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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.

S. Paulo, 7(1-2), 1995.

A crítica da razão governamental em Michel Foucault


MICHEL SENELLART
Professor do Departamento de Filosofia da
Universidade de Nancy

RESUMO: O artigo examina a crítica da razão governamental moderna efetuada por


Foucault sob dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, analisa a noção de crítica a
partir de uma certa leitura que faz de Kant, articulada a uma ontologia do presente. Em
segundo lugar, investiga o lugar ocupado pelo liberalismo neste procedimento crítico.
Procura enfim mostrar que a crítica de Foucault escapa à imputação de reformismo.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, razão governamental, a atitude crítica, poder,
liberalismo.

Numa conferência pronunciada em 1979 nos Estados Unidos, Foucault explicava o que era,
a seu ver, a tarefa da filosofia: efetuar uma “crítica da razão política”. “(...) depois de Kant,
o papel da filosofia tornou-se o de impedir a razão de ultrapassar os limites daquilo que é
dado na experiência; mas, a partir desta época, (...) o papel da filosofia tornou-se também o
de vigiar os abusos de poder da racionalidade política (...)” (Foucault, 1994e, p. 181).
Ele opõe à ilusão, que é própria da razão, de dizer o que deve ser o poder, a função,
aparentemente negativa, de um contrapoder permanente1. De que modo, contudo, ela
poderia exercer este papel? Não apenas pela vigilância em relação às práticas efetivas do
poder – tarefa que é de responsabilidade de todos os cidadãos – mas pela desmontagem de
seus mecanismos e pela análise da racionalidade à qual obedecem. Esta racionalidade, nas
sociedades ocidentais modernas, caracterizava-se por apresentar duas faces, uma
individualizante e outra totalizante. Tinha sua origem na idéia cristã de um poder pastoral
encarregado dos indivíduos, para conduzi-los, com paciência e firmeza, em direção à
salvação, e na idéia de razão de Estado, que aparece no século XVI, como princípio de
fortalecimento do poder estatal. Estas duas tendências vinham se articular, no século XVIII,
na teoria do Estado de polícia, ou seja, de um Estado que tende a aumentar o seu poder,
cuidando, de uma maneira minuciosa e metódica, da felicidade de seus súditos (de onde o
nome de Estado de bem-estar, Wohfahrtsstaat, pelo qual é também designado). A
implantação de técnicas pastorais no quadro do aparelho de Estado: tal era, para Foucault, a
matriz da razão política moderna. Propunha então chamar com a estranha palavra
“governabilidade” o processo que tinha conduzido da pastoral cristã ao Estado de polícia e
que se prolongava até nós2. O “governo” não era a simples instrumentalização da força de

1
Sobre a filosofia como contrapoder, e as diferentes figuras do filósofo como antidéspota (o filósofo
legislador, o conselheiro do príncipe, ou o cínico que ri do poder) aos quais Foucault acrescenta o esboço de
uma outra atitude possível (Foucault, 1994c, p.537, 539-540).
2
A palavra, que não é empregada em Omnes et singulatim, (Foucault, 1994c) aparece pela primeira vez na
quarta lição do curso de 1978 do Collège de France: Segurança, território, população (Foucault, 1994b, p.
635-657 esp. p. 655).
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um Estado cada vez mais compacto, mas uma figura original do poder, articulando técnicas
específicas de saber, de controle e de coerção. Uma certa racionalização, pois,
historicamente definida, das relações de poder.
É por isso que a crítica da razão política não consistia em fazer o processo da razão, como
se ela fosse portadora, em sua lógica tecnicista, de um devir totalitário (cf. Foucault, 1994e,
p. 135-136)3, mas em mostrar que efeitos haviam sido produzidos pela racionalidade
estabelecida, no Ocidente, no início dos Tempos modernos. Esta análise tomava a direção
diametralmente oposta a três tipos de discurso: o discurso revolucionário, o discurso
individualista liberal, o discurso libertário. Foucault censurava o primeiro, que reduz o
poder a uma violência de classe, e lhe opõe uma estratégia geral de conquista, não somente
por simplificar em demasia o campo múltiplo, instável, heterogêneo, dos conflitos que
atravessam a sociedade, mas também por confundir poder e violência4. Ao segundo, que
define o indivíduo, seus interesses e seus direitos, como puro limite da ação do Estado, ele
objetava que o indivíduo faz parte da mesma história deste último. O indivíduo não é
anterior ao Estado. Ele é o produto das técnicas individualizantes do “governo”. Ao
terceiro, enfim, que rejeita a política em nome de uma espontaneidade sem entraves ou de
uma alteridade radical, Foucault respondia que não há exterioridade em relação ao poder.
Sempre se está preso em suas “malhas” (cf. Foucault, 1994d, p. 182-194), implicado em
seu jogo, o que não significa ser seu prisioneiro. É inútil opor à razão política, uma maneira
de pensar não política. O importante é inventar novas condutas contra a dominação
insidiosa da governabilidade estatal. A problemática do “governo”, pela qual Foucault
rompia com certos aspectos de seu próprio engajamento dos anos 70 (cf. Senellart, 1993, p.
284-288), tem assim seu corolário na ética do cuidado de si, que é uma ética política,
desenvolvida pelos seus últimos livros.
Tal era, em suas grandes linhas, o programa apresentado por Foucault, de uma crítica da
razão governamental.
Esta noção de “crítica”, todavia, levanta diversas questões. Pode-se perguntar em primeiro
lugar – questão abrupta, sem dúvida, mas freqüentemente colocada – se ela traduz a
passagem do extremismo revolucionário, do qual seus escritos e seus atos após 1968 dão
testemunho, a um reformismo moderado. A crítica seria a forma apaziguada da luta quando
a revolução deixa de ser desejável? Pode-se perguntar, além disso, de que ponto de vista
esta crítica pode ser efetuada, já que Foucault nega toda exterioridade em relação ao poder.
Como combater o que nos envolve, se não podemos nos desvencilhar dele a partir da
referência a uma natureza primeira, a uma essência fundadora ou a uma consciência
universal? Pode-se perguntar, enfim, que relações a crítica proposta por Foucault mantém,
não somente com o pensamento de Kant, ao qual ele retorna com insistência, mas com sua
própria análise do liberalismo como “reflexão crítica sobre a prática governamental” (cf.
Foucault, 1989, p. 116 – curso de 1979). Estas questões, aparentemente distintas, de fato

3
Para uma “crítica racional da racionalidade”(cf. Foucault, 1994h, p. 440).Foucault assinala sua diferença em
relação aos teóricos da Escola de Frankfurt, recusando a idéia de uma racionalidade e de uma bifurcação
únicas: “(...) eu, por mim, não falaria de uma bifurcação da razão, mas antes de uma bifurcação múltipla,
incessante, uma espécie de ramificação copiosa. Não falo do momento em que a razão se tornou tecnicista
(...)”.
4
Cf. em paricular Dreyfus e Rabinow (1984, p. 313), cf. também meu artigo (1993, p. 287-288).
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são solidárias umas com as outras. Organizam-se em torno da busca de uma atitude que
associa, num mesmo movimento, a resistência ao poder, a constituição de si e o diagnóstico
do presente.
Já que me deram a honra de pedir que fizesse a abertura destas jornadas de trabalho sobre a
atualidade de Foucault, onze anos depois de sua morte, pareceu-me útil me perguntar sobre
o sentido desta“atitude crítica”, à qual ele consagrou sua última reflexão, a partir de uma
investigação, que não pôde levar a termo, sobre a razão governamental. A questão da crítica
será então objeto de minha exposição. Mas ela constitui igualmente a abertura a partir da
qual se pode travar um diálogo exigente e fecundo com a obra de Foucault. Esta se encerra,
não com um gesto que a fecha sobre si mesma, mas com a recusa de se abandonar a seu
próprio comentário. Ao acaso da morte, que veio interrompê-la subitamente, corresponde,
mais essencialmente, o esforço de “se desprender-se de si mesma” (cf. Foucault, 1984,
p.14), que, de nossa parte, nos convida à reflexão crítica.
Examinarei, pois, num primeiro momento, a maneira pela qual Foucault define a noção de
crítica a partir de uma certa leitura de Kant, articulada ao projeto de uma “ontologia do
presente”. Ver-se-á assim que a crítica se define como uma atitude, um ethos, uma maneira
de agir, inseparável do diagnóstico de uma crise. Examinarei em seguida o lugar singular
que o liberalismo ocupa neste procedimento crítico: de que modo se inscreve no seio da
racionalidade governamental moderna ao mesmo tempo em que a contesta e como Foucault
se situa em relação ao mesmo liberalismo. Tentarei mostrar que esta problemática escapa à
imputação de reformismo, sem cair por isto no impasse da negação radical. Em parte,
apoiar-me-ei sobre materiais não retomados em Dits et écrits, e mesmo em materiais
inteiramente inéditos, como os cursos ministrados no Collège de France em 1978 e 1979.
São territórios do pensamento foucaultianos que precisam a ser explorados.
I Sabe-se que Foucault manteve um longo diálogo com o pensamento de Kant. Minha
intenção aqui não é a de reconstituir as etapas deste diálogos5. Lembrarei simplesmente
que, em As palavras e as coisas, publicado em 1966, Kant aparece como um filósofo que,
pela sua “analítica da finitude”, abriu o campo do saber antropológico. Com o fim da
metafísica, cabe ao homem, consciente de seus limites, fundar suas certezas últimas. Tarefa
infinita, que, paradoxalmente, procede de sua própria finitude, e em cuja realização ele se
torna sujeito e objeto de seu próprio conhecimento. Assim se abre a era da modernidade, na
qual o homem, desligado de toda garantia transcendente, se oferece ao império de sua
vontade desenfreada de verdade. As ciências humanas nasceram nesta virada decisiva6 O
Kant de As palavras e as coisas, para dizê-lo sumariamente, assinala pois o advento, na
cultura ocidental, de um saber que se exerce sobre o homem que fala, vive e trabalha. Saber
ao qual ele opõe então as “contraciências” da etnologia, da psicanálise e da lingüística, que
descobrem, no homem, a existência de estruturas constituintes. É este mesmo saber que
Foucault, em Vigiar e punir (1975, p. 227), associa (mas apagando agora toda referência a
Kant) à formação das técnicas disciplinares.

5
Para uma análise aprofundada, numa perspectiva interpretativa que exigiria aliás uma discussão, cf. Béatrice
Han (1995).
6
Cf. em especial Foucault (1966, cap IX, p. 323 ss.), Dreyfus e Rabinow (1984, p. 47-50) e Habermas (1988,
p. 308-311).
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Ora, Foucault, em 1980, inscrevendo-se explicitamente na tradição kantiana, afirma que


quis fazer, através de seus diferentes livros, uma “história crítica do pensamento”7. Mais do
que isso, em 1983 e 1984, consagra vários textos ao opúsculo de Kant O que é a
Ilustração? (1784), no qual vê aparecer, pela primeira vez, a definição de uma “forma de
filosofia” que problematiza a atualidade da qual faz parte e que ele mesmo tentou praticar
(cf. Foucault, 1994g, p. 688)8. Como explicar esta aparente reviravolta? Dever-se-ia ver,
como o faz Habermas, uma “contradição gritante” entre a denúncia implacável dos efeitos
do poder produzidos pela moderna vontade de verdade e a retomada desta vontade sob a
forma de uma impulsão crítica libertadora? (Habermas, 1986, p. 799). Foucault previne esta
objeção distinguindo em Kant a origem de “duas grandes tradições críticas”: uma, que
“coloca a questão das condições sob as quais um conhecimento verdadeiro é possível” e a
partir da qual “toda uma face da filosofia moderna (...) se desenvolveu como analítica da
verdade”, e outra, que se delineia na questão da Aufklärung, e que se interroga sobre a
significação do presente e traça a via de uma “ontologia de nós mesmos” (cf. Foucault,
1994g, p. 687). De um lado, pois, a Crítica da razão pura, do outro, o artigo O que é a
Ilustração?, definindo dois modos distintos de interrogação crítica. É a distância, a tensão
entre estes dois tipos de questionamento que permite a Foucault reativar a “atitude”
kantiana, sem aderir à doutrina de Kant9. Sem dúvida, esta leitura de Kant mereceria uma
discussão, que não posso fazer aqui. Deter-me-ei apenas em três pontos da interpretação
proposta por Foucault:
a) Através da maneira pela qual Kant coloca a questão da Aufklärung – esta, lembremo-nos,
é a saída do homem do estado de minoridade, ou de dependência infantil, da qual o próprio
homem é responsável, e tem por divisa Aude sapere, “tenha a coragem de pensar por si
mesmo”10 -, ele descobre o esboço de uma “atitude” totalmente nova. Por “atitude”,
entende um certo “modo de relação com a atualidade” (Foucault, 1994f, p. 568), que não é
o do espectador, mas o de um sujeito ator do presente do qual ele faz parte (Foucault,
1994g, p. 680). Segundo Foucault, Kant é o primeiro filósofo que problematiza sua
atualidade, para definir nela o modo de ação do seu discurso. A atitude crítica é, portanto
indissociável de uma “ontologia do presente” (Foucault, 1994g, p. 687): o que, no presente,
tem sentido para aquele que fala dele? O que o constitui, não como momento fugaz, mas
como acontecimento que deve ser pensado?
b) Este acontecimento, segundo Kant, não é somente o da Aufklärung, mas igualmente o da
Revolução. Foucault vê em O conflito das faculdades, escrito por Kant em 1798, a
continuação do artigo de 1784. Nele Kant coloca a seguinte questão: “Há um progresso
constante para o gênero humano?”11. Não basta, diz ele, mostrar que existe uma causa
possível deste progresso (a liberdade do homem como ser moral), deve-se ainda “procurar
um acontecimento” que dê testemunho da ação desta causa. Já que este acontecimento tem
7
Foucault (artigo assinado por Maurice Florence (1984, p. 631). O texto começa por uma frase, colocada
entre parênteses, de F. Ewald, ratificada por Foucault: “Se Foucault se inscreve em alguma tradição filosófica,
é na tradição crítica de Kant (...)”.
8
Ver também Foucault (1994f), e com o mesmo título, (1994g) (este último texto, extraído de um curso de
1983, é de fato anterior ao precedente).
9
A respeito desta distinção entre atitude e doutrina, cf. Foucault (1994f, p. 571).
10
Que Foucault traduz por “tenha a coragem, a audácia de saber” (1994f, p. 565).
11
Esta questão é o objeto da segunda seção da obra, relativa ao conflito da faculdade de filosofia com a
faculdade de direito.
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um valor de sinal, Kant o encontra, não na violência revolucionária, mas no “entusiasmo”


que a experiência da Revolução suscita em seus espectadores. O entusiasmo pela
Revolução é o sinal de uma disposição moral da humanidade que aspira a dar a si mesma
uma constituição republicana. A Revolução realiza assim o processo da Aufklärung. É por
isso que a atitude crítica consiste em pensar conjuntamente estes dois acontecimentos
solidários. O que é este momento da história da razão que significa a Aufklärung? O que
fazer com o entusiasmo pela Revolução? Questões que ainda são as nossas no final do
século XX.
c) A referência ao modelo kantiano não constitui, para Foucault, um retorno a Kant, mas
um esforço para desvencilhar a atitude crítica dos limites nos quais, desde o próprio Kant, a
questão crítica a havia encerrado. Esta, com efeito, assinala para ele um recuo em relação à
análise da Aufklärung. Em Kant, em primeiro lugar, que não levou às últimas
conseqüências a sua própria máxima crítica (“Tenha a coragem de pensar por si mesmo”).
Ao deslocar a crítica para o plano das condições do saber, ele neutralizou os seus efeitos
políticos. Ao invés de opor a autonomia à obediência ao soberano, por uma reviravolta não
menos paradoxal do que aquela descrita em As palavras e as coisas, Kant fundou esta
obediência na própria autonomia12. Na história dos séculos XIX e XX, em seguida, que
“deu mais ensejo à continuação do empreendimento crítico kantiano tal como ele o havia
situado de certa forma como recuo em relação à Aufklärung, do que a alguma coisa como a
própria Aufklärung” (Foucault, 1990, p. 41).
Foucault vê aí três exemplos, entre os quais “se constrói todo um tecido de estreitas
relações” no desenvolvimento de uma ciência positivista, do poder estatal, e, na costura das
duas, de uma ciência do Estado (1990, p. 42). Como reação, a questão da Aufklärung, desde
a esquerda hegeliana até a Escola de Frankfurt, tomou a forma de uma desconfiança
crescente em relação à racionalização e a suas recaídas dominadoras. É nesta linhagem que
Foucault se situa. A atitude crítica consiste pois em repensar a Aufklärung, não como a
aurora do reino luminoso da razão, mas como esforço permanente para interrogar as
racionalidades, tagarelas ou mudas, que nos conduzem. Conseqüentemente, ela implica que
se inverta o procedimento kantiano, passando de uma crítica em termos transcendentais a
uma crítica em termos de práticas imanentes. Kant perguntava quais eram as condições
formais de todo conhecimento possível. Doravante é preciso analisar os mecanismos que,
numa sociedade, produzem o saber real, com os efeitos de poder que dele resultam.
O que é o presente ao qual pertenço? Que acontecimento – por exemplo, o da Revolução e
seu desaparecimento – me obriga a pensar? De que modo eu mesmo estou comprometido
por esta pertinência, e através de que vias poderia transformá-la? Para Foucault, tais são as
questões que definem a atitude crítica. Compreende-se então por que ela não requer
nenhuma transcendência do sujeito. Não é a partir de um ponto de vista universal, o da
12
Cf. Foucault (1990, p. 41) (estranhamente, este texto não é retomado em Dits et écrits): “(...) em relação à
Aufklärung, a crítica será, para Kant, o que ele vai dizer ao saber: sabes até onde podes saber? Raciocina
quanto quiseres, mas sabes bem até onde podes raciocinar sem perigo? A crítica dirá, em suma, que nossa
liberdade está menos naquilo que empreendemos, com maior ou menor coragem, do que na idéia que fazemos
de nosso conhecimento e de seus limites, e que, conseqüentemente, em lugar de deixar outro dizer:
“obedecei”, é neste momento, quando se tiver uma idéia justa de seu próprio conhecimento, que se poderá
descobrir o princípio da autonomia e não se estará mais obrigado de ouvir o obedecei; ou antes, que o
“obedecei” estará fundado sobre a própria autonomia”.
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natureza, de uma pura consciência, ou de um fim da história que se opera a crítica de um


estado de coisas, mas a partir do próprio interior da racionalidade que o governa, em seus
pontos de tensão ou de fragilidade. A crítica, em outros termos, não pressupõe a existência
de um sujeito plenamente consciente de si. Ela não é da ordem de um juízo que sobrevoa a
realidade histórica do alto de uma posição ideal de verdade. Procede das crises que
atravessam a espessura de uma racionalidade, em suas múltiplas dobras. É por isso que ela
não pode, do mesmo modo, pretender romper inteiramente com a racionalidade. A atitude
crítica, escreve Foucault, não é “um comportamento de rejeição. Deve-se escapar à
alternativa entre estar dentro ou estar fora; é preciso se situar nas fronteiras” (cf. Foucault,
1994f, p. 574). Nova reviravolta da questão kantiana: esta última se exercia “na forma da
limitação necessária”, enquanto se trata de experimentar, através de uma crítica prática, “as
formas da ultrapassagem possível”(p. 574).
É nesta juntura da reflexão foucaultiana que se vê a articulação entre a questão crítica, tal
como ele a reformula, e a problemática do governo. Tanto uma quanto outra, com efeito,
são introduzidas por um mesmo movimento, numa conferência de 1978, o ano em que
Foucault reelabora sua análise do poder a partir do conceito de “governabilidade”.
Infelizmente, esta conferência, publicada tardiamente em 199013, não foi retomada em Dits
et écrits. Portanto, a despeito de sua importância, ela é dificilmente acessível. Foucault a
havia intitulado provisoriamente Qu’est-ce que la critique?, por não ousar, como confessa,
chamá-la de Qu’est-ce que l’Aufklärung?14. Ela constitui a primeira versão dos textos que
mais tarde assumirão plenamente este título. Mas cobre igualmente uma área muito
diferente, porque, de um lado, restitui o tema crítico na história da filosofia contemporânea
e, mais precisamente, em relação às etapas anteriores (arqueologia, genealogia) do trabalho
de Foucault, e de outro lado, porque põe em evidência o estreito laço que une a atitude
crítica ao surgimento da governabilidade. Detenhamo-nos no primeiro exemplo apresentado
por Foucault. Ele mostra claramente de que modo a crítica, longe de transcender o presente,
se inscreve nas dobras dos jogos de poder.
O cristianismo havia desenvolvido, nos primeiros séculos, uma nova concepção do governo
como arte de dirigir as almas. Esta pedagogia pastoral estava no centro das atividades da
Igreja, mas só se exerceu, durante muito tempo, em espaços bastante restritos (monastérios,
comunidades espirituais). Ora, nos séculos XV e XVI produziu-se “uma verdadeira
explosão da arte de governar”, sob a forma, de início, de uma laicização, depois de um
reforço distribuído em todos os planos, no espiritual, sem dúvida, mas também no familiar,
doméstico, social, político, militar. Uma das questões fundamentais desta época inquieta, na
saída do feudalismo, foi “como governar?” Governabilização das relações entre os homens
que Foucault designa, em outro texto, como “uma crise geral do pastorado”(cf. 1989, p. 100
– curso de 1978). Contudo, este fenômeno não pode ser dissociado de uma outra questão:
“como não ser governado?”, ou, pelo menos, The Criticism of Governamental Reason in
Michel Foucault “como não o ser de uma tal maneira, por tais pessoas, para tal ou tal
fim?” É deste lado, diz Foucault, do lado de uma certa desconfiança, reticência, resistência
ao governo, mas também de um desejo de governar de outro modo, que se situa a atitude
crítica. Ele assinala seus principais pontos de ancoragem, no retorno à Escritura contra o

13
Cf. supra nota 12.
14
Sobre esta questão do título cf. Foucault (1990, p. 36, 53).
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magistério eclesiástico, na invocação de um direito natural contra a onipotência do


soberano, no raciocínio científico contra o peso da autoridade. É certo que essas críticas
fazem prevalecer um universal (A Bíblia, o direito, a ciência) contra um sistema de
dominação particular, mas o fazem no interior de um dispositivo que liga estreitamente
poder e verdade: se o poder reinvidica uma verdade, é preciso por sua vez combatê-lo pela
verdade. A crítica pode então ser entendida como “uma arte da não servidão voluntária”,
muito próxima, segundo Foucault, da maneira pela qual Kant define a Aufklärung15.
Este exemplo não explica simplesmente a gênese da atitude crítica, na cultura ocidental,
como uma resposta à governabilização da sociedade. Ele ajuda a compreender a maneira
segundo a qual Foucault, no ano seguinte, aborda a questão do liberalismo. É esta última
que gostaria de examinar agora. Se toda crítica, como se viu, procede de uma crise, a qual
delas corresponde a crítica liberal da política? E que relações a atitude crítica mantém com
ela? São homogêneas uma em relação a outra, de modo que ser crítico, doravante, significa
ser liberal? Não é esta a conclusão de Foucault. Mas sua resposta passa por um longo
desvio, que é preciso reconstituir esquematicamente.
II Foucault analisa o liberalismo, não como teoria econômica ou jurídica, mas como uma
certa prática refletida de governo. Ele o opõe ao modelo do Estado de polícia, que
dominava, até o século XVIII, a maior parte das monarquias européias. Em si mesma, esta
oposição não tem nada de original. Ela já aparece nos liberais alemães, que, seguindo a
mesma trilha de Kant16, haviam denunciado o despotismo do Estado de polícia, em nome
dos princípios do Estado de direito. É o argumento central, por exemplo, do famoso Essai
sur les limites de l’État, escrito por Guillaume de Humboldt em 179217. Este distingue dois
objetos possíveis para o cuidado do Estado: o bem positivo, que consiste no bem-estar
físico dos súditos, e o bem negativo, que consiste em sua segurança. O Estado que busca o
primeiro tende a ampliar indefinidamente seu domínio, a transformar os homens em
máquinas e a uniformizar a sociedade. Só a busca do bem negativo, conseqüentemente, é
compatível com as exigências da liberdade. Segurança contra bem positivo: a fórmula
retomada, no século XIX, por todos os partidários de um Estado mínimo. Foucault,
contudo, não se contenta em lhes fazer eco. Opõe as duas lógicas não em termos de direito,
mas de racionalização. Enquanto, segundo o princípio da polícia (em outras palavras, do
Estado de bem-estar), “nunca se governa demais”, pois muitas coisas escapam ao controle
administrativo, o liberalismo, por sua vez, é atravessado pela suspeita de que “sempre se
governa demais” (Foucault, 1990, p. 111). A racionalização liberal do governo obedece a
uma regra de economia máxima. Não no sentido que se queira governar o mais possível
com o menor custo, mas no sentido em que se pergunta se não é mais custoso governar do

