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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA – MG


Departamento de Ciências Sociais e Filosofia (DCSF)
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www.dcsf.cefetmg.br

Unidade 4 - O mundo do trabalho e a tecnociência

4.1 Materialismo histórico e dialético: trabalho, mercadoria,


ideologia e alienação em Karl Marx

ELABORAÇÃO: Samuel França Alves e Deivisson Oliveira Silva

REVISÃO: Equipe de Sociologia – DCSF – Cefet-MG

Karl Marx (Trier, 5 de maio 1818 – Londres, 14 de março


de1883) foi um filósofo, jornalista e ativista político de
origem alemã. Nascido na província do Reno, na antiga
Prússia, inicialmente ingressou no curso de Direito, mas
optou por se transferir para a área de filosofia, sendo
influenciado pelas ideias de Hegel. Concluiu seu
doutorado em 1841, e cerca de dois anos depois aderiu
à teoria política socialista e rompeu com a filosofia
hegeliana. Dedicou-se a partir daí a estudar
profundamente o sistema econômico capitalista, afim de
descobrir suas leis internas e vislumbrar meios de sua
superação. A partir de 1849 viveu em Londres como exilado político, mantendo-se
com dificuldades, e dedicando-se prioritariamente aos estudos (que abarcaram
temas muito além da filosofia e economia, passando pela história, sociologia,
matemática e ciências naturais). Sua obra mais importante, O Capital (1867),
continua sendo ainda hoje um paradigma importante para a compreensão da
sociedade capitalista. É considerado, ao lado de Durkheim e Weber um dos três
pilares da sociologia.
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Introdução – O PENSAMENTO DE KARL MARX

Um dos intelectuais da história da humanidade que mais profundamente se dedicou a


compreender e explicar o conjunto de problemas das sociedades capitalistas foi Karl Marx (1818-
1883). Esta apostila irá expor um conjunto de análises e elaborações teóricas formuladas por Marx,
que nos ajudarão a pensar questões das mais diversas naturezas, contribuindo para uma reflexão
propriamente sociológica sobre os problemas sociais. Ou seja, nos ajudarão, conforme aprendemos
com Bauman & May (2010), a compreendê-los segundo quatro princípios: 1- tendo base em
métodos de análise que produzam afirmações verificáveis; 2- que busque entender os fenômenos
sob vários pontos de vista, fugindo da perspectiva de nosso próprio mundo de vida; 3- que aponte
os vários agentes sociais envolvidos e o papel que cada um deles desempenha nas redes de
interdependência social; e 4- que fuja de qualquer forma de dogmatismo, estimulando o pensamento
crítico.

1- A concepção marxista do homem

Para adentrarmos no pensamento de Marx, é importante termos em mente uma advertência:

Em geral, para o público, inclusive para o público que supõe ser marxista, o marxismo é apenas uma
crítica da sociedade capitalista e um programa de luta pelo socialismo. Contudo, na realidade estas são
apenas partes do marxismo, e partes subordinadas à concepção marxista do homem, que é a essência e o
ponto de partida do marxismo - lógica e cronologicamente. Por isso, para responder à pergunta feita
acima (o que é o marxismo?), tem de se começar, imprescindivelmente, pela parte essencial e menos
conhecida - mais oculta, poderia ser dito, do marxismo - que é a concepção marxista do homem. (Peña,
2015, p. 19)

Segundo Marx, todas as filosofias anteriores à sua tinham uma concepção idealista do
homem. Isso significa que todos os filósofos anteriores a Marx explicavam o que é o ser humano a
partir de suas capacidades intelectuais, e principalmente daquelas mais desenvolvidas. O homem é
comumente definido como ser racional, e as várias formas como a inteligência humana se
manifesta (matemática, ciências, técnica, arte, filosofia etc) são tratadas como as verdadeiras
características do homem. Em contrapartida, outras atividades humanas recebem menos
importância, como por exemplo o trabalho manual, as diversas formas de obtenção dos meios
indispensáveis à vida etc. Uma segunda característica dessas concepções idealistas é a tentativa de
descobrir uma essência humana universal, que existiria independente do tempo e da cultura onde
vive esse homem. Um exemplo muito conhecido desse tipo de visão idealista é o chamado
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liberalismo, que propõe que o homem é um ser essencialmente egoísta, que tende naturalmente a
competir com outros homens, e que é dotado de certos direitos naturais, como a liberdade e a
propriedade privada. Uma última característica importante dessas visões idealistas é que, de acordo
com Marx, as relações e instituições sociais mais complexas são vistas como se existissem antes das
relações e instituições mais simples, e mais grave erro ainda, como se aquelas primeiras
determinassem sempre a forma de organização dessas relações mais simples. Por exemplo, os
filósofos contratualistas (Hobbes, Locke e outros) defendiam a ideia de que a sociedade era
organizada de acordo com o Estado, como se primeiro os homens tivessem criado o Estado a partir
de um contrato, e depois, de acordo com os termos desse contrato, as diversas relações e
instituições sociais (como polícia, tribunais, escola, família etc) fossem surgindo.

1.1 – Materialismo versus Idealismo

Ao fundamentar o seu próprio pensamento, Marx se contrapôs a essa visão idealista


formulando uma concepção materialista, que se distingue de todas as filosofias materialistas
anteriores por ter como base uma visão materialista da
história:

devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a


existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o
pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver
para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de
tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas
mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação
dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida,
um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje,
assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora,
simplesmente para manter os homens vivos. (Marx, A ideologia alemã, 2007,
p. 32-33)

Se quisermos chegar a uma concepção correta do ser


humano, a primeira coisa a ser compreendida é, portanto, como o
homem produz a sua própria vida. Com base no conhecimento
histórico que temos a nosso dispor, Marx irá apontar duas
características existentes desde que o homem é homem: em primeiro
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lugar, o homem é um ser que vive em coletividade, e nesta coletividade diferentes indivíduos
desempenham diferentes atividades que contribuem, cada qual a seu modo, para a vida de todos. Ou
seja, o homem é um ser social. Em segundo lugar, o homem sempre teve a capacidade de criar os
mais diversos tipos de objetos, com o objetivo inicial de facilitar a produção de seus meios de vida,
objetos diferentes de tudo que existe na natureza. E a atividade pela qual o homem cria coisas a
partir de objetivos pré-definidos é, genericamente falando, o trabalho.

