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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA – MG


Departamento de Ciências Sociais e Filosofia (DCSF)
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www.dcsf.cefetmg.br
Fundamentos de Sociologia Política

Unidade II - DA ERA KEYNESIANA À HEGEMONIA NEOLIBERAL

Elaboração: Profa. Ana Lúcia Barbosa Faria (DCSF/CEFET-MG)

1 – INTRODUÇÃO

O liberalismo contemporâneo ou neoliberalismo surge em oposição ao modelo político


capitalista denominado Estado de bem-estar social1, que predominou no mundo durante o período
de 1945-1979. Esse modelo inspirado nas teses do economista inglês John Maynard Keynes (1883-
1946) visava corrigir alguns problemas graves do liberalismo, notadamente pretendia reduzir os
patamares de desigualdade social. A doutrina kenysiana sustenta que nas economias capitalistas
desprovidas de regulação econômica as crises tendem a se alastrar, atingindo diversos setores da
economia e podendo envolver uma dimensão de desmoronamento em massa da vida social.

A Crise de 1929 foi um exemplo clássico dessas crises, pois provocou grande depressão
econômica. A desaceleração econômica se espalhou aligeiradamente para os países da Europa e do
resto do mundo capitalista, persistindo no decorrer de toda a década de 1930. Somente após a
Segunda Guerra Mundial, mediante a adoção de medidas de orientação keynesianas, houve um
processo de recuperação econômica. Esse fenômeno tornou-se conhecido como a “Grande
Depressão” e demarcou historicamente o mais grave e extenso ciclo econômico recessivo do século
passado.

A doutrina keynesiana propunha conter as crises periódicas do capitalismo por meio da


aplicação de políticas econômicas intervencionistas, entre as quais: regulação econômica,
investimentos públicos, especialmente em políticas sociais e em infraestrutura; uma redistribuição
ativa de renda; política comercial protecionista, para defender os empregos nas indústrias nacionais.
A adoção do modelo keynesiano propiciou à classe trabalhadora um sistema de proteção centrada
em bens e serviços públicos, como educação, saúde, seguridade, lazer, seguro-desemprego. A

1
Modelo também denominado de Estado-providência, Welfare State ou Estado Social.
1
adesão dos países capitalistas às orientações keynesianas inaugura o modelo de Estado de bem-estar
social que representou uma resposta às necessidades de acomodação das contradições do
assalariamento dentro dos marcos do capital.

Sob a égide do Estado de bem-estar social, os países centrais elevaram seus índices de
crescimento econômico e de pleno emprego, ancorados em sistemas sólidos de proteção social. O
propósito desse modelo era atenuar as condições de vulnerabilidade social às quais os assalariados e
suas famílias estavam expostos e, sobretudo, assegurar a reprodução da oferta de mão de obra. Mais
precisamente, buscava-se garantir a manutenção de uma população apta para o trabalho e para o
consumo. Esse período assinala historicamente o mais longo ciclo expansivo do capitalismo a
despeito de ele ter se concentrado, fundamentalmente, nos países capitalistas centrais e apenas
gotejado na periferia do sistema. O período keynesiano (1945-1979) mudou as coordenadas sociais
e políticas do mundo capitalista.

2 – A ERA KEYNESIANA (1945-1979)

O Estado no modelo de bem-estar social cumpre a função de promover alguma proteção


social à classe trabalhadora diante do avanço das forças de mercado. A adoção do Estado de bem-
estar nos diversos países centrais apresentou características distintas quanto ao grau de
intervencionismo do Estado e a extensão das políticas de proteção social. Os estudos de Sônia
Miriam Draibe (1991), assim como o de José Luís Fiori (1997), identificam três padrões tipológicos
de Estado de Bem-Estar Social, sintetizados a seguir:

i) Tipologia “residual” – A função do Estado é marginal; a política social intervém


apenas quando o mercado e a família são incapazes de responder as necessidades
sociais, ou seja, somente depois de não haver solução por meio do mercado. Os
serviços sociais destinam-se apenas àqueles que comprovadamente apresentem
alguma necessidade, e a ação do Estado dura apenas até que o estado de dependência
seja eliminado. Foi o modelo adotado nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália
(FIORI, 1997, p. 135).

ii) Modelo “Institucional-Redistributivo ou Social-democrata” – A função do Estado é


garantir a produção e a distribuição de bens e serviços sociais a todos os cidadãos.
Esse modelo parte da tese de que o mercado não é capaz de realizar por si próprio
uma distribuição de tais recursos que reduza a insegurança e elimine a pobreza, a
atual ou a futura. Nesse padrão, procurou-se “mesclar mecanismos de garantia de
2
uma renda mínima, regimes previdenciários gerais que oferecem uma base comum
de benefícios de aposentadorias e pensões relativamente independentes das
contribuições pretéritas; equipamentos coletivos públicos gratuitos para a prestação
universal de serviços essenciais, especialmente os de saúde e de educação e
programas de assistência social apoiados na concepção de direito a condições básicas
de vida”. Nesse sistema “a cidadania social é vista como um direito de todos”. Esse
modelo compreende o padrão social-democrata. Os países nórdicos foram os que
mais adotaram medidas características desse padrão, especialmente, a Suécia
(DRAIBE, 1991, p. 3).

iii) Padrão intermediário ou bismarkiano – A função do Estado é assegurar a proteção


social ligada ao corporativismo ocupacional. Nesse padrão, a concepção universalista
coexiste com as intervenções emergenciais canalizadas para atender os “grupos
necessitados”. A natureza do sistema compõe-se do modelo de “seguro social:
programas previdenciários amplos”, ancorados em contratos individuais
estabelecidos conforme a concepção do regime de repartição, do qual a cobertura
está subordinada principalmente ao emprego. Resulta daí a restrição daqueles não
inseridos “no mercado formal de trabalho ou que dele participam precária e
marginalmente (como os trabalhadores rurais ou as mulheres)”. O atrelamento à
esfera laboral implica, frequentemente, a constituição de sistemas de natureza
corporativos e estratificados, ao encerrar em si “distintos regimes previsionais
criados pelo Estado para diferentes categorias”, notadamente “os trabalhadores, os
profissionais liberais, os funcionários públicos, os militares etc. – com grandes
variações em quantidade e qualidade dos benefícios” Esse padrão é adotado na
Alemanha, Áustria, França, Bélgica e Holanda. (DRAIBE, 1991, p. 3).