15
Sobre todo este desenvolvimento, cf. Foucault (1990, p. 37-39).
16
Sobre a crítica de Kant ao Estado patriarcal do bem-estar, cf. Théorie et pratique (1793, p. 31), “um
governo que fosse fundado sobre o princípio da benevolência em relação aos povos, tal com o do pai em
relação aos filhos, (...) no qual, conseqüentemente, os súditos (...) são obrigados a se comportar de maneira
unicamente passiva, a fim de esperar somente do chefe do Estado a maneira pela qual devem ser felizes (...) –
um tal governo, digo, é o maior despotismo que se possa conceber”; denunciando a confusão entre o
“princípio da felicidade” e o “princípio do direito”, ele escreve que “o soberano que quer tornar o povo feliz
segundo a idéia que ele tem de felicidade e (...) se torna déspota”(p. 44-45).
17
Ideen zu einem Versuch, die Grenzen der Wirsamkeit des Staates zu bestmmen. Este livro só foi publicado
em 1851, depois da morte de seu autor. Eu o cito na tradução de H. Chrétien, Paris, 1867. Boa síntese da obra
em P. Rosanvallon (1984, p. 74-77).
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que não governar. Será verdadeiramente necessário governar? Como se sabe, esta era a
questão colocada por Thomas Paine em 1792. Transpondo as idéias de Adam Smith para o
terreno político, ele afirmava que a sociedade não teve necessidade do governo para se
desenvolver.
“Uma grande parte desta ordem que reina entre os homens não é efeito do governo. Ela tem
sua origem nos princípios da sociedade e da constituição natural do homem. Existia antes
do governo, e continuaria a existir se a formalidade do governo fosse abolida. (...) [pelo
jogo de interesse recíproco] a sociedade realiza por si mesma tudo o que é atribuído ao
governo” (Paine, 1792, p. 11).
Disto ele extrai a conseqüência de que a sociedade, pelos mecanismos naturais da troca e da
divisão do trabalho, ao assegurar a ordem e a prosperidade melhor do que poderia fazer o
melhor governo, torna-o desnecessário. Apenas as fraquezas humanas justificam a
conservação de um mínimo de Estado. A idéia de uma sociedade imediata a si mesma,
auto-regulando-se pelo jogo de interesses, funda assim uma crítica radical do governo. É
ela, escreve Foucault,
“que permite desenvolver uma tecnologia de governo a partir do princípio de que ele é, em
si mesmo, ‘a mais’ (...), que ele vem se acrescentar como um suplemento ao qual se (...)
deve sempre perguntar se é necessário e para que é útil” (1990, p. 112-113).
Como governar, contudo, se se governa sempre demais? Tal é, para Foucault, a questão que
faz do liberalismo uma prática de governo original, ligada, em seu funcionamento, à crítica
permanente de si mesma. É por esta razão que ele vê nela “uma forma de reflexão crítica
sobre a prática governamental” (Foucault, 1990, p. 116). Crítica não somente das práticas
despóticas do Estado absoluto, mas da própria racionalidade do governo, como princípio
que estrutura a sociedade. Crítica, pois, da razão governamental. Em que sentido esta crítica
está ligada à atitude crítica problematizada por Foucault? É notável que, num de seus
cursos sobre Adam Smith, ele aproxime a crítica liberal da crítica kantiana. Observemos
mais de perto seus argumentos, a fim de melhor delimitar os contornos desta questão
crítica.
O que é a “mão invisível” da qual fala Adam Smith, numa passagem célebre da Riqueza
das nações? (1776, p. 43) Ela constitui um resquício teológico? Designa, no seio do mundo
econômico, o lugar secretamente ocupado por um Deus providencial? Foucault recusa esta
interpretação, pois o importante, na sua opinião, não é tanto a mão, substituto de uma
providência que junta os fios dispersos dos interesses, mas sua invisibilidade, indispensável
para a lógica do mercado. Ela implica que nenhum agente econômico deva visar ao bem
geral, já que este é melhor servido, através da harmonização natural dos interesses, quando
cada um trabalha por seu ganho pessoal. Nenhum agente econômico, mas também nenhum
agente político.
“É impossível que o soberano possa ter um ponto de vista sobre o processo econômico que
totalize cada um dos elementos e permita combiná-los artificialmente ou voluntariamente”
(Foucault, 1979, 11ª lição).
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Incapaz de adquirir um ponto de vista totalizante, o soberano deve ser cego. É a própria
incognoscibilidade do processo econômico em seu conjunto que torna possível a
composição dos interesses. Daí um novo tipo de limitação do poder estatal, não pelo
recurso a direitos que não podem ser transgredidos, mas pela realidade de sua própria
impotência. Ele não deve querer controlar a indústria dos particulares, porque não pode
saber como ela concorre mais eficazmente para o interesse geral. Desqualificação da
soberania, a partir da constituição da economia como espaço intotalizável:
“O liberalismo em sua consistência moderna começou quando (...) foi formulada esta
incompatibilidade essencial entre (...) a multiplicidade não totalizável, característica dos
sujeitos econômicos, e (...) a unidade totalizante do soberano jurídico” (Foucault, 1979, 11ª
lição).
Este é, propriamente, o lugar crítico do liberalismo, no sentido kantiano do termo. Do
mesmo modo que o homem não pode conhecer a totalidade do mundo, assim também o
soberano não pode conhecer a totalidade do processo econômico. A crítica formal do
conhecimento inaugura a era da finitude antropológica, a crítica econômica, a era da
limitação governamental. Lembremo-nos, todavia, que a atitude crítica, para Foucault, não
se identifica com a crítica kantiana, mas com aquilo que ele chama Aufklärung. Qual é pois
a tarefa da Aufklärung em relação à crítica liberal da razão governamental? É tripla: tarefa
de autocrítica, em seguida de contracrítica, enfim de radicalização crítica.
a) Em primeiro lugar, autocrítica. Sabe-se que lugar ocupava, em Vigiar e punir (1975), o
panóptico de Bentham, esta utopia arquitetural concebida, no fim do século XVIII, para
racionalizar a administração das prisões: ideal-tipo do estado de polícia, “fazendo funcionar
o projeto de uma visibilidade universal (...), em proveito de um poder rigoroso e
meticuloso” (Bentham, 1977, p. 16)18. Diferentemente da soberania, que se manifestava
com ostentação, este poder se exercia de maneira invisível, impondo àqueles que submetia
uma visibilidade obrigatória. Forma pura de tecnologia disciplinar, a prisão benthamiana
levava à perfeição um dispositivo de controle estabelecido desde a idade clássica, e do qual
as próprias ciências humanas tiravam sua existência. É por isto que Foucault, em 1975,
podia caracterizar a modernidade como a era da sociedade disciplinar.
Ora, se o panóptico oferecia o modelo de um poder tanto mais eficaz quanto mais era
engenhoso, a economia política liberal põe em cena uma representação absolutamente
contrária: não mais um poder que tudo vê e tende a crescer indefinidamente, mas um poder
cego, obrigado a autolimitar-se por sua invencível ignorância. Foucault é assim conduzido a
rever seu diagnóstico do presente, fazendo aparecer, na idéia da “mão invisível” o princípio
radical do panóptico. Bentham, num acesso de entusiasmo, havia comparado o poder do
vigilante à onipotência divina. O dispositivo disciplinar se inscreve pois ainda, pelo seu
projeto totalizante, numa visão teológica da sociedade. Inversamente, não há lugar para
Deus no processo econômico. A economia, enquanto mostra a impossibilidade de um ponto
de vista global sobre o Estado, representa a primeira teoria atéia do funcionamento social.
Ela abre igualmente um outro espaço de resistência ao poder que não é aquele definido
pelas técnicas disciplinares. Contra as disciplinas, não havia luta possível a não ser em
termos de guerra (era a via revolucionária). A obscuridade do mercado, a opacidade da

18
Ver também Foucault, (1994, p. 195) e (1975, p. 201-206).
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sociedade a qualquer olhar inquisidor permitem que múltiplas práticas de autonomia se


manifestem.
b) Contracrítica, em seguida. Não se deveria acreditar, bem entendido, que o mercado seja
o lugar de uma liberdade imediata e plena que poderíamos fazer valer contra todo excesso
do governo. E isto pelo menos por três razões. A primeira, é que o liberalismo, como forma
de pensamento crítico, constitui igualmente o eixo de uma governabilidade positiva que,
segundo os contextos históricos ou nacionais, pode se transformar no seu contrário. Assim,
a economia induziu as políticas antiliberais (Nationalökonomie do século XIX, economias
planificadoras do século 20), do mesmo modo que o Estado de direito se revelou
compatível com os regimes autoritários (cf. Foucault, 1989, p. 116). A segunda razão reside
no fato de que se o liberalismo funciona pela liberdade (liberdade do mercado, do direito de
propriedade, da discussão, da circulação, etc.), assim como o Estado de polícia funciona
pela docilidade, esta liberdade deve tanto ser produzida por uma ação permanente do
governo quanto protegida das usurpações que a ameaçam.
“(...) se o liberalismo não for tanto o imperativo da liberdade quanto a gestão (...) das
condições sob as quais se pode ser livre, (...) será instaurada no coração mesmo desta
prática liberal uma relação problemática, (...) sempre desigual, entre a produção da
liberdade e aqueles mesmos que, ao produzi-la, ameaçam limitá-la e destruí-la. (...) [ A
produção da liberdade] implica (...) que se estabeleçam limitações, controles, coerções,
obrigações apoiadas sobre ameaças, etc. (...) Temos aí uma espécie de respiradouro para
uma espantosa legislação, para uma espantosa quantidade de intervenções governamentais
que serão a garantia da produção das liberdades das quais precisamente se tem necessidade
para governar”(Foucault, 1979, 3ª lição).
É o cálculo do custo de fabricação desta liberdade que constitui o problema da segurança. A
economia não é pois o domínio de uma pura espontaneidade individual, mas de uma
liberdade solicitada, controlada, fabricada, cuja medida depende da relação, ela mesma
variável, entre governantes e governados.
A terceira razão, correlativa às duas precedentes, se liga ao fato de que a racionalidade
liberal não faz tábula rasa dos mecanismos reguladores forjados pelo governo do Estado de
polícia. Ao contrário, ela se inscreve no interior de um movimento histórico que a obriga a
assumir sua herança: a da formação do biopoder moderno. Em outras palavras, este poder,
que se encarrega, não mais dos indivíduos, a fim de domá-los e sujeitá-los por intermédio
de técnicas disciplinares, mas da população, a fim de regular seus processos biológicos
(natalidade, mortalidade, longevidade, etc.). Foucault descreve a sua emergência, no século
XVIII, no discurso dos teóricos do policiamento. Fenômeno capital a seu ver, que constitui
uma das mutações mais importantes na história das sociedades humanas (cf. Foucault,
1994d, p. 194). Analisando a definição de “polícia” dada pelo cameralista alemão von
Justi19, como ciência que não tem outro fim a não ser cuidar da felicidade de todos em vista

19
(1720-1771). A respeito deste autor, considerado como o principal pensador sistemático do cameralismo
alemão do século XVII, cf. em particular, Pierangelo Schiera (1968, p. 434-441); e Horst Dreitzel, (1987, p.
158-177).
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de aumentar o poder do Estado20, Foucault mostra como, no século XVIII, o sistema de


equilíbrio europeu obrigou os Estados a dar a si mesmos objetivos limitados em sua política
externa e a buscar em sua política interna um objetivo ilimitado, a fim de se manter num
estado de equilíbrio concorrencial com os outros Estados, através da maximização de suas
forças.
Autolimitação externa, maximização interna de poder: esta estrutura, historicamente
determinada, tem como resultado o aparecimento de um novo objeto de poder: a população
como conjunto quantificável, massa viva suscetível a desvios e crises, fonte de riqueza,
força de trabalho, reserva de guerra. Já que se trata de gerir a felicidade dos homens, por
meio de medidas tão exatas quanto possível, em vista de reforçar o poder geral do Estado, é
necessário conhecer e controlar as necessidades, os movimentos da população, as variáveis
que a afetam. Daí o desenvolvimento paralelo da estatística, ciência da enumeração das
coisas relativas ao Estado, e da economia, ciência da produção das riquezas. Um dos
aspectos essenciais da “polícia” é pois a introdução da economia no governo político. É
através desta mediação econômica que se associam, sem se confundir, a teoria da polícia e
a arte liberal de governar.
c) Radicalização crítica, enfim – e terminarei com este último ponto. O liberalismo não é
tanto uma solução quanto o indício de uma crise, ou de um limite crítico, no seio da
governabilidade. Por isso, que é preciso se esforçar incessantemente para superar este
limite. Foucault opõe à moderação do intelectual liberal a necessidade de uma “crítica
radical” (Foucault, 1994a, p. 180). O papel do intelectual, diz ele, não é o de propor
reformas, mas de contribuir, com seu trabalho, para a transformação da sociedade. Não é o
de mudar as coisas, mas de mudar as maneiras de pensar que impedem que se conceba que
as transformações sejam possíveis. Mostrar, por exemplo, que a prisão não existiu sempre,
é permitir que se imagine, se não que ela possa não mais existir, pelo menos que se possa
estabelecer uma outra economia da punição. A crítica radical serve para romper as falsas
evidências, para sacudir a inércia dos hábitos. Contudo, Foucault não rejeita a noção de
reforma, mas esta, para ele, não deve ser programada. Deve resultar de uma transformação
real nas maneiras de pensar e das tensões, dos conflitos, das lutas que dela decorrem (ele
toma como exemplo resistências aos “jogos de poder” em torno da loucura, da medicina, da
doença, da penalidade, etc.) (Foucault, 1994c,p. 542-543). “Uma reforma, diz ele, nunca é
senão o resultado de um processo no qual há conflito, afrontamento, luta, resistência”
(Foucault, 1994a, p. 547) Ela é apenas o perfil provisório de uma nova relação de forças.
Daí o fato de Foucault rejeitar qualquer acusação de reformismo:
“Nestas lutas, (...) não se trata absolutamente de reformismo, já que o reformismo tem a
função de estabilizar um sistema de poder ao final de um certo número de mudanças,

20
Justi (1756, prefácio): o autor distingue a “política”, que “tem como finalidade a segurança pública tanto
interna como externamente”, da “polícia” que “tem por fim assegurar a felicidade do Estado pela sabedoria de
seus regulamentos, e aumentar suas forças o quanto for capaz”. Em seguida, ele explica que a palavra é
tomada em dois sentidos diferentes, um, extenso – a “polícia” designando “as leis e regulamentos que
concernem o interior do Estado” – e o outro, limitado: neste caso a palavra indica tudo o que pode contribuir
para a felicidade dos cidadãos, e principalmente para a manutenção da ordem e da disciplina, [assim como] os
regulamentos que tendem a tornar cômoda a sua vida”. “A polícia, ele conclui, deve se propor como regra
fundamental fazer com que tudo o que compõe o Estado sirva para o fortalecimento e o crescimento de seu
poder, assim como para a felicidade pública”(introdução, parág. 2-3,8).
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enquanto em todas estas lutas, se trata da desestabilização dos mecanismos de poder, de


uma desestabilização sem fim” (Foucault, 1994, p. 547).
A crítica é, de início, no sentido kantiano, a análise das condições do exercício da razão.
Foucault historiciza esta questão: como se constituiu a razão política ocidental? Que
processos contingentes ocasionaram a formação da racionalidade moderna, ao mesmo
tempo individualizante e totalizante? A crítica, em seguida – passagem da questão crítica
para a da Aufklärung – é a definição do presente ao qual pertencemos. Ora, diz Foucault,
não estamos mais na época das tecnologias disciplinares (mesmo que sempre haja
disciplinas). Estamos – por quanto tempo? – na era de uma racionalidade dividida, fendida
de certo modo por dentro: cada vez mais totalizante, mas incessantemente confrontada com
o intotalizável (este é o paradoxo liberal). Daí a possibilidade de novas formas de luta. A
crítica é igualmente, com efeito – é seu terceiro sentido – a experiência permanente da
ultrapassagem. A libertação, não como horizonte de uma liberação definitiva, mas como
ultrapassagem, que precisa sempre ser reencenada, das linhas de crise que atravessam um
sistema (suas “fronteiras”), tal é, para Foucault, a atitude política que se deve tentar
realizar.
Tradução de Maria das Graças de Souza do Nascimento
Recebido para publicação em abril/1995

ABSTRACT: The article examines modern criticism of governamental reason which is


focused by Foucault under two main aspects. First he analyses the concept of critique based
on his own interpretation of Kant’s work, articulated with an “ontology of the present”.
Besides this, Foucault analyses the place ocuppied by liberalism in this critical procedure.
Thus the article intends to show that Foucault’s criticism escapes from the imputation of
reformism.
KEYWORDS: Foucault, critical attitude, governamental reason, power, liberalism.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
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Foucault e a história da filosofia


SALMA TANNUS MUCHAIL
Professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP

RESUMO: Foucault faz filosofia investigando a história, mas não escreve uma “história da
filosofia”. Não exclui, entretanto, a abordagem dos filósofos: permeando os escritos sobre
diferentes “objetos”, inscreve-se, como que “em meio a eles”, a leitura das filosofias. Pode-
se destacar algumas passagens específicas e, a título de ilustração, exemplificar o modo
foucaultiano de leitura dos filósofos. Por outro lado, Foucault também não toma por tema
uma reflexão sobre a história da filosofia. Entretanto, uma aproximação com autores que
realizam esta reflexão permite estabelecer algumas diferenças e semelhanças e entender que
as histórias que Foucault escreve – permeadas de abordagens de filósofos – é investida de
natureza filosófica.
PALAVRAS-CHAVE: história, história da filosofia, leitura interna, leitura externa, leitura
filosófica, Foucault.

É freqüente que filósofos tomem a história da filosofia como via ou como tema de sua
própria elaboração filosófica. Como via, quando se dedicam à leitura filosófica de filosofias
já constituídas e, neste sentido, escrevem histórias da filosofia ou a praticam no estilo das
monografias. Como tema, quando colocam questões acerca da natureza da história da
filosofia e do modo adequado de ler filósofos e, neste sentido, fazem algo como uma teoria
ou uma filosofia da história da filosofia. Recorrem, quase sempre, aos dois procedimentos.
Digamos, logo de partida, que Michel Foucault não se ocupa com nenhum deles.
Quanto ao primeiro procedimento, ele, que faz filosofia escrevendo histórias, não escreve
história da filosofia. Se são diversos os “objetos”, por assim dizer, de suas investigações
históricas (loucura, medicina, ciências humanas, prisões, sexualidade, etc.), não há
nenhuma que eleja como “objeto” as filosofias. Entretanto, a abordagem delas está
presente. Diretamente, em alguns poucos escritos, “avulsos”, digamos assim, e sempre
curtos (é o caso, por exemplo de Nietzsche, a genealogia e a história, ou do estudo sobre
textos de Kant no curso sobre O que é o iluminismo). Mas é também e sobretudo nos
grandes livros que se inscreve, como “em meio” aos diferentes “objetos”, a leitura de
filosofias. Assim, com pesos e dosagens variadas, ela permeia praticamente todos eles: ora
mais esporadicamente ou limitada a poucas referências (como é o caso de O nascimento da
clínica e Vigiar e punir); ora ao longo de todo o livro, dispersamente (como em História da
loucura) ou assiduamente (como em As palavras e as coisas), ora inerente à composição do
livro (como a recorrência, entre outros, de Platão, Aristóteles, Xenefon, Plutarco, Sêneca,
em O uso dos prazeres e O cuidado de si). Um estudo mais exaustivo sobre a abordagem
foucaultiana de filosofias demandaria, portanto, que se a recolhesse ao longo de todos os
seus escritos, relidos sob esta ótica. Limitemo-nos, por ora, a destacar apenas uma situação
de exemplo.
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Tomemos da Primeira Parte de História da loucura o trecho que inicia o capítulo II (Le
Grand Renfermement) (cf. Foucault, 1972, p. 56-59). Trata-se ali de um daqueles
momentos – freqüentes na escrita de Foucault – em que a exposição se detém não mais em
um período histórico determinado e não ainda em outro, mas no limiar de intersecção,
região fronteiriça que ao mesmo tempo demarca a separação e autoriza a passagem entre
um período e o seguinte. Assim, depois do capítulo I (Stultifera Navis), que descrevera a
loucura no período renascentista, trata-se agora de estabelecer a travessia para a idade
clássica. E ela se configura em um confronto entre Montaigne e Descartes. Resumamos a
passagem.
Em Montaigne, a crítica à presunção da razão. A leitura de um capítulo dos Ensaios mostra
que, após distinguir o homem de razão do homem comum, este último digno de pena,
Montaigne “um pensador”, afirma ser ele também “merecedor de piedade” (cf. Montaigne,
1973, p. 94; Foucault, 1972, p. 57): posto que os julgamentos dos homens de razão se
contradizem, seria loucura confiar unicamente na medida da inteligência e desprezar o que
não conseguimos compreender; posto que jamais se está certo de nossos próprios
julgamentos ou “jamais certo de não se estar louco” (cf. Foucault, 1972, p. 58), loucura é
fiar-se só na razão. Assim, sem limite absoluto entre verdade e falsidade, a loucura embarca
na trajetória em busca da verdade: como os loucos nas naus.
Em Descartes, a leitura da primeira Meditação mostra, ao contrário, a exclusão da loucura
do caminho da dúvida em direção à certeza. Um paralelo entre os sentidos e os sonhos, por
um lado, e a loucura por outro, revela entre eles “um desequilíbrio fundamental” (cf.
Foucault, 1972, p. 57). Com efeito, os erros dos sentidos e as ilusões dos sonhos se
incorporam aos passos daquele percurso; posto que não atingem a verdade objetiva das
coisas, poderão ser posteriormente recuperados depois que se alcançar, na segunda
Meditação, a segurança do cogito; incluem-se assim, no trajeto do pensamento que conduz
à certeza do próprio pensamento. Não é o que ocorre com a loucura. “E como poderia eu
negar que estas mãos e este corpo são meus? A não ser talvez que eu me compare a estes
insensatos cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile
que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres, que estão vestidos de
ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus, ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo
de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus
exemplos” (cf. Descartes, 1962, p. 110-118; Foucault, 1972, p. 56-57). Porque é “condição
de impossibilidade do pensamento” (Foucault, 1972, p. 57), a loucura afeta a verdade
objetiva do sujeito que é sujeito pensante. Se penso, existo; se sou louco, não penso;
portanto, se penso não sou louco e se sou louco nem penso nem existo. “Entre Montaigne e
Descartes, [escreve Foucault], um acontecimento se passou: algo que concerne ao advento
de uma ratio” (1972, p. 58). Estabelecida a divisão entre razão e desrazão, tem lugar o
banimento da loucura: lugar de exílio, como os loucos no Hospital Geral.
Como se vê, a reconstituição foucaultiana destas passagens filosóficas dispõe-se, na
construção do seu próprio discurso, como estratégia de transição entre o século XVI e o
XVII. Não é uma leitura isolada de discursos filosóficos: atraca-os ao derradeiro porto
renascentista e avizinha-os da divisória inaugural da idade clássica. Assim, a passagem que
acabamos de resumir poderia igualmente caber sob dois sub-títulos, se eventualmente lhe
quiséssemos atribuir algum: “De Montaigne a Descartes” ou “Da Nau ao Hospital”.
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Ampliando os contornos deste exemplo, pode-se dizer que as abordagens de discursos


filosóficos nos escritos de Foucault, desde as mais episódicas às mais regulares, se não lhes
confere qualquer privilégio enquanto “objetos” para uma investigação histórica específica,
insere-os, contudo, tanto em redes inter-discursivas, enquanto elementos constitutivos de
uma épistémê, quanto nas articulações com práticas ou instituições sociais, enquanto
integrantes de um “dispositivo” de poder, seja como peças de sustentação, seja como
instrumentos de luta.
Quanto ao segundo procedimento, isto é, uma reflexão sobre a natureza e o método
apropriado da história da filosofia, também não constitui preocupação particular de
Foucault. Uma tematização desta questão, se fosse elaborada, haveria de ajustar-se, sem
dúvida, às tematizações sobre a natureza e os procedimentos de suas investigações,
explicitadas não somente no livro A arqueologia do Saber como em tantas passagens
integradas aos vários livros, artigos, entrevistas. Mas esta é também uma hipótese que
demanda um estudo mais longo. No momento, limitemo-nos apenas ao levantamento de
alguns indícios, pela via das aproximações e diferenças, tomando algumas descrições de
método em história da filosofia como situação de referência.
Ao propor o chamado método estrutural para a leitura das filosofias, Guéroult o situa como
um determinado tipo de história “vertical” que, pela sua feição filosófica, respeita,
internamente, a natureza dos seus objetos1. Não é difícil compreender que a leitura
foucaultiana não se prende à construção arquitetural dos sistemas filosóficos, cujos
encadeamentos lógicos permitem reconstituí-lo segundo sua “ordem de razões”. Isto não
significa que análises detalhadas de textos sejam desprezadas. Reportemo-nos àquela
passagem sobre Montaigne e Descartes. Como se sabe, ela foi alvo de críticas, primeiro de
H. Gouhier, e incisivamente, de Derrida (1963). Ora, na resposta a este último, Foucault
(cf. 1971) contempla o escrito cartesiano com o exame meticuloso, quase requintado, de
palavras, tempos de verbos, imagens, disposição textual, etc. Faz ver, já pelo seu título, que
as Meditações requerem não só a leitura que encontra o encadeamento sistemático de
demonstrações, como aquela que as apreende como exercício, prática discursiva. E, ao
final, não sem mordacidade, afirma que a estrita redução dos discursos aos seus aspectos
textuais é aliada ao ponto de vista globalizador do sistema e tributária da metafísica.
Mas Guéroult identifica um outro tipo de história “vertical” da filosofia, também de feição
filosófica, que, privilegiando a interioridade do autor, caracteriza-se pela busca de origens e
intenções. Por semelhança de orientação, podemos assemelhá-la à proposta de Merleau-
Ponty para a leitura das filosofias. Trata-se de descobrir por sob os textos os sentido que
subjaz a eles e anima o processo de elaboração filosófica, sentido implícito que, por isto
mesmo, nos exige atentos não só ao filósofo como à sua sombra, e nos conduz a pensar o
“impensado”2. A leitura foucaultiana, muito ao contrário, não se reconhece na suposição do
“não-dito”. Voltada que é para a positividade do acontecimento discursivo e suas relações
inter e extra-discursivas, afasta-se das perspectivas que acenam para as filosofias da
consciência.

