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Michel Foucault
O direito nos jogos entre a lei e a norma

Márcio Alves da Fonseca

Michel Foucault produz seus traba- introduziu o jovem filósofo no debate in-
lhos numa região limiar entre diversos telectual de sua geração, cuja formação
campos de saber, em especial aqueles da tem a marca dos estudos estruturalistas,
filosofia e da história. Sua formação em dos debates da filosofia com a psicanálise,
filosofia, na École Normale Supérieure, do existencialismo e de uma releitura do
permitiu ao pensador interessar-se desde marxismo que buscava então fundamentar
cedo também pela história das ciências e as diversas formas da militância política.
pela psicologia, assim como pelos campos Em seu conjunto, os escritos de Fou-
da literatura e da medicina. Sua tese de cault não estabelecem propriamente um sis-
doutorado, publicada em 1961 com o título tema de pensamento. Entretanto, sua coe-
História da loucura na Idade Clássica , 1
são e sua coerência são norteadas por uma

1.
FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. Tra- à Antropologia de um ponto de vista pragmático, de I. Kant.
dução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspec- A tese complementar permaneceu inédita até 2008, quan-
tiva, 1978. Publicado pelas edições Gallimard, em 1961, o do foi publicada pela editora Vrin. Atualmente, encontra-
texto de História da loucura consistia na tese de doutora- -se publicada também no Brasil: FOUCAULT, M. Gênese e
mento principal, orientada por Jean Hyppolite. Além deste estrutura da antropologia de Kant. Tradução de Márcio Al-
trabalho, Foucault apresentou à banca examinadora a tese ves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo:
complementar, que consistiu na tradução e no comentário Loyola, 2011.

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questão filosófica ampla e que se faz presen- mente ao sujeito que as representa, quer
te em toda a sua obra. Trata-se de empreen- como a análise do valor das representa-
der uma problematização do presente histó- ções, considerado relativamente a um co-
rico e do sujeito moderno, compreendidos nhecimento (conteúdo, regra ou forma de
em sua singularidade e contingência. Desig- conhecimento) tomado como critério de
nada por Foucault de “ontologia do presen- verdade –, seu trabalho teria consistido
te” ou “ontologia de nós mesmos”, esta pro- em elaborar uma “história do pensamen-
blematização contínua da atualidade serve to”, que deveria ser compreendida como a
de suporte para as principais interrogações análise de “lugares de experiência”, em
propostas pela filosofia de Foucault. No per- que se articulariam, uns sobre os outros:
curso de suas pesquisas, de sua atividade de primeiro, as formas de um saber possível;
ensino no Collège de France e de suas publi- em segundo lugar, as matrizes normativas
cações, ela adquirirá diversas formas e se do comportamento dos indivíduos; e, por
constituirá segundo diferentes ênfases. fim, possíveis modos de constituição do
sujeito ou de subjetivação3.
Na primeira aula do penúltimo curso2
que profere no Collège de France, em 1983, Ora, trata-se aqui dos três eixos se-

o filósofo descreverá claramente este per- gundo os quais as interrogações de Fou-

curso e suas principais inflexões. Primei- cault são elaboradas: o eixo que privilegia

ro, distingue seus trabalhos daquilo que o estudo histórico de formações discursi-

considera os métodos da “história das vas (saber); o eixo que privilegia o estudo
das matrizes normativas de comporta-
mentalidades” e da “história das represen-
mento e das formas concretas de sua atua-
tações e dos sistemas representativos”.
ção sobre os indivíduos (poder); e, por
Afirmará que, diferentemente de uma his-
fim, o eixo que privilegia o estudo de for-
tória das mentalidades – compreendida
mas possíveis de subjetivação (ética).
como a análise que vai dos comportamen-
tos efetivos às expressões que podem Não devendo ser considerados como
acompanhar esses comportamentos – e, modos de análise independentes ou desar-
também, de uma história das representa- ticulados, mas diferentes perspectivas a
ções – compreendida quer como a análise
do papel das representações relativamen- 3.
Cf. FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros, cit., p. 4-5.
Observamos aqui que utilizamos a expressão “lugares de
te aos objetos representados e relativa- experiência” em vez de “focos de experiência”, como consta
na tradução brasileira do curso de 1983, por entendermos
equivocada a tradução. Neste sentido, segue a referência
2.
FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros. Curso no também ao texto original em francês: FOUCAULT, M. Le gou-
Collège de France (1982-1983). Tradução de Eduardo vernement de soi et des autres. Cours au Collège de France
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (1982-1983). Paris, Seuil/Gallimard, 2008, p. 4-5.

