêndices por Avelino Teixeira da Mota e P. E. H. Hair, Lisboa, Junta de Investigações
Científicas do Ultramar, 1977.
7 COELHO, Francisco de Lemos. Discripção da Costa de Guiné e situação de todos os portos, e rios della;
e roteyro para se poderem navegar todos seus rios, 1684: BNL, Cód. 454. Pub. por Damião PERES, Duas
Descrições Seiscentistas da Guiné de Francisco de Lemos Coelho, 2ª ed., Lisboa, Academia Portuguesa da
História, 1990.
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24 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

por soberanos da referida região ao longo dos séculos XVI e XVII.8 Na


realidade, a produção de escritos na costa ocidental aumentou considera-
velmente depois das missões cristãs no oeste africano. Avançando mais na
cronologia, alguns dos mais conhecidos nomes da produção oitocentista
foram os religiosos, nascidos na atual Nigéria, Samuel Ajayi Crowther
(1809-1891), autor de várias obras sobre língua iorubá e de registros de
expedições na região do Niger; e Samuel Johnson (1846 –1901), autor do
clássico The History of the Yorubas (1921).
Contudo, essa produção intelectual no oeste africano não se en-
cerra nos autores que nasceram no continente africano, pois há escritos
de autores afrodescendentes que produziram suas obras em contextos
africanos, por exemplo, o padre baiano Vicente Ferreira Pires, que esteve
no Daomé no final do século XVIII9; Edward Blyden (1832-1912), que
viveu a maior parte da vida na Libéria como diplomata, político e escritor
e tem uma produção extensa; e outros. Há ainda os escritos de africanos
vitimados pelo tráfico transatlântico de escravizados, que escreveram em
contexto diaspórico sobre suas terras de origem, a exemplo de Mohamad
Baquaqua10 (c. 1820 – 1860) e Ouladah Equiano11, mais conhecido como
Gustavo Vassa (1745-1797).
Recentemente, o tema da história intelectual africana tem se
concentrado nos intelectuais que estudaram nas escolas coloniais e que
continuaram seus estudos nas respectivas metrópoles. Alguns destes es-
tudantes oeste-africanos fizeram a diferença em seus lugares de origem
(as antigas colônias) e em seus Estados-nação, tais como Paul Hazoumé
(1890-1980), Léopold Sédar Senghor (1906-2001), Nkwame Krumah
(1909-1972), Alioune Diop (1910-1980), Abdoulaye Sadji (1910-1961),
Mamadou Dia (1911-2009), Eduardo Mondlane (1920-1969), Agostinho

8 BRASIO, António Pe (Org). Monumenta Missionaria Africana (15 v.). (Sécs. XV, XVI, XVII).
Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1988.
9 PIRES, Vicente Francisco. Viagem de África em o Reino de Dahomé (1800). São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1957.
10 BAQUAQUA, Mahommah G., Biography of Mahommah G. Baquaqua. A native of Zoogoo, in
the interior of Africa. Edited by Samuel Moore, Esq. Detroit: George E. Pormery and Co., Tribune
Office, 1854.
11 VASSA, Gustavo. The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, Or Gustavus Vassa,
The African, by Olaudah Equiano. London, 1789.
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 25

Neto (1922-1979), Amílcar Cabral (1924-1973) etc. No Brasil, este tema


tem sido dos mais estudados nesta década.12
Os exemplos dados acima não significam que a produção escrita
para a região se resuma às línguas europeias e ao árabe. Prova disso são os
já clássicos trabalhos de Karin Barber e Paulo Fernando de Moraes Farias,
autores que, juntos, prefaciam este livro. Ambos se debruçaram sobre fontes
não-ocidentais para analisar o passado de sociedades oeste-africanas. Barber
concentrou seus estudos na cultura oral e escrita, com especial atenção aos
iorubás13, enquanto Farias se dedicou aos estudos sobre o Sahel da África
Ocidental, por meio do cruzamento de fontes escritas medievais e de infor-
mações escritas tanto em grafites árabes quanto em registros de inscrições
epigráficas em tifinagh, escrita tuaregue e recolocou os dados epigráficos

12 Para citar alguns trabalhos recentes das duas últimas décadas:  BARBOSA, Muryatan. A
África por ela mesma: perspectiva africana na História Geral da África (Unesco). Tese (Doutorado
em História Social) – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012; GOMES, Raquel
Gryszczenko Alves. Uma feminista na contramão do colonialismo.  Olive Schreiner: literatura
e a construção da nação Sul-Africana, 1880-1902. São Paulo: FAPESP/Annablume, 2013;
CARVALHO FILHO, S. de A. Pepetela: Fragmentos de uma trajetória. Boletim Tempo Presente
(UFRJ), v. 2, p. 14-28, 2013; SANTANA, S. S. Narrativas da Guiné-Bissau: a nação na trilogia
romanesca de Abdulai Sila. 1. ed. Salvador-Ba: EDUNEB, 2014; MORENO, Helena Wakim.
Voz d’Angola clamando no deserto: protesto e reivindicação em Luanda (1881-1901). Dissertação
(Mestrado em História Econômica) – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014;
REIS, Brescia Raissa. Négritude em dois tempos: emergência e instituição de um movimento (1931-
1956). Dissertação (Mestrado em História Social) – FAFICH, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2014; REIS, Brescia Raissa. África Imaginada: história intelectual, pan-
africanismo, nação e unidade africana na Présence Africaine (1947-1966). Tese (Doutorado em
História Social – dupla titulação) –Universidade Federal de Minas Gerais e Université Michel de
Montaigne Bordeaux 3, Belo Horizonte, 2018; RESENDE, T. A. G. Isso não é África, é Cabo Verde:
o movimento claridoso e a busca por uma identidade crioula. 1. ed. Rio de Janeiro: Multifoco,
2015; MARCUSSI, Alexandre A. Personalidade, raça e nação na África pós-colonial: alguns
apontamentos a partir das ideias de Kwame Nkrumah. In: REIS, Raissa Brescia dos; RESENDE,
Taciana Almeida Garrido de; MOTA, Thiago Henrique. (Org.). Estudos sobre África Ocidental:
dinâmicas culturais, diálogos atlânticos. 1. ed. Curitiba: Editora Prismas, 2016, p. 259-286;
NASCIMENTO, Washington Santos. Políticas coloniais e sociedade angolana nas memórias e
discursos do escritor Raul David. ANOS 90, v. 23, p. 265-289, 2017; CARVALHO, W. M. de. A
defesa incansável da esperança: feições da Guiné-Bissau na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila. 1. ed.
Belo Horizonte - Bissau: CEA/UFMG; Ku Si Mon, 2017; ALVARADO, Guillermo Antonio
Navarro. África deve-se unir? A formação da teorética da Unidade e a Imaginação da África nos marcos
epistêmicos Pan-negristas e Pan-africanos (Séculos XVIII-XX). Tese (Doutorado em História
Social) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
13 Outras obras referenciais de Karin Barber: I Could Speak Until Tomorrow: Oriki, Women and
the Past in a Yoruba Town (1991); The Generation of Plays: Yoruba Popular Life in Theatre (2000); The
Anthropology of Texts, Persons and Publics (2007); Print Culture e First Yoruba Novel (2012)
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(encontrados em rostos de rocha, lápides inscritas, escrita decorativa e pie-