1
Referimo-nos aqui, particularmente ao texto de M. Guéroult (1974, p. 7-19).
2
Veja-se, por exemplo, de Merleau-Ponty, Partout et nulle part (1960b, p. 158-200) e Le philosophe et son
ombre (1960a, p. 201-228).
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Poder-se-ia perguntar então se o modo foucaultiano de ler filosofias não se classificaria no


método que Guéroult nomeia de história “horizontal”. Mais histórico e pouco filosófico,
consiste em expor a sucessão temporal das filosofias e sua contextualização em
circunstâncias sociais, políticas, econômicas, etc., condições externas do seu surgimento.
Longe disto, a inclusão das filosofias em conjuntos heterogêneos de saberes e práticas
sociais, nada tem de comum com causas ou explicações exteriores. Na configuração de um
solo epistemológico ou de um dispositivo estratégico, os componentes são tão constituídos
quanto constituintes e entre eles não há relações nem de causa e efeito nem de
“exterioridade” e “interioridade”.
Todavia, entre os métodos descritos como história “vertical” e a postura de Foucault é
possível talvez esboçar um traço de semelhança. À leitura estrutural de Guéroult não
interessa apenas o conhecimento dos sistemas filosóficos, senão também a instigação de
que este conhecimento é capaz para a reflexão filosófica presente; a leitura intencional de
Merleau-Ponty, por sua vez, quer repensar as filosofias historicamente dadas, na direção de
provocar um pensamento novo. Ora, as investigações históricas de Foucault, precisamente
por sua dimensão genealógica, debruçam-se sobre o passado para elucidar o presente
relativamente às diferenças com o que o precede e para mobilizá-lo relativamente às
diferenças que, introduzidas por nossa intervenção, o poderão suceder.
Esta observação permite que evoquemos, de passagem, mais uma proposta sobre a questão
da história da filosofia, da qual a leitura foucaultiana estará provavelmente mais próxima.
Trata-se de algumas reflexões de F. Châtelet (cf. 1977, p. 23-42) de que realçamos dois
aspectos: primeiro, a afirmação de que pela referência ao passado pensamos nossa
atualidade através do “diferencial”; segundo, a proposição de uma história da filosofia,
hoje, que explicite as conexões das filosofias com a política, que, em termos foucaultianos,
remete às relações que elas mantêm com regimes de poder, quer como reforço, quer como
resistência.
Para concluir, uma hipótese genérica. Na medida em que a abordagem das filosofias só se
compõe esparsamente, há menos que história da filosofia nas investigações históricas de
Foucault; e no entanto, há mais, na medida em que, nelas, é toda a história que se acha
investida de feição filosófica.
Recebido para publicação em maio/95
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

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Abril Cultural.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

O jardim secreto
Notas sobre Bataille e Foucault
ELIANE ROBERT MORAES
Professora da Faculdade de Comunicação e Filosofia
da PUC-SP

RESUMO: Em diversas ocasiões, Michel Foucault declarou afinidades com o pensamento


de Georges Bataille, chegando a apresentar-se como seu discípulo. Essa filiação pode ser
reconhecida na intensidade com que ambos se empenharam em desconstruir a idéia
moderna de razão, consolidada em torno das noções de saber e verdade. Contudo, uma
aproximação mais rigorosa entre os dois pensadores nos coloca diante de diferenças
significativas, que supõem distintos fundamentos críticos. A arquitetura pode ser um locus
privilegiado para analisarmos tais diferenças. Foucault vê os edifícios por dentro; Bataille
os vê de fora. Isso traz resultados diversos: se para o autor de A microfísica do poder
esboça-se um espaço sem saída, para o pensador de A experiência interior abre-se a
possibilidade de conceber “jardins secretos”, em contraposição aos monumentos
ameaçadores. Insinuam-se aí, também, diferentes leitores de Nietszche.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, Bataille, espaço, razão, saber, verdade.

Vê-se logo nas primeiras linhas da apresentação das Obras completas de Georges Bataille,
assinada por Michel Foucault: “Hoje nós sabemos: Bataille é um dos mais importantes
escritores do nosso século”. A essas palavras, escritas em 1970, seguem-se outras ainda
mais conclusivas: “a ele devemos em grande parte o momento onde estamos; mas tudo o
que falta fazer, pensar e dizer, isso também lhe devemos e ainda o faremos durante um
longo tempo” (Foucault, 1970, p. 5). A passagem não é isolada: em diversas ocasiões,
Foucault declarou afinidades com o pensamento de Bataille, chegando mesmo a apresentar-
se como seu discípulo.
Essa filiação – ousando empregar um termo pouco caro ao autor de As palavras e as coisas
– pode ser reconhecida na intensidade com que ambos pensadores se empenharam em
desconstruir a idéia moderna de razão, consolidada em torno das noções de saber e verdade.
É sabido que Foucault entrou em contato com os motivos nietzschianos da crítica da
racionalidade ocidental através de Bataille. Contudo, uma aproximação mais rigorosa entre
os dois pensadores nos coloca diante de diferenças significativas, que supõem distintos
fundamentos críticos.
Tomemos, como ponto de partida, a construção dos argumentos de Bataille e de Foucault,
ambos profundamente cativantes, mas acionando diferentes adesões de leitura. Foucault, de
sua parte, vale-se de um método, o “genealógico”, para problematizar a constituição dos
saberes e dos discursos no interior de uma trama histórica. Em Microfísica do poder, ele
recorre a Nietzsche para fundamentar sua opção: “a genealogia exige a minúcia do saber,
um grande número de materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus
‘monumentos ciclópicos’ não a golpes de ‘grandes erros benfazejos’ mas de ‘pequenas
verdades inaparentes estabelecidas por um método severo'. Em suma, uma certa obstinação
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na erudição” (Foucault, 1982, p. 15-16)1. Para realizar tal empresa, Foucault vai sustentar
suas teses em rigorosa freqüentação dos textos e em consistente informação histórica,
constituindo um leitor por excelência intelectual e, digamos também, “acadêmico”.
Já Bataille se dirige primordialmente ao leitor sensível, mais exatamente, ao “exasperado”2.
A este, deseja apresentar “o movimento aberto da reflexão”, ancorando-se antes em
“pesadas meditações” que em métodos. Seus livros, filosóficos ou literários, têm
invariavelmente a marca da provisoriedade, do inacabamento ou, do que ele mesmo
chamou de “inclinação em direção à noite do não-saber” (Bataille, 1973b, p. 39). Na
introdução à Teoria da religião, ele adverte o leitor que seu texto tenta “exprimir um
pensamento móvel, sem nele buscar o estado definitivo”; a seguir, conclui categórico: “uma
filosofia não é jamais uma casa, mas um canteiro de obras” (Bataille, 1976, p. 287).
A exigência de rigor a que se propõe Bataille será, conseqüentemente, distinta do obstinado
exercício de erudição de Foucault. “Como me entristeço hoje com minha falta de rigor – ao
menos nas aparências – que corre o risco de enganar profundamente” (Bataille, 1973b, p.
437) – afirma com estratégica ambigüidade numa passagem de A experiência interior,
insinuando que cabe ao leitor a tarefa de ultrapassar as aparências enganosas. Isso porque
não é no texto, mas “no exercício da vida”, que Bataille propõe “o maior rigor possível”
(Bataille, 1973b, p. 426). Tal exigência busca igualmente em Nietzsche seu fundamento:
mas aqui não é mais o sábio severo e minucioso a ser evocado, e sim o “filósofo bacante”
que, investindo seus sentidos na reflexão é capaz de captar até mesmo o movimento
efêmero de uma dança (Bataille, 1973b, p. 41).
Para entendermos esse “rigor de vida” de que fala Bataille, é necessário revisitarmos, ainda
que brevemente, a noção de “experiência interior”, que constitui um dos eixos centrais de
seu pensamento. Em oposição à experiência científica – que teria na atividade da
dissecação sua imagem privilegiada – a “experiência interior é um movimento em que o
homem se põe inteiramente em questão”. Justamente por descartar o distanciamento que
caracteriza a ciência, a experiência interior só pode ser abordada na vitalidade do próprio
ato, na pulsação do presente, no momento fugaz da dança. Sua dificuldade prática, diz
Bataille, está ligada à “fidelidade canina do homem ao discurso”: ela é irredutível a
qualquer tipo de enunciado, incluindo o poético, que pode tocá-la mas jamais expressá-la
por completo. Nesse caso, o discurso assume sempre um lugar secundário, ou até mesmo
dispensável: “A diferença entre a experiência interior e a filosofia reside principalmente no
fato de que, na experiência, o enunciado não é nada, senão um meio, e ainda, não somente
meio, mas obstáculo; o que conta não é mais o enunciado do vento, é o vento” (Bataille,
1973b, p. 25).
Entendemos, portanto, o sentido do inacabamento do texto batailliano, decorrendo de seu
desejo de expressar um pensamento móvel: na verdade ele pretende evidenciar o
inacabamento próprio a todo texto, a todo discurso, a toda forma de representação. Talvez
ninguém tenha reconhecido de forma mais precisa tal intento como o próprio Foucault, que
assim o sintetizou: “à todos aqueles que se esforçam em manter antes de tudo a unidade da
função gramatical do filósofo – ao preço da coerência, da existência mesmo da linguagem

1
As passagens entre aspas são citações de Nietzsche em Gaia ciência e Humano demasiado humano.
2
“Eu não me dirijo aos filósofos”; “só posso dirigir-me à exasperação” – sublinha Bataille (1973a, p. 194).
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filosófica – poderíamos contrapor o empreendimento exemplar de Bataille que não cessou


de dissipar em si, com obstinação, a soberania do sujeito filosofante. Nisso, sua linguagem
e sua experiência foram seu suplício” (Foucault, 1992, p. 557).
Em Bataille testemunhamos o primado da experiência sobre o enunciado: “o momento
supremo excede necessariamente a interrogação filosófica”, dirá ele em O erotismo (citado
em Habermas, 1990, p. 224); “o excesso excede ao fundamento”, concluirá no prefácio à
Madame Edwarda (Bataille, 1981, p. 14). Talvez seja essa uma chave para
compreendermos o lugar central da literatura na obra batailliana e, ainda, a razão pela qual
as imagens literárias ganham, em seus ensaios filosóficos, importância igual à dos
conceitos.
Aqui reencontramos novamente Foucault: no interesse pela literatura como “forma de
conhecimento” e, também, numa prática textual que toma o efeito literário como indutor de
pensamento. Num ensaio sobre a construção do texto foucaultiano, Renato Janine Ribeiro
observa que o autor de A história da loucura vale-se fundamentalmente da estratégia da
surpresa: “A frase que choca ou impressiona tem eficácia – a de ofuscar, a de permitir um
novo conhecimento mediante o desalojar a razão, presa das rotinas. (...) Ao leitor, busca-se
surpreender, fazendo que perca suas rotas usuais mediante lampejos, pontuais, de sedução
(como poderíamos também pensar que agem certos aforismos de Nietzsche)” (Ribeiro,
1985, p. 29). Ao construir o inesperado, Foucault visaria a desconcertar os hábitos de nossa
razão, obrigando-nos a pensar diferente.
Do mesmo modo, Bataille propõe-se a ferir as certezas de quem o lê, mas sua estratégia não
é a boutade, a surpresa ou a sedução. É pelo convite à ousadia que ele busca cativar o seu
leitor3. “Proponho um desafio, não um livro” – dirá na apresentação de A experiência
interior, alertando: “quereria escrever um livro do qual não se pudesse tirar conseqüências
fáceis” (Bataille, 1973b, p. 426). Frases como estas, graves e cortantes, dirigem-se
diretamente ao leitor, solicitando-lhe cumplicidade na vertigem que propõem: “Não escrevo
para quem não poderia se demorar mas para quem, entrando neste livro, cairia como em um
buraco”(p. 432). E reitera, ainda mais determinado: “Se essa leitura não devesse ter para si
a gravidade, a tristeza mortal do sacrifício, quereria não ter escrito nada” (Bataille, 1973b,
p. 442).
A forma como cada autor estrutura seu texto é deliberada, visa a produzir um certo tipo de
leitor. Por isso, a “trama histórica” arquitetada por Foucault guarda distância do “canteiro
de obras” de Bataille. À essas diferentes estratégias de composição textual correspondem
também distintas concepções quanto às composições arquitetônicas, tema abordado com
freqüência na obra dos dois pensadores. Com efeito, a arquitetura é um locus privilegiado
para analisarmos tais diferenças.
Em A história da loucura e em Vigiar e punir, Foucault responsabiliza em grande parte as
técnicas de planejamento espacial pela produção da loucura e da criminalidade: os
hospitais, as prisões e os sanatórios encerram o indivíduo para vigiá-lo e obrigá-lo a falar.

3
Sobre a leitura de Bataille, Jürgen Habermas afirma: “o escritor erótico pode empregar a linguagem de tal
modo que o leitor, assediado pela obscenidade, arrebatado pelo choque do inesperado e inrepresentável, seja
lançado na ambivalência da náusea e do prazer” (1990, p. 224).
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Edifício emblemático, nesse sentido, é o panóptico de Benthan, que faz funcionar o projeto
de uma visibilidade inteiramente organizada em torno de um olhar dominador e vigilante,
fornecendo a fórmula de um poder que se exerce por transparências e não tolera zonas de
obscuridade: trata-se de “uma arquitetura que seria operativa na transformação dos
indivíduos” (Foucault, 1975, p. 174). No interior dos edifícios murados, Foucault descobre
as tecnologias do poder que produzem o “sujeito útil e dócil”.
Já em Bataille a arquitetura tem como função expressar a “fisionomia de personagens
oficiais”, ou seja, ela dá forma às ordens e proibições sociais. Representação autoritária, o
monumento é erigido para inspirar o bom comportamento social e, freqüentemente, o
temor: “os grandes monumentos se levantam como diques, contrapondo a lógica da
majestade e da autoridade a todos os elementos turvos: é sob a forma de catedrais e palácios
que a Igreja e o Estado se dirigem e impõem silêncio às multidões”. A tomada da Bastilha
teria sido exemplar nesse sentido, expressando “a animosidade do povo contra os
monumentos que são seus verdadeiros senhores” (Bataille, 1970, p. 171). Na fachada do
edifício de pedra, que esmaga simbolicamente o indivíduo, Bataille descobre a lógica da
autoridade, que ameaça e silencia.
Foucault vê a arquitetura por dentro; Bataille a vê de fora. Se a forma genérica da
arquitetura é, para ambos, a prisão, sua eficácia deve-se a motivos opostos: uma funciona
porque chama a atenção para si, a outra porque disfarça sua verdadeira função. Uma é
repressora (impõe silêncio); a outra é expressiva (faz falar).
A arquitetura de Bataille – convexa, frontal, extrovertida -, impondo-se externamente aos
indivíduos, não compartilha praticamente nenhum elemento com o edifício oval de
Foucault, cuja concavidade insinuante contorna, emoldura e confina para fins terapêuticos
ou disciplinares. Enquanto o primeiro pensa em termos de representações autoritárias, o
segundo refere-se ao planejamento espacial e às tecnologias de poder. Talvez se possa
dizer, arriscando uma interpretação, que para Foucault esboça-se um espaço sem saída,
enquanto que para Bataille abre-se a possibilidade de conceber “espaços secretos”.
Vejamos rapidamente porquê.
Para propor o panóptico como modelo arquitetônico de uma sociedade caracterizada pela
relação de indivíduos privados com o Estado, Foucault recorreu à arquitetura da Grécia
antiga, que expressava uma sociedade marcada pela relação intensa da comunidade com a
vida pública. Os templos, os teatros ou os circos gregos eram construídos para oferecer
espetáculos ao maior número de pessoas; fossem religiosos, políticos ou teatrais, sua função
principal era recriar a unidade do coletivo. Na sociedade moderna, porém, a arquitetura de
espetáculo foi substituída por uma forma de planejamento espacial que se adequou com
eficácia ao poder disciplinar: a arquitetura de vigilância.
Recordemos o modelo: “na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta
possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é
dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas
janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, dando
para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar
um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado,
um operário ou um estudante. Devido ao efeito da contraluz, podem-se perceber da torre,
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recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em


suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o
escuro que, no fundo, protegia” (Foucault, 1982, p. 210). Não há escape possível: o
panóptico, como emblema arquitetônico da sociedade moderna, é um espaço sem saída.
Essa passagem relaciona-se a outras concepções que marcam o pensamento de Foucault.
Uma delas está expressa em A vontade de saber: trata-se da sua recusa em acatar a
“hipótese repressiva”, que seria o ponto de partida das teorias de Freud e de Reich, em
função de um novo conceito, o “dispositivo da sexualidade”. Segundo Foucault, a história
da sexualidade caracteriza-se, a partir do século XVIII, não pela repressão sexual, mas ao
contrário, pela multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do
poder. “Em vez da preocupação uniforme em esconder o sexo, em lugar do recato geral da
linguagem, a característica de nossos três últimos séculos é a variedade, a larga dispersão
dos aparelhos inventados para dele falar, para fazê-lo falar, para obter que fale de si mesmo,
para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que dele se diz” (Foucault, 1980, p. 35).
Trata-se da “produção do sexo”.
Ora, continua Michel Foucault, “o dispositivo da sexualidade engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo” (Foucault, 1982, p. 244). Não é
difícil, portanto, estabelecermos um nexo entre essa descrição e a do panóptico de
Bentham: ambas revelam redes de transparências que englobam tudo o que está ao seu
redor. Novamente podemos afirmar: nada escapa ao dispositivo da sexualidade. Foucault
disse e repetiu muitas vezes: até mesmo os discursos “libertários” partem do interior dessa
trama.
Na tópica da erótica, a que ambos pensadores se dedicaram com grande interesse, amplia-se
ainda mais a distância entre Foucault e Bataille: que coincidências haveria entre uma tal
produção do sexo e o arrebatamento do transe erótico de que fala o autor de História do
olho? Bataille vê no erotismo a substância da vida interior do homem, identificando-o em
profundidade com a experiência religiosa: “o prazer seria desprezível não fosse esse
aterrador ultrapassar-se que não caracteriza apenas o êxtase sexual: místicos de diversas
religiões, especialmente os místicos cristãos, vivenciaram-no da mesma forma. O ser nos é
dado num transbordamento do ser, não menos intolerável do que a morte” (Bataille, 1981,
p. 12). Por isso, diz ele, “o erotismo é, na consciência do homem, o que o leva a colocar o
seu ser em questão” (Bataille, 1987, p. 33).
Para Bataille o erotismo é, por excelência, uma experiência interior, na medida em que seu
sentido último está em conduzir o sujeito a um estado de interioridade plena, onde o
silêncio substitui o discurso: “O homem não é redutível ao órgão de gozo. Porém esse
órgão inconfessável ensina-lhe o seu segredo” (Bataille, 1981, p. 13). Lugar do segredo,
sim, mas não do “segredo” fabricado pela sociedade disciplinar: trata-se, aqui, de um outro
patamar de pensamento, que ousa supor uma profundidade para além da trama social.
“Todos nós, eu e vós, existimos por dentro” – adverte o autor logo nas primeiras páginas
de O erotismo (Bataille, 1987, p. 20).
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Não é o caso, aqui, de contrapor ad infinitum as concepções de Foucault e de Bataille, mas


apenas de indicar que cada qual se move numa região irredutível à outra. Enquanto o
primeiro investiga a história da sexualidade, o segundo se propõe a interrogar a essência do
erotismo – entre a “produção do sexo” e a “experiência interior do prazer” abre-se um
intervalo sem comunicação. Importa, pois, notar que não há passagem possível de uma
concepção a outra: onde Bataille aponta para uma “interioridade” que porta o segredo do
sujeito, Foucault parece deparar tão somente com um “vazio”, a ser ocupado pelas formas
históricas e sociais do existir humano.
Se Foucault vislumbra a arquitetura por dentro, é porque esse “dentro” está completamente
submisso às regras “de fora”, resultando num espaço saturado, sem resto, sem sobra, onde
nada se mantém na condição de segredo. Como observou Blanchot, a estrutura do
internamento descrita em História da loucura remete a uma exterioridade, e o que está
fechado é efetivamente esse “lado de fora” (Blanchot, 1969, p. 292). Trata-se de “uma
interiorização do lado de fora”, como também afirmou Deleuze: “Dentro como operação do
fora: em toda a sua obra, um tema parece perseguir Foucault – o tema de um dentro que
seria apenas a prega do fora, como se o navio fosse uma dobra do mar” (Deleuze, 1988, p.
104).
Bataille, ao invés, parte de uma exterioridade aparente para chegar a um núcleo que seria
essencial: em contraposição aos monumentos ameaçadores, ele concebe “centros espaciais
misteriosos” onde se alojam confrarias, sociedades secretas, e todo tipo de ordens místicas
que em sua obra encontramos sob o nome de “organizações de inverno”4. São mundos
subterrâneos que ocultam um centro secreto; labirintos, pirâmides, jardins interiores,
imagens que proliferam em seus textos, insinuando que a saída, para Bataille, está sempre
localizada “dentro”.
Situando-se no plano “visível” de um mundo “feito de superfícies superpostas, arquivos ou
estratos”, como quer Deleuze, o pensamento de Foucault não poderia levar à descoberta de
uma saída oculta: é um pensamento móvel, porque emerge das relações de força, em
freqüente alteração; e instável, porque se produz num ponto limite, onde as vidas “se
chocam com o poder, se debatem contra ele, tentam utilizar suas forças ou escapar às suas
armadilhas”(Foucault citado em Deleuze, 1988, p.101). No seu horizonte estaria, portanto,
um exercício de “resistência”, mas de uma resistência coextensiva e contemporânea ao
poder. Por mais que Deleuze tente, nas belas páginas finais de seu livro, indicar um lugar
de chegada para Foucault – evocando, a partir de Melville, uma “câmara central, que não
tememos mais que esteja vazia, pois o si nela está situado” (Deleuze, 1988, p. 130)5 – fica
difícil vislumbrar, na obra foucaultiana, qualquer espaço que não esteja referido às tramas
do poder.

4
Ver, nesse sentido, o comentário de Georges Bataille à conferência “Confradías, órdenes, sociedades
secretas, iglesias” de Roger Caillois (1982, p. 174-187).
5
Deleuze termina o livro numa alusão à “glândula pineal”, um tema batailliano por excelência, que aparece
em diversas o-bras suas, especialmente em L'anus so-laire. Poderíamos tomar a passagem como uma tentativa
de aproximação?
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É uma questão de método, sem dúvida. Ou de “maneira”, como prefere Michel Surya,
biógrafo de Bataille6. Resistência, diante de um espaço saturado, para Foucault; redenção,
num centro secreto, para Bataille. Não é possível perceber aqui muitas afinidades; talvez
seja mesmo impertinente falar de filiação. A menos que evoquemos, para finalizar, uma
passagem de Nietzsche, que parece reunir o “método” de Foucault à “maneira” de Bataille,
fechando o arco que aloja, nas suas diferentes pontas, cada um dos pensadores.
Recordemos, pois, o prólogo à Genealogia da moral, quando Nietzsche afirma ter aberto
mão de procurar a origem do mal: “encontrei e arrisquei respostas diversas, diferenciei
épocas, povos, hierarquias dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas
nasceram novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades: até que finalmente eu
possuía um país meu, um chão próprio, um mundo silente, próspero, florescente, como um
jardim secreto do qual ninguém suspeitava...” (Nietzsche, 1987, p. 10). Para que possamos
reencontrar Foucault e Bataille juntos, talvez seja preciso, uma vez mais, revisitar esse
jardim secreto.
Recebido para publicação em maio/1995

ABSTRACT: On several occasions, Michel Foucault expressed his affinity with the
thinking of Georges Bataille, even going so far as to present himself as the latter's disciple.
Such filiation can indeed be perceived in the intensity with which both scholars engaged
themselves in deconstructing the modern notion of reason, as anchored to the notions of
knowledge and truth. A stricter approximation of the two thinkers, however, places us
before significant differences, which indicate differing critical fundaments. Architecture
suggests itself as a privileged locus for engaging on an analysis of such differences.
Foucault observes buildings from within; Bataille sees them from the outside. This brings
about distinct results: if, for the creator of The microphysics of power, a cul de sac is
etched, for the author of The inner experience the possibility of conceiving ‘secret gardens’
offers itself, in contraposition to the threatening monuments. This, in turn, hints at different
readers of Nietszche.
KEYWORDS: Foucault, Bataille, knowledge, truth, reason, space.

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Gallimard.

6
Michel Surya propõe, a respeito de Bataille, a expressão “maneira” para substituir “método” (cf. 1994, p.
15).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

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São Paulo, Brasiliense.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

O heroísmo do presente
KATIA MURICY
Professora do Departamento de Filosofia da PUC-RJ

RESUMO: Uma aproximação da história do presente de Michel Foucault da concepção de


história de Walter Benjamin, a partir de suas análises sobre a visão de modernidade como
construção do tempo na obra de Baudelaire.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, Benjamin, Baudelaire, história, historia do presente,
tempo, modernidade.