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3 – DESENVOLVIMENTISMO: A VARIANTE KEYNESIANA DE MODELO
ECONÔMICO PARA O CRESCIMENTO LATINO-AMERICANO

Sob a inspiração da hegemonia keynesiana formou-se nos países latino-americanos um


ambiente de contestação contra o liberalismo que desencadeou um fluxo acelerado de
industrialização com o propósito de reverter os déficits recorrentes no balanço de pagamentos dos
países da região. Sendo assim, no contexto do pós-guerra, as economias latino-americanas passaram
por processo de industrialização e urbanização acelerado, apresentando uma taxa de crescimento de
5,8% entre 1945 e 1954.

Esse processo resulta de nova compreensão teórica sobre a situação da América Latina que
se consolida com a criação da Comissão para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 1948, por
uma decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas um ano antes. A Cepal, sediada em Santiago,
no Chile, foi criada num contexto de descontentamento dos países latino-americanos pelo fato de
terem sido privados da ajuda do Plano Marshall.

A Cepal, diferentemente da maioria das agências internacionais que desempenham um papel


burocrático e inexpressivo, se constituiu em um centro difusor de um pensamento econômico latino-
americano inédito, crítico do liberalismo, que viria a inspirar toda uma geração de economistas. As
teses fundamentais da Cepal para explicar as razões do subdesenvolvimento das economias latino-
americanas podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

i) Centro versus Periferia – A divisão internacional do trabalho produzia efeitos


diferenciados entre países ricos (centro) e pobres (periferia). O progresso técnico se
expandia de maneira desigual: no centro foi mais rápido e elevou a produtividade de
todos os setores econômicos; na periferia – relegada à função de produzir alimentos e
matérias-primas para o centro – a difusão do progresso técnico era restrita ao setor
exportador, não se propagando pelo resto do sistema produtivo.

ii) Deterioração dos termos de troca – O termo de troca é um modelo criado para dar
parâmetro à análise da competitividade econômica de um país em relação aos
demais. Consiste na diferença entre o valor dos produtos importados e exportados. A
deterioração dos termos de troca é um termo criado por Raul Prebisch (1944), um
economista argentino, que esteve à frente de um projeto criado na década de 1950,
cuja finalidade era abordar a economia da América Latina a partir da relação de
trocas. Até então, constatou Prebisch, todos os estudos econômicos eram orientados
para as economias mais desenvolvidas, concentradas no Hemisfério Norte. Em vez
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de os ganhos de produtividade do centro serem transferidos para a periferia, ocorria o
contrário. Em razão dos preços dos produtos primários produzidos pela periferia
sofrerem constante desvalorização, em contraste com os preços dos bens
industrializados vendidos pelo centro, gerava-se uma crescente perda da periferia nas
relações de troca com o centro.

iii) Inflação como um problema estrutural – Os cepalinos contrapunham-se à visão


liberal que considerava a inflação como um fenômeno conjuntural, basicamente
decorrente do aumento da quantidade de moeda na economia (monetarismo), que
provocava um excesso de demanda frente a uma oferta que não poderia ser
aumentada no curto prazo. Para os cepalinos, a principal causa da inflação era a
rigidez da oferta de alimentos, cuja expansão era dificultada pelas condições pré-
capitalistas ainda existentes no setor agrícola (concentração fundiária) e a dupla
pressão exercida sobre a agricultura, seja como produtora de alimentos exigida pela
rápida urbanização, seja como fornecedora de matérias-primas exigida pela expansão
industrial.

iv) Planejamento e protecionismo – Diante da insuficiência de poupança interna, a


CEPAL considerava que o planejamento econômico estatal era a melhor forma de
aproveitamento dos recursos das economias subdesenvolvidas. O planejamento
estatal, portanto, era a melhor via para conduzir as forças de mercado na direção de
promover uma expansão industrial com equilíbrio setorial, de forma a reduzir os
pontos de estrangulamento. O Plano de Metas, implantado pelo governo JK nos anos
1950, foi fortemente influenciado pelas ideias da Cepal. Considerando o atraso da
indústria dos países periféricos em relação aos países do centro do sistema
capitalista, a Cepal defendia a implantação de tarifas e subsídios como forma de
compensar a diferença de produtividade entre os produtos locais e os importados.

v) Tendência ao desemprego – O progresso técnico do centro desenvolvido está


associado às condições de oferta de trabalho e disponibilidade de capital, enquanto
na periferia ele independe de ambos. No último caso, o fato de a mão de obra ser
abundante e o capital escasso não é importante na escolha das técnicas de produção
por parte dos empresários. Como o domínio tecnológico parte do centro, a periferia
simplesmente adota técnicas importadas que economizam o que ela tem em
abundância (excesso de oferta de mão de obra) e gasta o que é escasso (capital).
Gera-se, com isso, uma tendência estrutural ao desemprego nos países latino-
americanos.

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vi) Tendência ao desequilíbrio externo – Observavam os cepalinos que o desequilíbrio
externo tendia a ser recorrente nas economias da região, tanto em razão da
inelasticidade de suas exportações quanto da necessidade de importar bens de capital
e insumos intermediários não disponíveis internamente. Por outro lado, o chamado
“efeito demonstração” – tendência das elites dos países periféricos de copiarem os
padrões de consumo dos países do centro – ampliava a pressão sobre as importações.

vii) Substituição de importações – O modelo de industrialização por meio da


substituição de importações foi o parâmetro tomado pelos cepalinos para alavancar
o ramo industrial como o setor mais importante da economia. A Cepal propunha a
substituição do padrão de crescimento “para fora” (voltado para o mercado externo)
pelo padrão “para dentro” (baseado no mercado interno). Este seria sustentado pela
indústria substitutiva de importações, começando pela produção de bens de consumo
tradicionais que exigem tecnologia simples e pouco capital, avançando
posteriormente para a produção de bens de consumo duráveis e bens de capital. Nas
etapas iniciais do modelo de substituição de importações, o desequilíbrio externo
persistiria na medida em que ocorreria apenas uma mudança na composição das
importações e não uma redução do seu volume. A correção do desequilíbrio externo
só seria possível num estágio avançado de industrialização.