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partir das quais o pensador constrói sua re- o eixo da ética procura estudar diferentes
flexão sobre o presente e o homem moder- formas pelas quais o indivíduo foi levado a
no, cada um desses eixos realiza desloca- constituir a si próprio como sujeito, Fou-
mentos importantes relativamente a formas cault distancia-se da formulação de qual-
de análise e a domínios de conhecimento quer teoria do sujeito ou história da sub-
estabelecidos com os quais o pensamento jetividade, deslocando suas análises da
de Foucault dialogará. Desse modo, na me- questão do sujeito para o problema das
dida em que o eixo da formação dos saberes formas históricas de subjetivação, consi-
procura estudar a experiência como matriz deradas precipuamente por meio das téc-
para a formação dos saberes de uma dada nicas da relação consigo4.
época, Foucault se distancia de uma análi- O tema do direito está presente nas
se do desenvolvimento ou do progresso dos análises que o filósofo realiza a partir des-
conhecimentos e procura estudar as práti- ses três principais eixos de interrogação5.
cas discursivas que, em determinada épo- Esta presença, porém, não permite a apreen-
ca, puderam constituir-se como solo para são nem de um conceito de direito nem de
certos conhecimentos. Procura estudar as uma teoria sobre o direito. Apesar disso,
regras segundo as quais estas práticas dis- trata-se de uma presença importante e re-
cursivas se organizaram, o jogo entre o ver- corrente em quase todos os seus escritos.
dadeiro e o falso que por meio delas se
Proporemos, a seguir, um breve itine-
constituiu, enfim, procura estudar diferen-
rário para o estudo do tema do direito em
tes formas históricas de constituição da
Foucault. Este itinerário, ainda que não
verdade ou de veridicção. Quanto ao eixo
pretenda ser exaustivo, procurará indicar
do poder, uma vez que pergunta pelas ma-
alguns dos trabalhos do filósofo que consi-
trizes normativas de comportamento e pe-
deramos fundamentais para a compreen-
las práticas sociais que permitiram condu-
são da forma pela qual seu pensamento
zir os comportamentos dos indivíduos,
toca o direito, assim como a compreensão
Foucault distancia-se de qualquer formula-
dos usos que Foucault faz do direito para
ção de uma teoria geral sobre o poder, fa-
constituir importantes aspectos de sua on-
zendo sua análise deslocar-se do problema
tologia do presente.
da legitimidade do poder, do significado
das instituições de poder e das formas de
dominação para o estudo das técnicas e dos 4.
Cf. FOUCAULT, M. id., p. 5 -7.
5.
Remetemos o leitor ao nosso estudo aprofundado acerca
procedimentos por meio dos quais se obje- do tema, no livro: FONSECA, M. A. Michel Foucault e o di-
tivou, em dada época, conduzir a conduta reito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. Em grande parte, as
análises constantes deste capítulo retomam sinteticamente
dos indivíduos e dos grupos. Finalmente, se os momentos principais desse trabalho.

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6.1. O tema do direito em Foucault rização do modelo jurídico-discursivo do


poder. Para Foucault, nesse modelo, o
A busca por um conceito de direito
modo de exercício do poder seria dado
ou uma teoria do direito em Foucault é
pelo enunciado da regra ou da lei que, es-
equivocada, pois nem este conceito nem
tabelecendo formalmente o lícito e o ilíci-
esta suposta teoria podem ser encontrados
to, o permitido e o proibido, definiria cla-
em seus escritos. A rigor, não há mesmo
ramente uma polaridade: de um lado, o
um objeto preciso que possa ser chamado
polo que interdita, ordena e domina (de-
“direito” a ser pesquisado em Foucault,
notativo da presença do poder); de outro, o
mas apenas algumas imagens do direito,
polo que obedece, submete-se e é domina-
esboçadas em função de certos usos da-
do (caracterizado pela ausência do poder).
quilo a que, em Foucault, pode-se desig-
nar com a palavra “direito”. Para Foucault, ainda que esta repre-

Entendemos que um caminho ade- sentação jurídico-discursiva do poder seja

quado para a pesquisa destas imagens e amplamente desenvolvida no âmbito da fi-

destes usos é considerar suas implicações losofia e da ciência política, ela é insufi-

com as análises do filósofo acerca da nor- ciente para a compreensão das modalida-

malização. É a compreensão do problema des concretas de exercício do poder. Desse

da norma nos diversos escritos do pensa- modo, para além deste modelo de poder,
dor que permitirá uma apreensão clara, que funciona segundo uma clivagem de
ainda que não evidente, de tema do direito caráter jurídico, Foucault proporá o mode-
em seus diversos trabalhos. lo da normalização, que irá comportar, em
um primeiro momento, o estudo das disci-
Em A vontade de saber6, encontra-
plinas dos corpos e, num segundo momen-
-se uma das referências mais diretas que
to, o estudo dos mecanismos de regulação
Foucault faz ao direito, quando sugere
biopolítica das populações.
uma diferenciação entre o que considera
dois modelos distintos do poder: o modelo O estudo dos mecanismos disciplina-
da soberania (modelo jurídico-discursivo) res e dos dispositivos biopolíticos de segu-
e o modelo da normalização (modelo rança, abordados por Foucault em parte
disciplinar-normalizador). significativa de seus livros e cursos, consti-
tui a analítica (ou genealogia) do poder em-
Segundo essa distinção, o direito é
preendida pelo autor. Em conjunto, os tra-
colocado como a referência para a caracte-
balhos que compõem a analítica do poder
propõem uma abordagem do poder a partir
6.
FOUCAULT, M. A vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1997, p. 79 -87. da perspectiva que considera os mecanis-

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mos concretos de seu exercício, cujo resul- tuamente. Trata-se de uma relação de im-
tado é a normalização das condutas e a plicação recíproca entre o que Foucault
constituição de um tipo específico de sujei- denomina direito e o que chama de nor-
to, o sujeito moderno, normalizado. Assim, ma, que consiste precisamente em um se-
os dispositivos de normalização estudados gundo uso, acompanhado de uma segun-
por Foucault são compreendidos como for- da imagem do direito, presente em seus
mas concretas de exercício de poder que trabalhos.
não têm por finalidade primeira a interdi- Para além de ser compreendido como
ção e a obediência à forma geral da lei, mas lei, o direito é apreendido aqui como vetor
antes a produção de comportamentos e a dos mecanismos da normalização. Se a re-
constituição de subjetividades. lação normalização/direito se apresenta
Desse modo, na distinção conceitual sob a forma de uma oposição quando se
entre estes dois modelos de poder, o direi- trata de distinguir duas concepções de po-
to servirá para caracterizar justamente o der essencialmente diferentes (uma em
modelo da soberania, distinto do modelo que o poder aparece como restritivo das
da normalização disciplinar e biopolítica. ações, e outra em que se procura pensar
Deste uso do direito em Foucault, decorre em seus mecanismos produtores), uma
uma primeira imagem do direito a ser des- vez identificados os mecanismos do poder
tacada em seus escritos, a que denomina- normalizador, trata-se de mostrar de que
mos: direito como lei. Nela, há uma clara maneira seu funcionamento implica conti-
oposição entre o direito e a norma discipli- nuamente as práticas do direito. Assim, a
nar e biopolítica. normalização estabeleceria com o direito