Ao contrário de Walter Benjamin, Michel Foucault escreveu muito pouco sobre Baudelaire.
Mesmo alusões ao poeta são escassas em sua obra. Há uma afirmação breve, mas decisiva,
que dá a Baudelaire uma importância semelhante a que concedera, em páginas generosas de
As palavras e as coisas, a Mallarmé – este que, devolvendo às palavras sua densidade,
fizera da poesia a expressão mais completa das inflexões contemporâneas à questão da
linguagem. Formulada no espaço filosófico-filológico aberto por Nietzsche, esta questão
inaugura para Foucault, o terreno próprio da modernidade. É em Baudelaire que Foucault
encontra, em uma entrevista de 1983, um sentido preciso para o termo modernidade na
França (Foucault, 1983). Um ano mais tarde, Foucault esclarece sua afirmação. Se
Mallarmé configurara a linguagem como o grande tema da modernidade, com Baudelaire,
nas reflexões de Foucault dos anos 80, é uma nova percepção de tempo que estabelece o
próprio conceito de modernidade.
As pouco mais que duas páginas a que se restringem as considerações de Foucault sobre
Baudelaire aparecem no artigo O que é o Iluminismo?, publicado em 1984, em The
Foucault reader, editado por Paul Rabinow nos Estados Unidos. O artigo desenvolve um
texto publicado em abril do mesmo ano na Magazine Littéraire (nº 207) que resume o curso
de 1983 no Collège de France. Trata-se da leitura de Was ist Aufklärung?, resposta de Kant
à questão proposta, em 1784, por um jornal berlinense. Este texto menor de Kant sempre
exerceu um grande fascínio sobre Foucault. Em 1978, encontra-se a primeira referência a
ele, na introdução escrita por Foucault à edição em língua inglesa do livro de Georges
Canguilhem O normal e o patológico, posteriormente editada em francês com o título La
vie, l'expérience et la science (1985, p. 3-14). Ao menos nas duas últimas leituras que faz
deste texto, Foucault, através de Kant, apresenta a sua própria concepção de vida filosófica.
Na versão mais atual, recorre a Baudelaire para explicitá-la melhor. Minha hipótese é que
Baudelaire pode ser uma lente sensível para o foco que Foucault quer jogar sobre Kant a
fim de iluminar a sua própria concepção da filosofia. Penso também que, por esta inclusão
de Baudelaire na explicitação da originalidade do vínculo que estabelece entre a história,
filosofia e atualidade – isto que chama de uma ontologia do presente – se pode relacionar
Foucault com Walter Benjamin que, também por uma análise de Baudelaire, estabelece um
elo inusitado entre tradição e modernidade a partir de um conceito de tempo não linear. Nos
dois autores, uma leitura muito particular de Kant é feita a partir de preocupações que
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ambos compartilham com o poeta. O artista moderno e o filósofo moderno encontram-se na


mesma tarefa de pensar uma nova relação com o tempo – e, logo, com a tradição e a
história – e consigo mesmo. Há certamente diferenças essenciais: entre outras, Baudelaire é
um objeto de estudo exaustivo para Benjamin enquanto em Foucault, como indiquei, a
presença do poeta é tênue e quase exclusivamente no texto de 1983 sobre Kant. Por outro
lado, Benjamin define sua tarefa em Filosofia considerando Kant a partir do sistema, da
primeira Crítica, enquanto Foucault toma para isto um texto de circunstância. Além disto,
os estudos de Benjamin sobre Baudelaire são muitos anos posteriores ao seu texto sobre
Kant. Apesar destas diferenças a visão de modernidade de Baudelaire não deixa de ser
decisiva para a compreensão do projeto filosófico de ambos.
Apresentando o livro de Canguilhem, Foucault deriva a dignidade filosófica da história das
ciências de seu compromisso com o tema, introduzido no século XVIII “sem dúvida de um
modo um pouco subreptício e como que por acidente”, que, ao lado da indagação sobre a
natureza, o fundamento e a legitimidade do pensamento racional, perguntava-se também –
esta a novidade – sobre as relações do “momento presente” com a história, perguntava-se
sobre a atualidade. A partir daí a história passa a ser um problema decisivo para a filosofia
já que “ fazia-se da Aufklärung o momento em que a filosofia encontrava a possibilidade de
se constituir como a figura determinante de uma época e em que esta época tornava-se a
forma de realização desta filosofia” (Foucault, 1978, p. 5). Esta questão teria o seu símbolo
no debate promovido pelo Berlinische Monatschrift em torno da pergunta Was ist
Aufklärung?, respondida em ocasiões diferentes por Kant e por Mendelsohn. Para Foucault,
da questão da Aufklärung derivariam duas tradições: uma alemã, outra francesa. Na
Alemanha, a inflexão da questão foi o da reflexão histórica e política sobre a sociedade.
Foucault relaciona nesta tradição os pós-hegelianos, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Max
Weber, a Escola de Frankfurt, Lukács. Na França, a questão filosófica da Aufklärung tomou
a direção da história das ciências: Saint-Simon, Comte, mas também Koyré, Bachelard,
Cavaillès e Canguilhem responderam de maneiras distintas à questão decisiva da
Aufklärung. Interessante é que, neste texto de 1978, Foucault não está apresentando duas
tendências opostas que prenunciassem os termos de sua análise de 1983, não está opondo
uma analítica da verdade a uma ontologia do presente, mas indicando uma
complementaridade entre a história das ciências francesas e a teoria crítica alemã. Em
ambas “... trata-se de examinar ... uma razão cuja autonomia estrutural carrega consigo a
história dos dogmatismos e dos despotismos – uma razão, por conseqüência, que só tem
efeito de emancipação com a condição que consiga liberar-se de si própria” (Foucault,
1978, p. 7). No texto de 1978, a Aufklärung é um questionamento da razão como
despotismo e como luz; ela está presente em nossa atualidade como indagação constante do
Ocidente sobre as suas possibilidades hoje e sobre as liberdades que lhe são possíveis.
Neste texto, Foucault não define o seu projeto filosófico a partir de uma opção entre as duas
tradições que indica.
A consideração desta primeira referência ao texto de Kant de 1784 poderia esclarecer talvez
as relações de Foucault com o filósofo, nuançando surpresas como a de Habermas que,
sabe-se, encontra no artigo publicado em 1984 na revista francesa, a novidade de um outro
Foucault que, ao invés de denunciar a vontade de saber que subjaz às analíticas da verdade,
dá a esta vontade uma compreensão nova, a do impulso crítico a que identifica o seu
próprio pensamento. Penso que, nas retomadas e modificações da sua leitura do texto de
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Kant, o que encontramos é um mesmo projeto de pensar criticamente o que chamará de os


limites atuais do necessário – aquilo que determina a nossa maneira de dizer, de pensar e
de agir – mas também, para além de Kant, a possibilidade de ultrapassar estes limites. Já a
introdução de Baudelaire, na versão final, parece abrir, na leitura de Foucault do texto de
Kant, uma nova perspectiva para o seu pensamento.
Na publicação do curso de 1983 na Magazine Littéraire, Foucault relaciona ao de 1784, o
texto de Kant de 1798, O conflito das faculdades. Para Foucault, há aí um desdobramento
da questão O que é o Iluminismo? em outra pergunta – O que é a Revolução?. No contexto
de 1798, trata-se de um desdobramento da indagação de Kant sobre a existência de um
progresso constante para o gênero humano. Kant não se contenta em pensar o progresso no
horizonte de um movimento teleológico, mas quer, em um recorte no fluxo da história,
encontrar um acontecimento que valeria como signo do progresso. Este acontecimento é a
revolução. Mas Kant não procura o lado heróico, ativo da revolução. Não se trata do
acontecimento por assim dizer solene, mas do acontecimento menos grandioso, menos
perceptível da recepção dos que passivamente assistem os atores do drama. É, sabe-se, o
entusiasmo dos espectadores que, para Kant, se torna signo de uma disposição moral da
humanidade para o progresso. Não é o processo revolucionário que importa, mas a
recepção da idéia de revolução pelos indivíduos que não são seus atores. Isto é, interessa a
Kant “o que se passa na cabeça dos que não fazem ( a revolução) ...” Para Foucault, as
duas questões entrelaçadas – O que é o Iluminismo? e O que é a revolução? – constituem a
indagação de Kant sobre a atualidade e dão origem a uma tradição crítica diversa daquela
constituída pela sua obra crítica sobre as possibilidades do conhecimento, ou seja, a
tradição das filosofias analíticas da verdade. Esta nova postura crítica, nascida da indagação
de Kant sobre a sua atualidade constitui o que Foucault chama de “ontologias do presente”.
Em uma versão que se distancia do prefácio de 1978, Foucault apresenta então as duas
tradições em oposição: “pode-se optar por uma filosofia crítica que se apresentará como
uma filosofia analítica da verdade em geral, ou bem pode-se optar por um pensamento
crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós próprios, de uma ontologia da
atualidade” (Foucault, 1984b, p. 39). Evocando os mesmos autores que citara no prefácio
de 1978 como pertencentes à tradição alemã, Foucault vincula a sua obra à tradição crítica
pós-hegeliana.
Na edição americana The Foucault reader, onde se encontram as considerações sobre
Baudelaire, há um desenvolvimento diverso das outras duas interpretações sobre o texto de
Kant de 1784. Foucault não se refere aqui ao tema da revolução. Sua interpretação insiste
sobre a questão da Aufklärung, enquanto decisão da vontade dos indivíduos, como atitude
moderna, como um trabalho sobre si. Nesta nova leitura desaparece a consideração sobre a
revolução e abre-se espaço para as considerações sobre Baudelaire. Esta nova disposição da
análise pode ser vista como uma inflexão importante no pensamento de Foucault.
Foucault, “sem querer lhe dar um lugar exagerado na obra de Kant”, resume aí a
importância que tem para ele o texto de Kant. Para Foucault é a primeira vez que um
filósofo liga tão necessariamente a obra a sua atualidade. Kant faz este elo ao considerar o
projeto da crítica do conhecimento imprescindível para a atualidade, para a Aufklärung,
porque a maioridade da razão requer o conhecimento dos limites do que se pode conhecer,
do que é preciso fazer, do que é permitido esperar. “A Crítica [escreve Foucault] é o livro
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de bordo da maioridade da razão na Aufklärung; e inversamente, a Aufklärung é a idade


da Crítica” (Foucault, 1984a, p. 38). Na resposta ao jornal berlinense, Kant liga ainda a sua
obra à atualidade por uma nova reflexão sobre a história, feita em termos totalmente
diversos da sua concepção anterior, que entendia a história pela finalidade interna do tempo
e pela meta do processo. Aqui Kant entende a Aufklärung como passagem a um estado de
maioridade, como um acontecimento diverso do processo histórico em geral, momento em
que cada indivíduo é responsável pela construção da atualidade. Finalmente Kant vê, neste
texto, uma integração do filósofo, de si próprio, no momento singular em que escreve a sua
obra e para o qual a escreve. Resumindo as duas últimas formas, Foucault escreve: “A
reflexão sobre o 'hoje' como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica
particular me parece ser a novidade deste texto” (Foucault, 1984a, p. 38).
Esta leitura de Kant já remete a Baudelaire antes mesmo que Foucault o evoque. Para
Baudelaire, o vínculo do artista com sua época é a condição de produção da obra de arte
moderna. Este compromisso necessário com o presente determina uma relação especial da
obra com o tempo e com a história. Determina uma vontade, uma vida moderna. Em
resumo, o que interessa a Foucault é como Kant relaciona sua filosofia, à atualidade, à
Aufklärung. Para Foucault, a modernidade não é apenas um período histórico, mas, antes de
tudo, “um modo de relação com a atualidade”, “uma escolha voluntária”, uma “atitude de
modernidade”. Esta atitude de Kant, Foucault caracteriza como uma maneira nova de
pensar, de sentir, de agir e de se conduzir. Sobretudo uma consciência de pertencer ao
presente e, ao mesmo tempo, da necessidade de moldá-lo. É uma consciência do presente
como diferença em relação ao passado. Quando Foucault distingue a tematização kantiana
da relação entre a filosofia e o presente, indicando que a Aufklärung, para Kant, não é
definida nem a partir de uma totalidade nem de um desenvolvimento futuro, quando nos
põe diante de um Kant tão diverso do Kant de A história universal do ponto de vista
cosmopolita, o que quer é sublinhar a compreensão kantiana da Aufklärung como ato de
vontade. A Aufklärung deve ser, segundo Kant, uma modificação na relação entre vontade,
autoridade e uso da razão. De maneira, segundo Foucault, “quase negativa”, Kant
caracteriza a Aufklärung como uma saída da menoridade. É por uma disposição da vontade
que esta saída pode ocorrer; ela é uma tarefa, uma obrigação, um processo em
desenvolvimento. Para Kant, o homem é responsável pelo seu estado de menoridade e para
sair desse estado ele precisa fazer uma mudança pessoal, um trabalho sobre si mesmo. O
aude sapere – o ousar saber kantiano – explicita a Aufklärung como “um ato de coragem a
ser efetuado pessoalmente”. A atitude de modernidade que Foucault encontra em Kant
corresponde a ver na Aufklärung um processo, uma atualidade histórica da qual os homens
fazem parte mas que só se produz por uma decisão deles: “É preciso pois considerar a
Aufklärung como um processo do qual os homens fazem parte coletivamente e um ato de
coragem a ser efetuado pessoalmente. São simultaneamente elementos e agentes do mesmo
processo. Podem ser seus atores na medida que dele fazem parte; e ele só se produz na
medida em que os homens decidem ser seus atores voluntários” (Foucault, 1984a, p. 35).
Em resumo, através do texto de Kant, Foucault apresenta a sua concepção da modernidade
não como período histórico mas como atitude. Por atitude ele entende um modo de relação
com respeito à atualidade; uma determinada escolha voluntária feita por indivíduos; uma
maneira de pensar, sentir, agir e conduzir-se que demarca o pertencer a uma época e que é
proposta como uma “tarefa”. Para caracterizar esta atitude moderna, Foucault toma o
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exemplo “quase necessário” de Baudelaire, “reconhecidamente uma das consciências mais


agudas da modernidade no século XIX”. Baudelaire, que afirmava “vous n'avez pas le droit
de mépriser le présent”, via a modernidade como uma forma de relação com o presente e
como uma forma de relação consigo mesmo, no espaço da arte.
A modernidade de Baudelaire, para Foucault, refere-se primeiramente a uma atitude em
relação à percepção do tempo. A característica atribuída habitualmente à modernidade – a
consciência da descontinuidade do tempo relacionada à ruptura com a tradição, a erupção
da novidade e a experiência da fugacidade dos acontecimentos – não basta para se
compreender a modernidade de Baudelaire. Se o poeta define a modernidade como “o
transitório, o fugidio, o contingente”, a atitude moderna que Foucault encontra em
Baudelaire é aquela que o leva a não simplesmente constatar e se contentar com esta
apreensão da descontinuidade do tempo. É, ao contrário, uma tomada de posição que, de
certo modo, se opõe à transitoriedade. Consiste em procurar, por uma decisão da vontade,
construir uma eternidade muito particular. Este conceito de eterno não busca eleger uma
atemporalidade, projetada no passado ou no futuro, mas em circunscrever-se no instante
presente.
A modernidade de Baudelaire seria a de não aceitar o curso do tempo e por uma atitude
voluntária, construí-lo, submetendo-o a este ato de vontade. É por esta decisão da vontade
que Baudelaire irá encontrar o heróico. A modernidade de Baudelaire não seria apenas uma
sensibilidade ao presente transitório, fugidio, mas uma decisão, uma atitude firme de
heroificar o presente.
Foucault observa que a heroificação é irônica. Não se trata de uma sacralização do presente,
do instante, para perpetuá-lo. Mas também não se trata, sobretudo, de arquivá-lo como
curiosidade fugidia. Esta segunda atitude seria própria do flâneur que tem algo de veleidade
na atitude de colecionador de lembranças que lhe permite fugir da atualidade, das
circunstâncias. Nem sacralizar o instante, nem apanhá-lo como curiosidade A atitude do
moderno é a busca da modernidade entendida por Baudelaire como “dégager de la mode ce
qu'elle peut contenir de poétique dans l'historique”.
Foucault cita a conhecida crítica de Baudelaire aos pintores seus contemporâneos que
representavam os personagens do século XIX vestidos com togas da Antiguidade por
acharem as roupas modernas indignas de serem representadas. Mas Baudelaire não acha
que basta substituir togas pelos ternos pretos. O pintor moderno deve, além de pintar os
personagens com ternos pretos, mostrar esses trajes como “a vestimenta necessária da
nossa época” e isto porque o preto das roupas revelaria em uma alegoria, o essencial luto, a
relação obsessiva da nossa época com a morte.Constantin Guys não é, embora aparente, um
flâneur. Ele é o que trabalha arduamente quando todos dormem, à noite – este tempo
subtraído do fluxo produtivo capitalista – transfigurando o mundo, o real. Um duelo que
não pretende anular este real mas estabelecer um jogo entre a verdade do real e o exercício
da liberdade. Para Baudelaire, as coisas naturais tornam-se nos desenhos de Constantin
Guys “mais que naturais”, as coisas belas “mais que belas”.
Foucault define a sua compreensão do trabalho do filósofo moderno como semelhante ao
do artista moderno de Baudelaire: “Pela atitude de modernidade, o alto valor do presente é
indissociável do esforço furioso para imaginá-lo de forma diferente e para transformá-lo,
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não pela sua destruição mas pela captura do que ele é. A modernidade baudelairiana é um
exercício onde a extrema atenção ao real é confrontada com a prática de uma liberdade
que é, ao mesmo tempo, respeito e violação deste real” (Foucault, 1984a, p. 41). A atitude
de modernidade estendida por Foucault a seu próprio pensamento não é, como não era para
Baudelaire, um estado subjetivo. Para evitar este mal entendido, Foucault usa o termo
ethos. Este ethos moderno é heróico na sua decisão de problematizar o presente e este
heroísmo é necessariamente irônico. O aude sapere kantiano ganha, juntando-se à atitude
de Baudelaire, a feição que permite não só reconhecer os limites do que na nossa atualidade
se pode pensar, fazer e esperar, mas também ironizar esses limites: poder pensar, agir,
sentir para além deles. O presente, carregado de possibilidades, pode ser objeto de uma
construção, o que permite uma mobilidade em suas relações com o passado. Parece-me que,
neste aspecto, a afinidade com o pensamento de Benjamin é explícita.
Baudelaire concebia a modernidade como algo mais do que uma relação específica com o
presente. Concebia-a também como uma forma de relação que se deve construir consigo
mesmo. Esta forma moderna de relacionar-se consigo mesmo é o ascetismo. O eu moderno
é, em conseqüência mesmo da atitude de construção do tempo, também objeto de uma
construção. Há em Baudelaire uma recusa em aceitar o eu por assim dizer natural que existe
no fluxo dos momentos. Este esforço árduo de construção de si Baudelaire chama de
dandismo. O ascetismo do dândi, “de seu corpo, de seu comportamento, de seus
sentimentos e paixões, faz de sua existência uma obra de arte”. Foucault escreve, aludindo
mais uma vez ao seu próprio projeto filosófico, “o homem moderno, para Baudelaire, não é
o que parte para a descoberta de si mesmo, de seus segredos e de sua verdade escondida; é
o que procura inventar-se a si próprio. Esta modernidade não “libera o ser próprio do
homem”; ela o obriga à tarefa de se elaborar a si próprio” (Foucault, 1984a, p. 42).
Foucault termina suas poucas páginas sobre Baudelaire observando que a heroificação do
presente, o jogo da liberdade com o real, a elaboração ascética de si não tem lugar na
sociedade ou na política, mas a atitude moderna só pode ser vivida “no que Baudelaire
chama arte”.
Como já indiquei acima, na última versão da leitura do texto de Kant de 1784 Foucault
deixa de lado a pergunta sobre a Revolução, que em 1983 apontara como complementar
àquela sobre a Aufkärung, para delinear o espaço da investigação filosófica moderna. É
Baudelaire que dá seqüência à caracterização da atitude moderna. Paul Veyne comenta o
quanto nos últimos meses de vida Foucault ocupou-se com a idéia de estilo de existência.
Segundo Veyne: “ A moral grega está morta e Foucault considerava tão pouco desejável
quanto impossível ressuscitá-la; mas um detalhe desta moral, a saber a idéia de um
trabalho de si sobre si, lhe parecia suscetível de se retomar num sentido atual...” (Veyne,
1986, p. 939-940). O tema de estilo de existência fundamentaria em novas bases a
autonomia do indivíduo abrindo a possibilidade de se pensar uma nova moral: “ (...) O eu
se tomando a si próprio como obra a realizar poderia sustentar uma moral que nem a
tradição nem a razão conseguem mais sustentar: artista de si próprio, o eu gozaria desta
autonomia indispensável à modernidade. (...) Enfim se o eu nos liberta da idéia que entre a
moral e a sociedade. (...) existe um elo analítico ou necessário, então não há mais
necessidade de esperar a Revolução para começar a nos atualizar: o eu é a nova
possibilidade estratégica” (Veyne, 1986, p. 939-940).
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Em um artigo de 1918, Sobre a filosofia futura, Walter Benjamin apresenta suas reflexões
sobre quais seriam as tarefas da filosofia (Benjamin, 1971, p.102). Como Foucault, é em
Kant que Benjamin encontra a sua tradição. Ou, melhor, também é propondo uma leitura
radicalmente seletiva de Kant que Benjamin cria a sua tradição. Seu ponto de partida é a
pergunta sobre a relação que a filosofia vindoura poderia ter com o sistema kantiano: “Para
a filosofia futura é da maior importância reconhecer e separar os elementos do
pensamento kantiano que devem ser assumidos e mantidos, os que devem ser remanejados
e os que devem ser rejeitados” (Benjamin, 1971, p. 100). Ainda que incontornável em sua
importância, há uma insuficiência básica na filosofia de Kant: a fundação do conhecimento
sobre uma “realidade de nível inferior, talvez o mais inferior nível”, ou seja um conceito de
experiência limitado pela visão de mundo da Aufklärung. Este “conceito inferior de
experiência”, reduzido “ao ponto zero, ao mínimo de significação” é tirado das ciências
naturais ou, na melhor das hipóteses, “de uma certa física newtoniana”. Assim limitado
pela noção de experiência que, pagando tributo à sua época, tiranicamente deveria assumir,
Kant só teria dado uma solução satisfatória a um dos dois aspectos da teoria do
conhecimento: aquele referente a certeza do conhecimento que permanece, o lado
“intemporal do saber”. O segundo aspecto – o da experiência temporal e de sua certeza –
teria sido negligenciado por Kant “na sua estrutura total como uma experiência
singularmente temporal”. Atento a esta dimensão temporal, preocupado com a redução da
noção de tempo ao modelo biológico, Benjamin irá encontrar no modelo estético a riqueza
de uma concepção de temporalidade que lhe permitirá construir sua epistemologia e seu
conceito de história. Apenas como indicação da perspectiva que orientará sua obra, cito
uma carta a Florens Rang, de 9 de dezembro de 1923, na qual, rejeitando a concepção
tradicional de história da arte ou de história da filosofia, difere a temporalidade das obras de
arte de uma temporalidade finalmente biológica que vinha prevalecendo nestas disciplinas.
Ainda nesta carta, propõe uma mesma temporalidade intensiva para a interpretação das
obras de arte e das idéias: “A reflexão que me ocupa diz respeito à relação das obras de
arte com a vida histórica. Tenho agora como certo que não há história da arte. (...) Do
ponto de vista do que lhe é essencial, ela [a obra de arte] é a-histórica. [Obras de arte]
não têm nada que as ligue umas às outras ao mesmo tempo de modo extensivo e a título
essencial. O elo essencial das obras de arte entre si se dá de modo intensivo. Nisto as
obras de arte são análogas aos sistemas filosóficos, o que se chama de história da filosofia
sendo ou bem uma história de dogmas ou de filósofos, desprovida de interesse, ou então a
história de problemas na medida em que está a todo momento ameaçada de perder contato
com o contexto histórico e de voltar-se à interpretação intemporal, intensiva. A
historicidade específica das obras de arte é também deste tipo, que não se descobre em
uma história da arte mas somente em uma interpretação. Uma interpretação, na verdade,
faz jorrar conexões que são atemporais, sem serem por isto desprovidas de importância
histórica” (Benjamin, 1979, p. 293). Observo que a noção de interpretação em Benjamin
difere da concepção hermenêutica tradicional, que confere a categoria de sujeito um papel
essencial, na medida em que justamente descarta os temas reflexivos da filosofia moderna.
É a partir basicamente desta compreensão de temporalidade que Benjamin irá repensar os
vínculos da modernidade com a tradição e construir o seu conceito de história. Seus estudos
da década de 30 sobre Baudelaire constituem, sem dúvida, uma peça importante para estas
elaborações.
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Já foi observado que, através de Baudelaire, Walter Benjamin não cessa de falar de si
próprio. Seus clássicos ensaios sobre o poeta respondem a uma exigência de pensamento
muito próxima a que Foucault se faz nos seus artigos dos 80 sobre Kant. Benjamin também
considera tarefa filosófica tomar a história como objeto de construção a partir de uma
concepção de tempo voltada para um presente em relação transformadora com o passado.
Isto é, um presente que rompe como as falsas continuidades da tradição e estabelece a sua
própria origem e um novo elo com o passado, criando, por assim dizer, a sua tradição.
Problematizar o presente e a tradição para ambos é receber a herança iluminista em uma
radical fidelidade à dimensão crítica.
Como a de Foucault, a leitura de Benjamin procura uma teoria da modernidade em
Baudelaire. Mas, diversamente, considera os ensaios estéticos menos importantes para isto.
Para ele, “a teoria da arte moderna é, na visão baudelairiana da modernidade o ponto
mais fraco...”. O que conduz Benjamin a esta conclusão é não ter encontrado na teoria da
modernidade dos ensaios de Baudelaire a relação decisiva entre a modernidade e a
antigüidade que, no entanto, o poeta constrói na sua lírica: “...nenhuma das reflexões
estéticas (...) expõe a modernidade em sua interpenetração com a antigüidade como ocorre
em certos trechos de As flores do mal” (Benjamin, 1989a, p. 81). O tema da heroificação
como atitude moderna – explicitado por Baudelaire no axioma de sua teoria da
modernidade, “O herói é o verdadeiro objeto da modernidade” – aparece de forma mais
rica na poesia, vinculado a uma concepção da relação entre o passado e o presente, entre
antigüidade e atualidade, que determina a sua apreensão do moderno. Embora com esta
diferença, a valorização da percepção da modernidade em Baudelaire, pela sua proposta de
construção do tempo, é a mesma que, como indiquei acima, faz Foucault. O presente não é
para o poeta, observa Benjamin, apenas um tempo fugidio de transição, mas uma
construção que determina novas relações com o passado. O modelo de temporalidade é o
das obras de arte autênticas que, ao surgirem, determinam uma ruptura que inaugura a sua
própria tradição. Esta tematização está no cerne da concepção de origem em Benjamin e
muito próximo da genealogia de Foucault se lermos, por exemplo, o artigo Nietzsche, a
genealogia e a história como explicitação de suas próprias preocupações a respeito da
história (Foucault, 1975a, p. 15-37).
O heroísmo em Baudelaire consiste em propor à poesia, à arte, fazer da modernidade, um
dia, algo de clássico. Walter Benjamin sugere uma aproximação de Baudelaire com o
Nietzsche de O nascimento da tragédia pela consideração que o poeta faz de Wagner na
frase que, segundo Benjamin, contém em essência a sua teoria da arte moderna, entendida
na articulação antigüidade/modernidade: “Se Wagner, na escolha de seus temas e no seu
proceder dramático, se aproxima da antigüidade, torna-se, graças à sua força de
expressão apaixonada, o representante mais importante da modernidade” (Benjamin,
1989a, p. 80). O herói moderno, em Baudelaire, aparece com nitidez para Benjamin em um
poema como As queixas de Ícaro, construído a partir da percepção não apenas do declínio
do herói trágico clássico, que “teve de ceder espaço ao herói moderno, cujos feitos são
relatados por La Gazette des Tribunaux” (p.79), mas também de que o herói moderno se
constitui já sob o signo do declínio. A heroificação é, como também observa Foucault,
irônica. O clássico moderno é precário: a modernidade quebra a tradição e, ao mesmo
tempo, problematiza-se como tradição virtual. Para Benjamin, esta é a grande indagação de
Baudelaire sobre a sua atualidade: “assim que vê seus direitos conquistados, a modernidade
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expira. Então será posta à prova. Após sua extinção, verificar-se-á se algum dia pode ou
não tornar-se antigüidade” (Benjamin, 1989a, p. 80). Poder ser um dia lido como um autor
antigo não era para Baudelaire um problema simples. Supunha um compromisso de
construção de sua atualidade como heróica: “que a modernidade mereça um dia se tornar
antigüidade” era o imperativo que, na leitura de Benjamin, elucida a compreensão da arte
em Baudelaire.
O que Benjamin enfatiza, a serviço da sua teoria da alegoria, é como a beleza moderna,
ligada à busca do novo, está paradoxalmente ligada à morte, à destruição do tempo. A
cidade grande é o cenário desta morte. A análise, neste aspecto, se refere, entre muitos
outros, ao mesmo texto de Baudelaire considerado por Foucault, sobre a roupa, “esse
invólucro do herói moderno” que, convenientemente preta, alcança uma beleza política – já
que nos torna todos democraticamente iguais – mas também uma beleza poética – já que
“todos celebramos algum enterro”. É em As flores do mal que, sem que constituam um
tema explícito, a multidão e a grande cidade desenham a modernidade. A existência desta
nova experiência urbana é a condição de possibilidade da lírica de Baudelaire. Mas a
cidade, para Baudelaire, é, antes de tudo, uma alegoria da morte, do efêmero, do transitório.
É nos Tableaux parisiens que Paris aparece na sua fragilidade: a cidade moderna como
ruína antiga, como mimese da morte. Benjamin quer demonstrar como a concepção de
modernidade em Baudelaire se dá sob o signo da precariedade, de uma apreensão do tempo
em sua dimensão vertiginosa do instante. Assim, a urbanização de Haussmann o fazia ver
Paris sempre em ruínas: “La forme d'une ville / Change plus vite, hélas! que le coeur d'un
mortel”. A modernidade, identificada às cidades, é o vertiginoso passar, a mudança como
regra permanente, as ruínas do há pouco novo. A leitura que Benjamin faz do conceito de
modernidade em Baudelaire indica como esta, em sua precariedade, paradoxalmente cita a
antigüidade, isto é, indica como o poeta sugere uma relação de simultaneidade entre elas,
modificando-se assim, em sua percepção, a cronologia continuísta habitual.
É tematizando a relação modernidade/antigüidade em Baudelaire que Benjamin introduz o
tema da forma alegórica, central para a compreensão da obra do poeta e da sua própria. No
seu livro sobre o drama barroco alemão, escreveu que “a alegoria se instala mais
duravelmente onde o efêmero e o eterno coexistem mais intimamente” (Benjamin, 1984, p.
247). Para Benjamin, o mundo de Baudelaire – o mundo capitalista – assemelha-se ao
mundo barroco. Também há uma perda dos sentidos: é a época dos sujeitos e dos objetos
transformados em mercadorias. O poeta já não encontra nas palavras o seu sentido habitual:
a lírica tradicional caduca. São outras as palavras, as imagens usadas pelo poeta lírico
moderno. Mas também é outra a sua percepção, os seus sentidos, as suas paixões. Se
ressurgem as condições de articulação do efêmero com o eterno, como no período barroco,
há uma nova função da visão alegórica no século XIX. É pela alegoria que Baudelaire põe a
modernidade à distância. O spleen transforma todo presente em antigüidade, em realidade
frágil da qual, no próximo instante, só subsistem as ruínas. As águas-fortes de Meryon, tão
admiradas por Baudelaire, mostram Paris simultaneamente em ruínas, em escombros, e em
construção. Encarnam o caráter alegórico da modernidade face à experiência da
transitoriedade, da morte. Esta concepção de tempo que estabelece a simultaneidade do
passado e do presente é capital para Benjamin. Na seção sobre a teoria do conhecimento, do
livro sobre as Passagens, definindo a sua noção de imagem dialética escreve: “Não se deve
dizer que o passado ilumina o presente ou que o presente ilumina o passado. Uma imagem,
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ao contrário, é onde o Antigo encontra o Agora em um raio para formar uma constelação.
Em outras palavras, a imagem é a dialética parada. Porque, enquanto que a relação do
presente com o passado é puramente temporal, contínua, a relação do Antigo com o Agora
é presente e dialética: não é algo que se escoe, mas uma imagem descontínua. Somente as
imagens dialéticas são imagens autênticas ( ...) e o lugar onde são encontradas é a
linguagem” (Benjamin, 1989b, N2,a3, p. 478-479). Baudelaire é o primeiro a usar na lírica
palavras não só de proveniência prosaica, mas também urbana. Benjamin resume o seu
estilo na fórmula de Claudel: “Baudelaire (...) teria unido o estilo literário de Racine ao de
um jornalista do Segundo Império” (Benjamin, 1989a, p. 97). Neste novo vocabulário
lírico “de súbito e sem nenhuma preparação, aparece uma alegoria... Sua técnica é a do
putsch” (p. 97). Para Benjamin, há em Baudelaire a refletida elaboração da experiência
poética a partir da experiência propriamente moderna do choque. Há um “plano de
composição”: “a produção poética de Baudelaire está associada a uma missão. (...) Sua
obra não só se permite caracterizar como histórica, da mesma forma que qualquer outra,
mas também pretendia ser e se entendia como tal” (Benjamin, 1989a, p. 110).
Esta construção do eu lírico a partir de uma acurada visão de seu presente; a modernidade
entendida não só como percepção de descontinuidades mas como uma construção do tempo
que estabelece novas relações com o presente e com o passado – a heroificação do presente
– faz de Baudelaire um sugestivo ponto de interseção entre o pensamento de Foucault e o
de Benjamin. Nas noções de jetztzeit e de imagem dialética, que fundamentam as teses de
Benjamin sobre o conceito de história, encontra-se a leitura dessa modernidade de
Baudelaire conectada a uma antigüidade, como ela construída no espaço da linguagem.
Enfatizando a atitude de insubmissão ao tempo linear como característica da modernidade
recriada por Baudelaire, Foucault situa o seu projeto filosófico como uma insubmissão, ou
seja, uma transgressão aos limites da tradição e do presente – isto a que chama de “respeito
e violação do real” no poeta. Baudelaire permite, assim, esclarecer algumas afinidades
promissoras entre a concepção de história de Benjamin e o projeto genealógico de Foucault.
O pressuposto metodológico de uma visibilidade da história aproxima as concepções de
Benjamin e de Foucault. Foucault, em seu artigo sobre Nietzsche, compreende a genealogia
como o método que permite ver a história a partir de um ângulo estratégico. Para ele, a
dimensão essencial que os historiadores tradicionais supõem escondida por trás dos fatos
históricos é diretamente visível quando posta em evidência pelo genealogista. Benjamin
quer “mostrar”, quer “ensinar a ver”: “Educar em nós o elemento criador de imagens para
ensiná-lo a ver, de maneira estereoscópica e dimensional, na profundeza das sombras
históricas.(...) Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar” (Benjamin, 1989, N1a,8).
Não se trata, para Foucault ou para Benjamin, de ver, na multiplicidade dispersiva dos
acontecimentos, a linha contínua em direção à meta que dotaria a história de um sentido. A
genealogia quer “marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda a finalidade
monótona”. Para Benjamin, o historiador deve ser “suficientemente viril para fazer saltar
pelos ares o continuum da história”1. O genealogista e o “historiador viril” vêem
descontinuidades onde a história tradicional encontra uma evolução contínua. O
genealogista quer, escreve Foucault, “manter o que se passou na dispersão que lhe é
própria” (Foucault, 1975, p. 21). Esta preocupação com insignificâncias históricas é
1
Sobre o conceito de história ver tese 16 (Benjamin, 1985, p. 231).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