dosa nas paredes de ruínas abandonadas e outros registros monumentais)
no centro do debate historiográfico, fazendo com deixassem de ser uma
fonte subsidiária das fontes árabes.14
Por outro lado, a abordagem da história intelectual da África
Ocidental pretendida por esta coletânea e oriunda de um grande semi-
nário, é apreender outras perspectivas de narrativas e formas de pensar
o passado e a contemporaneidade que não necessariamente se limitam à
escrita, como mostra o seminal capítulo escrito por Odete Semedo, que
encontra nos panos da Guiné-Bissau uma linguagem visual por meio da
qual se expressa um pensamento sobre a sociedade local.
As dimensões não letradas do pensamento intelectual africano
têm sido alvo de investigação há bastante tempo, tanto por meio dos es-
tudos da cultura material, quando pela tradição oral. O uso da cultura
material como fonte para produção de conhecimento sobre as socieda-
des humanas emergiu no começo do século XIX. Nas últimas décadas,
os estudos de cultura material emergiram como um campo de natureza
transdisciplinar focado na produção material da humanidade, tanto pas-
sada quanto contemporânea, envolvendo, além da arqueologia e da an-
tropologia, disciplinas como a história, a geografia cultural, a sociologia,
a museologia e os estudos de ciência e tecnologia.15 A ênfase nos estudos
de cultura material está relacionada ao reconhecimento de que as relações
humanas são simultaneamente sociais e materiais.
Nesse sentido, o mundo material passou a ser reconhecido como
o meio de construção da memória, dando coerência e continuidade à vida
social e, assim, à reprodução cultural.16 Um exemplo disso são os estudos
sobre as placas de bronze e as presas de marfins do Reino do Benin, bem
14 MORAES FARIAS, Paulo Fernando de. Local Landscapes and Constructions of World
Space: Medieval InscriptionsMedieval Inscriptions, Cognitive Dissonance, and the Course of the
Niger. Afriques [online], 02 | 2010. Consultado em 13 abril 2019. Disponível em: URL : http://
journals.openedition.org/afriques/896 ; DOI : 10.4000/afriques.896
15 HICKS, Dan & BEUADRY, Mary C. Introduction: material culture studies: a reactionary
view. In: HICKS, Dan & BEAUDRY, Mary C. (Orgs.). The Oxford Handbook of Material Culture
Studies. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 1-21; LIMA, Tania A. Cultura material: a
dimensão concreta das relações sociais. Boletim do Museu Paranaense Emílio Goeldi, v. 6, n. 1, p.
11-23, 2011.
16 GOSDEN, Chris. Anthropology and Archaeology: A Changing Relationship. Londres, Nova
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 27

como os olifantes, produzidos por artistas do Reino do Benin e de Serra


Leoa. Esta produção material tem sido utilizada como principal recur-
so para a escrita da história de sociedades oeste-africanas, juntamente
com outras fontes.17 As pesquisas realizadas no âmbito do projeto inter-
nacional “African Ivories in the Atlantic World: a reassessment of Luso-
African ivories” tem revelado aspectos importantes sobre religiosidade,
comércio, política, hierarquais, transformações ocorridas no contato com
os europeus, grandes episódios históricos e vários outros assuntos.18
A Outra dimensão não-letrada do pensamento intelectual afri-
cano reside na chamada “tradição oral”, um dos objetos privilegiados dos
estudos sobre sociedades africanas, pelo menos desde as clássicas análises
do malinês Amadou Hampâté-Bâ,19 que chamou a atenção para o caráter
sagrado e vivo da oralidade e para a excepcional densidade semântica e
performática do falar nas sociedades africanas. É verdade que, no seio de
uma historiografia do passado africano eivada de um tom heroico,20 as
tradições orais foram vistas por vezes como repositórios transparentes de
uma memória cristalizada dos fatos pretéritos, transmitidas e preservadas
ao longo dos séculos, de um tal modo que sua suposta “autenticidade”, se
comparada à alegada “distorção” das fontes europeias, tornaria possível
uma reconstrução mais fiel de um passado africano. Abordagens metodo-
lógicas mais críticas, sem desprezar a enorme potencialidade da oralidade
para a historiografia do continente africano, evidenciaram o caráter per-
formático e ancorado no presente desses relatos, além das surpreendentes
transformações da memória social operadas pelos relatos orais, exigindo,