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4 – DESENVOLVIMENTISMO E O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL NO
BRASIL

O período desenvolvimentista, que vai dos anos 1930 a meados da década de 1980, durante
o qual o país vivenciou diferentes regimes políticos, corresponde à trajetória acelerada da
industrialização brasileira que em certos momentos apresentou taxas inéditas de expansão da
produção. Um sistema nacional de proteção social começa a ser implantado no Brasil a partir da
Revolução de 1930 com a criação simultânea, por Vargas, da legislação trabalhista, da estrutura
sindical corporativa (que substituiu a legislação vigente desde o início do século) e dos esquemas
previdenciários.

Conforme analisa Draibe (1991), no Brasil, o desenvolvimento do frágil Estado de Bem-


Estar Social, abarca duas fases importantes, ambas protagonizadas por governos autoritários. A
primeira cobre o período de 1930-1943, sendo marcada por uma densa produção legislativa no
campo previdenciário, trabalhista e sindical, com ênfase na política do trabalho, acrescida de
algumas medidas de políticas de saúde e de educação. A segunda é situada de 1966 a 1971, no
contexto do desenvolvimentismo de aceleração dos processos de industrialização e urbanização,
dando-se a consolidação do sistema com radical transformação no quadro institucional e financeiro
do perfil da política social.

De acordo com a autora, institui-se um padrão de proteção social seletivo com organização
de um sistema nacional público ou estatalmente regulado nas áreas de bens e serviços sociais
(educação, saúde, assistência social, previdência e habitação). Contudo, já se identificam espaços
para políticas de massas de cobertura relativamente ampla, apontando para tendências
universalizantes, embora tímidas.

Draibe (1991) constata que há, então, um padrão brasileiro de bem-estar Social com matizes
do corporativismo e do clientelismo, com um núcleo securitário e denso esquema assistencial, mas
descontínuo e fragmentado, tendo por base uma perversa estrutura de emprego, baixos salários e
concentração de renda.

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5 – IMPACTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DO PERÍODO DA HEGEMONIA
KEYNESIANA

Durante um período de quase trinta anos, a economia cresceu aceleradamente no mundo


todo, com quase pleno emprego e reduzido índice de inflação. A atuação dos Estados Nacionais
constituiu um dos elementos mais decisivos para a dinamização da atividade econômica.
Ampliaram-se, vertiginosamente, os ganhos de produtividade, criando-se, assim, as condições para
encadear o processo de alargamento do trabalho formal, o aumento significativo dos salários reais e
a elevação dos lucros das empresas e, ao mesmo tempo, o fomento de novos surtos de
investimentos. Esse fluxo de crescimento da massa salarial engendra consequentemente a expansão
do consumo das famílias.

Na opinião de Hobsbawm, os 25 ou 30 anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra


Mundial, sobretudo de 1950 a 1970, décadas denominadas como a “Era de Ouro” do capitalismo
ocidental, foram de extraordinário crescimento econômico e transformação social que,
provavelmente, mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro
período de brevidade comparável.

O economista francês François Chesnais (1996) constata que a estabilidade e a expansão da


acumulação capitalista, nessa fase de acumulação ininterrupta, foi a fase de duração mais longa de
toda a história do capitalismo. Fiori (1997) apresenta quatro grandes fatores que propiciaram o
sucesso dos Estados de Bem-Estar contemporâneos.

i) Em primeiro lugar, o que propiciou o sucesso foram os aspectos materiais ou


econômicos que surgiram nas seguintes formas:
• da generalização do paradigma fordista;
• da existência de um consenso suprapartidário em torno dos valores do
crescimento e do pleno emprego;
• de um consenso paralelo em torno das políticas keynesianas;
• da manutenção de um ritmo de crescimento econômico constante e sem
precedentes na história capitalista.

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ii) Em segundo lugar, em consequência do “ambiente” econômico global criado pelos
Acordos de Bretton Woods (julho de 1944), cujas principais decisões dizem respeito
à superação do padrão ouro, emergindo o padrão ouro/dólar, quando a moeda
estadunidense passou a ser moeda de troca entre os países. Assim, os EUA, na
condição de banqueiros do mundo, tornaram Nova Iorque a câmara de compensação
para o ajuste das transações internacionais e a fornecedora de capital para a
recuperação das economias capitalistas. Cada país passou a adotar uma política
monetária que mantivesse a taxa de câmbio de suas moedas dentro de um
determinado valor indexado ao dólar – mais ou menos um por cento – cujo valor, por
sua vez, estaria ligado ao ouro numa base fixa de 35 dólares por grama de ouro. Esse
novo padrão ouro/dólar previa que os EUA tivessem reservas de ouro no FED2
suficientes para liquidar os dólares emitidos e que agora estariam em circulação em
todo o mundo capitalista.
O dólar, nessa nova função, seria mantido a uma taxa constante para a
conversão em ouro. O intuito do sistema de Bretton Woods era evitar o
reaparecimento de guerras monetárias; os países tinham que obter a aprovação do
FMI para alterar os valores de suas moedas. Esse sistema surge da necessidade de
criação de instrumentos eficazes para o gerenciamento econômico mundial
capitalista, uma vez que os EUA se preocuparam com fortalecimento da União
Soviética no final da Segunda Guerra.
iii) Em terceiro lugar, o sucesso dos Estados de Bem-Estar contemporâneos decorre do
“clima” de solidariedade nacional que se instaurou logo após a guerra entre países
vencedores e vencidos e, “logo depois, pela solidariedade supranacional gerada pelo
novo quadro geopolítico”. A bipolarização mundial durante a Guerra Fria assinalou
um novo contexto global. Ideologicamente caracterizado pelos conflitos mundiais
entre projetos antagônicos de organização econômica e social, “criaram os estímulos
ou receios necessários para consolidar as convicções “socialmente orientadas” de
todos os governos; aí incluídos os conservadores, os democrata-cristãos e os liberais”
(FIORI, 1997, p. 5).

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O Sistema de Reserva Federal é o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos.
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iv) Finalmente, o sucesso foi devido ao “avanço das democracias partidárias e de massa
que, pelo menos nos países centrais, onde de fato pode-se falar de Welfare”,
possibilitou que as relações de força eleitoral potencializassem o poder e a relevância
do pleito dos “trabalhadores e dos seus sindicatos e partidos e dos demais setores
sociais interessados no desenvolvimento dos sistemas de welfare states” (FIORI,
1997, p. 5).