também a do historiador viril de Benjamin, que pretende “descobrir na análise do pequeno


momento singular o cristal do acontecimento total” (Benjamin, 1989b, N2,6). Ambos
vêem, na história, violência e dominação e não o progresso da razão: “A peça representada
nesse teatro sem lugar é sempre a mesma: é aquela que repetem indefinidamente os
dominadores e os dominados. ( ...) A humanidade não progride lentamente, de combate em
combate, até uma reciprocidade universal (...) ela instala cada uma de suas violências em
um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação” (Foucault, 1975a,
p. 24-25). Para Benjamin, a história é também “o cortejo triunfal” da violência dos
dominadores, um “monumento à barbárie”, uma “catástrofe única” (cf. Benjamin, 1985).
Como Benjamin, Foucault é pouco ortodoxo em relação à historiografia. Ambos propõem
escrever a história a partir da atualidade. Foucault quer “fazer a história do passado nos
termos do presente”, ou, em outras palavras, “fazer a história do presente” (Foucault,
1975b, p. 35). Benjamin quer “fundar a história passada na atualidade”. Fazer a “história
do presente” não significa, para eles, interpretar o presente a partir da história passada a
fim de estabelecer uma continuidade entre este passado e as suas formas atuais de
sobrevivência. Tampouco em interpretar o passado, dando-lhe novo sentido a partir de
questões contemporâneas. A concepção de presente, para Foucault, é eminentemente
crítica, requer um diagnóstico da atualidade e evita estabelecer continuidades. O
diagnóstico é fruto de uma construção do presente. Assim, a noção de dispositivo,
entendida como o conjunto de todas as práticas discursivas e não-discursivas de uma época,
irá estabelecer uma relação do presente com o passado sem continuidades e sem finalismos.
Esta noção supõe que, como Baudelaire no espaço da arte, Foucault construa, no espaço da
história, a sua atualidade e também uma relação nova entre esta e o passado. Para Benjamin
a perspectiva construtivista é indispensável para a historiografia: “a história é objeto de
uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de
agoras” (Benjamin, 1985, tese 14). O agora é o presente do historiador no momento em
que ele escreve a história. Passado e presente são, para o historiador, objetos de construção,
arrancados do fluxo de um “tempo vazio e homogêneo” (Benjamin, 1985, tese 13).
Considero que – como construção de novas relações com o tempo, como valorização e
proposta de transformação do presente – a história é, para estes autores, uma certa forma de
heroificação do presente, no sentido peculiar que Baudelaire deu ao termo heróico.
Recebido para publicação em agosto/1995

ABSTRACT: An approach between Michel Foucault's history of the present and Walter
Benjamin's conception of history, based on his analyses about the vision of modernity as a
construction of time in Baudelaire's work.
KEYWORDS: Foucault, Benjamin, Baudelaire, history, history of the present, time,
modernity.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. (1971) Mythe et Violence. Paris, Denoël.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

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VEYNE. (1986) Le dernier Foucault et sa morale. Critique, Paris, Édition de Minuit, nº
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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Michel Foucault e o nascimento da modernidade


JOSÉ TERNES
Este texto foi redigido, em primeira mão, para a
Semana de Filosofia da UFG, em novembro de 1993.
Para este Simpósio foram feitas modificações, sem
alterar, substancialmente, sua estrutura.
Professor do Departamento de Filosofia da UFG e da
UCG

RESUMO: O artigo investiga a leitura de Michel Foucault a respeito da origem do


pensamento moderno na virada do século XVIII para o século XIX. Essencialmente
diferente do pensamento clássico, o moderno se enraíza na história, no condicionado, na
finitude. Aí, novos objetos se tornam possíveis (vida, produção, linguagem), bem como
uma nova filosofia (a crítica). E, do interior desse espaço epistêmico novo, uma figura
ausente na tradição do pensamento ocidental: o Homem.
PALAVRAS-CHAVE: discurso, episteme, representação, modernidade, história, finitude,
homem.

A morte de Foucault, há dez anos, não tirou a sua atualidade. Sua presença entre nós, no
entanto, acontece de outra maneira. É o que parecem dizer estas palavras de Jean-Jacques
Courtine, de 1991: “As controvérsias de ontem se acalmaram. O tempo não é mais aquele
em que era necessário ser a favor ou contra Foucault, repeti-lo ou esquecê-lo, desmontar,
por toda parte, a seu exemplo, insidiosas máquinas de poder ou denunciar nessa obra o
perigoso niilismo do pensamento 68. Novos problemas surgiram que deslocam o espaço
das leituras possíveis, colocam a seus textos questões inéditas, convidam-nos a lançar um
olhar inquieto sobre o que têm sido nossas maneiras de ler Foucault” (Courtine, 1992, p.
112).
”Nossas maneiras de ler Foucault...”. Ele mesmo nos ensina o que é uma boa leitura. Trata-
se, particularmente, de interrogar nossa relação com o livro, com a obra. O Prefácio à
segunda edição de História da Loucura (1972) responde: “Gostaria que um livro, (...), nada
fosse além das frases de que é feito (...). Gostaria que esse objeto-acontecimento, quase
imperceptível entre tantos outros, se recopiasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim sem
que aquele a quem aconteceu escrevê-lo pudesse alguma vez reivindicar o direito de ser seu
senhor, de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro deveria ser. Em suma, gostaria
que um livro não se atribuísse a si mesmo esse estatuto de texto ao qual a pedagogia ou a
crítica saberão reduzi-lo, mas que tivesse a desenvoltura de apresentar-se como discurso:
simultaneamente batalha e arma, estratégia e embate (”choc”), luta e troféu ou ferida,
conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível” (Foucault, 1972, p. 10).
Temos aí, resumidamente, uma teoria do discurso. A noção foucaultiana de discurso
desclassifica o autor, a obra, todo e qualquer ponto de apoio anterior à palavra viva.
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Desclassifica o sujeito. Somente a morte do sujeito abre espaço para o retorno da


linguagem.
Esse ponto de partida nos remete a um Foucault, para muitos, ultrapassado, ou, pelo menos,
desconhecido: o Foucault de A arqueologia do saber. Voltar, hoje, a As palavras e as
coisas, a Nascimento da clínica, a História da loucura não seria cometer um anacronismo?
Não seria, de certa forma, contradizer o próprio autor que, de público, confessara, em O
retorno da moral, em 1984, sua ruptura brusca entre o estilo anterior a 75 e o que se lhe
segue? As palavras e as coisas, em especial, apesar de toda a polêmica desencadeada na
época de seu nascimento, ainda não deu, acredito, os frutos que poderia dar. Voltar a este
texto, bem como a todos aqueles discursos um tanto enigmáticos da primeira fase, se
constitui, para mim, um desafio. Duplo desafio. Primeiro, porque significa vencer um certo
modismo que a difusão da genealogia do poder suscitou no universo acadêmico. Depois,
porque há uma dificuldade intrínseca à própria obra arqueológica. Talvez a própria rapidez
de produção e divulgação dos escritos posteriores a A arqueologia do saber tenham
ocasionado uma espécie de atropelo à compreensão das primeiras obras. Hoje, no entanto,
como observa Courtine, “as condições de recepção do trabalho de Foucault se modificaram,
com efeito, consideravelmente” (Courtine, 1992, p. 112). Não haveria muito sentido, pois,
distante já de sua morte, alimentar-se da aura do Foucault vivo. Superadas as querelas
próprias de seu tempo, talvez a obra de Foucault nos possa oferecer novas questões,
contanto que, parodiando Heidegger, a ela nos abandonemos1.
Talvez nem se trate de levantar novas questões. Minha leitura de alguns textos de Foucault
pretende muito pouco: retomar a interpretação foucaultiana da modernidade (uma palavra,
hoje, muito em voga, ambígua, no entanto). Significa, no contexto de As palavras e as
coisas, interrogar as condições dentro das quais se tornou possível a maneira moderna de
pensar. A Arqueologia, convém lembrar, distancia-se radicalmente das histórias que
conhecemos na cultura ocidental2. Em primeiro lugar, precisamos lembrar que Foucault é
tributário de uma herança teórica que, desde as primeiras décadas deste século, vem
contestando um certo tipo de história, em especial, no que concerne à história das ciências.
Ele deve muito a Bachelard, a Cavaillés, a Canguilhem. Por isso, sua história não traça
linearidades. Não se contenta com as grandes causalidades. Não se ocupa com isto que
tanto fascina o historiador, os fatos. Por outro lado, sua história também não se identifica
com as histórias das idéias, características do pensamento francês deste século. A
arqueologia do saber propõe-se uma tarefa muito precisa: ela descreve epistemes.
Ocupar-se com a descrição das epistemes, assinala G. Canguilhem, não faz de Foucault um
epistemólogo. Seu objeto, com efeito, não é a ciência, nem qualquer outro saber em
particular. Trata-se de interrogar o solo a partir do qual determinadas coisas podem ser
ditas, certos discursos podem aflorar, e outros, não. Trata-se, enfim, de se situar nessa
região mais fundamental, nesse humus, lembrando novamente Canguilhem, que alimenta o

1
“Está pois certo e na melhor ordem dizer-se que com filosofia nada se pode fazer. O errado seria pensar que,
com isso, terminou o juízo sobre a filosofia. Pois sobrevém-lhe ainda um pequeno acréscimo na forma de uma
contra-pergunta: se nós nada poderemos fazer com filosofia, acaso a filosofia também não poderá fazer
alguma coisa conosco, contanto que nos abandonemos a ela?” (Heidegger, 1969, p. 42-43).
2
Recomendaria, a esse respeito, a leitura do excelente texto de Paul Veyne, Foucault revoluciona a história,
publicado, no Brasil, pela Editora da UNB.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

modo de pensar de uma cultura numa determinada época. De acordo com o Prefácio de As
palavras e as coisas, todo discurso obedece a uma ordem. “O embaraço que faz rir quando
se lê Borges é por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem está
arruinada: ter perdido o comum do lugar e do nome” (Foucault, 1966, p.10). A
Enciclopédia Chinesa, a que alude Borges, se enraíza em outro espaço a partir do qual se
torna possível “nomear, falar, pensar” (p. 11) e que, para nós, modernos, se reverte,
simplesmente, no impensável, “a impossibilidade patente de pensar isso” (p. 7).
Os estudos chamados arqueológicos de Foucault privilegiam dois recortes na cultura
européia ocidental: a episteme clássica (séculos XVII-XVIII) e a episteme moderna
(séculos XIX-XX), à qual ainda pertencemos3. Dois recortes que separam, insisto, duas
maneiras de pensar. Diferenças, portanto, epistêmicas. Trata-se de verificar que tipo de
questões, de conceitos, de saberes perdem sentido, e que maneiras de pensar tomam seu
lugar. Foucault reconhece que pisa um terreno movediço: “Não é fácil estabelecer o
estatuto das continuidades para a história em geral. Menos ainda, sem dúvida, para a
história do pensamento. Pretende-se traçar uma divisória? Todo limite não é mais talvez
que um corte arbitrário num conjunto indefinidamente móvel. Pretende-se demarcar um
período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do tempo, rupturas
simétricas, para fazer aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário? A partir de que,
então, ele se constituiria e a partir de que, em seguida, se desvaneceria e se deslocaria? A
que regime poderiam obedecer ao mesmo tempo sua existência e seu desaparecimento? Se
ele tem em si seu princípio de coerência, donde viria o elemento estranho capaz de recusá-
lo? Como pode um pensamento esquivar-se de outra coisa que ele próprio? Que quer dizer,
de um modo geral: não mais poder pensar um pensamento? E inaugurar um pensamento
novo?” (Foucault, 1966, p. 64). A Arqueologia, certamente, não conta com os instrumentos
necessários para responder a todas estas perguntas. Elas constituem, porém, a meu ver, o
motivo que alimenta a própria investigação que se desdobra na ordem empírica. E é aí, na
ordem empírica, que se constatam descontinuidades. Por exemplo: não se pode ir da idade
clássica à modernidade em linha reta. Esta, a modernidade, não se constitui no
aperfeiçoamento daquela. A diferença, diria A. Koyré, não é de grau, mas de natureza. Aí,
certamente, se pode perceber um dos traços fundamentais das histórias construídas por
Foucault.
As palavras e as coisas, em particular, nos oferece, em linhas bastante amplas, o quadro
geral da idade clássica. Trata-se do universo da ordem e da representação, o universo
infinito4. Uma época em que as palavras e as coisas se distanciam. Em que estas, as coisas,
não mais falam, não mais guardam uma verdade secular. O mundo deixa de ser texto
indefinidamente interpretável. A verdade se dá na transparência do Discurso. Vale a pena
assinalar bem este acontecimento, a passagem do Texto para o Discurso. Um texto está à
nossa disposição para ser lido. Deve ser interpretado. Já o discurso se basta a si mesmo. É
transparente. Funciona por uma espécie de mecanismo próprio. Desdobra-se ao infinito.
Não se trata de interpretá-lo, pois se caracteriza pela simplicidade e evidência. Resta-nos

3
Rigorosamente, para Foucault, a expressão pós-modernidade não tem sentido.
4
Para Foucault, simplesmente, idade da representação. Mas o infinito, a meu ver, ainda que não tema-tizado
explicitamente, parece constantemente aflorar como questão constitutiva dessa idade. Indecisão, a meu ver,
estreitamente ligada à escolha teórica da leitura de Foucault: as Regulae ad Directionem In-genii, de
Descartes.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

acompanhar o seu desenrolar. Assim, à hermenêutica renascentista se contrapõe, com os


clássicos, a necessidade de uma analítica. Os renascentistas interpretam. Os clássicos
analisam. E isto tem um sentido duplo: analisa-se a linguagem, em primeiro lugar, a
distribuição linear, sucessiva, dos signos. E, por outro lado, analisa-se, também, o
pensamento. A noção clássica de signo incorpora a idéia e a própria noção de idéia (ou a
idéia da idéia). Linguagem e pensamento, de alguma forma, se sobrepõem. Foucault afirma,
mesmo, que a linguagem se destrói, desaparece. O Cogito, radicalizado, dispensaria a
linguagem. Contentar-se-ia com a idéia “como imagem do mundo”5. Esse contentar-se com
idéias, com a realidade reduzida a traços geométricos, onde, segundo A. Koyré, “não
experimentamos nenhuma alegria perante a variedade das coisas” (Koyré, 1973, p. 58), essa
maneira de conhecer fundada na medida e na ordem recebe o nome de idade da
representação6. Uma época que, para Foucault, é bastante longa. Estende-se do início do
século XVII até a aurora do século XIX.
A partir do final do século XVIII e começo do século passado a episteme ocidental se
reorganiza. Configura-se uma disposição do saber radicalmente nova. Já não nos
contentamos com analisar representações. A verdade não mais habita o universo
transparente das idéias. Precisamos arrancá-la à espessura das coisas. Dá-se no interior da
história.
Os esforços de alguns filósofos, como Husserl, para encontrar um novo caminho seguro
para a Razão fracassam inexoravelmente. Na verdade, eles não perceberam que não é mais
possível voltar a Descartes. Todo o solo que sustenta nossa maneira de pensar é outro. A
nova disposição epistêmica incorpora a historicidade, o condicionado, a finitude. Ou seja,
desde o fim do século XVIII, perdemos a ilusão do fundamento absoluto do conhecimento.
Foucault vai além: mostra a ausência de todo fundamento. Quando os modernos fundam o
saber no finito, despertam de um longo sono dogmático. Ao se situarem na historicidade de
seus objetos, engajam-se numa tarefa marcada pelo tempo, pela dispersão, pela destruição,
pela morte.
É nesse terreno, o da historicidade e da finitude, que vemos nascer novos discursos. É nesse
contexto epistemológico que emergem figuras antes impossíveis de imaginar: a produção, a
vida, a linguagem são novos objetos próprios da modernidade. Os clássicos não tinham
nada disso. Não faziam economia política, mas analisavam riquezas. Não faziam biologia,
mas história natural. Não faziam filologia, ou gramática comparada, mas se ocupavam com
algo muito estranho para nós, hoje, gramática filosófica (ou geral). Contemporânea a essas
empiricidades, o final do século XVIII viu nascer uma outra maneira de se fazer filosofia.
Já não se trata mais unicamente de se ocupar com o desenrolar das representações. A nova
filosofia ousa interrogar a possibilidade mesma da representação. A figura mais ilustre
dessa episteme é Kant, uma filosofia transcendental.