York: Routledge, 1999, p.120; McCALL, John C. Structure, agency, and the locus of the social:
why post structural theory is good for archaeology. In: ROBB, John (org.). Material Symbols:
Culture and Economy in Pre-History. Carbondale: Southern Illinois University, 1999, p.16-20.
17 CURNOW, Kathy. Ivory as Cultural Document: The Crushing Burden of Conservation.
Curator, 61: 61-94, 2018.
18 SANTOS, Vanicléia Silva, PAIVA, Eduardo França; GOMES, René Lommez (Org.). O
comércio de marfim no Mundo Atlântico: circulação e produção (séculos XV ao XIX). Belo Horizonte:
Clio Gestão Cultural e Editora, 2018 (versão e-book).
19 HAMPÂTÉ BÁ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História geral da
África: v. 1: Metodologia e pré-história da África. 3ª ed. Trad. MEC/Centro de Estudos Afro-
Brasileiros da UFSC. São Paulo/Brasília: Cortez/Unesco, 2011, p. 167-212.
20 Veja-se, a esse respeito, LOPES, Carlos. A pirâmide invertida - historiografia africana feita
por africanos. In: ACTAS do Colóquio Construção e Ensino da História da África. Lisboa: Linopazas,
1995, p. 21-29.
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para sua análise, um conjunto de procedimentos metodológicos familiar


ao historiador e aplicável a uma variada tipologia de fontes.21 Afinal, as
tradições orais africanas passaram a ser vistas de forma semelhante a ou-
tros tipos de narrativas sociais da memória, com sua riqueza, sua criativi-
dade, sua sedução e seus perigos para o estudioso.22
Apesar dessa tradição de reflexão sobre os relatos orais, e a des-
peito da centralidade da questão nos projetos de reconstrução do passa-
do africano, o tema ainda é relativamente sub-representado nas análises
historiográficas acerca da produção intelectual africana, que tendem a se
apoiar majoritariamente nas obras escritas. Parte dos motivos, é claro, diz
respeito às dificuldades metodológicas impostas pelo trabalho com a tra-
dição oral africana, mas isso não é tudo. Para alguns estudiosos, o universo
da oralidade africana, caracterizado pelas estratégias conciliatórias e pela
produção de consensos, seria essencialmente resistente ao tipo de pensa-
mento antagonístico e sistemático que, via de regra, é o objeto da história
intelectual.23 Uma tal postura dicotômica, que encara o trabalho do inte-
lectual letrado e o do erudito da oralidade como essencialmente distintos,
tem sido relativizada por perspectivas que enfatizam a criatividade e o
caráter profundamente inovador das práticas da oralidade,24 bem como
sua articulação, em muitos casos, com a esfera do pensamento letrado.
Neste volume, um exemplo eloquente dessas articulações que
borram a fronteira entre o oral e o escrito no trabalho intelectual é a con-
tribuição de Felix Kaputu, que evidencia como a tradição oral nigeriana
se constituiu, ao longo do século XX, como fértil fonte de inspiração para
obras escritas de visibilidade mundial. Analogamente, a contribuição de
Luana Akinruli e Samuel Akinruli sobre a tradição intelectual iorubá des-
taca o intercâmbio entre a oralidade e teoria social acadêmica. De modo

21 Veja-se, por exemplo, GOODY, Jack. The interface between the written and the oral. Cambridge:
Cambridge University Press, 1991.
22 THIAW, Ibrahima. História, cultura material e construções identitárias na Senegâmbia. Afro-
Ásia [online]. 2012, n. 45 [cited 2019-02-17], pp. 9-24.
23 APPIAH, Kwame Anthony. Velhos deuses, novos mundos. In: Na casa de meu pai: a África na
filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 155-192.
24 Veja-se, por exemplo, JANZEN, John M. Ngoma: discourses of healing in Central and
Southern Africa. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1992, para uma abordagem
bastante pioneira.
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 29

semelhante, várias das análises apresentadas nesta coletânea contemplam


uma concepção ampla de história intelectual e de suas relações com a
oralidade, com o patrimônio cultural e com as práticas sociais, situando a
produção intelectual no seio de um universo social mais amplo.
Este livro contém 12 capítulos, divididos em duas partes. A pri-
meira parte, “história intelectual, intelectuais, literatura e publicações na
África Ocidental” tem sete capítulos e trata principalmente da produção
intelectual realizada no oeste da África por intelectuais africanos. A se-
gunda parte, “patrimônio e cultura na África Ocidental”, tem cinco capí-
tulos e está concentrada no debate sobre patrimônio e cultura na África
Ocidental, em sua concepção mais ampla.
Abrindo a primeira parte, temos o capítulo de autoria do histo-
riador de Guiné-Bissau, Carlos Cardoso e intitula-se “Produção de co-
nhecimento e o desafio da teorização em Ciências Sociais: a contribuição
dos intelectuais da África Ocidental”. Trata-se de uma reflexão epistemo-
lógica de fôlego sobre a produção de conhecimentos em Ciências Sociais
na porção ocidental do continente africano, a partir de uma preocupação
qualitativa, nomeadamente ligada à produção de teorias nos trabalhos
acadêmicos. Sua análise impressiona pela erudição e pela abrangência da
discussão, que inclui não apenas uma abordagem de matrizes do pensa-
mento africano ocidental atual, mas ainda uma análise das alternativas
epistemológicas oferecidas pelo saber africano de meados do século XX
(com ênfase para as teorias de Cheikh Anta Diop) e das críticas episte-
mológicas elaboradas pelo grupo de intelectuais associados ao pensamen-
to decolonial na América Latina. O autor avalia que o conhecimento re-
cente produzido por cientistas sociais da África Ocidental, em sua maior
parte, tem enfatizado a recolha de dados, abstendo-se do trabalho de ela-
boração ou de discussão sistemática de teorias. Isso teria como consequ-
ência uma dificuldade enfrentada pelo conhecimento acadêmico africano
para se libertar do papel de reprodutor de matrizes epistemológicas de
outras regiões do globo.
O capítulo de Luana Akinruli e Samuel Akinruli, intitulado
“Descolonizando práticas e saberes: um exercício de reflexão sobre os es-
tudos culturais na África Ocidental – o estudo de caso da Nigéria e do
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30 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