6 – A CRISE DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL

Desde a década de 1970 incidiu um processo de degradação da natureza do gasto público


nos Estados Unidos, em razão do crescente impacto dos montantes despendidos com o pagamento
dos juros da dívida pública no volume global dos gastos efetuados pelo Estado. Segundo o
economista político italiano Giovanni Arrighi (1996), a crise aprofundou-se aceleradamente já em
1973, quando o governo dos Estados Unidos recuara em todas as frentes de investimentos. Observa
Arrighi que a crise do keynesianismo estadunidense entre 1968 e 1973 ligava-se às três esferas
distintas e densamente inter-relacionadas, quais sejam:

i) “Militarmente, o exército estadunidense entrou em dificuldade cada vez mais séria


no Vietnã;
ii) Financeiramente, o Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos verificou ser
difícil e, depois, impossível preservar o modo de emitir e regular o dinheiro mundial
estabelecido em Bretton Woods;
iii) A cruzada anticomunista do governo estadunidense começou a perder legitimidade
no país e no exterior.” (ARRIGHI, 1996 p. 310).

A deliberação de Paul Volker, presidente do Federal Reserve Bank dos Estados Unidos, de
elevar a taxa de juros estadunidenses, em outubro de 1979, as crises do petróleo em 1973 e 1979 e
seus impactos na economia, as crises fiscais dos Estados centrais, o retorno da inflação e a recessão
econômica acirraram as contradições do modelo keynesiano e semearam o terreno para o
capitalismo ingressar em um novo ciclo de acumulação.

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A crise do Estado de Bem-Estar Social resultou da conjunção de múltiplos determinantes de
cunho político, social e econômico que se manifestaram em vários âmbitos da vida econômica, ao
desencadear, cronicamente, a queda da produtividade, o aumento acelerado da dívida pública, o
déficit da balança comercial, a hiperinflação e a elevação do desemprego. Esse ambiente de
esgarçamento dos tecidos sobre os quais o Estado de Bem-Estar Social repousou abre espaço para o
retorno gradativo do projeto liberal até a conquista de sua hegemonia.

7 – A BATALHA PARA A REABILITAÇÃO DO LIBERALISMO COMO PROJETO


HEGEMÔNICO

Desde a década de 1940, Hayek e os afiliados à Escola Austríaca de economia iniciaram


uma “batalha de ideias para reabilitação do Liberalismo”. Essa batalha tinha como finalidade
romper com o histórico isolamento do liberalismo em razão da hegemonia keynesiana e delinear
estratégias para reerguer o ideário liberal. A primeira medida efetiva de Hayek para vencer a batalha
das ideias foi a publicação, em 1944, do seu livro Caminho da servidão. Com essa obra, o autor
recebeu vários convites para proferir conferências, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. No
livro, ele constata o isolamento dos defensores do liberalismo em um contexto dominado pelo
intervencionismo triunfante e pelas teses de Keynes.

A batalha de ideias prossegue com o Encontro de Mont Pélerin (1947), no luxuoso Hotel du
Parc, localizado em Mont-Pèlerin, na Suíça, organizado por Hayek e Mises. Compareceram ao
evento 37 pessoas, das sessenta convocadas por Hayek, entre as quais advogados, filósofos e
historiadores. O encontro foi financiado por milionários e suas fundações e, sobretudo, pela elite
bancária da Suíça. Contou com delegados de publicações americanas, como Fortune, Newsweek e
The Reader's Digest. O encontro inaugurou o primeiro Instituto liberal: a Sociedade Mont Pélerin
(Mont Pélerin Society), como afiliados em diversos países.

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Entre os seus membros fundadores figuravam Maurice Allais, Aaron Diretor, Milton
Friedman, Bertrand de Jouvenel, Frank H. Knight, Fritz Machlup, Mises, Michael Polanyi, Karl
Popper, Lionel Robbins, Wilhelm Röpke, George Stigler, Francis Trévoux, além de representantes
da Universidade de Chicago, alguns funcionários do alto escalão do governo dos Estados Unidos e
da França, como Jacques Rueff, o ex-ministro da Fazenda da França, e três jornalistas, um dos
Readers Digest, outro de Fortune e Time & Tide, entre outros. Vinte e quatro dos participantes eram
provenientes dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, nenhum representante dos países periféricos.

A partir da Sociedade Mont Pélerin e mediante subsídio de banqueiros e Industriais, Hayek


dá início a um movimento neoliberal de dimensão internacional, mais precisamente inaugura uma
rede mundial de acadêmicos, pessoas de negócios, jornalistas e ativistas. Os financiadores
endinheirados do movimento fundaram uma série de Institutos (think tanks) que patrocinariam a
propagação e a legitimação do ideário liberal. Entre eles estão a Fundação de Pesquisa Econômica
Atlas (Atlas Economic Research Foundation), o American Enterprise Institute, a Heritage
Foundation, o Cato Institute, o Institute of Economic Affairs, o Centre for Policy Studies e o Adam
Smith Institute. Eles também financiaram cadeiras e departamentos acadêmicos, especialmente nas
universidades de Chicago e da Virgínia.

Contudo, esse ativismo se manteve secundarizado tanto na esfera política como no âmbito
acadêmico. Somente com a crise do keynesianismo houve, progressivamente, uma penetração mais
expressiva dessa corrente de pensamento. Desde a crise, intensificou-se a escalada liberal rumo à
sua hegemonia política, inicialmente no Chile, em seguinda nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha.

Segundo o geógrafo britânico David Harvey, os novos Institutos Liberais, crias de Mont
Pélerin Society, municiados por vastos bancos de ideias bem financiados, ecoam as ideias liberais
influenciando o ambiente acadêmico, nomeadamente, na Universidade de Chicago, “em que reinava
Milton Friedman”. Na década de 1970, quando Hayek e Friedman ganharam o Prêmio Nobel de
economia (em 1974 e 1976, respectivamente), a teoria liberal consolida sua escalada rumo à
credibilidade acadêmica. Essa condecoração, “embora assumisse a aura de um Nobel, não tinha
nenhuma relação com os outros prêmios, estando como estava sob o estrito controle da elite
bancária da Suíça”. (HARVEY, 2008, p. 31).