5
A noção cartesiana de idéia “como imagem do mundo” pode ser encontrada na Terceira Meditação.
6
Heidegger, num texto da coletânea Holzwege, fala em “Época da imagem do mundo”. Fica a pergunta se a
redução do modo de pensar do século XVII e XVIII à forma generalizada da representação é absoluta. Temos
exemplos, mesmo de dentro dessa época, que parecem transgredir a ordem descrita por Foucault. Refiro-me,
em particular, a Espinosa e a Pascal.
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

A análise de Foucault não pára aí. A modernidade não se exaure nessa dualidade inicial.
Ciências empíricas e filosofia transcendental constituem um espaço epistemológico tal que,
de seu próprio interior, se impõe uma terceira figura: o homem. Seu advento, no limiar de
nossa época, não é fruto do acaso. Ele é requerido pela própria contextura do saber
moderno. Isto não quer dizer que hoje sejamos mais humanos do que nos séculos
anteriores. Não está em questão o ressurgimento do humanismo. A questão é outra: os
modernos não conseguem mais pensar sem uma referência, ainda que velada, ao homem.
Trata-se, pois, de uma época inapelavelmente antropológica. Isto, para Foucault, não é, de
forma nenhuma, um elogio. Ao contrário, se, de um lado, o homem se constitui numa figura
central da disposição epistemológica atual, por outro, significa uma nova perversão. O
espectro do dogmatismo, objeto privilegiado da crítica kantiana, talvez não esteja
totalmente afastado de nosso pensamento. Ao contrário, encontra, no entender de Foucault,
seu lugar de entrada justamente no espaço aberto pela quarta, e mais fundamental, questão
posta por Kant em sua Lógica: o que é o homem?7
Desde História da loucura vemos Foucault afirmar que a filosofia moderna é, em essência,
antropologia (Foucault, 1972, p. 169). Em As palavras e as coisas, torna-se tese
fundamental: “A antropologia como analítica do homem teve indubitavelmente um papel
constituinte no pensamento moderno, pois que em grande parte ainda não nos
desprendemos dela” (Foucault, 1966, p. 351). Kant, aqui, tem, na verdade, um lugar
simbólico. O que ele estabeleceu, ou indicou, foi apenas o vazio que tornaria a questão “o
que é o homem?” possível. E este espaço se localiza na distinção kantiana entre o empírico
e o transcendental. Distinção, observa Foucault, que Kant “mostrara” (Foucault, 1966, p.
352) e que a filosofia pós-kantiana teria negligenciado.
Deve-se insistir nessa negligência. Ela traduz a ambigüidade do estatuto do homem no
pensamento filosófico moderno. Acreditam as boas almas8 que, finalmente, se anuncia uma
nova idade do homem. Trata-se, certamente, de um delírio humanista. Ora transformam o
empírico em fundamento. Ora fazem do transcendental objeto da experiência9. Em ambos
os casos, absolutizam um pensamento que, desde seu nascimento, se configura relativo,
disperso, finito. Negam o próprio ser da modernidade. Instauram, assim, através da
antropologia, um novo dogmatismo. Então, diz Foucault, “todo conhecimento empírico,
desde que concernente ao homem, vale como campo filosófico possível, onde se deve
descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, finalmente, a

7
A Lógica, ao expor o campo (Feld) próprio da filosofia, amplia esse interesse para quatro perguntas
(Fragen) essenciais. Às três anteriores vemos acrescida uma quarta, Was ist der Mensch?, que, segundo
Foucault, seria mais fundamental, já que aquelas estariam reportadas a ela e “postas, de certo modo, à sua
custa (Foucault, 1966, p. 352). Aliás, é justamente isto que dizem as palavras de Kant: “Die erste Frage
beantwortet die Meta-physik, die zweite die Moral, die dritte die Religion, und die vierte die Anthropologie.
Im Grunde kônnte man aber alles dieses zur Anthropologie rech-nen, weil sich die drei ernsten Fragen auf
die letzte beziehen” (KANT, 1983, p. 448).
8
“les belles âmes” (Foucault, 1966, p. 352).
9
“... en fait, il s'agit, et c'est plus prosaique et c'est moins moral, d'un redoublement em-pirico-critique par
lequel on essaie de faire valoir l'homme de la nature, de l'échan-ge, ou du discours comme le fondement de sa
propre finitude. En ce Pli, la fonction transcendentale vient recouvrir de son ré-seau impérieux l'espa-ce inerte
et gris de l'empiricité; inver-sement, les contenus empiriques s'animent, se redressent peu à peu, se mettent
debout et sont subsumés aus-sitôt dans un discours qui porte au loin leur présomption transcen-dentale”
(Foucault, 1966, p. 352). 10 Un rire philosophique(Foucault, 1966, p. 354).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

verdade de toda verdade. A configuração antropológica da filosofia moderna consiste em


desdobrar o dogmatismo, reparti-lo em dois níveis diferentes que se apóiam um no outro e
se limitam um pelo outro: a análise pré-crítica do que é o homem em sua essência converte-
se na analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem” (Foucault,
1966, p. 352).
Não se trata, parece-me, de, simplesmente, eliminar a antropologia do horizonte da
modernidade. Mesmo porque, diz Foucault, “constitui talvez a disposição fundamental que
comandou e conduziu o pensamento filosófico desde Kant até nós” (Foucault, 1966, p.
353). Trata-se de devolver-lhe o seu peso devido. Trata-se de conferir ao homem o lugar
que lhe convém. De que Kant, aliás, já suspeitara: indicação, apenas. Não fundamento. Pois
não há mais, na episteme moderna, nenhum fundamento. Todo fundamento dispensa o
pensar. Impõe a sonolência intelectual. Foucault descobre em Nietzsche a direção (ou
alternativa) desejável para o pensamento moderno. É preciso, com efeito, desenraizar a
antropologia. Como já se observara no Sofista, a possibilidade do pensar tem a ver com a
morte. Desta vez, no entanto, trata-se de um duplo assassinato: “... Nietzsche reencontrou o
ponto onde o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo
do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do super-homem significa,
primeiramente e antes de tudo, a iminência da morte do homem” (Foucault, 1966, p. 353).
Morte de Deus, morte do homem... Foucault insiste no significado desse acontecimento.
Não se trata, aí, de uma carência aberta na cultura ocidental. Não se trata, também, de uma
lacuna. A morte do homem tem o sentido do vazio, da casa vazia, de que nos fala Deleuze
(Deleuze, 1982, p. 291 ss). Na idade clássica, e é isto que o quadro de Velázquez, analisado
por Foucault no começo de As palavras e as coisas, ensina, a ausência do homem se dera
face ao infinito discursivo. Na modernidade, no entanto, vimos, sua presença é requerida.
Mas, entenda-se, enquanto sujeito e objeto do conhecimento. Desde o começo, portanto,
enquanto figura ambivalente, necessariamente nebulosa. Constitui, portanto, negação da
própria filosofia moderna “conduzir todo o conhecimento às verdades do homem”
(Foucault, 1966, p. 353). Quando isto ocorre, instaura-se um novo antropologismo. É esse
tipo de filosofia, “essas formas de reflexão canhestras e distorcidas”, que merecem “um riso
filosófico” 10. Foucault, à maneira de Kant, quer um novo fim da metafísica: “Em nossos
dias não se pode mais pensar senão no vazio do homem desaparecido” (p. 353).
Para concluir, gostaria de ressaltar o seguinte: os dois grandes recortes a que Foucault
procede em suas análises podem deixar a impressão de uma espécie de tirania das
epistemes. Num colóquio a respeito de As palavras e as coisas, realizado em 1968, E.
Verley afirma: “É surpreendente ver até que ponto as articulações assinaladas por Cassirer
desaparecem no quadro do pensamento clássico que encontramos em As palavras e as
coisas” (Verley, 1970, p. 160). Penso que essa suspeita não pode ser absolutizada. O
próprio discurso foucaultiano, como bem observa Renato Janine Ribeiro, em um livro
recente, é um discurso do inesperado (Ribeiro, 1993, p. 74). Encontramos, desde História
da loucura, figuras-surpresas que, de alguma forma, transgridem a ordem imposta pela
episteme. Trata-se de pensamentos que, poder-se-ia dizer, não pertencem a nenhuma
episteme, mas se inscrevem em suas margens. São, conforme tenho mostrado em minha
tese de doutoramento, pensamentos-limite. O interesse foucaultiano pelo limite, pelas
fronteiras, pelas dobras, pelo indefinido, o quase-outro, não me parece ocasional. Talvez
seja um de seus traços mais marcantes. Judith Revel, num texto recente, diz: “... da
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Introdução de 1954 aos últimos volumes da História da sexualidade, em 1984, alguma


coisa, precisamente, permanece, para além das rupturas, para além das mudanças
metodológicas – alguma coisa que eu acredito ser um certo pensamento da experiência
como experiência-limite, ou como experiência do limite” (Revel, 1992, p. 52). O limite
aponta a diferença, o perigo, o “descaminho daquele que conhece” (Foucault, 1984, p.13).
Recebido para publicação em abril/1995

ABSTRACT: The article investigates the reading of Michel Foucault with respect to the
origin of modern thinking in the turning of the eighteenth to the nineteenth century.
Essencially different from classic thinking, the modern thinking roots itself in history, in
the conditioned, in finitude. There, new objects turn themselves possible (life, production,
language), as well as a new philosophy (a critical one). And, from inside this new epistemic
space, a figure which was absent in the tradition of western thought: Man.
KEYWORDS: discourse, episteme, representation, modernity, history, finitude, man.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COURTINE, J. J.(1992) Entre la vie et la mort. Apud GIARD, L. (org.). Michel Foucault:
Lire l'oeuvre. Grenoble, Jérôme Millon.
DELEUZE, Gilles. (1982) Em que se pode reconhecer o estruturalismo. In: CHÂTELET,
F. História da Filosofia. VIII. O Século XX. Trad. de H. Japiassú. Rio de Janeiro, Zahar.
FOUCAULT, Michel. (1966) Les mots et les choses. Paris, Gallimard.
______ . (1972) Histoire de la folie à l'âge classique. Paris, Gallimard.
______ . (1984) História da sexualidade II – O uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal.
HEIDEGGER, Martin.(1969) Introdução à Metafísica. Trad. de E. C. Leão. Rio de Janeiro,
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KANT, I. (1983) Logik. A, 26. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft.
KOYRÉ, A. (1973) Études d'histoire de la pensée scientifique. Paris, Gallimard.
REVEL, Judith. (1954) Sur l'introduction à Binswanger (1954). In: GIARD, L. (org.).
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RIBEIRO, Renato Janine. (1993) A última razão dos reis. São Paulo, Companhia das
Letras.
VERLEY, E. (1970) Coloquio sobre las palabras y las cosas. In: Analisis de Michel
Foucault. Buenos Aires, Tempo Contemporaneo.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Foucault e a noção de acontecimento


IRENE DE ARRUDA RIBEIRO CARDOSO
Professora do Departamento de Sociologia da
FFLCH-USP

RESUMO: A partir das últimas obras de Foucault, procuro analisar a importância do seu
trabalho sobre uma história do pensamento, em que a noção de acontecimento é central.
Articulada às noções de atualidade e de problematização constitui o modo como Foucault
tematizará o que chama de uma ontologia do presente. A partir de Kant caracteriza o ethos
filosófico da crítica do presente, inserindo-se, de uma maneira específica, nesta tradição.
Definindo a problematização da atualidade como uma reativação da questão da Aufklärung,
faz desta um acontecimento que nos questiona, enquanto possibilidade de constituição de
nós mesmos, como sujeitos autônomos. A interrogação sobre os limites do presente e a
possibilidade de sua transgressão instaura um campo problemático do pensamento, na
tematização das questões da autonomia e da liberdade. É a partir desse campo que formula
a sua interrogação sobre os gregos da Grécia clássica, a questão da ética, como um tipo de
relação que determina como o indivíduo se constitui como sujeito moral de suas próprias
ações.
PALAVRAS-CHAVE: acontecimento, história, atualidade, problematização, presente,
liberdade.

Procurarei, a partir da análise das últimas obras de Foucault “O que é o Iluminismo”


(Foucault, 1984c; 1988) e História da Sexualidade II – O Uso dos Prazeres (Foucault,
1984a ), destacar o que ele chama de sua escolha filosófica de um pensamento crítico que
toma a forma de uma ontologia da atualidade. Referindo-se ao que considera as duas
grandes tradições críticas fundadas por Kant, a de uma “filosofia crítica que se apresentará
como uma filosofia analítica da verdade em geral” e a de “um pensamento crítico que
tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade”,
inscreve-se na segunda tradição, que se caracteriza pela interrogação crítica “O que é a
nossa atualidade? Qual é o campo atual das experiências possíveis?” Uma “ontologia do
presente; uma ontologia de nós mesmos”(Foucault, 1984c, p.111-112).
No que se refere à questão do cuidado ético entre os gregos questiona “por que essa
‘problematização’, afirmando que “esta é a tarefa de uma história do pensamento por
oposição à história dos comportamentos ou das representações”. Trata-se de “definir as
condições nas quais o ser humano ‘problematiza’ o que ele é e o mundo no qual ele vive” –
a sua atualidade (Foucault, 1984a, p. 14).
Enfocar o mundo grego desse modo significa que a história do pensamento é construída a
partir da tradição crítica na qual Foucault se inscreve, de uma ontologia da atualidade, que
problematiza a Grécia clássica, não como “valor exemplar”, nem como “algo ao qual
retroceder”. Mas entendendo que “entre as invenções culturais da humanidade, há as que
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constituem ou ajudam a constituir um certo ponto de vista que pode ser muito útil como
uma ferramenta para analisar o que está acontecendo agora – e modificá-lo” (Foucault,
1984e, p. 47-49). Essa problematização de um cuidado ético como um “tipo de relação que
você deve ter consigo próprio, rapport à soi, (...) e que determina como o indivíduo se
constitui como sujeito moral de suas próprias ações”, a partir de um domínio de si,
constrói-se a partir de uma questão atual, a da problemática das liberações, da liberdade.
Essa problemática, por sua vez, está inscrita na tradição kantiana da Aufklärung, “inscrita
desde o século XVIII em nosso pensamento”. Essa tradição caracteriza “o ethos filosófico
presente na crítica ontológica de nós mesmos como uma prova histórico-prática dos limites
que podemos ultrapassar e desta maneira como um trabalho levado a cabo por nós mesmos,
sobre nós mesmos, como seres livres” (Foucault, 1984e, p. 51 ; 1988, p. 301) . Num texto
bem anterior, de 1978, Foucault, tematizando “o que é a crítica” e inscrevendo-a na
tradição kantiana afirmava que é possível interrogar os gregos “sem nenhum anacronismo,
mas a partir de um problema que é e que foi em todo caso percebido por Kant como sendo
um problema de Aufklärung. (...) Não se trata de dizer que os gregos do século V são um
pouco como os filósofos do século XVIII (...) mas sim de tentar ver sob quais condições, ao
preço de quais modificações ou de quais generalizações podemos aplicar, não importa a
qual momento da história, esta questão da Aufklärung [no registro das preocupações desse
texto] das relações dos poderes, da verdade e do sujeito” (Foucault, 1990, p. 58, 46, 47).
A questão colocada por Foucault “o que é a nossa atualidade?” tem como implicação tomar
a noção de acontecimento como constitutiva desta interrogação. Interrogar a atualidade é
questioná-la como acontecimento na forma de uma problematização.
Este tipo de interrogação define o campo das preocupações filosóficas de Foucault, nas
últimas obras, embora possamos já encontrar essa tematização em textos anteriores que já o
enunciam: “Qu'est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung] de 1978 (Foucault, 1990) e
La vie: l'expérience et la science publicado em 1985, mas que se constitui em pequena
modificação da Introdução à edição norte-americana do O normal e patológico, de
Canguilhem, em 1978 (Foucault, 1985b).
É preciso dizer ainda que as noções de acontecimento, de problematização e de atualidade,
já estavam presentes em suas análises anteriores. Em A arqueologia do Saber, de 1969
(Foucault, 1972, p. 152) e Nietzsche, a genealogia e a história, de 1971 (Foucault, 1979, p.
28) a noção de acontecimento é central como a irrupção de uma singularidade única e
aguda, no lugar e no momento da sua produção. Em A arqueologia do saber, ainda, a noção
de atualidade, que se diferencia da de presente, aparece como a “borda do tempo que
envolve nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade” (1972, p. 162-163).
A noção de problematização é considerada por Foucault como “forma comum aos seus
estudos” desde a História da Loucura. Alerta, no entanto, que se deveria considerar “isto
com cuidado” pois não havia ainda isolado suficientemente esta noção (Foucault, 1984b, p.
76).
No entanto, a grande novidade das últimas obras é que Foucault explicitamente se inscreve
no que considera a tradição crítica herdeira de Kant, a de uma ontologia da atualidade:
“forma de filosofia que de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max
Weber, fundou uma forma de reflexão” dentro da qual tentou trabalhar – embora essa
referência também já estivesse enunciada no texto de 1978 (Foucault, 1984c, p. 112 ; 1990,
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p. 43-46). Além disso a sua preocupação filosófica está construída, ainda, por uma
interrogação sobre a atualidade como acontecimento. Diferenciando a atualidade, do
presente, é o acontecimento que constrói a interrogação sobre o que somos, na perspectiva
dos “limites contemporâneos do necessário, isto é, para aquilo que não é, ou já não é,
indispensável para a constituição de nós mesmos, como sujeitos autônomos”: a
problematização (Foucault, 1988, p. 298).
Procurarei, na medida do possível, caracterizar a partir dos seus últimos textos, a noção de
atualidade e a noção de acontecimento; tentarei ainda explicitar por que interrogar a
atualidade é problematizá-la como acontecimento e nestes dois movimentos de análise
extrair elementos para pensar a concepção de temporalidade histórica que está implicada na
utilização dessas noções. Considero relevante nessa concepção, uma influência
heideggeriana, no que se refere ao modo como a historicidade está sendo tematizada. Esta
referência não se constitui como arbitrária pois se revela a partir da análise dos textos antes
referidos. Não é arbitrária, ainda, porque Foucault, embora tenha afirmado que nunca
tivesse escrito sobre Heidegger, afirma também que ao lado de Nietzsche, estes se
constituíram nas suas “duas experiências fundamentais”. “Todo o meu devir filosófico foi
determinado por minha leitura de Heidegger (...) é importante ter um pequeno número de
autores com os quais se pensa, com os quais se trabalha, mas sobre os quais não se escreve”
(...) que se constituem em ‘instrumentos de pensamento’ “ (Foucault, 1984d, p. 134-135).
As questões que Foucault formula sobre a atualidade revelam a importância atribuída a
essas noções e simultaneamente a diferenciação que estabelece entre elas (Foucault, 1984c
;1988). A noção de atualidade não é idêntica à noção de presente mas é construída a partir
de um certo tipo de temporalização deste.
Referindo-se ao texto de Kant, O que é o Iluminismo, que teria feito surgir um novo tipo de
questão no campo da reflexão filosófica concernente à história, formula a sua
problematização: “A questão que me parece surgir pela primeira vez neste texto de Kant é a
questão do presente, a questão da atualidade: que é que se passa hoje? Que é que se passa
agora? E o que é este ‘agora', no interior do qual estamos uns e outros; e quem define o
momento em que escrevo” (Foucault, 1984c, p. 103)1. “A questão tem por objeto o que é
este presente, tem por objeto inicialmente a determinação de um certo elemento do presente
que se trata de reconhecer, de distinguir entre todos os outros. O que é que, no presente, faz
sentido atualmente para uma reflexão filosófica” (p. 104)2.
Em Qué es la Ilustración? (Foucault, 1988) considera o texto de Kant como estando na
“encruzilhada da reflexão crítica e da reflexão histórica”: uma reflexão de Kant sobre o
“status contemporâneo de sua própria iniciativa”. Uma “reflexão sobre a história e uma
análise particular do momento específico no qual escreve e por que escreve”. Uma reflexão
sobre “o presente como diferença histórica”, “motivo para uma particular tarefa filosófica”,
que se constituiria numa grande novidade (Foucault, 1988, p. 294).
Há uma distinção portanto entre o presente e o atual, entre o hoje e o agora. O atual é
construído a partir de um “certo elemento do presente que se trata de reconhecer”, como

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Destaques meus.
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Destaques meus.
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“diferença histórica”. Este reconhecimento, que é o da crítica, da problematização,


desatualiza o presente, desatualiza o hoje, no movimento de uma interpelação. Nesse
sentido o presente não é dado, nem enquadrado numa linearidade entre o passado e o
futuro. Mas enquanto atualidade, no movimento de uma temporalização, o que somos é
simultaneamente a expressão de uma força que já se instalou e que continua atuante, na
expressão heideggeriana, do “vigor de ter sido presente” e o que nos tornamos, o que
estamos nos tornando, enquanto abertura para um campo de possibilidades (cf. Heidegger,
1990, p. 186-192).
Assim é que a atualidade é atualização e porvir mas também desatualização do hoje. Diante
da questão “O que é Aufklärung”, a interrogação sobre a atualidade, não supõe uma
manutenção fiel aos “elementos doutrinários”, mas como atualização se trata antes de uma
“reativação permanente de uma atitude; isto é [de] um ethos filosófico que poderia
descrever-se como uma crítica permanente de nossa era” (Foucault, 1988, p. 298). A
questão portanto não é a de retrospectivamente orientar-se para o “miolo essencial da
racionalidade”, que se pode encontrar na Aufklärung, mas para os “limites contemporâneos
do necessário, isto é, para aquilo que não é ou já não é indispensável para a constituição de
nós mesmos como sujeitos autônomos” (p. 298). O movimento de atualização é também
porvir pois a interrogação sobre a atualidade é uma “atitude limite”: “devemos nos mover
mais além das alternativas internas e externas; colocando-nos na fronteira” (...) no ponto de
uma “transgressão possível” (Foucault, 1988, p. 300).
A interrogação sobre “o que é a nossa atualidade” supondo o movimento de atualização e
porvir constitui-se numa crítica do presente, e nesse sentido, desatualizando o hoje, re-
inscreve, através da reativação permanente de uma certa atitude referente a Aufklärung,
algo, “que permanece nos enfrentando” (Heidegger, 1964, p. 224).
Talvez, a partir dessas considerações, seja possível indicar em que termos Foucault vai
considerar, a partir de Kant, que a Aufklärung e a Revolução Francesa constituíram-se
como “acontecimentos que não se podem mais esquecer”: quando a “constituição política
escolhida à vontade pelos homens e uma constituição política que evita a guerra são o
processo mesmo da Aufklärung” (Foucault, 1984c, p. 110).
Pode-se indicar como Foucault, a partir de Kant entende que a filosofia pela primeira vez
problematiza sua própria “atualidade discursiva: atualidade que ela questiona como
acontecimento, como um acontecimento do qual ela pode dizer o sentido, o valor, a
singularidade filosófica” (Foucault, 1984c, p. 104). “O que é Aufklärung, o que é a
Revolução, são as duas formas sob as quais Kant colocou a questão da sua própria
atualidade. São também creio, as duas questões que não cessaram de perseguir senão toda a
filosofia moderna, desde o século XIX, pelo menos grande parte desta filosofia”. A
Aufklärung “não é simplesmente para nós um episódio na história das idéias. Ela é uma
questão filosófica inscrita desde o século XVIII em nosso pensamento. Deixemos à sua
devoção aqueles que querem que se guarde viva e intacta a herança da Aufklärung. Esta
devoção é certamente a mais comovedora das traições. Não são os restos da Aufklärung que
se trata de preservar; é a questão mesma deste acontecimento e do seu sentido (a questão da
historicidade do pensamento universal) que é preciso manter presente e guardar no espírito
como aquilo que deve ser pensado” (Foucault, 1984c, p. 111).
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Essas afirmações de Foucault permitem entender que “O que é a Aufklärung e O que é a


Revolução” constituem-se no modo como Kant interpelou a sua própria atualidade, em
questões reativadas desde o século XVIII e inscritas no pensamento de nossa atualidade. A
herança da Aufklärung e da Revolução Francesa não se configura como um “passado
simplesmente dado”. Mas essas questões enquanto revelação de um acontecimento e do
sentido desse acontecimento devem ser mantidas presentes como aquilo que deve ser
pensado. A reativação e a manutenção da presença dessas duas questões concernem à sua
atualização – à sua reinscrição permanente no pensamento desde o século XVIII até o
presente. Manter presente o acontecimento é impedílo de se dissipar na dispersão do tempo,
no esquecimento, é guardálo no espírito como aquilo que deve ser pensado. É a manutenção
de uma memória como o recolher do já pensado – memória como pensamento sobre aquilo
que foi pensado, no sentido ainda, de aguardar o não pensado que aí se esconde. (cf.
Heidegger, 1990, p. 220; 1966, p. 161, 165; Foucault, 1972, p. 153-155).
É nesse contexto que podemos compreender que para Foucault “a questão para a filosofia
não é determinar qual a parte da revolução que conviria preservar e fazer valer como
modelo. É preciso saber o que é preciso fazer desta vontade de revolução, deste
‘entusiasmo’ pela Revolução que é outra coisa que o empreendimento revolucionário. As
duas perguntas ‘Que é Aufklärung’ e ‘que fazer da vontade de Revolução’ definem
sozinhas o campo da interrogação filosófica que concerne àquilo que somos em nossa
atualidade” (Foucault, 1984c, p. 111).
É a partir daí que fazem sentido as interrogações de Foucault: “O que é a nossa atualidade?
Qual o campo atual das experiências possíveis?”
Nessa direção, ainda, é possível compreender a interpretação que Foucault faz da
problematização de Kant sobre o entusiasmo pela Revolução Francesa como
acontecimento, signo de uma disposição moral da humanidade, que se manifesta
permanentemente sob dois aspectos: o direito que um povo tem de elaborar
independentemente sua constituição e o princípio conforme ao direito e à moral de uma
constituição política tal que evite toda guerra ofensiva. Este signo é rememorativum porque
“revela esta disposição presente desde a origem”; demonstrativum porque “mostra a
eficácia presente desta disposição”; prognosticum, “pois se há muitos resultados da
Revolução que podem ser colocados em questão, não se pode esquecer a disposição que se
revelou através dela” (Foucault, 1984c, p. 109). Nesse sentido a Revolução como
acontecimento é uma “virtualidade permanente e que não pode ser esquecida” (p. 110). Nos
três registros apontados trata-se da presença ou da manutenção da presença (o não
esquecimento) dessa disposição como um acontecimento-signo, seja como reativação ou
projeção na história.
Esta concepção de Foucault sobre o acontecimento Revolução Francesa e Aufklärung,
como aquilo que se constitui através da problematização que Kant faz de sua própria
atualidade, é também algo que se inscreve no pensamento da modernidade e se coloca para
a nossa atualidade como alguma coisa que nos concerne – enquanto possibilidade de
“constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos” (Foucault, 1988, p. 298).
Neste movimento há uma temporalização do acontecimento que indica uma certa
concepção de historicidade. Como diz Foucault, não se trata de tomar a Aufklärung
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enquanto um “miolo essencial da racionalidade”, enquanto herança guardada viva e intacta,


ou ainda, enquanto preservação dos seus restos. Não se trata também de considerar a
Revolução Francesa como o Grande Acontecimento, nem como modelo a ser preservado.
Mas o que se trata de “manter presente e guardar no espírito como aquilo que deve ser
pensado” é a “questão mesma do acontecimento e do seu sentido” – a “questão da
historicidade do pensamento universal” (Foucault, 1984c, p. 111).
Para poder compreender essa idéia de historicidade do pensamento na perspectiva de
Foucault, enquanto articulada com a noção de acontecimento, é preciso, antes, caraterizar
esta noção.
Se, em A arqueologia do saber e em Nietzsche, a genealogia e a história (Foucault, 1972;
1979), Foucault entende o acontecimento como a irrupção de uma singularidade única e
aguda, no lugar e no momento de sua produção, no Theatrum Philosoficum (Foucault,
1980, p. 46-51), comentando Deleuze, vai definir o “sentido-acontecimento”como sendo
“sempre tanto a ponta deslocada do presente como a eterna repetição do infinitivo”. Neste
sentido, no exemplo que toma: “morrer nunca se localiza na espessura de algum momento,
antes a sua ponta móvel divide infinitamente o mais breve instante; morrer é muito mais
pequeno que o momento de pensá-lo; e de uma outra parte desta hediondez sem espessura
morrer repete-se indefinidamente. Eterno presente? Com a condição de pensar o presente
sem plenitude e o eterno sem unidade: Eternidade (múltiplo) do presente (deslocado) (p.
48-49)3. É a partir dessa concepção que critica uma filosofia da história que “encerra o
acontecimento no ciclo do tempo (...) converte o presente numa figura enquadrada pelo
futuro e pelo passado; o presente é o anterior futuro que já se desenhava na sua própria
forma, e é o passado por chegar que conserva a identidade do seu conteúdo. Precisa, pois,
por um lado de uma lógica de essência (que a fundamenta na memória) e do conceito (que
estabeleça como saber futuro), e por outro lado, de uma metafísica do cosmos coerente e
acrescida, do mundo em hierarquia. Três filosofias, pois, que deixam escapar o
acontecimento” (Foucault, 1980, p. 50).
Foucault caracterizando o ethos filosófico, como um pensamento critico que nos liga à
Aufklärung, afirma que essa crítica, referindo-se então à sua própria atualidade, “se
separará da contingência que nos fez ser como somos, [ levando-nos] à possibilidade de não
sê-lo mais, de pensar e atuar diferente. Não é buscar tornar possível uma metafísica que
finalmente se converte numa ciência, mas sim buscar dar novos ímpetos, tanto quanto seja
possível, ao indefinido trabalho da liberdade”. (Foucault, 1988, p.301)4.
Nesta passagem, o “sentido-acontecimento”poderia ser simultaneamente definido como o
infinitivo acontecer da liberdade – “indefinido trabalho da liberdade”– e a “ponta deslocada
do presente”– o “buscar dar novos ímpetos” ou o “relançar-se” da crítica no sentido de uma
“apropriação” da liberdade enquanto possibilidade de “pensar e atuar diferente” do que
pensamos e atuamos: uma reflexão sobre os “limites” de nossa finitude histórica. Neste
sentido ainda, o acontecimento pode ser considerado como uma abertura de um campo de
possibilidades: “qual o campo atual das experiências possíveis?”