povo Yorùbá”, também se situa na esfera de uma reflexão sobre as rela-


ções do pensamento africano com matrizes epistemológicas globais. Os
autores apresentam uma reflexão dividida em duas partes: uma primeira
abordagem panorâmica da emergência dos chamados “estudos pós-colo-
niais” no mundo acadêmico internacional a partir dos anos 1980, e uma
descrição de alguns intelectuais ligados ao pensamento (acadêmico ou li-
terário) produzido por autores iorubás desde o final do século XIX. A su-
gestiva ideia dos autores é a de que o conhecimento produzido por iorubás
poderia contribuir para o projeto epistemológico de “descolonização do
saber” da crítica pós-colonial, na condição de um caso ou exemplo de sa-
ber produzido localmente a partir de categorias que não advêm de formas
ocidentais de saber.
O capítulo de Abdulai Sila, “O papel do escritor na construção
da identidade nacional”, tem como ponto central o tema das identidades
no continente africano, com suas especificidades e também semelhan-
ças com outras experiências no mundo. A partir disso, observa as novas
identidades em construção, suas hierarquias e interdependências, e tece
críticas às manipulações políticas e supranacionais dessas identidades pe-
las elites. De maneira contundente, o autor guineense se questiona como,
diante desse tipo de manipulação do sentimento nacional pelos grupos
dominantes, seria possível a consolidação de uma identidade fundamen-
tada no humanismo e na justiça social. Com essa preocupação em mente,
Sila busca desvendar o tortuoso caminho que vem sendo trilhado pelos
novos Estados africanos após as independências, cotejando os descom-
passos entre os ideais pan-africanistas e a experiência dos “nacionalismos
restritos”, contemplando ainda os conflitos gerados pela interação com
identidades étnicas. Para o autor, o escritor africano ou afrodiaspórico
teria papel fundamental a cumprir nesse cenário de conflitos e potenciali-
dades identitárias em cruzamento.
O próprio Abdulai Sila, de autor do terceiro capítulo, converte-se
em tema de estudo do quarto, de autoria de Suely Santana e intitulado “O
pan-africanismo na ‘trilogia’ romanesca de Abdulai Sila”. A autora apre-
senta uma análise a respeito dos diálogos entre três romances do escritor
bissau-guineense (Eterna paixão, de 1994, A última tragédia, de 1995, e
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 31

Mistida, de 1997) e elementos do ideário pan-africanista, com destaque


para as ideias de Marcus Garvey e Amílcar Cabral. O ideal de justiça so-
cial, a ideia de unidade dos povos negros e africanos e a revalorização do
passado continental seriam os traços essenciais desse pan-africanismo de
Sila. A análise de Suely Santana, lida em diálogo com as reflexões teóricas
de Abdulai Sila sobre nação, humanismo e unidade africana. Este e o ca-
pítulo anterior oferecem instigante possibilidade de diálogo.
O capítulo de Alexandre Tasca e Felipe Malacco, intitulado
“Entre a África Ocidental e o impresso brasileiro: encontros atlânticos
nas páginas do Sentinela da Liberdade” evidencia circulações interconti-
nentais de saberes africanos e suas reapropriações no contexto político da
independência do Brasil no início do século XIX. A partir da perspectiva
teórico-metodológica da História Atlântica, os autores discutem os trân-
sitos intelectuais e de ideias entre Brasil, Europa e África Ocidental, por
meio de uma publicação de Cipriano Barata no periódico Sentinela da
Liberdade na guarita de Pernambuco: Alerta!. Segundo sugerem, Cipriano
Barata teria tido conhecimento do episódio do assassinato do herdeiro do
trono jalofo, Bemoim Jelem, em 1488, quando das negociações diplomá-
ticas com o rei Dom João II de Portugal. Mostrando como Barata mobi-
lizou o episódio para criticar a política brasileira, os autores evidenciam
circularidades afro-americanas que transcendem o âmbito da escravidão,
tema mais recorrente nas relações Brasil-África. A articulação entre a
história política jalofa e a tratadística político-filosófica ilustrada permite
costurar uma proposta de reflexão “pós-abissal”, retomando os termos de
Boaventura de Souza Santos.
O texto de Wellington Marçal, intitulado “Nesse angu tem
mosquitos: algumas considerações sobre o Boletim Cultural da Guiné
Portuguesa”, toma forma em razão da visita do autor a Bissau, com o in-
tuito de selar uma parceria institucional entre o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas (Inep) de Guiné-Bissau e a Universidade Federal de
Minas Gerais. Na ocasião, o pesquisador teve acesso à coleção completa
dos 110 fascículos do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, periódico vin-
culado à administração colonial lusitana e publicado entre 1946 e 1973.
O trabalho apresenta o resultado de suas reflexões sobre textos publicados
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32 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

no Boletim. Destacam-se as análises a respeito dos artigos do periódico


que celebram uma suposta superioridade da coisa portuguesa, além de
momentos em que a publicação permite notar uma quebra de tom na
sagração da “europeidade”.
Por fim, a primeira parte encerra-se com a contribuição do his-
toriador gambiano Hassoum Ceesay, em texto intitulado “Fatoo Khan, a
amante do comissário colonial: um relacionamento amoroso na Gâmbia
colonial”. O autor nos oferece uma convincente análise de um relaciona-
mento inter-racial na Gâmbia colonial da década de 1910, envolvendo
o comissário colonial britânico Mr. J. K. McCallum e uma mulher da
aristocracia uolofe chamada Fatou Khan, sobrinha do chefe uolofe (ou
jalofo) Sawalo Ceesay. O caso levou à demissão do comissário e a uma
reforma administrativa liderada por seu sucessor. A partir do episódio,
Ceesay busca evidenciar a agência das mulheres africanas na estrutura
da administração britânica e sua capacidade de manipular e contestar o
poder colonial. O papel de Fatoo Khan também evidencia a influência
dos intermediários e intérpretes africanos dentro da burocracia colonial,
motivo pelo qual o autor analisa sua figura – juntamente com outros ato-
res históricos em posição semelhante – como uma intelectual africana
imersa na estrutura do poder colonial, na interface entre a cultura oral
e a cultura letrada. Considerando interesses políticos, códigos culturais
e agentes sociais em uma tensa rede de negociações e conflitos, o artigo
de Cessay oferece uma robusta análise micro-histórica articulando um
evento aparentemente secundário com estruturas políticas e culturais da
história colonial da Gâmbia.
A segunda parte desta obra, “patrimônio e cultura na África
Ocidental”, tem cinco capítulos e lida mais diretamente com questões
relacionadas ao patrimônio cultural em suas diversas expressões, contem-
plando desde a cultura material, com toda sua densidade semântica e sua
capacidade de articular uma bagagem de práticas culturais e concepções
imateriais, até os problemas relacionados aos usos da memória histórica,
passando pela riqueza das tradições culturais imateriais orais africanas.
Apresenta-se dessa forma um itinerário de estudos capaz de evidenciar
as múltiplas formas como a reflexão intelectual se encontra difundida e
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 33