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O movimento com vistas à reabilitação liberal é potencializado mediante a atuação de
economistas do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, denominados Chicago
Boys, devido à aceitação das teorias liberais de Milton Friedman, nessa ocasião docente da
Universidade de Chicago, convidado para colaborar com a reconstrução da economia do Chile. A
estratégia consistiu em um plano de financiamento estadunidense a universitários chilenos para
estudar economia na instituição educacional mais ostensivamente anticomunista do mundo – a
Universidade de Chicago. Esse plano tinha a finalidade de expurgar ideologicamente os
economistas comunistas latino-americanos, a exemplo de Raúl Prebisch, e difundir o pensamento
liberal. A partir da celebração de um acordo/convênio de cooperação com a Universidade Católica
do Chile, firmado em março de 1956, efetivou-se um episódio singular de “transferência sistemática
de ideologia” dos Estados Unidos para o Chile. Esta transferência foi realizada, explicitamente, por
meio da iniciativa deliberada, planejada e executada por três protagonistas-chave, a saber:

i) O governo estadunidense, por meio da Administração de Cooperação Internacional


do governo dos Estados Unidos (ICA) – International Cooperation Administration –
antecessora da Agência do Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional;
ii) Departamento de Economia da Universidade de Chicago;
iii) Universidade Católica do Chile. (MUÑOZ, 2002).

O convênio firmado ficou conhecido como “Projeto Chile”. De 1957 a 1970, cem estudantes
chilenos estudaram em Chicago, e a partir de 1965 o projeto se expandiu para toda a América
Latina, contemplando países como Argentina, Brasil e México. A Universidade de Chicago
configurou-se como uma instituição altamente especializada, dispondo de um paradigma
estruturado e de um arquétipo para formar um tipo específico de profissional. O primeiro objetivo
de afirmação do novo paradigma consistia em esvaziar a influência exercida na região pelas teorias
do desenvolvimento propostas pela Cepal. O segundo objetivo era experimentar in loco as teorias
liberais concebidas pela Universidade de Chicago e compartilhadas pelos representantes da ICA dos
Estados Unidos. Os agentes da ICA no Chile buscaram interlocutores que lhes permitissem
introduzir o experimento de introjetar naquele país as ideias mais extremas da economia de livre
mercado que estavam sendo propostas nos Estados Unidos. O objetivo obscurecido era ceifar por
completo o que se entendia como a ideologia socialista da economia chilena e conduzir ao longo de
uma década a mudança da administração econômica do país (MUÑOZ, 2002).

Desse modo, a liberal e ultraconservadora Universidade de Chicago converte-se no principal


centro difusor do liberalismo no âmbito acadêmico latino-americano. Os universitários, sobretudo
da América Latina, que pretendiam estudar economia no exterior tinham as portas abertas na

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Universidade de Chicago. Os primeiros alunos ficaram conhecidos como Chicago Boys, e suas
ideias tiveram enorme impacto sobre os destinos dos países latino-americanos.

Os Chicago Boys converteram-se em exímios porta-vozes do pensamento econômico liberal


que na América Latina ficou conhecido como “neoliberalismo”. Vários deles engajaram-se no
movimento fascista chileno Pátria e Liberdade e apoiaram o golpe militar liderado por Augusto
Pinochet que tirou o presidente anti-imperialista Salvador Allende do governo chileno, em 1973.

Os Chicago Boys formularam um programa econômico que orientaria as atuações da junta


militar. Esse programa, um volume de quinhentas páginas, ficou conhecido como O Tijolo. Dos dez
autores de O Tijolo, oito eram Chicago Boys. O conteúdo desse documento era extremamente
análogo ao livro de Friedman, Capitalismo e liberdade, e defendia, entre outras medidas,
privatizações, desregulamentações e cortes nos gastos sociais, a clássica tríade do livre mercado
(GALEANO, 2013). Nesse sentido, o Chile, foi o experimento-teste dos países avançados do
Ocidente para implentação do novo projeto liberal na América Latina e também no leste europeu
após a queda do Muro de Berlim (1989) e o desmoronamento do regime soviético (1991).

A segunda guinada de inspiração liberal deu-se com a eleição da primeira ministra britânica,
Margaret Thatcher, em 1979, e com a de Ronald Reagan, em 1981, para a presidência dos Estados
Unidos. Sob a influência do jornalista e empresário Keith Joseph, Thatcher elege na Grã-Bretanha
com o inabalável compromisso de alinhar os países britânicos às novas exigências do capitalismo.
Após a sua eleição, atrela as políticas governamentais britânicas ao projeto liberal centrado “na
liberalização e na desregulamentação”. Thatcher, em profunda articulação com Ronald Reagan,
transforma e redefine a atividade do Estado, ao repudiar a busca do Bem-Estar Social e sustentar,
vigorosamente, a ideia de que as soluções monetaristas “do lado da oferta eram essenciais para
curar a estagnação que marcara a economia” (HARVEY, 2008, p. 31).

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Vale destacar outra importante frente da batalha das ideias, fundamental para a ascensão do
thatcherismo, desencadeada desde 1955, por iniciativa do industrial inglês Anthony Fisher. Ele
empregou parcela de sua fortuna pessoal para formar o Instituto de Assuntos Econômicos (IAE) de
Londres, além de investir na criação de diversos outros institutos liberais estratégicos. Para Anthony
Fisher, o Institute of Economic Affais conhece a verdade; sua tarefa é evangelizar (COCKETT,
1995, p. 139).

Milton Friedman comenta: “sem o IAE, duvido que tivesse havido uma revolução
thatcherista” (WHEELWRIGHT,1995). Anthony Fisher engajou-se tenazmente na campanha a
favor do livre mercado. Foi o primeiro presidente do Instituto Frazer do Canadá (1974), inaugurou
em Nova York o Centro Internacional para Estudos de Política Econômica (1977) e fundou em San
Francisco o Instituto Pacífico (1979). Na Austrália, participou da criação do Centro de Estudos
Internacionais. Tornou-se um contribuinte notório para a afirmação das ideias de livre mercado na
política australiana durante os anos 1980. Por meio do Instituto Atlas, Anthony Fisher ajudou
estabelecer mais de 150 outros Institutos de ideias liberais em diversos países, dentre os quais se
incluem Instituto Fraser, Instituto Manhattan, Instituto de Pesquisa do Pacífico, Centro Nacional de
Análise de Políticas, Centro de Estudos Independentes, Instituto Adam Smith.

A consolidação da virada liberal completa-se na última metade da década de 1980 e no


início da década seguinte. O fim do “socialismo real” e a nova configuração do ambiente financeiro
mundial possibilitam ao liberalismo pousar triunfante e soberano, tal qual pretendia Hayek e seus
correligionários da Sociedade Mont Pélerin. A queda do Muro de Berlim (1989) e o
desmoronamento do regime soviético (1991) potencializaram a retórica liberal do primado da
sociedade organizada pelo mercado e do seria o equívoco fatal da regulação estatal das atividades
econômicas.