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação, aparece desde já como
uma relação dupla – de um lado, como relação natural, de outro como relação social –, social no sentido
de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e a
finalidade. Segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão
sempre ligados a um determinado modo de cooperação ou a uma determinada fase social. (Marx, A
ideologia alemã, 2007, p. 34)

Com base nesses pressupostos – que, afirma Marx, não são pressupostos arbitrários nem
ideias preconcebidas, mas sim premissas reais, constatações empíricas – Marx desenvolve uma
profunda crítica do idealismo, especialmente do liberalismo. Para ele é um absurdo fazer a
propriedade privada aparecer como um direito natural do homem, pelo simples fato de que ela nem
sempre existiu. Da mesma maneira o liberalismo (por ser uma filosofia nascida em pleno
desenvolvimento do capitalismo) transpõe características comuns aos homens das sociedades
capitalistas para uma ideia metafísica de essência humana (ou natureza humana, ou ainda, nas
palavras daqueles filósofos, do homem em estado de natureza). Por isso, dizem esses teóricos, o
homem é essencialmente egoísta. Mas, para Marx, o egoísmo é simplesmente um modo de
comportamento comum nessa sociedade capitalista, que educa desde a infância a todos a agirem de
tal maneira. Mas essa, como qualquer outra característica subjetiva, não pode ser dita parte da
essência do homem. Primeiro porque basta um indivíduo não se comportar dessa maneira para jogar
por água abaixo essa teoria. E segundo porque mesmo se todos os indivíduos em uma dada
sociedade apresentarem certa propensão, isso deve ser entendido em função da educação que todos
recebem e reproduzem, e não como uma essência da qual ninguém é capaz de escapar.
Da mesma maneira, o Estado é uma instituição
social que apareceu na história humana somente a partir
de um dado momento. E, então, se existiram antes
sociedades sem Estado, é um absurdo idealista acreditar
que é o Estado que dá origem à sociedade, ou que é a
forma de organização do Estado que cria as instituições
mais simples. Pelo contrário, são as relações decorrentes
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dos fundamentos da vida humana em sociedade, quais


sejam, as relações materiais de produção dos meios de
vida, que criam um determinado tipo de Estado, assim
como as instituições intermediárias.

A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados,


mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como
realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como
desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes
de seu arbítrio. (Marx, A ideologia alemã, 2007, p. 93)

Em outras palavras, é a forma como os seres humanos realmente existentes se organizam


para produzir a sua vida material que dá origem às relações sociais mais complexas, que vão se
desenvolvendo umas sobre as outras até chegar às formas que adquirem uma aparência de
autonomia, como é o caso do Estado. Marx ataca mais duramente ainda o idealismo quando afirma
que até mesmo as produções culturais mais sofisticadas, como a moral, a religião ou a própria
filosofia, dependem em última instância dessas relações materiais fundamentais.

O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da
moral, da religião, da metafísica etc de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de
suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um
determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até
chegar às suas formações mais desenvolvidas. (…) A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra
ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de
autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao
desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade,
seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência. (Marx, A ideologia alemã, 2007, p. 93-4. grifo nosso)

A concepção apresentada nessa passagem é inteiramente inédita na história do pensamento.


Antes de Marx os estudos sobre os produtos culturais da humanidade (arte, ciência e filosofia,
principalmente) eram feitos atentando-se apenas a eles próprios (obras de arte, descobertas
científicas ou escritos filosóficos). Como se a arte de um
determinado período histórico fosse absolutamente independente
dos problemas materiais concretos que aquela sociedade
enfrentava, ou como se as ideias de um filósofo surgissem em sua
mente sem nenhuma influência de sua vida cotidiana ou da
sociedade na qual se encontrava. O que Marx propôs foi
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inovador: as ideias não surgem espontaneamente na mente dos homens, mas são respostas
elaboradas tendo por base os dilemas reais da vida. A “produção espiritual” do homem tem uma
ligação profunda com a sociedade de seu tempo histórico, e qualquer intelectual estará sempre
pensando sob a influência da sociedade. Portanto, o pensamento humano tem como base as relações
materiais pelas quais os homens produzem seus meios de vida.

na produção social da própria existência, os homens entram em relações


determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de
produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de
suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se
eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas
sociais determinadas de consciência. O modo de
produção da vida material condiciona o processo de vida social, política
e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser;
ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (Marx,
Contribuição à crítica da economia política, 2008, p. 47)

1.2 – A produção da vida humana pelo trabalho

Seguindo esse ponto de vista, o fundamento de toda a sociedade é o seu modo de produção
material, isto é, a forma como os homens se organizam para produzir seus meios de vida, desde os
mais básicos (alimentação, moradia, vestuário) até os mais complexos (comunicação social,
transporte, estocagem, comércio etc). E como vimos acima, a atividade humana que permite a ele
produzir seus meios de vida de uma forma diferente daquela que ele encontra pronta na natureza é o
trabalho. Portanto, se quisermos compreender os problemas de uma sociedade precisamos em
primeiro lugar compreender o trabalho. O primeiro passo é compreender o trabalho em seus traços
mais gerais, comuns a qualquer forma de sociedade. Em seguida poderemos passar a entender a
forma específica pela qual uma determinada sociedade organiza o trabalho de todos os seus
membros. No que tange a compreensão mais geral do que é o trabalho, diz Marx:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por
sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a
matéria natural como com uma potência natural. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma
útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus
braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse
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movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela
jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio. (…) Pressupomos o trabalho numa
forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do
tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o
início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente
antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava
presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia
idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza
neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua
atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do
esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um fim, que se
manifesta como atenção do trabalhador durante a realização de sua tarefa (…). (Marx, O Capital, 2013, p.
326-7)

Analisando a passagem acima podemos identificar quais são as características fundamentais


da atividade de trabalho, de acordo com Marx:
1- O trabalho é uma atividade tipicamente humana, não observada em nenhuma outra
espécie da natureza. Isso porque mesmo animais que realizam atividades extremamente complexas,
conforme os exemplos dados acima, só realizam aquela atividade em virtude de uma determinação
natural. Já o homem concebe primeiro em pensamento o que irá fazer, e o faz por escolha. Por isso
dizemos que o trabalho é uma atividade teleológica, ou seja, é uma atividade que visa alcançar um
fim (télos), que foi escolhido pelo ser humano.
2- Para ser bem sucedido o trabalhador precisa subordinar sua vontade ao fim escolhido,
pois precisará desempenhar a atividade da forma apropriada a se alcançar o resultado desejado, e
não ao seu bel-prazer.
3- No trabalho as potências naturais do objeto (isto é, aquilo que ele pode vir a ser de acordo
com sua natureza) são confrontadas pelas forças do trabalhador (físicas, técnicas e intelectuais),
dando origem a algo que não existia antes na natureza.
4- A modificação da natureza pelo homem, através do trabalho, modifica ao mesmo tempo o
próprio homem. Isso porque os novos objetos criados modificam a vida humana, e o processo de
trabalho permite um aprimoramento contínuo das capacidades humanas, ampliando ao longo da
história o nível de controle do homem sobre a natureza.
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Além dessas características fundamentais, inerentes a qualquer processo de trabalho,