incorporada a uma miríade de esferas da vida social, em diferentes espa-


ços e com o envolvimento de diferentes atores, num conjunto de práticas
e instituições que pensam a si mesmas e refletem sobre a sociedade em
que se inserem. Sugere-se, assim, que a escrita está longe de ser o veículo
exclusivo, ou mesmo privilegiado, de reflexão sobre o mundo.
No Brasil, a discussão acadêmica sobre patrimônio cultural, his-
tórico e artístico caminha hoje para a desconstrução da ideia de preserva-
ção associada à imutabilidade e também para o alargamento do próprio
conceito, a fim de não o limitar a conjuntos arquitetônicos, monumentos
ou obras de arte.25 Essa perspectiva esbarra ainda nas políticas de patri-
mônio feitas pelos Estados de um modo geral, não apenas o brasileiro,
imbuídos de estratégias de preservação para fins políticos, econômicos e
turísticos. Normalmente, como ressalta Maria Cecília Londres Fonseca,
a escolha dos estados nacionais sobre o que é e o que não é patrimônio
obedece a padrões estéticos hegemônicos entendidos como expressão da
cultura ou identidade nacionais. Como toda seleção, a força dos estados
de nomearem e legislarem é também responsável por invisibilizar outros
espaços, grupos sociais e práticas incompatíveis com um discurso sobre o
passado que se busca consolidar.
Há, ainda, a difícil tarefa de conciliar a materialidade dos espa-
ços físicos entendidos como patrimônio com as complexidades sociais do
passado e do presente que ali se encontram. Muitas vezes, preservam-se
as características arquitetônicas sem o devido diálogo com seus usos no
passado, e o objeto toma maior relevância do que propriamente seus sen-
tidos dados pelas pessoas nas temporalidades.26 Essa concepção restrita
de preservação, baseada na garantia da permanência e na imutabilidade
física, é atribuída por José Reginaldo Gonçalves à noção de História como
perda ou destruição inexorável pelo tempo. Para o autor, esse entendimen-
to é problemático, pois desconsidera recriações ou variedades de sentidos
construídos ou sobrepostos ao longo do (e no) tempo.27

25 FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla
de patrimônio cultural. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e Patrimônio:
Ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2003, p. 59-66.
26 FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal, p. 66.
27 Gonçalves, José Reginaldo. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
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34 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

Em reflexão sobre a relação entre o conhecimento histórico e o


patrimônio cultural musealizado, Ulpiano Bezerra de Meneses sugeriu
que “a História não pode ser visualizada”, não sendo “algo que possa ser
apreendido sensorialmente”.28 Exige-se da materialidade do patrimônio
cultural, portanto, que seja mediada por reflexões, conceitos e operações
culturais para que adquira sentido para os estudiosos ou para as coletivida-
des. Dessa relação entre patrimônio material e as dimensões imateriais da
cultura e da sociedade emerge um fértil campo de reflexões a respeito das
várias maneiras por meio das quais os significados sociais são negociados
em torno de práticas, de concepções e de heranças materiais e imateriais.
No caso africano, a questão se complexifica em virtude do pas-
sado colonial. A colonização do continente implicou a coleta de inúmeros
artefatos da cultura material da África Ocidental e sua transposição para a
Europa, o que mobilizou cientistas e pesquisadores em um amplo esforço
do que se chamou de preservação.29 A ideia de salvar do desaparecimento
um passado africano implicou, porém, em métodos bem pouco ortodoxos,
que nem sempre respeitaram critérios aceitáveis de catalogação e listagem
sistemática de usos e costumes, como descreveu o etnólogo Michel Leiris,
em seu livro A África Fantasma, lançado em 1934, após sua participação
na missão Dakar-Djibouti, na década de 1930. Em um trecho significati-
vo, Leiris concluiu, por exemplo: “pilhamos os Negros, sob pretexto de en-
sinar às pessoas a lhes conhecer e lhes amar, isto é, no final das contas, para
formar outros etnógrafos que irão eles também os ‘amar’ e os ‘pilhar’”30.
Além disso, a posterior alocação desses espólios nos espaços ofi-
ciais de preservação europeus envolvia sua integração a discursos muse-
ológicos que, muitas vezes, baseavam-se em pressupostos raciais e evolu-
cionistas pouco interessados nas sociedades das quais eram retirados. Uma
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ| Iphan, 1996, p. 22.
28 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a
exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista, São Paulo: Museu
Paulista/USP, v. 2, p. 9-42, jan-dez 1994, p. 38.
29 A musealização de objetos africanos é bastante antiga, obedeceu a relações assimétricas de
poder e a concepções ocidentais de arte e cultura. Vale lembrar que o saque de artefatos africanos
para o “enriquecimento cultural” da Europa pode ser estendido aos tempos napoleônicos, por
exemplo, cujos espólios dos ataques ao norte da África estão expostos nas pacíficas galerias do
Louvre ainda hoje.
30 LEIRIS, Michel. L’Afrique Fantôme. In: Miroir de l’Afrique. Paris: Gallimard, 1996, p. 204.
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 35