A partir de então, com o fim das barreiras geográficas, intensifica-se a constituição de


mercados livres e amplia-se a possibilidade de auferir vultosos rendimentos de produtividade,
fomentados pela concorrência mundial. Inaugura-se um processo de liberalização do comércio em
âmbito mundial e de ruptura das atividades reguladas pelos poderes públicos. O fim do “socialismo
real” também abriu espaço para um amplo consenso político, em âmbito mundial, em favor da
adoção das reformas neoliberais, com os programas de ajuste estrutural (PAEs) aplicados aos países
periféricos e semiperiféricos sob o monitoramento do Fundo Monetário Internacional (FMI), do
Banco Mundial (BM) e da Organização Mundial de Comércio (OMC). Essas Instituições
Financeiras Internacionais (IFLs) compõem um poderio burocrático hegemonizado pelos países
ricos, dissimulado de autoridade intergovernamental.

15
As Instituições Financeiras Internacionais reguladoras são inseridas no âmago do sistema
capitalista, atreladas aos interesses econômicos e financeiros do grande capital, para submeter as
economias nacionais ao jugo desses interesses, mediante decisões de cunho intervencionista que são
falaciosamente atribuídas à impessoalidade da ordem espontânea do mercado, núcleo do
pensamento hayekiano. Por essa razão, entender o liberalismo contemporâneo ou neoliberalismo
implica conhecer o pensamento formulado por Hayek, que confere sustentação supostamente
teórica ao discurso do mercado como propulsor do processo civilizatório e permite que o ideário
alicerçado nesse pressuposto se propague como verdade incontestável.

8 – O PENSAMENTO HAYEKIANO

Na história contemporânea do liberalismo destaca-se o austríaco Friedrich August von


Hayek (1899-1992) como o mais autêntico sucessor da linhagem que se inaugura em Locke. Hayek
notabilizou-se como um dos maiores expoentes da tradição liberal nos dias atuais. Sua bagagem
acadêmica abarca diversas áreas do conhecimento: Direito, Ciência Política, Economia e Psicologia.
Em 1921, concluiu o doutoramento em Direito, ao mesmo tempo em que frequentou os seminários
privados coordenados por Ludwig Heinrich Edler von Mises (1881-1973), integrante da Escola
Austríaca de Economia. Mises, que se contrapunha ao positivismo lógico, formulou uma
metodologia alicerçada na ação humana individual. Ao aproximar-se de Mises, Hayek passa a
frequentar o ambiente da Escola Austríaca de economia, filiando-se aos princípios básicos
defendidos por essa corrente e dedica-se à produção dos seus primeiros trabalhos sobre os
mercados.

Na acepção hayekiana, o genuíno conhecimento subjetivo, que gera os processos sociais,


não se encontra concentrado em uma única mente humana, acha-se disperso e fragmentado em um
amplo contingente de mentes individuais. O mercado cumpre o papel de organizar e expandir as
diversas parcelas importantes do saber individual de cada um de seus partícipes, ao enviar
sinalizações que orientam a atuação dos demais agentes a ele ligado. O mercado opera como
coordenador que capta e condensa todas as particularidades individuais do conhecimento esparso
(FEIJÓ, 2000, p. 133).

Em Hayek, o mercado opera como um mecanismo de transmissão de dados sistematizados


das informações particulares sobre os preços. O próprio sistema de preços fornece, ainda que com
alguma imprecisão, sinais de direção aos seus agentes. O mercado trata os dados e transmite
indicações que tornam possíveis o processo de coordenação. O planejamento centralizado é incapaz
16
de suprir o papel desempenhado pelo mercado, uma vez que o órgão central de planejamento não
teria como recolher e sistematizar todas as informações relevantes que estão dispersas entre os
agentes; capacidade de que somente a ordem do mercado dispõe. A teoria econômica, mesmo
aquela que só considera a subjetividade do indivíduo, não tem acesso à esfera do conhecimento
individual e, sendo assim, seus modelos possuem um alcance limitado como instrumento de
intervenção na vida econômica.

De acordo com Hayek, a evolução humana provém de um processo de tentativa e erro, por
experimentos contínuos em distintas áreas. Uma vez que as limitações às respostas inatas provocam
demasiado desprazer aos homens, é provável que a humanidade não as tenha selecionado, ao
contrário, “as limitações é que nos selecionaram; elas nos permitiram sobreviver” (HAYEK, 1985,
p. 28-29.a).

O autor ressalta o vanguardismo de Adam Smith ao empregar, figurativamente, a expressão


“mão invisível” para aludir ao comando que escapa à explicação da cognição humana. Para o
pensador austríaco, a metáfora smithiana é a primeira percepção, ainda que imprecisa, de que a
ordem de cooperação humana espontânea extrapola o alcance da razão. Enfatiza Hayek que essa
ordem espontânea se auto-organiza e é conduzida por regras intangíveis, mas assegurados os
elementos intrínsecos à ordem espontânea, notadamente as normas relativas à propriedade privada,
aos contratos e aos princípios do individualismo, à concorrência, gerará a prosperidade, o bem-estar
social e a justiça aos indivíduos (HAYEK, 1988, p. 31-55).

17
8.1 – A justiça e a igualdade social em Hayek

O advento da propriedade privada, na acepção de Hayek, é fruto da evolução espontânea da


tradição humana. O seu surgimento desencadeou o desenvolvimento da complexa economia
moderna, motor da grande sociedade e responsável pelo sofisticado grau civilizatório
contemporâneo. Por essa razão, o autor salienta a necessidade de os governos zelarem pela
perpetuação das normas relativas à propriedade privada, aos contratos e aos princípios do
individualismo que alicerçam a “cooperação pacífica entre os indivíduos, na qual se baseia a
prosperidade”. Prosperidade esta que só se torna possível esteada pela propriedade privada e “sem a
qual não há justiça” (HAYEK,1985.a, p. 55-56). Concerne também ao poder público zelar pela
permanência da concorrência que dinamiza a atividade econômica e engendra o avanço do
“conhecimento e das descobertas em todos os campos”.