existem ainda características históricas, determinadas pelo nível de desenvolvimento das forças
produtivas humanas. O conceito de força produtiva é central na teoria de Marx. É muito importante
não confundir as forças produtivas com as tecnologias que o homem tem a seu dispor. A tecnologia
é apenas uma parte das chamadas forças produtivas, sem dúvida muito importante, mas não a mais
importante de todas. A primeira e mais importante força produtiva é o próprio homem, isto é, suas
capacidades para o trabalho, que não são as mesmas ao longo da história. Uma capacidade humana
de trabalho pode tanto se desenvolver como se perder com o desaparecimento de uma dada
sociedade1. O conhecimento também é uma força produtiva, independente do seu nível de
complexidade. Em seguida temos a técnica, íntima aliada da tecnologia, e que consiste basicamente
no nível de domínio do homem sobre suas forças corporais e intelectuais, que se manifestam, entre
outras coisas, nas capacidades do homem operar determinados objetos tecnológicos2. Além dessas e
da própria tecnologia temos ainda o nível de cooperação entre os homens no âmbito da divisão do
trabalho: quanto mais intensa for a cooperação humana no trabalho, maior será sua
capacidade de produção de riquezas.

1 Como exemplo disso podemos mencionar os feitos da civilização egípcia. Embora existam muitas hipóteses sobre
como foram construídas as grandes pirâmides efetivamente nós não sabemos hoje como aquela civilização
conseguiu erguer tais grandiosos monumentos.
2 Por exemplo, um computador é um dado objeto. Mas se for operado por um especialista em computação poderá
fazer muito mais do que quando é operado por indivíduos com baixo domínio sobre as tecnologias da informação.
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1.3 – Ideologia

Além da produção material dos meios de vida, outro aspecto decisivo para a vida humana é
a cultura3. Na crítica de Marx ao idealismo vimos que ele considera absurdo pensar que os diversos
produtos culturais sejam independentes da vida material concreta. Mas isso não significa de
nenhuma maneira que Marx seja determinista, ou seja, ele não considera que as relações
econômicas determinem o pensamento das pessoas de maneira unilateral.
Para Marx existe uma correspondência entre os diversos produtos culturais (as leis, a arte, a
ciência, a cultura popular, a religião etc) e as relações de produção material. Mas é claro que ambas
as esferas interferem uma na outra. Uma boa maneira de compreender essa questão é pensando em
como acontecem as transformações sociais históricas. Sobre tal tema ele diz:

Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das
condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com ajuda das ciências físicas
e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas
ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim. Do
mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se
pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma.
É preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material,
pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.

(Marx, Contribuição à crítica da economia política, 2008, p. 48)

Estamos aqui diante do conceito de ideologia. As ideologias, para Marx, são as diversas
formas de consciência que atuam nos conflitos sociais humanos. O que define um dado pensamento
como ideológico é que ele leva o indivíduo a se posicionar e atuar de determinada maneira perante
os conflitos de sua época. Isso significa que as diferentes ideologias têm uma profunda ligação com
os diferentes interesses postos nos conflitos sociais, isto é, com os interesses das diferentes classes
sociais. As ideologias têm um papel ativo, especialmente no conflito político, mas elas não podem
criar por si mesmas um processo de transformação social. Isso seria cair de novo numa forma de
idealismo. Ao contrário, são justamente as ideologias que se inspiram nos conflitos concretos, nas
contradições da vida, para defenderem determinadas ideias. Frequentemente uma determinada

3 A cultura é um fenômeno extremamente complexo, que recebeu diferentes conceituações para tentar explicá-lo.
Entenderemos cultura aqui como sendo um amplo e complexo leque de comportamentos humanos que contrastam
com a natureza (ou o que seria um comportamento natural), incluindo o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a
lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade. É
importante ter em mente que não existe uma cultura, mas sim culturas, na medida em que a cultura está
extremamente ligada à construção de uma identidade própria por parte de diferentes grupos sociais.
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ideologia produz uma representação unilateral da sociedade, como forma de defender determinado
interesse de classe. Essas formas de pensar a sociedade de acordo com um ponto de vista pode
produzir também uma representação invertida da realidade, isto é, pensar os fenômenos
secundários como se fossem determinantes, e vice-versa.

2- A produção da vida humana no capitalismo

Agora sim, tendo em vista esse conjunto de conceitos, podemos analisar uma determinada
formação social. Essa análise deverá ter como ponto de partida a forma como os homens nessa
sociedade se organizam para produzir seus meios de vida. A sociedade que Marx se dedicou
profundamente a compreender foi justamente aquela de seu tempo: a sociedade capitalista. Em
outras palavras, para compreender o ser humano da sociedade capitalista precisamos entender
em primeiro lugar como a atividade primordial do ser humano, o trabalho, se dá nessa forma
de sociedade.

2.1 – A forma-mercadoria

Considerando tudo o que já foi dito até aqui, o primeiro elemento a ser pensado para que
possamos compreender o ser humano em seu tempo histórico é como ele obtém os seus meios de
vida. Ora, como nós obtemos nos dias de hoje aquelas coisas indispensáveis (comida, roupas,
moradia etc) para a reprodução de nossas vidas? A resposta para essa questão é relativamente
simples: comprando!
Mas nem sempre foi assim. Em sociedades antigas o comércio era um elemento ocasional,
esporádico, do processo de obtenção dos meios de vida. E ainda hoje, em comunidades tradicionais,
ainda não inteiramente absorvidas pelo sistema capitalista, as pessoas plantam, caçam e pescam a
totalidade (ou quase isso) de seus alimentos, tecem suas próprias roupas, constroem suas casas e
assim por diante.
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Estamos aqui diante da primeira e mais evidente característica do modo de produção


capitalista. O sistema capitalista está organizado para produzir mercadorias. E o que isso significa?
Significa que os objetos que nós iremos consumir foram produzidos desde o início com o objetivo
de serem vendidos. Quem produz mercadorias produz visando o comércio, e não o consumo
próprio. Imaginem que em sua casa haja um vaso de planta com uma erva usada na culinária como
tempero, por exemplo o orégano. Ao usá-lo no preparo de um prato, a diferença entre o orégano que
você colhe em seu jardim e aquele que você compra em um pacote no supermercado é que este
último é uma mercadoria, foi produzido para ser vendido.