forte crítica a essa abordagem da cultura material africana foi feita no


curta-metragem As estátuas também morrem, dirigido por Alain Resnais e
Chris Marker, em 1953. Trechos como “a arte negra: nós a olhamos como
se tivesse sua razão de ser no prazer que nos dá [...] Tomamos seu pen-
samento [dos negros] por estátua” tocavam em pontos bastante descon-
fortáveis para as sociedades colonizadoras, e o fato de sua exibição ficar
proibida durante 10 anos na França, por exemplo, é sintomático de como
o assunto era delicado e trazia à tona questões cruciais das relações de po-
der nas quais o sistema se baseava. Portanto, a patrimonialização desgar-
rada de reflexão histórica sobre os artefatos coletados, somada a um quase
total alienamento das populações produtoras e detentoras dos elementos a
serem patrimonializados, estava presente nessas relações coloniais.31
Esta musealização a serviço da colonização na África Ocidental,
especificamente, ocorreu no XIX, quando pesquisadores e administrado-
res europeus iniciaram uma busca mais sistemática com o intuito de “co-
lecionar para conhecer” o continente. O interesse pelo exótico se deu à
custa do envio desses artefatos para museus europeus, como foi feito pelo
explorador britânico Seton Karr, que viajou inúmeras vezes ao chifre da
África no período para recolher objetos das culturas locais e os vendeu
para cinquenta museus no mundo; pelos oficiais do exército britânico que,
ao invadirem a cidade do Benin, em 1897, na chamada “expedição britâ-
nica”, saquearam o palácio do Obá, altares e túmulos, e posteriormente
venderam os objetos (centenas de esculturas de bronze e marfim) para
colecionadores e museus. As coleções de arte africana do British Museum

31 São vários o exemplos sobre isso. Por meio do Institut Français de l’Afrique Noire, o IFAN, criado
em 1936 pelo governo colonial, com sede em Dakar, muito do material resultante de expedições
científicas promovidas pelo Estado francês a partir do Ministério das Colônias foi herdado pelo
Senegal independente em 1960, por exemplo. O presidente senegalês Léopold Sédar Senghor fez
uso desse mesmo acervo em 1960, quando o Departamento de Etnologia do IFAN é incubido da
mudança da decoração do Palácio da Presidência da República, e o gesto é bastante sugestivo nesse
sentido. cf. REIS. Raissa Brescia dos. África imaginada: história intelectual, pan-africanismo, nação e
unidade africana na Présence Africaine (1947-1966). Tese de doutorado. História, Departamento de
História, Universidade Federal de Minas Geral, 2018, p. 103-104. Situações como a narrada foram
satirizadas pela produção cinematográfica de Ousmane Sembène, como no filme Xala, lançado
em 1975, o qual demonstra como a criação de coleções e o ideal de preservação distanciados de
discursos que procuram pensar sentidos históricos e sociais podem gerar uma perda ainda maior
para as sociedades objetificadas.
VANICLÉIA S. SANTOS | LEOPOLDO AMADO
36 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

e de vários outros museus europeus e norte-americanos são resultantes


desse ataque; assim como pelo antropólogo alemão Leo Frobenius32, que
também retornou à Europa com muitos objetos de Ifé. É preciso lembrar
ainda do Museu do Homem, em Paris, que retomou suas atividades em
2015, e do Museu do Quai Branly/Jacque Chirac33, criado já no século
XXI na mesma cidade, o que nos mostra como a posse e a leitura europeias
da África por meio de seus patrimônios culturais ainda é uma questão que
deve ser discutida. E está sendo. Prova disso foi a intensa mobilização
realizada nas redes sociais em 2010 a favor do embargo da venda em-
preendida pela Sotheby’s, gigante inglesa no mercado de leilões, de uma
máscara real do Benin do século XVI. O artefato foi enviado a leilão pelos
descendentes de Henry Lionel Galway, presente no ataque à cidade do
Benin de 1897. O episódio levantou questionamentos importantes, como
o direito dos descendentes de Galway de lucrarem com a venda, a ética de
vender um objeto que alguns consideram ter sido adquirido ilegalmente,
a posse legal de artefatos de patrimônio cultural de outros povos e o papel
e responsabilidade do Estado britânico diante disso, afinal, se o Estado
britânico atual não compartilha mais dos entendimentos coloniais, o que
significa permitir a precificação de um objeto adquirido no contexto da
colonização e sem a consulta ao Estado de origem deste objeto?34 A re-
percussão nas redes impactou na decisão pela suspensão do leilão da peça.
Os africanos e seus descendentes na diáspora, é preciso pontuar,
não foram passivos a essas narrativas museográficas nascidas na Europa a
partir do contato com o continente. No século XX, sobretudo a partir da
década de 1930, algumas correntes do pensamento africano e afrodiaspó-
rico lançaram-se a uma ambiciosa empreitada de revalorização da história
da África a partir do resgate da grandiosidade do passado do continente.
32 SAID, Hasen. The history and current situation of cultural heritage care in sub-saharan
Africa. Asian African Studies. 8, 1, 1999, p. 91.
33 O Museu do Homem foi fruto do remanejamento, feito em 1938, das coleções do antigo
Museu de Etnografia do Trocadéro, criado em 1878 para abrigar os objetos que a França havia
acumulado por meio de missões científicas e expedições militares à África. O Museu do Quai
Branly possui um acervo de arte não europeia vinda, em parte, do Museu do Homem.
34 Cf. OGBECHIE. Sylvester Okwunodu. Who Owns Africa’s Cultural Patrimony? Critical
Interventions: Journal of African Art History and Visual Culture, 4:2, 2-3, 2010. Para acompanhar
algumas das discussões postadas nas redes sociais, cf. http://www.cultureindevelopment.nl/News/
Heritage_Africa/702/Who_owns_African_cultural_patrimony%3F Acesso em: 14 nov 2018
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 37

Nessa reflexão, o patrimônio material africano ganhou função retórica


primordial: edificações seculares, monumentos de “grandes civilizações”
(sobretudo mediterrâneas) e um extenso conjunto de obras de arte mu-
sealizadas em acervos coloniais europeus eram apresentados na condição
de uma espécie de atestado comprobatório da riqueza cultural, da sofisti-
cação e da grandiosidade das sociedades africanas – por vezes, até mesmo
de sua superioridade em relação às sociedades europeias!35 Se essas ideias
representavam uma salutar oposição a modelos evolucionistas e euro-
cêntricos, também não se deixou de notar que elas reproduziam alguns
paradigmas normativos do pensamento colonial europeu.36 A superação
desses paradigmas requer, entre outras coisas, que a noção de “patrimônio
cultural” africano seja considerada na totalidade de suas dimensões, para
além apenas do seu caráter material e de sua beleza e grandiosidade.37
Em 1939, o escritor martinicano Aimé Césaire publicou a pri-
meira versão do poema Diário de um retorno ao país natal, considerado um
texto fundador do movimento da Négritude, que buscava revalorizar as
culturas negras e africanas. No poema, o eu-lírico cantava: “minha negri-
tude não é uma torre nem uma catedral”.38 À ideia de uma “negritude-
-torre”, pétrea e estática, e de uma “negritude-catedral”, lugar de culto a