Portanto, a concepção de justiça de Hayek, assim como a de Locke, está diretamente


associada à ideia de direito de propriedade privada e, consequentemente, do individualismo
possessivo e da concorrência. Em Hayek, a justiça é compreendida como a observância das normas
pelas quais tal ordem espontânea se tornou possível: o respeito à propriedade de outrem, à
fidelidade dos contratos que se tornaram obrigatórios e adquiriram uma autoridade sobre a
humanidade (HAYEK, 1985.a, p.56).

Observa-se que o critério definidor da injustiça em Hayek é determinado pela


intervenção/pessoalidade. Se uma norma de conduta tem implicação prejudicial, mas emana de um
processo de impessoalidade, então ela não se caracteriza como injustiça, ao passo que a aplicação
de normas lesivas aos indivíduos decorrente de deliberação, de intervenção, configura um ato de
injustiça.

18
Hayek depreende que a sociedade para a tradição liberal é concebida a partir das
individualidades, pois cada indivíduo é responsável por si próprio. Para conferir mais precisão a
essa lógica, o autor sublinha a máxima liberal segundo o qual “todo adulto capaz é, antes de tudo,
responsável pelo próprio bem-estar e o de seus dependentes”; cujo pressuposto é que ninguém deve
se “tornar um fardo para os amigos ou companheiros”. De modo óbvio, esse modelo é inconciliável
com a concepção de que a “sociedade” ou o governo deve dar a cada pessoa uma renda adequada
(HAYEK, 1985.b, p. 121).

Como reitera Hayek, os indivíduos, sob a égide da “ordem de mercado” ou sociedade


fundada na livre iniciativa, enganosamente chamada de “capitalismo”, devem ter em conta que seu
bem-estar provém, em essência, de “seus próprios empenhos e arbitramentos; poucas coisas
infundirão mais vigor e eficiência a uma pessoa que a crença de que a consecução das metas por ela
mesma fixadas depende, sobretudo, dela própria” (HAYEK, 1985.b, p. 93).

Tal modelo fundado no pensamento liberal projeta uma sociedade na qual os vínculos de
solidariedade tanto na esfera pública quanto no âmbito privado são completamente abolidos.
Impera, portanto, a lógica do “salve-se quem puder”, do “Você S/A”3; a própria existência
individual é concebida como se cada indivíduo agenciasse a si mesmo. Cabe aos trabalhadores
empregar as suas aptidões à exaustão, usar a sua capacidade à extenuação, esgotar sua eficiência
plena e, sobretudo, valer-se do mais alto grau de sua astúcia para extrair da ordem espontânea do
mercado uma possível remuneração suficiente para manter a própria sobrevivência e de seus
dependentes. Como propõe Hayek: “os indivíduos devem ser educados para a utilização adequada
dessa capacidade de empreendimento e, ao descobrir a melhor utilização de nossas habilidades,
todos agimos como empreendedores” (HAYEK, 1983, p. 87-88).

O projeto de sociabilidade hayekiano, cujo objetivo é formar indivíduos empreendedores –


“todos devam ser educados para agirem como empreendedores” –, permite verificar no âmbito concreto
a análise refinadíssima do filósofo e sociólogo grego Nicos Poulantzas (1936-1979) sobre a força
política de dominação de uma classe social, que não advém do fato de exercer cargo na cúpula do poder.
A sua capacidade de realizar, hegemonicamente, os seus interesses específicos consiste em mistificá-lo
como gerais/universais e, ao mesmo tempo, igualar todos os indivíduos à burguesia – todos somos
empreendedores. A ideologia liberal apresenta um conteúdo justificador da desigualdade de classe,
como se a pobreza e a miséria resultassem das diferenças individuais e não de condições
socioeconômicas desiguais. Por essa lógica, se malograrmos, a culpa é nossa ou de uma contingência da
ordem espontânea do mercado.

3
Periódico brasileiro que difunde a ideologia do empreendedorismo.
19
Importa indagar qual é o sentido mais preciso do termo mercado, tendo em vista o caráter
ambíguo que reveste esse vocábulo. O termo carrega consigo conotações que não são neutras, mas que,
opostamente, visam construir uma imagem mitificada e, simultaneamente, abstrata e vaga de mercado.
Por esse motivo, interessa interrogar quais características definem essa formulação. Nesse sentido,
François Chesnais apresenta uma contribuição preciosa para caracterizar a noção de mercado na
contemporaneidade. Ele afirma que:

O “mercado” é a palavra que serve hoje para designar pudicamente a propriedade


privada dos meios de produção; a posse de ativos patrimoniais que comandam a apropriação
sobre uma grande escala de riquezas criadas por outrem; uma economia explicitamente
orientada para os objetivos únicos de rentabilidade e de competitividade e nas quais somente as
demandas monetárias solventes são reconhecidas. As fusões-aquisições dos últimos anos
empurraram o processo de concentração a níveis que pareciam impossíveis até vinte anos atrás.
Atrás do eufemismo do “mercado”, encontram-se formas cada vez mais concentradas de capital
industrial e financeiro que detêm um poder econômico sempre maior, que inclui uma
capacidade muito forte de “colocar em xeque o mercado”, “curto-circuitar” e cercar os
mecanismos da troca “normal”. Um terço do comércio mundial resulta das exportações e das
importações feitas pelas empresas pertencentes a grupos industriais que têm o estatuto de
sociedades transnacionais, enquanto que o outro terço tem a forma de trocas ditas “intragrupos”,
entre filiais de uma mesma sociedade situadas em países diferentes ou entre filiais e a sede
principal. Estas trocas não são “livres”, mas altamente planejadas. Elas não se efetuam no
“mercado”, mas no espaço privado interno dos grupos, e são faturadas a “preços de
transferência” internos, fixados, sobretudo de modo a escapar o quanto for possível do imposto.
(CHESNAIS, 2001, p. 7-28).

9 – A ASCENSÃO DO NEOLIBERALISMO NA AMÉRICA LATINA

Como já foi mencionado anteriormente, as ideias neoliberais penetraram no Chile ainda na


década de 1970, por meio da atuação dos Chicago Boys, que formularam o programa econômico da
ditadura de Pinochet. Em meados de 1982, houve a paralisação dos empréstimos de origem privada aos
principais países devedores, o que precipitou a denominada crise da dívida externa. Sob a condução dos
grandes bancos estadunidenses, com a sustentação do governo Reagan e o desempenho ativo dos
organismos internacionais, a comunidade financeira reagiu à possibilidade de um processo generalizado
de inadimplência, introduzindo um modelo de atualização da dívida baseado na nova negociação dos
compromissos pendentes ajustando a política econômica dos países devedores ao receituário
liberalizante.