2.2 – A propriedade privada

A segunda questão que precisamos levar em consideração é que o sucesso de um sistema de


produção de mercadorias depende inevitavelmente de duas coisas: em primeiro lugar, das pessoas
precisarem das mercadorias e, em segundo lugar, terem algum dinheiro para comprá-las.
Essa primeira condição (de nós precisarmos comprar mercadorias para viver) só pode ser
atendida quando as pessoas não conseguem obter diretamente seus meios de vida, ou seja, quando a
esmagadora maioria das pessoas não possui nenhum meio de produção4. E isso acontece no
capitalismo porque os meios de produção todos pertencem a algumas poucas pessoas. Ou seja, o
capitalismo é uma sociedade baseada na
propriedade privada dos meios de produção.
Mas o fato de uma pessoa não ter um
pedaço de terra para plantar, nem ter as
ferramentas necessárias para produzir roupas, ou
não ter um imóvel próprio onde possa abrir uma
loja para vender determinadas coisas, nada disso
significa que essa pessoa não saiba fazer essas
coisas. Por outro lado, o simples fato de
um indivíduo (ou de um grupo de indivíduos) ser proprietário de grandes porções de terra, ou de um
galpão cheio de máquinas de costurar, ou de uma grande loja, não implica que esse proprietário seja
capaz de produzir tudo o que esses seus meios de produção permitem (no mais das vezes é
simplesmente impossível o proprietário produzir por si próprio).

4 Meio de produção é aquilo que permite aos homens obterem algum meio de vida. Por exemplo: a terra (que precisa
ser fértil para obter alimentos pelo plantio), o gado, as ferramentas e o maquinário da indústria, um imóvel que
possa ser usado para fins comerciais etc. No capitalismo em particular o próprio dinheiro se tornou um
indispensável meio de produção, pois uma quantidade inicial dele é necessária para iniciar a fabricação de qualquer
coisa.
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Essa situação deu origem à relação econômica primordial da sociedade capitalista, que é o trabalho
assalariado. Pessoas que sabem desempenhar determinadas atividades produtivas, mas não
possuem os meios para fazê-lo, se tornam trabalhadores, enquanto que os proprietários dos meios
de produção se tornam capitalistas. Para que haja então a produção das mercadorias os capitalistas
compram a força de trabalho dos trabalhadores, isto é, pagam a eles uma determinada quantidade
de dinheiro em troca de um determinado tempo de trabalho. No final do processo de trabalho, as
mercadorias produzidas não pertencem aos trabalhadores, mas sim aos capitalistas, que irão vendê-
las visando obter lucro. Essa situação dá origem a duas classes sociais: a burguesia (os capitalistas)
e o proletariado (os trabalhadores).

Aquela segunda condição (das pessoas terem algum dinheiro para comprar mercadorias)
necessária para o sucesso do sistema capitalista é resolvida dessa maneira, por meio do trabalho
assalariado. Marx estudou o processo de expansão do capitalismo por todo o planeta, e percebeu
então que essa expansão dependia, acima de tudo, de fazer com que a maior parte das pessoas não
tivesse acesso a nenhuma propriedade, de modo que sua única alternativa de sobrevivência fosse
vender sua força de trabalho em troca de um salário. Assim como na Inglaterra havia acontecido o
chamado “cercamento dos campos”, que tomou as terras dos camponeses e expulsou eles para as
cidades, em todos os países onde aconteceu uma transformação capitalista houve ao mesmo tempo
algum processo que fez com que as pessoas que antes produziam para consumo próprio fossem
reduzidas a simples força de trabalho, desprovidas de qualquer propriedade. Esse processo de
expropriação é o motor inicial da expansão do capitalismo pelo globo.
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2.3 – A divisão hierárquica do trabalho

Até aqui nós conhecemos duas primeiras características da sociedade capitalista:


1- trata-se de uma sociedade onde tudo que é necessário para a vida humana é produzido sob
a forma de mercadorias; e
2- que os meios de produção são propriedade privada de algumas pessoas, enquanto todas as
outras detêm apenas sua própria força de trabalho, situação essa que divide essa sociedade em duas
classes fundamentais que se relacionam economicamente por meio do trabalho assalariado.

O nosso objetivo aqui é entender como se dá o trabalho na sociedade capitalista. Sabemos


então pelas características acima que o trabalho envolve a relação de assalariamento, e que o
produto do trabalho adquire a forma de mercadorias. Resta observarmos se o processo de trabalho
mesmo possui alguma característica específica no capitalismo que o diferencie das sociedades
precedentes.
Vimos que para Marx o homem sempre viveu em sociedade, entendendo por sociedade a
simples existência de uma cooperação entre os indivíduos que os mantêm ligados uns aos outros.
Essa cooperação é usualmente chamada de divisão do trabalho. Historicamente, a primeira forma
de divisão social do trabalho foi a divisão sexual: em virtude de determinadas características
fisiológicas, em grande medida pautadas pelos imperativos da reprodução (as mulheres
engravidavam com frequência na vida adulta, e ainda tinham que amamentar os bebês), homens e
mulheres desempenhavam diferentes atividades laborais que em conjunto contribuíam para a vida
de todos. Ao longo da história, a divisão social do trabalho foi se tornando cada vez mais complexa.
Com o tempo foram se consolidando determinados ofícios, que também ganhavam em
complexidade, de modo que exigiam uma especialização cada vez maior.
Mas uma mudança em particular pôde ser observada no processo de surgimento do
capitalismo: a transformação do artesanato em manufatura.
No artesanato, o artesão é dono das ferramentas necessárias para a execução de seu ofício,
e ainda conhece todas as etapas do processo de produção. Um sapateiro, por exemplo, desenha o
modelo de sapato, prepara o couro, corta os moldes, costura etc. Nas sociedades pré-capitalistas,
onde o comércio já existia em grande escala, os próprios artesãos vendiam seus produtos. As
pessoas muitas vezes conheciam então quem fazia os objetos que elas consumiam. Nessas
comunidades, a existência do comércio não suprime a relação mais direta entre produtores e
consumidores.
A manufatura surge com a introdução da divisão hierárquica do trabalho no processo
produtivo, visando principalmente o aumento da produção. Um conjunto de trabalhadores passam a
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trabalhar juntos, e cada um desempenha repetidamente apenas uma das etapas de produção. Desse
modo, a produção final acaba sendo maior do que seria se cada um deles tivesse feito todo o
produto do começo ao fim5. Mas a divisão hierárquica do trabalho, embora aumente a
produtividade, tem implicações negativas, especialmente para o trabalhador.
A primeira delas é que o trabalhador deixa de dominar todo o processo de trabalho, se
especializando em repetir o dia todo apenas um pedaço deste. Essa situação tende a tornar a jornada
de trabalho mais cansativa e enfadonha, e o trabalho deixa então de ser uma atividade de interesse
do homem para se tornar uma atividade mecânica, repetitiva e exaustiva.
A segunda característica é que o resultado do processo de trabalho passa a ser um objeto que
o próprio trabalhador não pode reconhecer como fruto de sua própria atividade. A mercadoria é um
objeto estranho ao trabalhador tanto porque ele é incapaz de produzi-la sozinho, pois já não conhece
todas as etapas da produção, quanto porque esse objeto, fruto de seu trabalho, já não pertence mais a
ele, e sim a seu patrão.
A terceira consequência
da divisão hierárquica do trabalho
é que o trabalhador deixa de se
identificar com aquilo que ele
faz. Seu trabalho se torna apenas
a atividade que ele desempenha
em troca de dinheiro. E como ele
só faz uma pequena parte do
processo, é relativamente fácil inclusive migrar de um trabalho para outro, por qualquer motivo que
seja. Um indivíduo que era carpinteiro pode, se estiver desempregado por exemplo, virar motorista
de uber hoje, e daqui alguns meses conseguir um trabalho como auxiliar de pedreiro. Nas
sociedades tradicionais, a atividade de trabalho que um indivíduo desempenha está intimamente
ligada a sua própria identidade, ao lugar que ele ocupa na comunidade. No capitalismo o trabalho se
torna algo indiferente, importando mais quanto dinheiro o indivíduo ganha.
Por fim, temos ainda como consequência dessa forma hierárquica de organização do
trabalho o agravamento extremo da oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual. As tarefas
manuais do trabalho são padronizadas, e passam a ser aprendidas e executadas por pessoas que não
participam do momentos intelectuais do trabalho, isto é, não participam das tarefas de investigação,
planejamento, etc. E ainda, as tarefas manuais são tidas como menos importantes que as chamadas