35 Para um exemplo paradigmático de revalorização da África ligada à exploração da escultura


africana, veja-se SENGHOR, Léopold Sédar. O contributo do homem negro. In: SANCHES,
Manuela Ribeiro (Org.). Malhas que os impérios tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais.
Lisboa: Edições 70, 2012, p. 73-92. Para uma defesa da superioridade africana, vide as análises
fundamentais de DIOP, Cheikh Anta. A unidade cultural da África negra: esferas do patriarcado e
do matriarcado na Antiguidade clássica. Luanda/Ramada (Portugal): Edições Mulemba/Edições
Pedago, 2014.
36 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA,
2008; MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento.
Luanda/Mangualde (Portugal): Edições Mulemba/Edições Pedago, 2013.
37 Nesse sentido, a Unesco vem tomando para si a responsabilidade de auxiliar as políticas estatais a
partir de uma crítica ao eurocentrismo da noção tradicional de patrimônio histórico e artístico vinda
de grupos e sociedades não europeias no mundo. Longe de ser uma conduta perfeita, o órgão da
ONU trabalha também pela ampliação da própria noção da palavra para além do âmbito nacional,
apagando fronteiras nacionais no que diz respeito à responsabilidade mundial de cuidar e preservar,
daí a África reunir atualmente mais de 103 patrimônios mundiais da humanidade. Unesco, World
Heritage List. Disponível em http://whc.unesco.org/en/list/CID=31&SEARCH=&SEARCH_
BY_COUNTRY=&REGION=5&ORDER=&TYPE=&&order=year. Acesso em 11 de nov. 2018.
38 CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal, Diário de um retorno ao país natal. Trad.,
posfácio e notas Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012,
p. 65. No original: “ma négritude n’est ni une tour ni une cathédrale”.
VANICLÉIA S. SANTOS | LEOPOLDO AMADO
38 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

um ideal absoluto e imutável, o eu-lírico opunha a noção viva e dinâmica


de uma “negritude-árvore”, em constante movimento ascendente. A li-
ção poética de Césaire deve chamar nossa atenção para a necessidade de
transcender a dura e inerte materialidade – ou melhor, para enchê-la de
vida ao infundi-la com a seiva das práticas sociais e culturais.
Nesse sentido, convém nos afastarmos de uma noção de patrimô-
nio cultural que privilegie sua “cristalização” e que proponha um perigoso
ideal de “preservação” em que a imutabilidade se sobreponha ao dinamis-
mo da cultura e dos usos sociais. A uma percepção cristalizada e fossiliza-
da do patrimônio material edificado – a “torre” de Césaire –, preocupada
meramente com a preservação de sua forma material em detrimento de
seus usos e recriações sociais, a historiadora francesa Françoise Choay deu
o nome de “síndrome patrimonial”. Em seu lugar, ela enfatizou a “compe-
tência de edificar”, que consiste em uma relação criativa que as sociedades
mantêm com seus legados materiais e culturais.39 São justamente esses
múltiplos lugares sociais de atribuição de sentido do patrimônio que os
textos dessa coletânea buscam enfatizar.
O primeiro capítulo dessa segunda parte, “Tradições orais nige-
rianas: herança histórica, um patrimônio para a literatura local e global e
para as artes”, é de autoria de Felix Kaputu e apresenta uma transição en-
tre os problemas da cultura letrada e as temáticas do patrimônio cultural,
aqui especificamente representado pelo patrimônio imaterial composto
pelas tradições orais nigerianas. O autor apresenta ampla exploração dos
canais através dos quais essas tradições orais da Nigéria – e especifica-
mente aquelas reunidas no Mercado de Onitsha, no coração da “ibolân-
dia” – foram incorporadas à literatura mundial por escritores e intelectuais
nigerianos dos séculos XX e XXI. As obras de Amos Tutuola, Cyprian
Ekwensi, Chinua Achebe, Wole Soyinka e Chimamanda Ngozi Adichie
são analisadas na condição de sínteses literárias que incorporaram com
sucesso as estratégias performativas das tradições orais na linguagem es-
crita, criando novos campos de expressão. O seu impacto global aponta
para o modo como as tradições orais nigerianas podem ser consideradas
como um importante recurso para o desenvolvimento de novas lingua-
gens literárias e artísticas.

39 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. 3. ed. São Paulo:
Estação Liberdade/UNESP, 2006, p. 239-258.
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 39

O capítulo de autoria de Thiago Mota é uma análise, em uma


perspectiva de longa duração que vai do século XV (primórdios da edu-
cação islâmica na região da Senegâmbia) até o século XX, contemplando,
assim, também sua expansão e institucionalização. Tendo como base nar-
rativas orais, escritas e imagéticas, produzidas por africanos e europeus,
o autor explora o desenvolvimento dos métodos de ensino islâmico na
região, que teve sua base nos pregadores nômades, como bexerins e ma-
rabutos mandingas e jalofos, e depois a popularização das escolas corâ-
nicas que levaram paulatinamente à islamização das camadas populares.
As fontes orais mostram claramente que, diferentemente do que a his-
toriografia tradicionalmente defendeu, a construção e a consolidação do
patrimônio cultural do islamismo na Senegâmbia, bem como a densidade
da conversão religiosa e a popularização da religião na região, não se expli-
cam pela prática da jihad menor (guerra), mas pela jihad maior (pregação
e aprendizado religioso, a partir de uma variedade de práticas que vão de
atos cerimoniais ao debate teórico e intelectual).
O texto de Eduardo Adilson Camilo Pereira, intitulado “Métodos
e fontes de pesquisa em Cabo Verde: o caso da revolta dos rendeiros do
interior da ilha de Santiago (1822-1941)” defende a hipótese do caráter
político e organizado das revoltas dos engenhos em Cabo Verde no século
XIX, contrastando com uma tradição historiográfica que sustentava uma
deficiência de organização prático-política dos rendeiros em face à orga-
nização fundiária no arquipélago. A contestação dos rendeiros em Cabo
Verde, defende o autor, só teria o resultado esperado se estivesse articulada
à sua contestação e organização política, tendo em vista que as arbitrarie-
dades e o monopólio da terra estavam assentes no regime colonial vigen-
te. Para atestar as explorações cotidianas, as estratégias, práticas sociais e
reivindicações do reconhecimento dos direitos políticos dos envolvidos, o
autor compara diferentes tipos documentais, como requerimentos, autos
de devassa, correspondências e autos judiciais, demonstrando acuidade na
ampla pesquisa documental e no desenvolvimento argumentativo.
A contribuição de Sílvio Marcus de Souza Correa, no texto inti-
tulado “Turismo memorial na África Ocidental: diálogos possíveis entre
história pública e história leiga”, resulta de pesquisa de campo do autor na
VANICLÉIA S. SANTOS | LEOPOLDO AMADO
40 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