Os bancos credores internacionais, amparados pelo governo estadunidense via FMI e Banco
Mundial, atuaram como cartéis, submetendo os países periféricos devedores. A essência desse
modelo de atualização da dívida consistiu em submeter os devedores a iniciarem um abusivo processo
de transferência de recursos monetários ao exterior. No que diz respeito aos países latino-americanos,
inverte-se completamente o procedimento dos anos anteriores, entre 1983 e 1988: a transferência de
recursos reais ao exterior alcançou a média anual de 4% do PIB, ultrapassando o esforço realizado pela
20
Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, em torno de 2,5% do PIB. A crise da dívida externa de 1982
significou o fim do modelo de substituição de importações na América Latina e a transição para o
modelo neoliberal.

Assim, os bancos internacionais, atuando como cartéis, perpetraram profunda extorsão


financeira nos países da região. Extorsão realizada por meio da introdução de um modelo de
renegociação, amortização e concessão de novos empréstimos, alicerçado em uma política de juros
exorbitantes e ajuste fiscal. Esse modelo de transferência excessiva de recursos dos países
periféricos devedores para os credores não só assegurou a recuperação econômica dessas
corporações financeiras cartelizadas, como também imprimiu uma nova dinâmica ao processo de
acumulação do capital.

No final dos anos 1980, considerada a "década perdida" para o crescimento econômico, a
situação não só do Brasil como de toda a América Latina afigurava-se muito complexa e sombria.
Não se identificava meio viável para equacionar o problema da dívida externa, gerada pelos
desinvestimentos decorrentes da crescente fuga de capitais tanto estrangeiros quanto nacionais,
acarretando a estagnação econômica, agravada por um incontrolável processo inflacionário.

9.1 – Consenso de Washington (1989)

A crise da dívida impactou severamente os interesses estadunidenses na medida em que a


capacidade de importar e atender ao serviço da dívida externa afunilava-se cada vez mais na
América Latina. Diante desse cenário, o Institute for International Economics promoveu uma
conferência, para a qual foram convidados economistas de oito países latino-americanos –
Argentina, Brasil, Chile, México, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia – supostamente com a
finalidade de formular um diagnóstico da situação econômica dos devedores e sugerir medidas de
ajustamento para a superação da crise.

Nesse evento, o economista norte-americano John Williamson exibiu um documento que


continha dez propostas de reforma econômica, sobre as quais havia amplo consenso em
Washington, tanto entre os membros do Congresso e da Administração quanto entre os tecnocratas
das instituições financeiras internacionais, das agências econômicas do Governo norte-americano,
do Federal Reserve Board4 e dos Institutos Liberais. As propostas, objetivando à estabilização

4
Conselho de Governadores do Sistema da Reserva Federal, abreviadamente designado por Federal Reserve
Board ou FRB, é um órgão de sete membros que governa o Federal Reserve System , o banco central dos EUA
encarregado de gerir a política monetária do país.
21
monetária e ao pleno restabelecimento das leis de mercado, consistiam em um conjunto de
prescrições liberalizantes, quais sejam:

1 – disciplina fiscal; 2 – mudanças das prioridades no gasto público; 3 – reforma tributária;


4 – taxas de juros positivas; 5 – taxas de câmbio de acordo com as lei do mercado;
6 – liberalização do comércio; 7 – fim das restrições aos investimentos estrangeiros;
8 – privatização das empresas estatais; 9 – desregulamentação das atividades econômicas;
10 – garantia dos direitos de propriedade.

Durante a conferência, avaliou-se “a excelência das reformas liberais iniciadas ou realizadas


na região, exceção feita, até aquele momento, ao Brasil e ao Peru” e aprovou-se o pacote de
medidas neoliberais que o governo estadunidense obstinadamente prescrevia, por intermédio dos
organismos financeiros internacionais, como exigência para a concessão de novos créditos externos,
renegociação e amortização de dívidas, via acordos bilateral ou multilateral (BATISTA, 1994, p 6).

A sequência dos acontecimentos parece indicar que o acordo/consenso já estava definido a


priori, antes da conferência, como a justificativa de John Williamson revela. Segundo esse
economista do Institute for International Economics, o termo “Consenso de Washington” foi
cunhado por ele, em 1989, ocasião em que ainda redigia o documento de referência para a
conferência convocada pelo instituto. A proposta era realizar um balanço das velhas medidas e
ideias de desenvolvimento econômico adotadas na América Latina desde a década de 1950. De
acordo com Williamson, os organizadores do evento julgavam tais acepções políticas e econômicas
ultrapassadas. Ademais, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) já
há muito tempo as considerava suplantadas.

Em verdade, embora a América Latina tenha sido o alvo prioritário, o Consenso de


Washington materializou a perspectiva estadunidense a respeito dos rumos da política econômica
em âmbito mundial, traçada para os países periféricos. O acordo mirava como alvo principal a
América Latina, devido ao fato de que na região, naquele período, se encontravam os países mais
endividados. A esse conluio estabelecido pelo núcleo duro da dominação global deu-se o nome de
Consenso. Conforme determinou-se nesse acordo, os países periféricos deveriam ter como meta
prioritária a estabilização monetária.

O Consenso condicionou explicitamente a compra de novos empréstimos no mercado


internacional, as renegociações das dívidas, as amortizações ao orçamento fiscal equilibrado.
Apertou-se, assim, o cerco para os países periféricos que não haviam aderido integralmente às
prescrições de Washington. Os mais poderosos núcleos de poder de Washington estabeleceram os
novos padrões de políticas econômicas e de reformas para a América Latina. Padrões esses

22
ajustados aos interesses dos centros econômicos dominantes mundiais e requeridos desde o início
dos anos 1980.

Efetivamente, o Consenso de Washington estabeleceu a agenda política econômica do Brasil


e dos demais países latino-americanos, bem como definiu o programa de longo prazo, que deveria
ser o adotado como política de governo pelas autoridades latino-americanas a partir da década de
1980, ajustando esta região do continente à lógica do capitalismo neoliberal, mais precisamente ao
modelo econômico neoliberal periférico. Em toda a América Latina, exceto em Cuba, introduziram-
se as reformas contidas no Consenso, em um ambiente político-ideológico de afirmação da doutrina
dogmática hayekiana.

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