Porém, esta oposição entre direito e relações de implicação e de reciprocidade.

norma deve ser considerada apenas uma Designamos esta imagem com a expres-

oposição conceitual, pois não se configura são: direito normalizado-normalizador.

como uma oposição entre duas realidades Finalmente, a leitura sistemática dos
ou dois âmbitos (o âmbito do direito e o trabalhos de Foucault sugere ainda um
âmbito dos mecanismos da normalização) terceiro uso e uma terceira imagem do di-
que estariam concretamente separados. reito que pode ser ali apreendida. Enquan-
No que concerne ao campo das práticas to a imagem do direito como lei expressa
concretas (e não ao campo estritamente uma oposição conceitual entre os saberes
conceitual), as práticas atreladas ao direi- e as práticas do direito e os mecanismos
to e os mecanismos da normalização não da normalização, enquanto a imagem do
se opõem, ao contrário, colonizam-se mu- direito normalizado-normalizador expri-

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me a colonização concreta entre os sabe- Nessa imagem, o direito não se con-


res e as práticas do direito e os mecanis- funde com os mecanismos da normaliza-
mos da norma, esta terceira imagem ção descritos por Foucault em sua analíti-
remete a outra forma de oposição, presen- ca do poder. O direito serve, ao contrário,
te em Foucault, entre os saberes e as prá- para denotar a particularidade das práti-
ticas do direito e a normalização. Diferen- cas da normalização relativamente ao do-
temente de uma oposição conceitual, esta mínio formalizado da lei. O direito é enca-
nova oposição entre direito e norma rado, portanto, como um sistema de leis e
refere-se ao campo das práticas. Trata-se de aparelhos, independentemente de suas
de uma imagem do direito, esboçada em implicações com a normalização.
alguns poucos escritos do filósofo, em que Em História da loucura, por exem-
este considera práticas do direito que se- plo, a imagem do direito como lei tem um
riam dotadas de um caráter de resistência lugar importante. Neste livro, Foucault es-
e de contraposição aos mecanismos da tuda três diferentes percepções históricas
normalização. O pensador falará, então, da loucura da cultura ocidental: as percep-
de um direito novo, sendo esta a terceira ções renascentista, clássica e moderna. De
imagem do direito que identificamos em maneira especial relativamente a duas de-
seus trabalhos. las – a percepção clássica e a moderna –, a
Passaremos a apresentar, esquemati- consideração do direito enquanto lei permi-
camente, cada uma destas imagens. te a Foucault analisar o caráter de interdi-
ção inerente às medidas de internamento
do louco. Na Idade Clássica, o louco, ao lado
6.2. O direito como lei
de outras figuras sociais igualmente ex-
Uma oposição conceitual entre o âm- cluídas do mundo do trabalho e da produ-
bito do legal e o âmbito do normal permite- ção, é internado nos hospitais gerais, que se
-nos apreender, em Foucault, a imagem do apresentam como estruturas de segregação
direito identificado àquilo a que podemos social, econômica e moral. Na época mo-
chamar de estruturas da legalidade, com- derna, o internamento do louco no asilo psi-
preendidas como as próprias leis, os de- quiátrico, no interior do qual a loucura será
cretos, os regulamentos, os ordenamentos, percebida propriamente como doença men-
o edifício consolidado da jurisprudência e, tal, também se apoia no papel de interdição
também, o aparato judiciário, integrado da lei. A estrutura própria das instituições
pela função judiciária e pelos tribunais em de internamento, seja o hospital geral ou o
suas diversas instâncias. asilo, apresenta-se como uma estrutura

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“semijurídica”. Foucault descreverá tanto o punição decorrente da reforma humanis-


asilo, preconizado por Pinel na França, ta do direito penal da segunda metade do
quanto aquele idealizado por Tuke na In- século XVIII. É no interior do estudo des-
glaterra como microcosmos jurídicos, com sas duas formas de punição, anteriores à
seus procedimentos de inquérito, seus jul- prisão, que a imagem do di reito enquanto
gamentos, suas penas e seus castigos. legalidade terá seu lugar.
A imagem do direito como lei tam- No estudo das diferentes formas pu-
bém ocupará um lugar importante em Vi- nitivas abordadas em Vigiar e punir, in-
giar e punir 7. Neste livro, a normaliza- teressa a seu autor estudar as transforma-
ção disciplinar será analisada como uma ções nos modos de punição a partir de um
tecnologia positiva de poder e seus proce- investimento político sobre o corpo. Se-
dimentos serão estudados em detalhe, gundo Foucault, o que se reconhece por
tais como a distribuição espacial dos cor- meio do corpo marcado ou dilacerado do
pos, o controle do tempo e das atividades, supliciado é, acima de tudo, a lei. Lei que
a vigilância pan-óptica, a composição das dá forma e expressa a vontade do sobera-
forças individuais em série. A descrição
no, lei que fora desrespeitada e cujo efeito
destes mecanismos terá como referência
deverá evidenciar, segundo intensidades
o domínio institucional constituído pela
diversas, a dissimetria entre o poder do
prisão. Segundo as análises de Foucault,
soberano e aquele do súdito que a desres-
a partir do início do século XIX, o apri-
peitara e que, por isso, é punido. O que
sionamento será o modo de punição da
está em jogo no suplício é a lei que, na for-
quase totalidade dos crimes. Ela é a
ma de sentença, é executada minuciosa-
instituição que lhe permitirá descrever o
mente diante de um público atento, prin-
funcionamento do poder disciplinar,
cipal alvo e personagem do ritual político
como conjunto de estratégias de controle
das penas físicas. Não há expressão mais
dos corpos que vinha se constituindo len-
clara da imagem do direito como lei, em
tamente durante os séculos XVII e XVIII
Foucault, que em suas análises sobre o su-
em vá rios domínios. Desse modo, a forma
plício. Nesse modo de punição, revela-se a
punitiva da prisão constitui o objeto cen-
economia de poder soberano, cujo funcio-
tral de Vigiar e punir. Para bem ca rac-
namento se dá pelo confronto entre a von-
terizá-lo, Foucault o oporá a duas outras
formas punitivas: o suplício e a forma de tade do soberano expressa pelo comando
legal, a desobediência a essa vontade co-
metida por alguém e a imposição de uma
7.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Rama-
lhete. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. sanção que se desenrola como resultado