África do Oeste e traz uma reflexão sobre o turismo memorial e os usos


do patrimônio cultural pelo turismo. A partir da problematização sobre
história pública e história leiga, o autor analisa como esta última tem tido
importante interface com a história acadêmica desde os anos 1950 na
África Ocidental. Por outro lado, coloca em debate os sentidos da criação
de lugares de memória por atores internacionais – a exemplo do projeto
da Unesco “A Rota do Escravo” –, que instituem artificialmente novos
lugares de memória e determinam o que deve ser lembrado. Correa em-
prega a noção de “retorno do recalcado” para analisar a rememoração da
experiência traumática da escravidão no âmbito do turismo patrimonial, e
argumenta que a história pública e a história leiga da escravidão (no caso,
narrativas produzidas por guias turísticos) tendem a privilegiar um dis-
curso emocional e obliterar a agência africana no período da escravidão,
bem como as complexidades das relações entre africanos e estrangeiros,
distanciando-se do conhecimento histórico produzido nas universidades.
O capítulo que fecha a coletânea é de autoria de Odete Semedo e
intitula-se “Panos, tradição e canto-poema: simbolismo e lugar da memó-
ria coletiva guineense”. Nele, a escritora guineense explora a tradição de
tecelagem dos panos de pentes e os usos desses objetos na Guiné-Bissau a
partir da perspectiva da memória coletiva e da sua função social na vida da
comunidade. Evidenciam-se os sentidos criados em torno dos panos: seus
motivos, suas cores, seus padrões, seu tamanho, as formas como eles são
utilizados no corpo ou na casa, tudo isso produz discursos a partir de códi-
gos culturais que distinguem pessoas e que podem ser decodificados pelos
membros da comunidade. O texto da autora ainda mostra como os panos
são representados em diversas expressões culturais guineenses, como as
cantigas de partidos políticos ou os textos de escritores e poetas modernos
guineenses. Nesses suportes, os panos ganham vida como sujeitos poéti-
cos, representando uma série de figuras sociais, como a mulher, o homem,
o morto, a criança, a nação, entre outros. O estudo a partir de uma epis-
temologia descolonizada permite situar essas produções culturais e esse
rico patrimônio material e imaterial em seu contexto social e histórico,
evidenciando seus sentidos e as reflexões que eles albergam em si e fazem
circular socialmente. O texto de Odete Semedo, de certa forma, completa
CULTURA, HISTÓRIA INTELECTUAL E PATRIMÔNIO NA ÁFRICA OCIDENTAL
(SÉCULOS XV-XX) 41

o círculo proposto por esse volume, voltando a reconectar o patrimônio


cultural, material e imaterial, à reflexão intelectual sobre as sociedades
africanas, tal como ela é produzida, vivida e difundida cotidianamente.
Esperamos que os estudos aqui contidos ajudem a apresentar
uma visão mais complexa das dinâmicas culturais da África Ocidental.
Por um lado, o recorte geográfico coeso e relativamente restrito (em com-
paração com estudos que pretendem abranger a totalidade do continente),
abarcando a grande região compreendida entre o Mediterrâneo (ao nor-
te), o Atlântico (a oeste e sul) e o lado Chade (a leste), permite evidenciar
particularidades e conexões históricas concretas, fugindo ao risco de uma
excessiva generalização a partir de categorias abstratas de uma suposta
“africanidade” genérica. Por outro lado, porém, as articulações entre a pro-
dução intelectual, as diversas formas de patrimônio cultural (material e
imaterial) e as práticas da vida social sugerem e permitem captar relações
históricas e culturais e estabelecer conexões entre domínios da sociedade,
ampliando a perspectiva das análises historiográficas. Se é verdade que a
história da África Ocidental é, desde a Antiguidade, uma história carac-
terizada fundamentalmente por trânsitos e mobilidades, esperamos que
esses estudos possam contribuir para dar relevo à circulação de atores,
grupos, práticas e sentidos ao longo de todo esse vasto território.
Finalmente, esta obra é resultado do diálogo entre diferentes es-
tudiosos de temáticas africanas – cientistas sociais, historiadores, roman-
cistas, escritores, antropólogos, especialistas em crítica literária escrita em
língua portuguesa, historiadores da arte – localizados dos dois lados do
Atlântico. A natureza interdisciplinar desse trabalho se completa pelas
diversas fontes mobilizadas pelos profissionais – desde fontes escritas em
português, como relatos de viagens, relatórios policiais, documentos de
revoltas, escritos árabes, paisagens e ruínas, panos bordados com narrati-
vas, tradições orais, cantos-poemas, artes, romances, fotos e, até, roman-
ces escritos contemporaneamente pela intelligentsia africana. Assim, as
múltiplas fontes, métodos e teorias utilizados pelos autores e autoras para
pensar a história cultural do oeste africano trazem uma rica contribuição
para a construção de uma nova agenda metodológica e interdisciplinar
para escrever as histórias da África e de outros lugares, afinal, a história da
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42 ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI | TACIANA ALMEIDA GARRIDO DE RESENDE

África é parte da história global e os métodos para escrever a história da


África podem e devem ser aplicados para escrever e estudar outras histó-
rias de qualquer parte do mundo.

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