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Destaques meus.
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Pode-se aproximar ainda a noção de acontecimento de Foucault à acepção que Deleuze dá a


ela: de um “entre-tempo” como “espera e reserva” (Deleuze, 1993, p. 203-204), ou ainda
como o “ins-tante” (Augenblick), como o conjunto de tudo o que do porvir e do vigor de ter
sido se concentra e condensa na dinâmica de uma unidade (Heidegger, 1990, p. 197, 204).
Não se pode isolar, no entanto, a noção de acontecimento, da de problematização, nem da
de atualidade. Pois como já se disse anteriormente, para Foucault, com Kant “a filosofia
pela primeira vez problematiza a sua própria atualidade discursiva: atualidade que ela
questiona como acontecimento, do qual ela pode dizer o sentido, o valor, a singularidade
filosófica (...)” (Foucault, 1984c, p. 104). A problematização da atualidade como
acontecimento constitui-se num certo movimento do pensamento, da crítica, que
desatualiza o hoje, o presente, fazendo da atualidade uma “borda do tempo que envolve
nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade” (Foucault, 1972, p. 162-
163).
A problematização, como crítica, se constituiria num certo “ethos filosófico”, entendendo
por ethos, no sentido grego: “uma atitude (...) uma maneira de relacionar-se com a realidade
atual, a opção voluntária pela qual optam algumas pessoas e finalmente uma maneira de
pensar e de sentir; uma forma de atuar e conduzir-se que ao mesmo tempo marca a relação
de pertinência e de apresentação de si mesma como uma tarefa (...)” (Foucault, 1988, p.
295).
Se o que nos liga à Aufklärung é uma reativação permanente de “um ethos filosófico que
poderia descrever-se como a crítica permanente de nossa era”, compreende esse ethos como
uma “atitude limite – reflexão sobre os limites” no sentido de “transformar a crítica
conduzida até agora na forma de uma limitação necessária, em uma crítica prática de uma
transgressão possível” (Foucault, 1988, p. 298, 300). Se a “reflexão kantiana é ainda uma
maneira de filosofar que não perdeu a sua importância ou efetividade durante os últimos
dois séculos” a “crítica ontológica de nós mesmos não deve ser considerada somente como
uma teoria, uma doutrina, nem sequer como um corpo permanente de conhecimentos que
foram se acumulando; deve conceber-se como uma atitude, um ethos, uma vida filosófica
onde a crítica ao que somos é ao mesmo tempo uma análise histórica dos limites que se nos
impõem e um experimento que torna possível ultrapassá-los” (Foucault, 1988, p. 304)5.
Nessa linha de reflexão – sobre a problematização como acontecimento – talvez se possa
indicar que aqui problematização seja um modo de apropriação do acontecimento pelo
pensamento, através de um ques-tionamento da atualidade. A problematização constitui-se
numa abertura do pensamento diante da abertura do acontecimento. Este movimento de
apropriação do acontecimento pelo pensamento, é simultaneamente reserva – apropriação
do já pensado – e espera – como o aguardar por todos os lados, no interior do já pensado, o
não pensado ainda (Heidegger, 1958, p. 165). Esse movimento do pensamento, a
problematização, é ainda experimento, no sentido antes indicado por Foucault, que se
aproxima da perspectiva heideggeriana da experiência como aquilo que consiste em nos
afetar e transformar (Figueiredo, 1994, p. 121). Neste sentido o pensamento é
problematização e experimento (Deleuze, 1988, p. 124).

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Destaques meus.
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Assim é que para Foucault a tarefa desse ethos filosófico, da crítica, não é a de perseguir
uma “continuidade meta-histórica através do tempo”, nem suas “variações”, mas a busca de
“determinadas figuras históricas” e da “experiência que temos dela em nós mesmos”,
“através de certas formas de problematização”. “O estudo dos modos de problematização
(isto é, o que não é uma constante antropológica nem uma variação cronológica) é portanto
uma maneira de analisar perguntas de importância geral em sua forma histórica única”
(Foucault, 1988, p. 303-304 )6.
A problematização é um trabalho interrogativo do pensamento: “O que é Aufklärung?”; “O
que é a Revolução?”; “O que é que se passa hoje?” (Foucault, 1984c, p. 35); “O que é a
crítica?” (Foucault, 1990, p. 35). Trata-se de “uma atitude filosófica [que] deve traduzir-se
em um trabalho de diversas perguntas” (...) e “tem sua coerência teórica na definição de
formas históricas únicas, onde as generalidades de nossas relações com as coisas, com os
outros, com nós mesmos, foram problematizadas” (Foucault, 1988, p. 304). Quando
Foucault incorpora a questão de Kant “o que é Aufklärung?” toda a sua interpretação é
marcada pelas problematizações constituindo-se num “trabalho de diversas perguntas”.
Aqui, também não é possível deixar de lado uma referência a Heidegger, quando ele diz
que: “escrevo todas estas coisas em forma de perguntas, pois tanto quanto vejo, um
pensamento não é hoje capaz de outro passo que não seja meditar insistentemente sobre
aquilo que suscitam as interrogações levantadas” (Heidegger, 1969, p.38).
O trabalho interrogativo sobre a “herança” da Aufklärung, como já se disse anteriormente,
não é o de preservá-la intacta, mas se trata, antes, de um certo modo de estar ligado à
“tradição”, em que a problematização através do pensamento é fundamental.
Como afirma Heidegger: “A tradição não nos entrega à prisão do passado (...). Transmitir,
delivrer, é um libertar para a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo”
(Heidegger, 1979b, p. 15). Ou ainda: “Que quer que pensemos e qualquer que seja a
maneira como procuramos pensar sempre nos movimentamos no âmbito da tradição. Ela
impera quando nos liberta do pensamento que olha para trás e nos libera para um
pensamento do futuro. (...) Mas, somente se nos voltarmos pensando para o já pensado,
seremos convocados para o que ainda está para ser pensado” (Heidegger, 1979a, p. 187).
Na perspectiva de Foucault o trabalho interrogativo que caracteriza o ethos filosófico
presente na crítica ontológica de nós mesmos, a partir da Aufklärung, consiste numa “prova
histórico-prática dos limites que podemos ultrapassar [o experimento] e desta maneira
como um trabalho levado a cabo por nós mesmos, sobre nós mesmos, como seres livres”
(Foucault, 1988, p. 301)7. Um trabalho sobre “os ‘limites contemporâneos do necessário',
isto é, para aquilo que não é, ou já não é, indispensável para a constituição de nós mesmos
como sujeitos autônomos” (Foucault, 1988, p. 298)8. Nessa perspectiva, ainda, esse
trabalho da crítica não busca as “estruturas formais como valor universal”, mas sim “uma

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investigação histórica dos fatos que nos conduziram a nos constituirmos a nós mesmos e a
nos reconhecermos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos” (p. 300)9.
A “herança” da Aufklärung inscrita na problematização que Foucault faz de sua própria
atualidade, enquanto uma reativação através do pensamento da questão da autonomia e da
liberdade do sujeito, questiona os limites do “estado de coisas” atual, a “finitude histórica”
do seu presente. Neste movimento, a herança da Aufklärung é simultaneamente uma
possibilidade herdada e escolhida. É através da escolha, que se manifesta no modo como a
problematização da atualidade se propõe, que se dá a transmissão das possibilidades
legadas, como aquilo que “permanece nos enfrentando” hoje. Nesse sentido a possibilidade
é herdada porque ela é possível, mas só se torna efetiva a partir da decisão que a escolhe
(cf. Heidegger, 1990, p. 189-190; 1964, p. 224).
Nesta direção pode-se acrescentar, ainda, um outro traço importante desse “ethos
filosófico”, como uma “crítica ontológica de nós mesmos”. Esse ethos teria “sua coerência
prática na inquietude que produz o processo de por à prova a reflexão histórico-crítica de
práticas concretas. Não se deve dizer, hoje em dia, que esta tarefa crítica ocasiona
confiança na Ilustração; mas continuo pensando que esta tarefa requer trabalhar sobre
nossos limites, isto é, um trabalho paciente proveniente de nossa impaciência pela
liberdade” (Foucault, 1988, p. 304)10.
Esta “inquietude” que se expressa na “impaciência pela liberdade” e que “produz o
processo de por à prova a reflexão crítica de práticas concretas”, enquanto uma “atitude
limite”, reativa a “herança” de um passado, como aquilo que permanece nos enfrentando
como questão, e exige um “trabalho paciente” sobre “nossos limites”, na direção de uma
“transgressão possível” – a projeção de um campo de possibilidades.
É neste movimento de temporalização do pensamento, que revela uma certa concepção de
historicidade, que Foucault formula a sua problematização sobre os gregos da Grécia
clássica. É a partir dessa “inquietude”, como “impaciência pela liberdade” que ele
problematizará os limites que a “problemática das liberações” coloca para a sua atualidade;
quando indica que esta problemática está presa nos termos mesmos que o poder que ela
denuncia lhe impõe. Neste sentido, como já se disse anteriormente, mas convém reafirmar,
os gregos não se constituem em “valor exemplar”, nem em “algo ao qual retroceder”. Mas
podem ajudar a constituir um “certo ponto de vista (...) para analisar o que está acontecendo
agora – e modificá-lo” (Foucault, 1984e, p. 47-49).
Como afirma Deleuze, analisando Foucault: “Nenhuma solução pode ser transposta de uma
época à outra, mas pode haver usurpações ou invasões de campos problemáticos, fazendo
os ‘dados’ de um velho problema serem reativados em outros. (Talvez haja ainda um grego
dentro de Foucault, uma certa confiança numa ‘problematização’ dos prazeres...)”
(Deleuze, 1988, p. 122).
Nesse sentido, o que é reativado, da problemática grega, pela interrogação sobre os limites
da “problemática das liberações” na atualidade, é o que Foucault chama “ética”, entendida

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como “um domínio de si” , “um tipo de relação que determina como o indivíduo se
constitui como sujeito moral de suas próprias ações” (Foucault, 1984e, p. 51).
Como afirma F. Ewald, os últimos textos de Foucault – O uso dos prazeres e O cuidado de
si (Foucault, 1984a; 1985) – apresentam uma inflexão importante em seu pensamento:
passa da “problemática do governo dos outros à do governo de si mesmo”. A sua análise
indica “a maneira como o sujeito se constitui como sujeito em um campo onde ele é livre
com relação a códigos e interdições, segundo os procedimentos de subjetivação que são os
da ética”. “Com a idéia do cuidado ético, de uma estética da existência, Foucault indica,
hoje, uma maneira de sair dos impasses que continha a sua problemática das ‘liberações'”
(Ewald, 1984, p. 72-73).
É importante ressaltar, ainda, contra aquilo que se poderia considerar como um exacerbado
individualismo que caracterizaria o último Foucault, que a sua problematização sobre a
ética e a liberdade no pensamento grego, considera que esta liberdade “não é simplesmente
refletida como a independência de toda a cidade. (...) A liberdade que convém instaurar é
evidentemente aquela dos cidadãos no seu conjunto, mas é também, para cada um, uma
certa forma de relação do indivíduo para consigo. (...) A atitude do indivíduo em relação a
si mesmo, a maneira pela qual ele garante sua própria liberdade no que diz respeito aos seus
desejos, a forma de soberania que ele exerce sobre si, são elementos constitutivos da
felicidade e da boa ordem da cidade” (Foucault, 1984a, p. 73-74). Mais ainda, e de um
certo modo relacionando a “problemática do governo dos outros à do governo de si
mesmo” enfatiza que a liberdade “na sua forma plena e positiva (...) é poder que se exerce
sobre si, no poder que se exerce sobre os outros; (...) quem deve comandar os outros é
aquele que deve ser capaz de exercer uma autoridade perfeita sobre si mesmo”. (...) “A
temperança entendida como um dos aspectos de soberania sobre si é não menos do que a
justiça, a coragem ou a prudência, uma virtude qualificadora daquele que tem a exercer
domínio sobre os outros” (Foucault, 1984a, p. 75).
Para Foucault, ainda, a liberdade “que caracteriza o modo de ser do homem temperante não
pode conceber-se sem uma relação com a verdade. Dominar os seus próprios prazeres e
submetê-los ao logos, formam uma única e mesma coisa” (Foucault, 1984a, p.79). “Não se
pode constituir-se como sujeito moral no uso dos prazeres sem constituir-se ao mesmo
tempo como sujeito de conhecimento” (p. 80). Essa relação com a verdade se abre para
uma “estética da existência”. “Deve-se entender com isto uma maneira de viver cujo valor
não está em conformidade a um código de comportamentos nem em um trabalho de
purificação, mas depende de certas formas, ou melhor, certos princípios formais gerais no
uso dos prazeres, na distribuição que deles se faz, nos limites que se observa, na hierarquia
que se respeita. Pelo logos, pela razão e pela relação com o verdadeiro que a governa, uma
tal vida inscreve-se na manutenção ou reprodução de uma ordem ontológica; e por outro
lado, recebe o brilho de uma beleza manifesta aos olhos daqueles que podem contemplá-la
ou guardá-la na memória” (Foucault, 1984a, p. 82).
Essa problematização da ética no pensamento grego, realizada por Foucault, capta aquilo
que seria uma singularidade única: a problematização ética entre os gregos dava-se em
domínios da vida em que imperavam a liberdade. Nestes domínios o homem grego tinha
liberdade de decisão sobre suas ações. Neste sentido, “a liberdade não seria uma
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possibilidade ética entre outras mas a possibilidade mesma da ética” (Fonseca, 1994, p.
114).
Foucault, numa interrogação sobre a sua atualidade, que indica os “impasses da
problemática das liberações” – os limites do pensamento no presente – neste mesmo
movimento, nela reinscreve a problemática de uma ética da existência – e da liberdade –
como acontecimento. Num “trabalho paciente proveniente de nossa impaciência pela
liberdade”, o trabalho da crítica, do pensamento, Foucault problematiza na sua atualidade a
possibilidade do que seria “indispensável para a constituição de nós mesmos como sujeitos
autônomos”. E reativa, através deste trabalho, um certo modo de pensar a constituição do
sujeito por si mesmo, como ser livre, e um certo modo de pensar a liberdade, como alguma
coisa que permanece nos enfrentando, como questão, na atualidade.
Este acontecimento, re-inscrito na crítica ontológica da atualidade, pode ser entendido
como uma “ponta deslocada do presente”, na perspectiva de uma desatualização do hoje,
(do presente). Nesse movimento a problematização da nossa atualidade configura-se como
uma abertura do pensamento, que é simultaneamente reserva e espera – o recolher do já
pensado e a possibilidade que nos convoca a pensar sobre o não pensado ainda, no interior
do já pensado.
Trata-se, como diz Foucault, interpretando o seu próprio trabalho, de uma “história do
pensamento”, que quer dizer “não simplesmente história das idéias ou das representações,
mas também a tentativa de responder a esta pergunta: como é que um saber pode se
constituir? (Foucault, 1984b, p. 75)11.
Como afirma Deleuze: “certamente uma coisa perturba Foucault, e é o pensamento. ‘Que
significa pensar? O que se chama pensar?’ – a pergunta lançada por Heidegger, retomada
por Foucault, é a mais importante de sua flechas. Uma história, mas do pensamento
enquanto tal. Pensar é experimentar, é problematizar” (Deleuze, 1988, p. 124).
Recebido para publicação em agosto/1995

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ABSTRACT: Based on Foucault's last works, I intend to analyse the importance of his
work about a history of thought in which the concept of event is important. Articulated with
the concepts of actuality and of problematization it constitutes the means by which
Foucault focuses what he calls an ontology of the present. Based on Kant he characterizes
the philosophic ethos of the critique of the present, following this tradition in a specific
way. By defining the questioning of actuality as a revival of the question of the Aufklärung,
Foucault makes of it an event which, if conceived as a possibility of the constitution of
ourselves, questions us as autonomous subjects. The question about the limits of the present
and about the possibility of violationg them restores a problematic field of thought through
concentrating on the problematic issue of autonomy and liberty. Starting from this field he
formulates his question about the Greeks in Classic Greece, of ethics as a kind of relation
which determines how the individual constitutes itself as a moral subject of his own
actions.
KEYWORDS: event, history, actuality, problematization, present, liberty.

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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

O efeito-Foucault na historiografia brasileira


MARGARETH RAGO
Professora do Departamento de História do IFCH-
UNICAMP

RESUMO: O artigo investiga as transformações nas concepções do que é história e,


portanto, nas formas de estudá-la, após as proposições conceituais elaboradas por Foucault.
A mudança do foco da análise dos fatos e eventos para as bases epistemológicas das formas
de discurso que os conceberam enquanto tais, fará com que o historiador busque
compreender os campos de relações de força nos quais se constituem os jogos de poder, e
não mais se deter em uma suposta verdade documental.
UNITERMOS: história, hIstoria documental, história nova, descontinuidade, subjetivação.

Pensar diferentemente a História


Foucault revoluciona a História. Com esta frase polêmica e instigante, Veyne chamou a
atenção dos historiadores para um movimento conceitual em curso desde os anos sessenta e
para o qual ainda não havíamos tido olhares muito favoráveis (cf. Veyne, 1982). Éramos,
assim, atingidos por vários lados: de um lado, este historiador-filósofo questionava uma
rápida apropriação daquilo que, em Foucault, podia servir diretamente à produção
historiográfica recente, a exemplo do conceito de poder disciplinar, excelente para
pensarem-se as formas da dominação no cotidiano da vida social; de outro, forçava-nos a
refletir sobre a abrangência do pensamento daquele filósofo, pensamento que excedia em
muito nossas desatentas miradas.
Foi assim que, partindo de uma irrecusável apreciação de Vigiar e punir, trabalho histórico
por excelência, publicado em 1976, caminhamos, nós historiadores, em busca da produção
anterior de Foucault, em especial da História da loucura, de As palavras e as coisas e de A
arqueologia do saber, procurando entender o que nos havia passado tão despercebido e
que, no entanto, levara uma autoridade da historiografia francesa a elevar, em alto e bom
tom, sua importância (cf. Foucault, 1977, 1978, 1981 e 1986a).
Indubitavelmente presos a um sistema de pensamento que nos havia organizado tão
adequadamente o mundo, ao longo das décadas de 60 e 70, localizando de um lado, as
classes sociais e os seus conflitos nas inúmeras formas assumidas pelas relações sócio-
econômicas, vigentes no modo de produção dominante no interior de nossa formação
social; e de outro, munindo-nos com as intrincadas tarefas teóricas da “síntese das múltiplas
determinações”, havíamos esquecido de ler, no próprio Marx, que o passado pesa e oprime
“como um pesadelo o cérebro dos vivos” e que, sobretudo enquanto historiadores,
deveríamos compreender o momento do acerto de contas e “alegremente” despedirmo-nos
do passado (Marx, 1974, p. 335; 1977a, p. 5).
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De uma certa maneira, quanto mais a modernidade desmanchava no ar tudo o que estava
mais ou menos sólido, tanto mais nos agarrávamos à necessidade de organizar o passado,
arrumando todos os eventos e os seus detalhes na totalidade enriquecida, embora pré-
estabelecida. Trata(va)-se então, para o historiador, de compreender o passado, recuperando
sua necessidade interna, recontando ordenadamente os fatos numa temporalidade
seqüencial ou dialética, que facilitaria para todos a compreensão do presente e a
visualização de futuros possíveis.
O desconcerto provocado por Foucault veio por vários lados. Canguilhem chamou a
atenção para o impacto provocado pelo surgimento da História da loucura, em 1960,
quando nos meios acadêmicos franceses havia espaço para, quando muito, se pensar uma
História da Razão, da Psiquiatria. Mas, da loucura? Teria ela uma história? (cf.
Canguilhem,1986, p. 37-40). Ademais, este filósofo irreverente, que aliás nem era
historiador, cometera outro sacrilégio, outra irreverência, ao ir buscar no final do século 18,
onde todos celebravam a conquista da liberdade e dos ideais democráticos durante a
Revolução Francesa, nada menos do que a invenção da prisão e das modernas tecnologias
da dominação. Enquanto todos os olhares convergiam para a centralidade da temática da
Revolução, Foucault deslocava o foco para as margens e detonava com a exposição dos
avessos. A prisão nascia, assim, não de um progresso em nossa humanização, ao deixarmos
a barbárie do suplício, mas muito pelo contrário, como resultado de uma sofisticação nas
formas da dominação e do exercício da violência.
Afinal, o que queria aquele filósofo que anunciava que “a história dos historiadores”
erroneamente havia-se preocupado em compreender o passado, e que na verdade tratava-se
de “cortar” e não de compreender?
“É preciso despedaçar o que permitia o jogo consolante dos reconhecimentos”, dizia ele.
“Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencontrar’ e sobretudo não significa
‘reencontrar-nos’. A história será ‘efetiva’ na medida em que ela reintroduzir o
descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos
instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo. (...) É que o saber não é feito
para compreender, ele é feito para cortar” (Foucault, 1979, p. 27).
Que possibilidades restavam para os historiadores quando o passado passava a se reduzir a
discursos, os documentos a monumentos, a temporalidade se dissolvia e os objetos
históricos tradicionais já não se sustentavam com tanta obviedade quanto antes? E o que
fazer com os sujeitos, com as classes sociais e principalmente com a classe operária, aliás,
responsável pelo conflituado mas seguro curso da história em direção ao prometido “reino
da liberdade”, ou com os sujeitos históricos que, nos anos 80, comprometiam-se com a luta
pelos direitos de cidadania, como os negros, as mulheres, os homossexuais? Como ficava,
então, a tarefa do historiador, comprometido, sobretudo desde os anos 60, com as tarefas da
revolução e com a revelação da missão histórica do proletariado, ou na década de 80,
envolvido com as lutas pela redemocratização do país e pela construção das identidades
sociais?
Para aumentar nosso espanto, aqui no Brasil, um filósofo e, em seguida, um psiquiatra
publicavam dois excelentes trabalhos de História sobre o período colonial, trazendo à tona
muitas histórias das quais mal tínhamos ouvido falar. Refiro-me ao pioneiro Danação da
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norma, de Roberto Machado e outros e ao estudo de Jurandir Freire Costa, Ordem médica e
norma familiar, respectivamente publicados em 1978 e 1979. Sem sombra de dúvida, estes
trabalhos provocaram nos historiadores um sentimento misto de estranhamento pela enorme
novidade teórica da análise, e de perplexidade, pois afinal haviam sido produzidos fora da
comunidade dos historiadores.
Em suma, de um minuto para o outro, todas as nossas frágeis, desgastadas, mas
reconfortantes seguranças haviam sido radicalmente abaladas por uma teoria que deslocava
o intelectual dos seus espaços e funções orgânicas, questionando radicalmente seus próprios
instrumentos de trabalho e modos de operação. O efeito de tão avassaladora crítica
provocou reações diferenciadas: de um lado, levou alguns a se refugiarem na garantia da
existência da “realidade objetiva” e na atuação transformadora dos sujeitos históricos,
buscando respaldo na revitalização do marxismo, em curso no período. Lembremos que,
nesse momento, E. P. Thompson estourava nas paradas de sucesso historiográfico, abrindo
novas perspectivas para a “história social”, traduzido e difundido por todo o mundo (cf.
Thompson, 1987e; Decca, 1981). Outros procuraram, mais ou menos timidamente,
acercarem-se das concepções de Foucault, tentando entender de onde vinham e para onde
apontavam. Confusamente mesclavam as discussões sobre a positividade do poder com a
realidade das classes sociais e a constituição dos sujeitos históricos1.
De qualquer maneira, de um lado ou de outro, os historiadores não puderam passar
incólumes ao “furacão Foucault” e, assim como até mesmo os anti-marxistas tiveram em
algum momento de suas vidas de incorporar conceitos como classes sociais, infra-estrutura
sócio-econômica e relações sociais de produção, os historiadores anti-foucaultianos não
puderam prescindir das noções de discurso, poder disciplinar, genealogia e sobretudo da
contundente crítica à idéia da transparência da linguagem. Além do mais, crescia, também
nesse meio, através de caminhos diferenciados, a redescoberta do simbólico, do subjetivo,
do cultural, nas análises históricas, cada vez mais próximas da Antropologia Histórica. Já
desde o final dos anos 60, e reagindo de certo modo à influência de Fernand Braudel, a
Nouvelle Histoire retomava a história das mentalidades e das sensibilidades na trilha aberta
por March Bloch e Lucien Febvre e revitalizada por Philippe Ariès com a História social
da criança e da família, de 1960. Como propunha Jacques Le Goff, invertia o caminho
indo do “porão ao sótão”, isto é, privilegiando a superestrutura cultural em relação à base
econômica (cf. Ariès, 1981; Le Goff, 1990). Cada vez mais, as discussões sobre o aspecto
interpretativo da história passavam a ocupar o horizonte dos historiadores.
É bom lembrar que Foucault não se pretendeu historiador, embora poucos tenham
demonstrado um sentido histórico tão forte quanto ele. Afinal, muito antes do sucesso da
“história cultural”, o filósofo insistia na idéia nietzscheana de que “tudo é histórico”, e
portanto de que nada do que é humano deve escapar ao campo de visão e de expressão do
historiador. Além do mais, se não podemos afirmar que objetos como loucura, prisão,
instituições disciplinares, corpo e sexualidade ganharam visibilidade histórica apenas a
partir de seus trabalhos, não há como negar a importância de um autor que, em pleno
apogeu da classe operária, dos temas da Revolução e da Social History, de filiação
marxista, deslocava o foco para as “minorias”, para as margens e para os Annales.
1
Para uma balanço sobre a produção historiográfica brasileira de inspiração foucaultiana, veja-se Rago (1993,
p. 22-32).
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Pensemos nos inúmeros desdobramentos das produções acadêmicas suscitadas desde então
em função das problematizações foucaultianas, não apenas no Brasil. Fundamentalmente,
Foucault projetou luz sobre campos até então ignorados pela historiografia – seja por serem
considerados como “perfumarias” remetendo à superfície da superestrutura, seja
simplesmente por nem sequer serem percebidos como capazes de serem historicizados – e
criou expressões capazes de traduzí-los e pensá-los. É verdade que muitos destes campos e
temas históricos também foram projetados por outras correntes históricas, a exemplo do
conceito de cotidiano, mas não há como negar a importância que ganharam a partir dos
procedimentos teóricos e metodológicos praticados por ele, a exemplo da noção da
positividade do poder.
O próprio Foucault se filiou aos Annales e, apesar das diferenças em relação a vários
procedimentos desta escola, defendeu uma história-problema, ou seja, um trabalho de
pesquisa histórica que servisse para iluminar e responder a uma problematização colocada
pelo historiador, e que desenharia no percurso aberto o próprio objeto da investigação (cf.
Foucault, 1986a, Introdução). É conhecido seu debate com o historiador Jacques Léonard,
em que distinguia dois modos de se fazer a História: o primeiro, o modo dos
“historiadores”, consistia em atribuir-se um objeto e tentar resolver sucessivamente os
problemas que este colocava; o segundo, o que ele preferia, partia de um problema e
procurava determinar a partir dele o âmbito do objeto que seria necessário percorrer para
resolvê-lo (Perrot (org.), 1978).
Além disso, prestando uma homenagem a esta consagrada escola histórica, Foucault
defendia, na Introdução de A arqueologia do saber, uma postura historiográfica preocupada
não mais em revelar e explicar o real, mas em desconstruí-lo enquanto discurso.
“Ora, por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu,
a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera sua tarefa primordial,
não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas
sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e
reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica
elementos, define unidades, descreve relações” (Foucault, 1986a, p. 7).
Os objetos históricos assim como os sujeitos emergiam aqui como efeitos das construções
discursivas, ao invés de serem tomados como pontos de partida para a explicação das
prática sociais. A determinação avançava sobre as possibilidades da ação e afastava-se
assim de uma concepção humanista e antropológica dinamizada pela busca da Revolução.
Na verdade, se voltarmos a este livro tão definitivo e radical em suas proposições,
encontraremos o esclarecimento do próprio autor acerca de sua posição e de suas relações
com a renomada Escola dos Annales e com a Nova História. Aí Foucault apresenta uma
avaliação das conseqüências provocadas para a História pelas mudanças epistemológicas
promovidas por esta vertente historiográfica, que retomaremos no decorrer deste texto.
Por enquanto, gostaria de lembrar que a Escola dos Annales nasce em 1929, como uma
reação à história triunfalista e événementielle, das guerras e batalhas, privilegiadamente
política e cronológica da Escola Metódica, que, segundo Marc Bloch e Lucien Febvre, não
percebia o acontecimento na multiplicidade dos tempos históricos, nem como dimensão
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superficial de um iceberg profundo. As posições radicais desses historiadores já se havia