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desta desobediência. Desse modo, o ritual “ilegalismo”8. Foucault introduz esta no-
do suplício reativa o poder soberano, na ção no curso La société punitive9 , por ele
medida em que manifesta publicamente o proferido no Collège de France em 1973,
triunfo da lei sobre qualquer desobediên- retomando-a como principal referência
cia a suas prescrições. para as análises sobre a reforma humanis-
ta do direito penal em Vigiar e punir.
Assim como na forma punitiva do su-
plício, também será em referência a um qua- Por meio da noção de ilegalismo, Fou-
dro geral de correspondência entre lei, cri- cault procurará compreender o significado
me e pena que a reforma humanista do real da reforma, que iria estabelecer uma
direito penal será estruturada. O ideal da correspondência precisa entre os diversos
reforma se formula em oposição à desuma- tipos de crimes e as diversas formas de
nidade do suplício corporal. Os principais pena, e procurará compreender também a
reformadores – como Beccaria, Servan, La- passagem desta forma punitiva para a pena
cretelle, Duport e Target – propalam a ne- uniforme representada pela prisão, que se
cessidade de se estabelecer uma forma de afirma a partir do início do século XIX.
castigo sem suplício, que respeitasse a “hu- A noção de ilegalismo remete à ideia
manidade” do criminoso, por pior que tives- de um jogo entre a legalidade formalmente
se sido seu crime. estabelecida e as ilegalidades efetivamen-
Em sua análise da reforma humanis- te praticadas. Trata-se de considerar que

ta, Foucault explorará o fundo utilitário certo número de ilegalidades, em determi-

inspirador da reforma. Trata-se de organi- nado momento, teriam seu lugar no inte-

zar uma justiça mais ágil e desembaraça- rior dos processos econômicos e sociais

da, em face de transformações significati- presentes em um grupo qualquer, sendo

vas nos domínios econômico, político e portanto aceitas ou mesmo incentivadas, e

social da segunda metade do século XVIII. que, em outro contexto, as mesmas ilegali-

No fundo, o que se denunciava era uma


justiça penal irregular, devido à multiplici-
8.
O termo “ilegalismo” (illégalisme) é empregado por Fou-
cault em Vigiar e punir e em outros escritos sobre o tema da
dade de instâncias com poder de decisão reforma humanista do direito penal. Vale observar que as
traduções disponíveis de Vigiar e punir para o português
que a compunham, e o que estava efetiva- utilizam o termo “ilegalidade” (illégalité) no lugar de “ilega-
mente em questão na reforma do direito lismo”. Consideramos esta tradução inadequada, sendo
que esta inadequação ficará clara no correr de nossa abor-
penal da época era o estabelecimento de dagem sobre o tema.
uma nova economia do poder de punir.
9.
FOUCAULT, Michel. La société punitive. Cours au Collège
de France: 1972-1973. Inédito. Disponível para consulta em
Para explicitar essa nova economia texto datilografado. Dactylographie établie par Jacques La-
grange (213 p.), arquivos da Bibliothèque Générale du
punitiva, Foucault utilizará a noção de Collège de France, p. 116 -144.

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dades poderiam deixar de ser toleradas e dos direitos para os bens. Se os ilegalismos
passariam a ser perseguidas. dos direitos eram necessários à economia

Para Foucault, entre o que é prescri- burguesa liberal, os ilegalismos dos bens
to pela lei e as ilegalidades de fato pratica- deverão ser duramente punidos, uma vez
das, não existe um sistema punitivo neu- que ela tiver se estabelecido.
tro. Isso significa dizer que, concretamente, Paralelamente às diversas atividades
nem toda prática ilegal deve ser punida e que passam a ser consideradas ilícitas,
nem toda lei deve ser cumprida. A punição será necessária uma codificação minucio-
será antes compreendida no contexto de sa de todas essas práticas, fundamental
um jogo diverso de interesses e forças, em para o exercício de uma punição que não
que muitas vezes legalidade e ilegalidade poderá mais ser geral e uniforme, mas que
não se opõem no plano efetivo das práticas deverá ser proporcional à gravidade de
socialmente aceitas. cada crime. É aí que a reforma humanista
Relativamente à reforma humanista encontra seu real significado.
de meados do século XVIII, por exemplo, as A noção de ilegalismo, elaborada por
análises de Foucault mostrarão que haverá Foucault, possibilita-nos pensar, para
uma importante inversão no eixo segundo além da oposição legalidade-ilegalidade,
o qual os ilegalismos se organizavam. Este na existência concreta de uma gestão de
eixo era descrito principalmente pelas inob- práticas consideradas ilegais, em função
servâncias a direitos que, se respeitados de um conjunto de elementos extrajurídi-
integralmente, representariam entraves ao cos (econômicos, sociais, políticos), ainda
funcionamento geral dos diferentes grupos que os limites em que esta gestão se efeti-
em relação ao crescimento econômico. Nes- va possuam como referência principal a
se contexto, é significativa a tolerância de própria lei, uma vez que esta diferenciaria
ilegalidades como a sonegação de impostos previamente zonas de rigor e de abran-
e o contrabando. Impulsionado por esta to- damento repressivos10. Podemos entender,
lerância, o crescimento econômico da bur- portanto, que os ilegalismos circulam en-
guesia, em meados do século XVIII, ao mes- tre o domínio formalizado da lei e os domí-
mo tempo em que se afirma, exigirá uma nios não necessariamente formalizados
reorganização no eixo destes ilegalismos. que constituem as práticas de ordem eco-
Com o aumento geral das riquezas obtido nômica, social e política.
pela burguesia e o crescimento demográfi-
co da época, será possível então entender a 10.
Cf. MONOD, J.-C. La police des conduites. Paris: Michalon,
mudança do alvo principal dos ilegalismos 1997, p. 80.