5 As manufaturas surgiram nas chamadas “corporações de ofício”, no final da idade média, e se desenvolveram
largamente no período do chamado renascimento e do mercantilismo. Com o tempo, os trabalhadores das
corporações não eram mais donos das ferramentas que utilizavam, e a transição desse modelo para a propriedade
privada se deu de maneira relativamente rápida. A indústria capitalista surgiu então mais tarde com a introdução
das máquinas nas linhas de produção manufatureiras.
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tarefas intelectuais, o que se materializa numa valorização salarial também diferenciada entre
ambas. Para Marx, o trabalho enquanto uma atividade autenticamente humana passa pela união
indissociável desses dois momentos: o momento de elaboração intelectual, de planejamento etc, e o
momento de execução. As sociedades pré-capitalistas já haviam desenvolvido algumas formas de
separação entre esses dois momentos, mas não na forma nem na extensão que o capitalismo
inaugurou. No nosso mundo contemporâneo essa oposição está bastante consolidada. Os indivíduos
que têm acesso aos meios e ao conhecimento necessários para desempenharem as atividades
intelectualmente mais complexas, ocupam cargos hierarquicamente superiores na divisão do
trabalho. Por outro lado, aquelas camadas da sociedade com difícil acesso à educação de qualidade
acabam relegadas às funções manuais. As primeiras recebem remunerações salariais mais elevadas,
facilitando assim o acesso de seus filhos aos mesmos meios de formação que tiveram, de modo que
essa estrutura da divisão do trabalho coloca os novos membros da sociedade em condições
extremamente desiguais em termos de perspectivas de vida.

2.4 – Alienação e Estranhamento

A combinação dos três fatores mencionados no item 2 desta apostila (a produção voltada
para a troca, a propriedade privada e a divisão hierárquica do trabalho) dá origem a uma condição
humana decisiva para a compreensão da sociedade capitalista, que Marx explica por meio das
categorias de alienação e estranhamento, que são conceitos centrais de seu pensamento. Vejamos
o que o próprio Marx diz a respeito:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais sua produção aumenta
em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias
cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo
dos homens.

O objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta (ao trabalhador) como um ser estranho,
como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto,
fez-se coisa, é a objetivação do trabalho. (…) A objetivação do trabalho aparece como perda do objeto e
servidão (do trabalhador) ao objeto.

Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como um objeto
estranho estão todas essas consequências (…): quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto
mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio, que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele
mesmo, seu mundo interior, e tanto menos o trabalhador pertence a si próprio.
16

Segundo esse duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto, um servo de seu objeto. (…) O auge desta
servidão é que somente como trabalhador ele pode se manter como sujeito físico e apenas como sujeito
físico ele é trabalhador.

O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa em que quanto mais o trabalhador produz,
menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto
mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica (…).

Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da
produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao
produto de sua atividade se no ato mesmo da produção ele já não se estranhasse a si mesmo? (…)
Em que consiste, então, a alienação do trabalho?
Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma,
portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve
nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador
só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si fora do trabalho, e fora de si no trabalho. Está
em casa quando não trabalha, e quando trabalha não está em casa. O seu trabalho não é portanto
voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência,
mas somente um meio para satisfazer necessidades.

(Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, 2004, p. 80-83)

As passagens acima nos mostram como esse tema era importante para Marx e o quanto ele
trata dessas questões com vivacidade e preocupação. Os conceitos de alienação e estranhamento se
combinam diretamente à concepção marxista do homem como um ser histórico, para darem origem
a uma visão sobre o ser humano na sociedade capitalista. Se o homem é um ser que não possui uma
essência prévia determinista; se, ao contrário, o homem se faz a si mesmo através da história, a
partir das condições prévias que lhe estão dadas; e se, por fim, essa autoconstrução do mundo
humano pelos homens tem como fundamento o trabalho, então o fato de que na sociedade
capitalista o trabalho é alienado e estranhado é determinante para compreender o homem
contemporâneo.
A alienação do trabalho significa que o trabalho
deixou de ser uma atividade com a qual o homem se identifica,
e por meio da qual o homem obtém diretamente aquilo que
precisa para viver, para se tornar uma atividade exterior,
cansativa, desinteressante e mecânica. Por causa da alienação,
o trabalho deixa de ser a atividade que distancia o homem dos
animais para se tornar uma atividade que animaliza o homem,
isto é, uma atividade onde o homem é
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tratado como coisa, mercadoria, obrigado a desempenhar funções repetitivas, que exigem o mínimo
ou nenhuma criatividade, e que são embrutecedoras. E ainda, a alienação significa também que os
produtos do trabalho não pertencem mais ao trabalhador. São alienadas dele por meio das relações
de propriedade implicadas na produção.
Já o estranhamento aparece primeiramente na relação do trabalhador com o resultado de
sua atividade, a mercadoria. Esse objeto aparece como algo estranho ao trabalhador. Mas esse
estranhamento na relação com o produto tem por base um estranhamento no próprio trabalho. Como
só faz uma parte do processo de produção, o processo como um todo é estranho ao trabalhador,
desconhecido.