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A noção de ilegalismo permite a Fou- France da década de 197011, uma vez que,
cault distanciar-se de uma concepção de- em conjunto e ao lado dos livros citados,
masiadamente rígida de lei. Esse distan- esses cursos constituem o essencial da
ciamento nos ajudará a compreender, a analítica do poder de Foucault, compreen-
seguir, a segunda imagem do direito pre- dida como a análise dos mecanismos da
sente em seus trabalhos, diferente da mera normalização disciplinar e da normaliza-
legalidade. Uma imagem que, distinta da ção biopolítica.
lei e de suas estruturas formais, reporta-se Para Foucault, as análises sobre o po-
fundamentalmente à normalização. der apoiadas exclusivamente em um mo-
delo jurídico (que pergunta pela legitimi-
dade do poder) ou em um modelo
6.3. Direito e normalização
institucional (que pergunta pelo significa-
Se, no plano conceitual, a lei e a nor- do e pelo papel do Estado e de suas insti-
malização puderam ser descritas como rea- tuições) seriam insuficientes para eluci-
lidades separadas, em alguns dos traba- dar as formas complexas pelas quais as
lhos de Foucault, quando o autor as relações de poder se estabelecem nas so-
considera no plano das práticas, elas serão ciedades modernas. Seu esforço orienta-
compreendidas em suas inúmeras implica- -se, assim, tanto no sentido de apontar
ções. Esboça-se, assim, uma segunda ima- para os limites de uma concepção ontoló-
gem do direito nos escritos do filósofo: o gica do poder quanto no sentido de deslo-
direito normalizado-normalizador. Nela, car o foco das análises sobre o poder para
as estruturas da legalidade e os mecanis- as diversas modalidades de seu exercício.
mos da normalização se interpenetram,
sendo suporte uns dos outros. 11.
Os cursos são: FOUCAULT, M. Leçons sur la volonté de sa-
voir. Cours au Collège de France. 1970 -1971. Paris: Galli-
Esta imagem do direito está presente mard/Seuil, 2011; FOUCAULT, M. Théorie et institutions
pénales. Cours au Collège de France. 1972. Inédito; FOU-
em Vigiar e punir, uma vez que a análise CAULT, M. La société punitive. Cours au Collège de France.
1972-1973, op. cit.; FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico.
da forma punitiva consistente na prisão
Curso no Collège de France (1973 -1974). Tradução de
(terceira forma punitiva abordada no li- Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006; FOU-
CAULT, M. Os anormais. Curso no Collège de France
vro) terá o papel de descrever as funções e (1974 -1975). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2001; FOUCAULT, M. Em defesa da socie-
os instrumentos da normalização discipli-
dade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
nar. Ela se encontra também em A vonta- Martins Fontes, 1999; FOUCAULT, M. Segurança, território,
população. Curso no Collège de France (1977-1978). Tra-
de de saber, livro em que Foucault intro- dução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
duz a análise da biopolítica. Está presente 2008; FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso no
Collège de France (1978 -1979). Tradução de Eduardo
ainda em todos os cursos do Collège de Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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Michel Foucault 103

O poder será considerado menos como Desse modo, na produção da verdade judi-
uma propriedade – algo que se possui e de ciária, saber e poder não se encontram
que se dispõe – do que como uma estraté- dissociados. A verdade é uma função esta-
gia. Para Foucault, o poder não se esgota belecida no interior de certo jogo de saber/
nas instituições do Estado e no edifício do poder que constitui o discurso e a prática
direito, mas se configura como uma rede jurídicos. É nessa perspectiva que serão
de relações de forças na qual o próprio Es- analisadas, no curso de 1971, formas de
tado e o direito encontram-se inseridos. O saber/poder constitutivas das práticas ju-
poder não tem uma essência, é antes ope- rídicas na Grécia antiga.
ratório. Não atua exclusivamente por vio-
No curso do ano seguinte, intitulado
lência ou repressão, é antes produtor de
Théories et institutions pénales e ainda
gestos, atitudes e saberes.
inédito, Foucault estudará a formação do
Assim, em seus primeiros cursos, inquérito como forma de produção da ver-
trata-se de abordar o tema do poder em dade judiciária atrelada à formação do Es-
suas implicações com a questão da verda- tado medieval, lentamente elaborada a
de e com a constituição dos sujeitos histó- partir dos modelos de gestão e de controle
ricos, a fim de avançar para uma concep- judiciários. No curso de 1973, também iné-
ção não ontológica do poder. dito e intitulado La société punitive, es-
O curso de 1971, Leçons sur la vo- tuda o significado da “função punitiva”
lonté de savoir, tem como horizonte o es- presente nas sociedades enquanto expres-
tudo da função do discurso verdadeiro no são privilegiada da implicação entre saber/
interior do enunciado da lei. A partir da poder na constituição da verdade jurídica.
consideração de diferentes formas históri- Relativamente às sociedades ocidentais
cas de produção da verdade judiciária, modernas, entende que esta função puni-
Foucault sustentará a tese de que, se em tiva é exercida, de maneira predominante,
todo discurso judiciário está implicada a pela prisão. Daí a prisão ser o objeto cen-
verdade, esta não se apresenta a esse dis- tral desse curso, assim como o será em Vi-
curso sob a forma da pura constatação, giar e punir. Este percurso dos três pri-
como algo que lhe seria anterior e exterior. meiros cursos do Collège de France é
O discurso jurídico não se ordenaria em retomado também na série de conferên-
função de uma verdade primeira, que lhe cias A Verdade e as formas jurídicas12 ,
seria ao mesmo tempo anterior e exterior, proferidas por Foucault no Brasil, em 1973.
mas se estruturaria em função de uma
verdade que é estabelecida segundo as re- 12.
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de
gras que são interiores a esse discurso. Janeiro: NAU, 2003.

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104 Manual de Sociologia Jurídica

Em conjunto, todos esses trabalhos são sustentadas pelos mecanismos con-


estudam a normalização disciplinar, aque- cretos da normalização. Pensemos, por
la que se efetiva sobre os corpos no interior exemplo, nas medidas de apropriação dos
dos lugares institucionais. Ao descrever as corpos a serem inseridos nas instituições
funções do poder disciplinar – caracterís- disciplinares e nos regulamentos de tais
tico de instituições como a prisão, o hospi- instituições, nas formas de saber produzi-
tal, a fábrica, o exército – tal como se es- das sobre os indivíduos no interior das ins-
truturam a partir do final do século XVII, tituições disciplinares e na incorporação
o filósofo explicita as técnicas de distribui- destes saberes aos domínios formalizados
ção espacial individualizada, de controle da lei e das instituições judiciárias.
minucioso do tempo e das atividades, de Entretanto, a disciplina dos corpos
seriação e capitalização das forças dos in- não é senão um aspecto da normalização
divíduos no interior destas instituições. estudada por Foucault. A partir do ano de
Associados aos instrumentos de uma vigi- 1976, o filósofo se deterá sobre outra face
lância ininterrupta, de um sistema de san- da normalização, relativa não somente aos
ções que consiste no exercício das ativida- corpos individuais localizados em institui-
des esperadas e da elaboração de um saber ções específicas, mas aos processos da
que tem a forma do exame, a disciplina vida biológica das populações. Trata-se
constitui uma individualidade dócil e útil, daquilo a que Foucault chamará de biopo-
adequada e produtiva. Nesse sentido, dirá lítica, na medida em que se refere a consi-
Foucault, uma individualizada normaliza- derar os mecanismos de regulação e de
da. A normalização disciplinar é historica- seguranças que permitirão a apropriação
mente identificada por Foucault em sua da vida biológica pelas estratégias políti-
simultaneidade à constituição das socie- cas. Quando a vida biológica ingressa de-
dades capitalistas modernas, nas quais o finitivamente nos cálculos da política,
controle dos corpos individuais se atrela inaugura-se, segundo Foucault, a era do
aos mecanismos codificados da produção. biopoder.
Daí, Foucault afirmar que a disciplina é
A normalização biopolítica atua so-
uma anatomopolítica dos corpos.
bre os aspectos da vida biológica que, se
Nesse sentido, se consideramos este considerados na perspectiva dos grupos
modo de efetivação da normalização disci- humanos, permitem o estabelecimento de
plinar, a imagem do direito que se esboça padrões de normalidade a partir dos quais
é aquela em que os saberes e as práticas se estruturam as diversas formas de con-
jurídicas sustentam e, ao mesmo tempo, trole. Desse modo, os processos como a

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natalidade e a mortalidade, o controle das ciedades modernas, segundo Foucault,


morbidades, as movimentações espaciais cada vez mais a lei funciona como norma
das populações, as taxas dos acidentes po- (disciplinar e biopolítica), cada vez mais a
dem se constituir objetos de governo e de lei se confunde com os mecanismos da
gestão. Associada aos mecanismos da dis- normalização.
ciplina dos corpos, a normalização biopolí-
tica permite a regulação dos processos da
6.4. Direito e prática da liberdade
vida das populações segundo formas de
gestão e de governo racionais e complexos. Foucault utiliza a expressão “direito
novo” na aula de 14 de janeiro do curso de
Assim, a imagem de um direito nor-
1976, Em defesa da sociedade13 . Com
malizado-normalizador em Foucault se in-
esta expressão, quer especular acerca de
tegraria pelas diversas formas jurídicas,
uma forma possível para o direito, que se-
como os decretos administrativos, as me-
ria um “direito antidisciplinar” – ou seja,
didas de segurança, as decisões judiciárias
não seria vetor dos mecanismos de norma-
e também as arbitragens que dispõem
lização – e que estaria, ao mesmo tempo,
acerca de realidades, por exemplo: o papel
“liberto do princípio da soberania” – quer
e as funções dos órgãos públicos em face
dizer, liberto das formas que o aprisionam
das necessidades das sociedades, as con-
numa estrutura de poder soberano, cujos
dições segundo as quais se desenvolvem as
instrumentos assegurariam a dominação e
atividades produtivas dos indivíduos, os
a obediência.
problemas de seguridade social, de regime
de trabalho, de saúde pública, de segu- Ao explorarmos o significado possível
rança e de violência etc. Diversos campos desta ideia esboçada por Foucault, é que
do direito poderiam, então, ser pensados encontramos aquela que seria a terceira
em suas implicações com os mecanismos imagem do direito presente em seu pensa-
da normalização biopolítica, particular- mento, a que designamos justamente direi-
mente aqueles do direito administrativo, to novo. Ela deve ser recolhida em momen-
do direito do trabalho, do direito previ- tos esparsos dos trabalhos do filósofo e
denciário, do direito ambiental, dos direi- pode ser localizada em duas posturas.
tos coletivos. Em primeiro lugar, é esboçada em
É importante notar que esta segunda uma postura, por assim dizer, negativa.
imagem do direito em Foucault não expri- Trata-se da postura quase generalizada de
me um domínio independente das estrutu-
ras da legalidade. Ao invés disso, nas so- 13.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade, cit., p. 47.