3- A mediação da vida humana pela troca e suas consequências


3.1 – Trabalho e Valor

Sendo coerente com sua crítica ao idealismo, Marx considera que o estudo de qualquer
objeto não pode nunca partir de conceitos ou juízos prévios. Ao contrário, é preciso partir da
matéria mesma, a forma como o objeto se manifesta, percorrer suas determinações para encontrar
seus fundamentos. Por isso, em O Capital, o seu ponto de partida é a análise da mercadoria. Afinal,
“a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma enorme
coleção de mercadorias” (Marx, O Capital, 2013, p. 157).
A análise da mercadoria revela em primeiro lugar que ela tem uma dupla natureza.
Por um lado, para ser uma mercadoria qualquer objeto deve ser dotado da capacidade de
saciar alguma necessidade humana. Não importa aqui se essa necessidade é uma necessidade
fisiológica elementar (como a alimentação), ou se é uma necessidade criada socialmente (como a
comunicação a distância). Isso significa que qualquer mercadoria é um objeto útil, ou seja, possui
um valor de uso.
Por outro lado, como já vimos acima, ser uma mercadoria implica que o objeto foi
produzido com a finalidade de ser vendido, trocado. Isso implica que ele aparece como portador de
um preço, ou seja, possui um valor de troca.
Essa é então a natureza dupla da mercadoria: ela é ao mesmo tempo portadora de um valor
de uso e de um valor de troca.
Nesse ponto cabe então perguntar qual é o fundamento de cada uma dessas propriedades da
mercadoria. Ora, o valor de uso de uma mercadoria deriva diretamente de suas propriedades
objetivas, tanto daquelas dadas naturalmente na matéria da qual a mercadoria é constituída (o
potencial nutritivo da quantidade de carboidratos em um pedaço de pão) quanto daquelas criadas
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pelo ser humano (a capacidade de um jogo de xadrez envolver dois jogadores em uma competição
que mescla noções de matemática e estratégia). Mas e o valor de troca?
Ao responder essa questão Marx foi extremamente irônico com aqueles economistas que
achavam que o valor de troca pudesse ser uma propriedade natural das coisas. Afinal, “até hoje
nenhum químico descobriu o valor de troca na pérola ou no diamante” (Marx, O Capital, 2013, p.
218). Se nenhum objeto é dotado de um valor de troca em virtude de suas propriedades físicas,
significa que o fundamento do valor de troca se encontra em algum tipo de relação social.
O primeiro passo para responder essa questão então é entender a natureza do dinheiro. Marx
analisa as várias formas lógicas possíveis da troca, desde a troca direta entre duas mercadorias (x
canetas se trocam por y folhas de papel), passando pelas trocas em que uma determinada mercadoria
passa a ter a função exclusiva de meio de troca (x quilos de ouro se trocam por y unidades de
tijolos). A conclusão lógica inevitável dessa análise é a descoberta de que o dinheiro é também uma
mercadoria como outra qualquer, que surgiu para facilitar as trocas quando elas se tornaram muito
frequentes nas sociedades, e que o valor de uso do dinheiro é exatamente este: ser um facilitador das
trocas.
Se até o dinheiro é uma mercadoria, toda e qualquer troca envolve uma quantidade x de uma
mercadoria A sendo trocada por uma quantidade y de uma mercadoria B. Neste ponto Marx afirma
que para haver um sistema de trocas consolidado mundialmente, é preciso que exista alguma coisa
nessa quantidade x de A que seja idêntica à quantidade y de B. Será mesmo que existe esse elemento
comum? Ora, nós já sabemos que toda mercadoria é um objeto que foi produzido pelo homem,
produção que se dá através do trabalho. E exatamente aqui reside a resposta a nossa questão: a única
coisa em comum que existe em toda mercadoria é que para ser produzida foi necessário o gasto de
uma determinada quantidade de tempo de trabalho do ser humano.
A conclusão a qual Marx chegou é que o valor de troca, o preço de uma mercadoria, é
apenas a forma de aparência de algo que está por trás das trocas. O sistema de trocas parece ser uma
grande relação entre coisas. Uma quantidade de dinheiro compra uma quantidade de mercadorias.
Uma mercadoria é mais cara que outra. Mas tudo isso é apenas a aparência superficial do sistema de
trocas. Por trás do preço reside uma relação humana, que Marx chama de valor-trabalho, ou
simplesmente de valor. O valor de uma mercadoria é uma medida do tempo de trabalho
necessário para produzi-la. Esse valor enquanto medida do trabalho é a essência ou substância do
valor de troca.
Ao fazer essa constatação, Marx descobre o fundamento sobre o qual reside a natureza dupla
da mercadoria. No capitalismo o próprio trabalho tem uma natureza ambígua, ou dúplice, que dá
aos objetos que cria também uma dupla natureza.
19

Por um lado o trabalho é uma atividade concreta. Cada tipo de trabalho é inteiramente
diferente de outro. E cada tipo de trabalho cria um objeto diferente, que tem também uma utilidade
diferente. Ou seja, em sua natureza de trabalho concreto, o trabalho cria o valor de uso das
mercadorias.
Mas no capitalismo, como vimos, o trabalho é universalmente comprado por uma
determinada quantidade de dinheiro. Quando o capitalista compra o trabalho, ele compra um
determinado tempo de trabalho do trabalhador. Nessa relação econômica existe uma abstração das
formas concretas de trabalho. Ou seja, o trabalho, quando se torna trabalho assalariado, adquire uma
natureza abstrata, que é medida pela sua duração. E como vimos, é o tempo de trabalho gasto na
produção de uma mercadoria que cria o seu valor, que depois se converte em valor de troca. Dito de
outra forma, o trabalho, em sua natureza de trabalho abstrato, cria o valor de troca das
mercadorias.

3.2 – O caráter fetichista da mercadoria

Vimos então que na sociedade capitalista o sistema de trocas, que antes era esporádico, foi
universalizado. Desse modo, praticamente todos os objetos dos quais necessitamos, todos o “valores
de uso”, nos são acessíveis por intermédio do dinheiro. Os membros da sociedade todos (ou quase
todos) trabalham, e como resultado da soma dos trabalhos temos uma dada produção total de
riquezas. Quanto cada um poderá consumir, isto é, a participação de cada indivíduo na distribuição
da riqueza produzida socialmente, é determinado pelo quantum de dinheiro que ele possui, que
quase sempre corresponde ao quantum de dinheiro que ele recebeu em troca do seu trabalho.
Vimos também que em virtude da forma de organização do trabalho no capitalismo, os
trabalhadores encontram-se numa relação de alienação em relação à própria atividade laboral. E
ainda, quando se deparam com os produtos do trabalho (próprio ou alheio), têm uma relação de
estranhamento frente a eles.
Uma das consequências mais marcantes dessa relação de estranhamento do consumidor com
a mercadoria aparece já de cara no momento da troca. Isto é, no momento em que um indivíduo
qualquer decide trocar uma quantidade do seu dinheiro por uma dada mercadoria, de acordo com o
preço desta, uma estranha relação se coloca: nós somos levado a acreditar que o preço é uma
propriedade do objeto. Tudo se passa como se o preço fosse algo naturalmente intrínseco àquela
mercadoria. O mesmo se dá quando comparamos os preços, seja de diferentes marcas do mesmo
tipo de mercadoria, seja comparando os preços de diferentes mercadorias. Somo levados a acreditar
que a mercadoria mais cara é melhor que a outra.
20