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desconfiança em relação a todas as formas cas do direito que poderiam constituir-se


do direito formalizado tal como o conhece- em modos de resistência e de oposição aos
mos. Em diversos momentos de seus tra- mecanismos da normalização.
balhos, Foucault exprime esta atitude de Para identificá-la, é necessário, por-
desconfiança em relação à forma da lei, da tanto, interrogarmo-nos acerca da própria
produção legislativa, das instâncias de jul- ideia de resistência em Foucault. A resis-
gamento e de aplicação das sanções. Isso tência aos mecanismos da normalização
porque identifica nestas formas consolida- deve ser pensada, segundo a perspectiva do
das precisamente uma associação entre filósofo, tendo como referência principal o
aquilo a que chama de princípio da sobera- problema do governo das condutas.
nia e mecanismos da normalização. Se-
Nos cursos Segurança, território,
gundo Foucault, desconfiar da forma do
população e Nascimento da biopolítica,
direito seria interrogar-se acerca de um
Foucault estuda em detalhes três formas
domínio de saberes e de práticas em que
racionalizadas e historicamente situadas
os mecanismos da normalização e a estru-
de governo (ou gestão) das condutas dos
tura formal (apoiada no princípio de sobe-
indivíduos. Designa estas formas de ges-
rania) constituem uma unidade.
tão das condutas pela palavra “governa-
Relativamente a esta postura de des- mentalidade”, sendo as três formas históri-
confiança de Foucault, podemos citar, por cas de governamentalidade estudadas
exemplo, o artigo sobre a justiça popu- nestes cursos: a razão de Estado (dos sécu-
lar14, no qual o filósofo coloca em questão los XVI-XVII), o liberalismo (século XVIII)
a forma mesma do Tribunal, ao discutir de e os neoliberalismos contemporâneos.
que modo esta forma teria por função his-
Ora, no próprio curso Segurança,
tórica dominar as manifestações da justi-
território, população15 e também na con-
ça popular.
ferência Qu’est-ce que la critique?16, pro-
Entretanto, esta postura negativa ferida na Société Française de Philosophie
não é capaz de fornecer os contornos efeti- naquele mesmo ano de 1978, Foucault afir-
vos à imagem de um direito novo em Fou- mará que a resistência às governamentali-
cault. Ela deverá ser colocada ao lado da- dades políticas, ou seja, às formas organiza-
quilo a que podemos considerar uma das de condução das condutas dos homens
postura positiva do autor em face do direi-
to. Esta atitude positiva se referirá a práti- 15.
FOUCAULT. M. Segurança, território, população, cit., p. 253
e ss.
16.
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique? Bulletin de la So-
14.
FOUCAULT, M. Sobre a justiça popular. In: Microfísica do ciété Française de Philosophie, t. LXXXIV, année 84, n. 2,
poder. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 39 -68. p. 35 -63, 1990.

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Michel Foucault 107

(também denominadas de artes de gover- A imagem de um direito novo deve


nar) deverá ser pensada como a atitude de ser buscada, portanto, em práticas do di-
recusa em ser governado. Foucault chama- reito que, de certo modo, sejam expressão
rá estes gestos de recusa e de oposição às desta atitude crítica. Ela tomará forma
artes de governar de “atitude crítica”. nas práticas que constituem uma oposi-

Para o filósofo, o problema da gover- ção de indivíduos e de grupos às artes de

namentalidade encerra dois aspectos ne- governar que se apoiam nos mecanismos

cessariamente implicados entre si. Um de- de normalização.

les seria como governar a conduta dos Podemos mencionar alguns exem-
homens, e o outro seria como não ser go- plos deste tipo de práticas nas quais Fou-
vernado. A atitude crítica consistiria justa- cault reconhece esta forma de atitude,
mente na arte de não ser governado, elabo- consideradas então expressão concreta
rada e colocada em prática no interior e daquilo que imagina ser um direito novo.
em correlação com as próprias artes de go- Em 1981, Foucault redige um mani-
vernar. Para Foucault, “se a governamen- festo por ocasião da criação, em Genebra,
talização é o movimento pelo qual se trata de um Comitê Internacional contra a pira-
de sujeitar os indivíduos através de meca- taria aérea, intitulado Face aux gouver-
nismos de poder que reclamam para si nements, les droits de l’homme18. Nesse
uma certa verdade, no seio de uma reali- breve texto, o autor faz referência a certo
dade social, [...] a crítica é o movimento número de iniciativas humanitárias, como
pelo qual o sujeito dá a si mesmo o direito os movimentos “Terra dos homens”, “Anis-
de interrogar a verdade sobre seus efeitos tia internacional” e “Médicins du monde”.
de poder e interrogar o poder sobre seus Compara, então, estas iniciativas com a
efeitos de verdade”17. sua e de seus colegas ao escreverem aque-
Por isso, a atitude crítica seria uma le manifesto. Foucault referia-se ao fato
atitude ao mesmo tempo moral e política, dos redatores do manifesto, dentre os
uma maneira de pensar e de agir. Arte da quais ele figurava, serem indivíduos co-
“não servidão voluntária” ou arte da “indo- muns que se dispunham a falar de uma
cilidade refletida”, a atitude crítica, en- dificuldade comum. Nenhum deles era
quanto recusa de ser governado, é a noção obrigado a fazê -lo. E justamente do fato
que melhor exprime a forma que pode ter de nenhum dentre eles ter sido nomeado
a resistência em Foucault.

18.
FOUCAULT, M. Face aux gouvernements, les droits de
17.
FOUCAULT, M. id., p. 39. l’homme. In: Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. t. IV.

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108 Manual de Sociologia Jurídica

para fazê-lo é que decorria seu “direito” de inquietar-se com a vida social e com tudo
o fazerem. que nela está implicado. Não é possível se-

Segundo Foucault, três princípios parar, de acordo com Foucault, as tarefas

conduziam aquele gênero de iniciativas. O entre os governos e os governados. Deve-

primeiro concernia à existência de uma -se recusar esta separação, pois, segundo

“cidadania internacional”, que possui seus ele: “cabe tradicionalmente aos indivíduos

direitos e que tem seus deveres, e que se indignarem-se e falar; e cabe aos gover-
engaja em insurgir-se contra todo abuso nantes refletir e agir. As iniciativas como
de poder, qualquer que seja seu autor, aquelas citadas (Anistia Internacional, Ter-
quaisquer que sejam suas vítimas. O elo ra dos Homens, etc.) exprimem a recusa
entre todos os indivíduos no interior dessa em se aceitar esse ‘papel teatral da pura e
cidadania internacional seria o fato de to- simples indignação’ que nos é proposto, a
dos serem governados: “após tudo [dirá nós, indivíduos particulares. Tais iniciati-
Foucault] nós somos todos governados e, a vas criaram um direito novo: ‘aquele dos
esse título, solidários”19. O segundo princí- indivíduos particulares intervindo efetiva-
pio aponta para o dever dessa cidadania mente na ordem da política e das estraté-
internacional de “sempre fazer valer aos gias internacionais’” 23.
olhos e aos ouvidos dos governantes os so- O que se depreende desta série de
frimentos dos homens” . Pelo fato de que-
20
exemplos é a ideia de um direito que seria
rerem “se ocupar da felicidade das socie- objeto de uma transformação permanente.
dades, os governos se arrogam o direito de Os exemplos citados por Foucault encer-
contabilizar o lucro e as perdas do sofri- ram também a ideia de que os indivíduos
mento dos homens que suas decisões pro- são continuamente chamados a participar
vocam ou que suas negligências per mi- do jogo da regulamentação social, decor-
tem” . A esse respeito, dirá Foucault: “o
21
rente de uma negociação contínua, ao qual
sofrimento dos homens não deve jamais Paolo Napoli se referirá como “jogo jamais
ser um resto mudo da política. Ele funda definitivo, sempre elástico e transformável
um direito absoluto de se levantar e se di- da regulamentação social” 24.
rigir àqueles que detêm o poder” 22. Por
Neste jogo, afirmará Foucault no ar-
fim, o terceiro princípio se configura na
tigo “Um sistema finito em face de uma
responsabilidade de todo indivíduo de

23.
FOUCAULT, M. id., p. 708.
19.
FOUCAULT, M. id., p. 707. 24.
NAPOLI, P. Face au droit: moments d’une experience fou-
20.
FOUCAULT, M. id., p. 708. cauldienne. In: D’Alessandro, L.; Marino, A. Michel Fou-
21.
FOUCAULT, M. id., p. 708. cault: trajectories au coeur du present. Paris: L’Harmattan,
22.
FOUCAULT, M. id., p. 708. 1998, p. 183.

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Michel Foucault 109

demanda infinita”: “Trata-se de saber, e O direito como lei, o direito norma-


isso é um formidável problema ao mesmo lizado-normalizador e o direito novo são
tempo político, econômico e cultural, so- três figuras do direito que identificamos
bre quais critérios e segundo qual modo nos escritos de Michel Foucault. Por meio
combinatório estabelecer a norma sobre a delas, somos instigados a pensar o direito
base da qual poderíamos definir, em um diferentemente. Elas nos sugerem pensar
momento dado, um direito [qualquer]” . 25
o direito a partir da indeterminação do
Em sua imprecisão de simples ima- próprio objeto “direito”, a pensá-lo tam-
gem, o direito novo, na perspectiva de Fou- bém apartado dos parâmetros coerentes
cault, possui então um ponto de ancora- de uma teoria do direito. Entretanto, tal-
gem preciso, que consiste na ação refletida vez seja justamente esta a contribuição
dos indivíduos. Como afirma Napoli, nesta que o pensamento de Foucault pode trazer
imagem de um direito novo “a ação não é o ao estudo do direito. Abordá-lo segundo
predicado de um enunciado legal, ela é, ao um olhar não essencialista e histórico, ca-
contrário, o momento indiferenciado que paz de perceber, por debaixo do edifício
funda a pretensão a novos direitos” . 26
lógico, as ambiguidades e as contradições,
Pensar o direito enquanto domínio mas para além deste mesmo edifício, tam-
de saberes e de práticas cuja verdadeira bém as possibilidades e os desafios.
legitimação não pode decorrer senão da
prática refletida dos indivíduos, sem refe-
Bibliografia
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é a esta ideia que o pensamento de Fou- 1993.
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________. História da loucura na Idade clássica. Tradu-
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25.
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In: Dits et écrits, t. IV, cit., p. 377.
26.
NAPOLI, P. Face au droit: moments d’une experience fou- ________. Sobre a justiça popular. In: Microfísica do
cauldienne, cit., p. 180. poder. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 39 -68.

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n. 2. p. 35-63, 1990. mard, 2008.
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l’homme. In: Dits et écrits, Paris, Gallimard, 1994. t. IV, de France (1978 -1979). Tradução de Eduardo Brandão.
p. 707-708. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
________. Un système fini face à une demande infinie. ________. Segurança, território, população. Curso no
In: Dits et écrits, t. IV, Paris, Gallimard, 1994, p. Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo
367-383. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

________. A vontade de saber. 12. ed. Rio de Janeiro: ________. O Governo de si e dos outros. Curso no Collè-
Graal, 1997. ge de France (1982-1983). Tradução de Eduardo Bran-
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Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ________. Gênese e estrutura da Antropologia de Kant.
Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus
________. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhe- Muchail. São Paulo: Loyola, 2011.
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