Mas a análise anterior nos prova que isso não é


verdade! O preço de uma mercadoria é a forma
de aparência da quantidade de tempo de
trabalho que outras pessoas despenderam para
que ela fosse produzida, pessoas estas tão reais
e cheias de desejos quanto nós. O preço de uma
mercadoria não é portanto uma propriedade da
coisa. Ao contrário, é uma propriedade humana, posta na coisa.O mesmo vale para o valor de uso
da mercadoria. Nós somos levados a acreditar, por exemplo, que um computador possui a
capacidade de navegar na internet. Isso é completamente falso! Tanto a própria internet quanto a
capacidade de “navegar na rede” são capacidades humanas, fruto de décadas de pesquisas e trabalho
de um sem número de pessoas. Não é o computador que navega na internet, somos nós, seres
humanos! E ao usar o computador nós estamos indiretamente nos relacionando com o
trabalho de todas as pessoas que de diferentes formas contribuíram para que o computador
chegasse até nós e nos permitisse fazer tudo aquilo que ele permite. O objeto é um portador
das capacidades humanas. Sem o ser humano, a coisa não é nada.
O mesmo vale para o valor de uso da mercadoria. Nós somos levados a acreditar, por
exemplo, que um computador possui a capacidade de navegar na internet. Isso é completamente
falso! Tanto a própria internet quanto a capacidade de “navegar na rede” são capacidades humanas,
fruto de décadas de pesquisas e trabalho de um sem número de pessoas. Não é o computador que
navega na internet, somos nós, seres humanos! E ao usar o computador nós estamos
indiretamente nos relacionando com o trabalho de todas as pessoas que de diferentes formas
contribuíram para que o computador chegasse até nós e nos permitisse fazer tudo aquilo que
ele permite. O objeto é um portador das capacidades humanas. Sem o ser humano, a coisa não
é nada.
Por tudo isso, quando uma determinada mercadoria tem a propriedade de satisfazer uma
certa necessidade do ser humano, nós, por estarmos condicionados pelas relações de alienação e
estranhamento, não reconhecemos essa propriedade dos objetos como uma propriedade humana.
Essa estranha capacidade das mercadorias aparecerem para nós como coisas dotadas de poderes
extraordinários, Marx chamou de fetichismo.

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos
homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do
trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação
social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem
21

dos produtores. (…) Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se
representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações
materiais que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (…)

Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a análise anterior já mostrou, do caráter
social peculiar do trabalho que produz mercadorias.

Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos privados realizados
independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total.
Como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres
especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de
outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das
relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os
produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que
elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas
como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas. (Marx, O Capital, 2013,
p. 206-207)

Ou seja, a reificação (ou coisificação) das


relações humanas não é um simples
fenômeno de consciência. Não se trata de
uma simples ilusão, ou uma percepção
equivocada por parte das pessoas. O
capitalismo efetivamente promove a
coisificação das relações ao fazer das
mercadorias o intermediário concreto das
relações entre as pessoas.

4- Exploração e Emancipação

4.1 – As contradições da sociedade capitalista

Ao analisar a forma como a sociedade capitalista organiza as relações de trabalho, Marx


constata um amplo conjunto de características contraditórias. A primeira contradição dada no modo
22

de produção capitalista reside, como vimos, no fato de que os indivíduos diretamente envolvidos no
processo de produção não são proprietários dos objetos que resultam de seu trabalho. Isso porque a
relação econômica fundamental da sociedade capitalista é o trabalho assalariado. Nessa relação,
indivíduos que não são proprietários de meios que possam lhes prover o próprio sustento vendem
sua força de trabalho em troca de dinheiro. Mas o resultado do seu trabalho pertence àqueles que
são proprietários dos meios de produção, e que compraram o trabalho do trabalhador. Dessa
contradição fundamental seguem-se outras, de igual modo empiricamente constatadas:
- A sociedade capitalista é, na história da humanidade, a que propiciou a produção de
riquezas materiais em mais alta escala. Mas é também, ao mesmo tempo, a que destituiu de toda
riqueza a maior proporção de seus membros. Em outras palavras, na mesma medida em que produz
riquezas, o capitalismo produz também miséria.
- O modo capitalista de produção põe em conjunto para trabalhar um contingente enorme de
indivíduos, conectados no mesmo processo produtivo. Além disso, como todos precisamos comprar
tudo o que necessitamos para viver, estamos indiretamente (por intermédio do dinheiro) conectados
a um conjunto enorme de sistemas produtivos. Mas no final de cada processo de produção toda a
riqueza produzida pertence apenas ao capitalista, dono dos meios de produção. Isso significa que a
produção dos meios vida humana no capitalismo é a mais coletiva que já existiu, ao passo que a
apropriação desses mesmos meios de vida é a mais privada possível.
- A nossa vida nunca esteve antes tão distante das determinações da natureza, ou seja,
praticamente tudo o que consumimos é criação humana ou depende da intervenção do homem para
chegar até nós. E no entanto, nunca foi tão difícil identificar o homem real por trás dessas criações,
de modo que os objetos parecem coisas autônomas, com capacidades próprias. Ou seja, ao mesmo
tempo em que o capitalismo humaniza o mundo, ele o coisifica.

4.2 – A exploração do trabalho: capital e produção de mais-valia

O fundamento da crítica de Marx à sociedade capitalista está, como visto acima, relacionado
à ideia de alienação, que tem relação direta com as categorias de estranhamento, fetichismo e
reificação. Mas a crítica ao capitalismo passa também por outro ponto crucial: a exploração do
trabalho.
De maneira superficial, o capital é entendido como uma determinada quantidade de dinheiro
que o seu possuidor investe na produção de alguma mercadoria, para obter como retorno o lucro. O
capital é então utilizado para adquirir máquinas, matérias-primas e tudo o que mais seja necessário
para dar início à produção, incluindo também, é claro, os salários dos trabalhadores. Ao final do
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processo de trabalho temos, de maneira simplificada, uma quantidade de mercadorias cuja soma de
seus preços espera-se que seja maior do que a quantidade de capital gasto para viabilizar a
produção. Essa situação Marx descreveu com o conceito de reprodução ampliada de capital, ou
simplesmente valorização do capital. Como isso acontece?
Existe um discurso, formulado especialmente pelo pensamento liberal, que analisa esse
processo como sendo absolutamente legítimo. Segundo a narrativa liberal, todo o risco envolvido na
produção é assumido exclusivamente pelo capitalista. Se tudo der errado, ele vai sozinho perder o
seu capital. Além disso, o trabalho assalariado é descrito como uma relação jurídica justa, um
contrato. Afinal o trabalhador aceitou trabalhar o tempo determinado no contrato em troca do
salário estabelecido. Se a empresa der prejuízo, esse será todo do capitalista. Então nada mais justo
que ele ficar também com todo o lucro, quando esse for o caso.
Mas lembremos de tudo o que foi dito acima. Em primeiro lugar, o trabalho do trabalhador
foi convertido em uma mercadoria como outra qualquer. O salário é o preço da mercadoria trabalho.
Qual é mesmo o fundamento do preço de qualquer mercadoria? Ora, vimos ser o tempo de trabalho
necessário para produzir tal mercadoria. Para a mercadoria trabalho ser produzida é preciso que
hajam trabalhadores, que eles estejam alimentados e descansados, e que possuam também uma
família, de modo que possam ter filhos que irão no futuro se tornar também trabalhadores. O tempo
de trabalho necessário para que a mercadoria trabalho seja produzida é então determinado pela
soma do tempo de trabalho gasto para produzir as mercadorias que o trabalhador e sua família
precisam consumir para que existam trabalhadores. Isso significa que o salário não é apenas uma
relação jurídica, é uma relação econômica. O salário é uma medida do valor do trabalho.
Façamos agora um exercício de matemática. Uma vez que os trabalhadores venderam sua
força de trabalho para o capitalista e se engajam na produção, eles dão início à produção das
mercadorias. Da mesma forma, cada uma das mercadorias produzidas será portadora de um valor,
medido pelo tempo de trabalho necessário para sua fabricação. Esse valor é dado pela soma de tudo
que está envolvido na produção. Somando a produção total de uma fábrica, e em seguida
subtraindo-se os custos fixos e os iniciais (matéria-prima, energia, manutenção das máquinas etc),
teremos então uma medida da quantidade de valor que os trabalhadores agregaram ao produto final.
O valor que o trabalho agrega ou acrescenta a uma mercadoria é o quantum desse trabalho que foi
gasto nela.
Pois bem, se nós tomarmos então a soma dos valores que o trabalho de cada trabalhador
agregou às mercadorias ali produzidas, teremos então como resultado a soma dos valores que o
trabalho de cada trabalhador produziu. A grande descoberta de Marx foi então a de que numa
jornada de trabalho, cada trabalhador acrescenta às mercadorias uma quantidade de valor
superior ao valor da sua força de trabalho. O lucro do capitalista é apenas a forma de aparência
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de uma outra relação mais profunda, que Marx chamou então de mais-valia. A mais-valia é
exatamente essa diferença a mais de valor que o trabalhador coloca com seu trabalho nas
mercadorias que produz. A valorização do capital tem por base então a apropriação privada da
mais-valia. A mais-valia é fruto do esforço do trabalhador, mas é inteiramente apropriada pelo
capitalista. Em outras palavras, a valorização do capital tem por fundamento a exploração da força
de trabalho dos trabalhadores.

4.3 – A emancipação humana, ou emancipação do trabalho

A importância da teoria da mais-valia para o pensamento marxista conduziu muitos de seus


adeptos a um certo equívoco, de considerarem que a crítica ao capitalismo estrava limitada à crítica
à exploração do trabalho. Como a exploração acontece em virtude da apropriação privada da
riqueza, ou seja, como consequência da propriedade privada dos meios de produção, este passou a
ser o ponto central do ataque de muitos marxistas à sociedade capitalista.
No século XX, a humanidade experimentou pelos quatro cantos do globo experiências
políticas que se denominaram de “socialistas”, e que afirmavam ser a aplicação prática das teorias
de Marx. Será mesmo? Será que é possível fazer uma crítica consistente do pensamento de Marx a
partir da crítica do que aconteceu em países como a URSS, China, Cuba etc?
O chamado sistema socialista do século XX repousou basicamente sobre três medidas:
estatização da propriedade (o Estado passou a controlar os meios de produção), planificação da
economia (a oferta era planejada pelo Estado de acordo com uma análise antecipada da demanda) e
o monopólio estatal do comércio exterior (somente o Estado podia importar ou exportar produtos,
de modo a impedir interferências externas na economia).
Embora tenha sido consideravelmente bem sucedido em modernizar países que antes eram
apenas agrários, e também tenham produzido um sistema de distribuição de riquezas bem menos
desigual que o verificado na maioria dos países capitalistas, do ponto de vista econômico nenhuma
medida foi tomada para acabar com a divisão hierárquica do trabalho (ou pelo menos atenuar os
efeitos). E, como vimos, o problema humano decisivo produzido pelo capitalismo, a alienação, tem
como fundamento essa forma de organização do trabalho.
Em uma sociedade em que o trabalho segue organizado de maneira hierarquizada, não causa
espanto que o poder tenha sido exercido de maneira tão burocratizada. Os indivíduos que ocupavam
os cargos de direção do Estado passaram a gozar de privilégios os mais variados, e extrapolaram
sistematicamente suas atribuições no exercício do poder. O extremo a que essa situação chegou foi
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a perseguição política daqueles que discordavam de quaisquer medidas, chegando a haver


efetivamente a condenação a morte de milhões de opositores.
É importante pontuar, contudo, que o chamado “autoritarismo” não foi uma exclusividade
dos países socialistas, mas sim um elemento comum do jogo político mundial em quase todo o
século XX. Nos Estados Unidos, por exemplo, a liberdade de organização partidária foi suprimida
com alegações não muito distintas das usadas na União Soviética, opositores foram presos ou
exilados etc. Os países centrais do bloco capitalista apoiaram política e militarmente regimes de
exceção por todo o planeta, e fomentaram guerras que igualmente levaram a morte milhões de
pessoas.
O mais importante, então, a pontuar aqui é que identificar o pensamento de Marx com as
experiências ditas “socialistas” do século XX é um erro grosseiro, que só é cometido por aqueles
que na verdade desconhecem profundamente as ideias desse pensador. Para compreendermos o que
Marx defendia como o ideal comunista precisamos ter em mente uma ideia de desalienação do
homem, que passa necessariamente por construir uma relação com o trabalho na qual todo o
trabalhador possa encontrar a realização de suas capacidades, e não o puro esgotamento de suas
energias. Nas palavras de Marx:

quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela,
a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida
e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado
dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva
jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente
superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada
um segundo suas necessidades!”.

(Marx, Crítica ao programa de Gotha, 2012, p. 33)

Por isso, o projeto de emancipação defendido por Marx passa centralmente pela
emancipação do trabalho, livrar o trabalho de sua forma alienada, para que então os seres humanos
possam se relacionar uns com os outros como produtores livres associados, onde cada um contribui
para a vida coletiva de acordo com suas capacidades, e recebe na distribuição das riquezas aquilo de
que necessita.
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Referências bibliográficas:
CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,
2009.
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. Vol. 1. Trad: C. N. Coutinho, M. Duayer e
N. Schineider. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle et ali. São Paulo:
Boitempo, 2007.
MARX, K. O Capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. Trad: Florestan Fernandes. São
Paulo: Expressão popular, 2008.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad: Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo,
2004.
MARX, K. Crítica ao programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2012.
PEÑA, Milcíades. O que é o marxismo? Notas de iniciação marxista. Trad: Paula
MaffeiSão Paulo: Sundermann, 2015.

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