manifestado na Revue de synthèse historique, onde colaboraram, e que fora lançada em
1900, por Henri Berr, o qual, aliás, não era historiador, mas filósofo e professor de
literatura. Inspirado por Durkheim, Berr defendia uma história-síntese, capaz de trabalhar
cientificamente com todas as dimensões da realidade, do econômico às mentalidades.
Assim, inicialmente inspirados pela sociologia durkheimiana e, em seguida, pelos primeiros
estudos estruturalistas de Ferdinand Saussure sobre a língua e os trabalhos de Lévy-Strauss
sobre as relações sociais e a estrutura social, os historiadores do grupo dos Annales se
preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dos fenômenos
históricos, privilegiando as longas permanências mentais, sociais, geográficas, etc., que
Braudel identificaria posteriormente como la longue durée, ou seja, a longa duração, em
detrimento das mudanças sociais2.
A partir destas breves colocações, seríamos tentados a identificá-los ou então a aproximá-
los ao marxismo. É bom notar, portanto, que se de um lado não podemos identificá-lo com
este sistema de pensamento ou reconhecer em suas análise a teoria marxista da sociedade,
de outro devemos destacar a grande receptividade que vários historiadores do grupo e da
Nova História manifestaram em relação a Marx. Se não podemos definir os Annales e a
Nova História como marxistas, também não podemos taxá-los de anti-marxistas,
esquecendo que vários historiadores, a exemplo de Pierre Vilar e Michel Vovelle,
preocuparam-se em declarar suas adesões teóricas e políticas e discutir as implicações
teóricas de tais incorporações.Retornando a Foucault, não há dúvida de que, para os
historiadores, seu maior impacto advém da maneira pela qual interroga a história mais do
que dos temas que focaliza. Embora os historiadores tenham visto em Foucault o
historiador das instituições disciplinares ou da “sociedade carcerária” e aí cobrarem a voz
dos vencidos, o que Veyne destaca como a revolução epistemológica por ele realizada vai
muito além. Seduzidos pelas instigantes posições formuladas pelo grupo de historiadores
ingleses e americanos ligados à Social History, os historiadores ficaram perplexos com um
tipo de pensamento que se recusava a partir dos sujeitos e da sociedade para construir sua
interpretação histórica e que, aliás, colocava sua própria existência em dúvida. Tratava-se,
pois, de uma nova maneira de problematizar a História, de pensar o evento e as categorias
através das quais se constrói o discurso do historiador. Não uma discussão sobre a narrativa
propriamente dita, mas sobre as bases epistemológicas de produção da narrativa enquanto
conhecimento histórico. Ao invés de partir da famosa estrutura social, representada
enquanto “realidade objetiva” tanto para os marxistas quanto para os não-marxistas, para
explicar as práticas políticas, econômicas, sociais, sexuais, artísticas de determinados
grupos sociais, propunha-se, então, pensar como haviam sido instituídas culturalmente as
referências paradigmáticas da modernidade em relação ao próprio social, à posição dos
sujeitos, ao poder e às formas de produção do conhecimento.
Veyne chamou nossa atenção para a “revolução” produzida pelo filósofo na historiografia:
especialmente desde o marxismo, aprendêramos a enxergar a História como práxis e como
consciência. Inúmeras vezes repetimos os ensinamentos de Marx de que “os homens fazem
a história, mas não a fazem como querem, e sim nas condições herdadas pelo passado”.
Aliás, para a geração 68, a principal motivação para o estudo da História estava centrada no

2
Sobre a história dos Annales e da Nova História, vejam-se Dosse (1992) e Burke (1993).
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

desejo de transformação social, numa emocionada aposta na Revolução. A história


confundia-se então com ação revolucionária.
Ora, Foucault questionou este pressuposto e afirmou que a História não é mais do que um
discurso, discurso este que também precisava ser psicanalisado e “descrito em sua
dispersão”. Este filósofo desorganizava, assim, não apenas o passado, que imaginávamos
pronto para ser detectado e trazido à tona, graças às ferramentas do materialismo histórico e
dialético, como a própria tarefa do historiador, que repentinamente se flagrou capturado em
insidiosas armadilhas. Veyne mostrou, nesta direção, que a história é uma forma cultural,
através da qual os homens na contemporaneidade se relacionam com seus eventos e com o
passado. Uma forma de conhecimento, uma escrita e não ação.
Assim, caberia ao historiador construir a trama correspondente ao acontecimento. No caso
de um acontecimento da moda, que nos situasse nesse campo; se um evento político, seria
necessário nos apresentar governantes e súditos. O que seria importante destacar no
passado dependeria da construção da trama, da mesma forma que as causas atribuídas na
origem do evento se definiriam em função da construção desta mesma trama. Portanto, os
eventos históricos não existem como dados naturais, bem articulados entre si, obedientes às
leis históricas e esperando para serem revelados pelo historiador bem munido. Um evento
só ganha historicidade na trama em que o historiador concatená-lo, e esta operação só
poderá ser feita através de conceitos também eles históricos.
Ora, repentinamente, o chão dos historiadores desabou, pois já não contávamos nem com
um passado organizado, esperando para ser “desvelado”, nem com objetos prontos, cujas
formas poderiam ser reconhecidas ao longo do tempo, nem com sujeitos determinados, nem
tampouco com o fio da continuidade que nos permitia pensar de uma maneira mais
sofisticada em termos de processos históricos e sociais. E, ao invés de partirmos em busca
da síntese e da totalidade, deveríamos aprender a desamarrar o pacote e mostrar como fora
constituído, efetuando a “descrição da dispersão”.
Parece-me que esta proposta, recentemente identificada por uma historiadora norte-
americana como A história cultural de Michel Foucault, não foi bem aceita por uma
quantidade razoável de historiadores brasileiros, nem se promoveram debates que
pudessem esclarecer os mais preocupados com a definição de posições em relação a estes
chamados (cf. O’Brien, 1992). Numa atitude muito mais defensiva, poucos historiadores
preferiram manter “Foucault vivo”, negando-se a “esquecer Foucault” (cf. Tronca, 1986;
Baudrillhard, 1984).
Como ficamos, então, onze anos depois de sua morte? Proponho que retomemos
brevemente algumas das principais questões colocadas à historiografia pela profunda crítica
à modernidade presente em Foucault. Valeria lembrar ainda com Habermas, que a
destruição das relações dialógicas não se encontra apenas nas formas de individualização
instauradas na modernidade, mas no próprio modo de operação nas ciências humanas, onde
o olhar do pesquisador se confunde com o olhar do panóptico, transformando os sujeitos
em objetos isolados, dessubjetivizando-o3.

3
“Le regard objecti-vant et examinateur, ce regard qui décom-pose analytiquement, qui contrôle et perce
tout, acquiert pour ces établissements une force structu-rante; c’est le regard du sujet rationnel qui a perdu
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

A produção do conhecimento histórico


A crítica foucaultiana da ciência e da noção de verdade atingiu radicalmente a própria
produção do conhecimento histórico, produção esta assentada em convicções
fundamentalmente humanistas. Esta questão pode ser melhor esclarecida, se destacarmos
alguns momentos estratégicos de sua problematização: a crítica ao essencialismo, a
desnaturalização do objeto, o privilegiamento do descontínuo e a proposta de história
genealógica.
1. a crítica ao essencialismo
Já sabemos que Foucault questiona o conceito de verdade com que operamos e, portanto, a
própria ciência se verá visada como discurso objetivo sobre o real. Ele questionará
fundamentalmente nossa representação da produção do conhecimento e da verdade,
desacreditando a idéia que temos sobre a revelação da coisa através do conceito.
Entendemos, na maioria das vezes, que a produção do conhecimento se faz por uma suposta
coincidência entre o conceito e a coisa, entre a interpretação e o fato, como um
“desvendamento” do “ideológico”, na linguagem marxista, ou como uma retirada dos véus
da ilusão sobre a realidade objetiva. Em outras palavras, conhecer significava encontrar a
essência da época, do passado, da coisa, ultrapassando os enganosos véus da aparência para
alcançar o “concreto pensado” e realizar a “síntese das múltiplas determinações”4.
Para o historiador, conhecer seria revelar o objeto, atravessar a espessura dos discursos para
encontrar o que permaneceria silenciosamente aquém dele, chegar às coisas, “interpretar o
discurso para fazer através dele uma história do referente”(Foucault, p. 8 , 1986a). O
discurso, portanto, não é aqui pensado como signo, elemento significante que remeteria a
conteúdos ou a representações, como se fosse “expressão do real”.
Numa referência a Nietzsche, Foucault afirmará que as coisas estão na superfície, e que
atrás de uma máscara há outra máscara e não essências. Nesse sentido, o filósofo propõe
um deslocamento fundamental para o procedimento histórico, propondo que se parta das
práticas para os objetos e não o inverso, como fazíamos. Não mais partir do objeto
sexualidade, por exemplo, para mostrar através de que formas havia se manifestado e
diferenciado ao longo da História, mas chegar ao objeto a partir do estudo das práticas e
perceber como e quando a sexualidade havia emergido como tema, como discurso e como
preocupação histórica. Em outras palavras, o ponto de partida se torna agora terminal. E
nossa tarefa seria então desconstruí-lo, revelando as imbricadas teias de sua constituição e
naturalização.
2. o caleidoscópio

tout contact simplement intuitif avec son environne-ment, qui a rompu tous les ponts avec la compréhension,
et pour qui, dans son isolement monologi-que, les autres sujets ne sont accessibles que dans la position
d’objets perçus à tra-vers une observation passive. Ce regard, dans le panoptique conçu par Bentham, est
pour ainsi dire architectoniquement figé”(Habermas, 1986, p. 76).
4
“O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo unidade da diversidade. É por isso
que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado e não um ponto de partida, apesar de ser o
verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observação imediata e da
representação” (Marx, 1977, p. 218).
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Trabalhar com produções culturais e não com objetos naturais na perspectiva foucaultiana
significou repensar radicalmente os procedimentos historiográficos, já que se tratava não
mais de buscar as formas de manifestação de um fenômeno ao longo da história, de partir
do objeto ou do sujeito plenamente constituído, para ver como havia se manifestado em
diferentes formações sociais. A questão que se colocava agora era a de perceber de que
maneira as práticas discursivas e as não-discursivas, as redes de poder constituem
determinadas configurações culturais e históricas que resultam na produção de
determinados objetos e de determinadas figuras sociais. Uma forma caleidoscópica,
alertava Veyne, ao contrário da conhecida seqüência temporal:
“Tal é o sentido da negação dos objetos naturais: não há, através do tempo, evolução ou
modificação de um mesmo objeto que brotasse sempre no mesmo lugar. Caleidoscópio e
não viveiro de plantas. (...) Como diria Deleuze, as árvores não existem: só existem
rizomas” (Veyne, 1982, p. 172).
Na História da loucura, tratava-se, portanto, de perceber através de que práticas
institucionais e aparelhos de conhecimento a loucura fora objetivada como doença,
passando a fazer parte de determinado regime de verdade e falsidade, e se constituíra como
“objeto” para o pensamento, a ponto de se tornar “evidente” que a loucura é uma
enfermidade. Em Vigiar e punir, perguntava-se como determinadas práticas discursivas e
não-discursivas, técnicas de poder e regimes de verdade constituíram o objeto “prisão”
como modo privilegiado de castigo e punição. Como fora possível, pergunta ele, em 20
anos, a passagem do suplício para a prisão como forma punitiva privilegiada?
Enfim, estávamos acostumados a trabalhar considerando que a unidade dos discursos está
fundada na existência do objeto-realidade objetivo, que estaria pronto esperando por uma
consciência para ser libertado. Nesse sentido, trata-se de traçar a história a partir das
objetivações pelas quais determinadas coisas começam a ser tomadas como objeto para o
pensamento e passam a fazer parte do objetivamente dado, como configurações naturais. O
acontecimento, então, não está dado como fato, mas emerge num campo de forças,
assumindo determinadas configurações. É preciso, pois, desnaturalizar o evento, explicará
Veyne.
3. o privilegiamento do descontínuo
Foucault chama a atenção para as metáforas biológicas que organizam o discurso histórico,
através das quais fazíamos velhas perguntas ao passado e dávamos explicações antigas,
mais preocupados em construir linhas de continuidade entre os fatos, articulando-os à custa
de aplainamentos forçados. Nem interpretar os fatos, nem estabelecer uma cadeia evolutiva
entre eles, e muito menos atribuir todas essas nossas operações a uma necessidade interna
dos fatos históricos.
“Em nossos dias”, explica ele na Arqueologia do saber, “a História é o que transforma os
documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos
homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de
elementos que deverão ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados,
organizados em conjuntos” ( Foucault, 1986a, p. 8).
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Isto provocou uma mudança do estatuto teórico da noção e descontinuidade. O que a


história tradicional tratava de apagar e reduzir a fim de estabelecer as continuidades, isto é,
“os obstáculos”, passa agora a ser um conceito operativo, fazendo parte da análise histórica.
Diz ele,
“a descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava
de suprimir da história. Ela se tornou, agora, um dos elementos fundamentais da análise
histórica, onde aparece com um triplo papel” (Foucault, 1986a, p. 10),
isto é, constitui uma operação deliberada do historiador; é o resultado de sua descrição; é o
conceito que o trabalho não deixa de especificar. Portanto, o historiador deverá constituir
séries e definir que tipos de relações será conveniente estabelecer entre elas,
“que sistema vertical podem formar; qual é, de umas às outras, o jogo das correlações e
das dominâncias; de que efeito podem ser as defasagens, as temporalidades diferentes, as
diversas permanências; em que conjuntos certos elementos podem figurar
simultaneamente; em resumo, não somente séries, mas que ‘séries de séries’ - ou, em
outros termos, que quadros - é possível constituir.” (Foucault, 1986a, p. 12)
Uma história geral, então, ao contrário de uma história total. A descrição das dispersões, ao
invés da totalização fundada na consciência do sujeito.
“Uma descrição global cinge todos os fenômenos em torno de um centro único - princípio,
significação, espírito, visão de mundo, forma de conjunto; uma história geral desdobraria,
ao contrário, o espaço de uma dispersão.” (Foucault, 1986a, p. 12)
4. a história genealógica
A concepção de história que se encontra em Foucault coloca-se a partir de uma profunda
crítica à concepção herdada do sujeito: crítica ao subjetivismo próprio da teoria clássica do
conhecimento, em que o Sujeito é colocado como condição do saber; crítica à filosofia
política, já que a política não é entendida em termos de “vontades individuais e soberania”;
crítica à vinculação tradicional entre condutas dos sujeitos em suas vidas diárias e as
grandes estruturas políticas e sociais.
Nesse sentido, Foucault proporá outras questões à história, operando com a idéia de
objetivação, isto é, da constituição de domínios de objetos; e de subjetivação, isto é, dos
modos através dos quais os indivíduos se produzem e são produzidos numa determinada
cultura, através de determinadas práticas e discursos, enquanto subjetividades. Afinal, é ele
quem explica numa entrevista que sua questão central não era o poder, nem o saber, mas a
produção do sujeito, sua sujeição e posteriormente as formas de subjetivação por ele
encontradas. Para dar conta da constituição do sujeito enquanto objeto e enquanto sujeito na
cultura ocidental, estuda o poder e as disciplinas, a produção da verdade e os saberes; as
práticas de si e as formas de subjetivação.
Propondo-se a realizar uma “ontologia histórica de nós mesmos”, Foucault destituiu o
sujeito do lugar privilegiado de fundamento constituinte, que ocupava na cultura ocidental,
passando a problematizá-lo como objeto a ser constituído. Na 1ª conferência de A verdade e
as formas jurídicas, ele afirmava:
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“Faz dois ou três séculos que a filosofia ocidental postulava, implícita ou explicitamente, o
sujeito como fundamento, como núcleo central de todo conhecimento, como aquele em que
não apenas se revelava a liberdade, mas que podia fazer emergir a verdade. (...)
Atualmente, quando se faz história - história das idéias, do conhecimento ou simplesmente
história - atemo-nos a esse sujeito de conhecimento e da representação, como ponto de
origem a partir do qual é possível o conhecimento e a verdade aparece. Seria interessante
que tentássemos ver como se produz, através da história, a constituição de um sujeito que
não está dado de antemão, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história,
mas de um sujeito que se constituiu no interior mesmo desta e que, a cada instante, é
fundado e refundado por ela. (...) Isto é, em minha opinião, o que deve ser levado a cabo: a
constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como
um conjunto de estratégias que formam parte das práticas sociais” (Foucault, 1986b, p.
16).
A história será, então, pensada como um campo de relações de força, do qual o historiador
tentará apreender o diagrama, percebendo como se constituem jogos de poder. Daí, uma
nova concepção de poder e das relações que se estabelecem entre poder e saber. Não mais o
poder jurídico, em sua face visível e repressiva, mas o poder positivo, invisível, molecular,
atuando em todos os pontos do social, constituindo redes de relações das quais ninguém
escapa. Não mais um saber neutro, a ciência, que diria a verdade, mas um conjunto de
enunciados que entram no jogo do verdadeiro e do falso.
A inquietação dos historiadores certamente aumentou diante de todas estas colocações,
sobretudo aqueles que, filiados à tradição marxista, sentiram-se desalojados em sua missão
central e nobre. A história genealógica se diferencia das “história dos historiadores”, isto é,
de uma forma de procedimento histórico atravessada pela referência hegeliana, que
procurava recuperar o que os documentos diziam, como se um passado deles emanasse e
pedisse para ser revelado. Abandonam-se, portanto, as idéias de necessidade, finalidade e
totalização. A tarefa do historiador já não será encontrar a finalidade de todo processo
histórico, sua necessidade objetiva inscrita em leis que organizariam a ordem natural do
mundo, realizando uma operação de totalização, construindo uma história global. Como
lembra Chartier, “História nova contra ‘história filosófica’, os Annales contra Hegel”
(Chartier, 1990, p. 75). Trabalhar então os documentos enquanto monumentos significará
recusar a crença na transparência da linguagem e a antiga certeza de encontrar através dos
textos o passado tal e qual.
A nova história se propõe como tarefa fundamental não interpretar os documentos,
extraindo uma suposta veracidade intrínseca a eles, mas “trabalhá-los desde o interior,
elaborá-los”, como será afirmado em A arqueologia do saber.
Para Roger Chartier, um dos nomes que se destacam na historiografia contemporânea, os
estudos históricos se desenvolveram nas últimas décadas a tal ponto que de uma certa
maneira incorporaram e ultrapassaram esta proposta foucaultiana, a exemplo da microstoria
na Itália, do antropological mode of history dos americanos, e do retorno do acontecimento
entre os franceses. Segundo ele, passou-se, nas discussões historiográficas francesas
recentes, da concepção de que a tarefa do historiador era explicar o passado para a
consideração dos modos narrativos através dos quais o fenômeno histórico ganha
visibilidade. Em suas palavras:
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“Daí uma mudança paralela da própria definição da explicação histórica, entendida como
o processo de identificação e de reconhecimento dos modos e formas do discurso posto em
prática pelo relato, e já não como explicação do acontecimento passado” (Chartier 1990,
p. 84).
Já Hayden White, centrando-se na importância do estudo da interpretação sobre o da
explicação, e refletindo sobre as tarefas do historiador no mundo contemporâneo, afirma:
“O historiador não presta nenhum bom serviço quando elabora uma continuidade
especiosa entre o mundo atual e o mundo que o antecedeu. Ao contrário, precisamos de
uma história que nos eduque para a descontinuidade de um modo como nunca se fez; pois
a descontinuidade, a ruptura e o caos são o nosso destino” (White, 1994, p. 63).
A volta ao sujeito?
Por último gostaria de tecer alguns comentários sobre as últimas ressonâncias do
pensamento de Foucault na produção historiográfica brasileira. Depois de haver provocado
acirradas disputas entre os ardentes defensores da “voz dos vencidos”, preocupados com o
silenciamento da luta de classes nos trabalhos historiográficos, e os adeptos do filósofo,
para quem os sujeitos são pontos de chegada e não pontos de partida, propõe-se um novo
acontecimento teórico: a emergência da questão da subjetivação e da ética (cf. Foucault,
1984, 1985).
De uma certa maneira, Foucault respondia aos seus críticos para os quais havia dado
demasiada ênfase aos modos da sujeição na constituição dos sujeitos, deixando, como os
Annales anteriormente, os indivíduos aprisionados, sem possibilidade de ação e,
fundamentalmente, de resistência e mudança. O filósofo voltava-se para o sujeito,
apontando para as possibilidades de construção de novas formas de subjetivação, a exemplo
das que haviam vigorado no mundo grego. A questão da autonomia individual era retomada
por Foucault, após ter apresentado nos trabalhos anteriores as formas da sujeição, como ele
mesmo explicou, através das práticas disciplinarizantes e das redes discursivas.
Alguns trabalhos foram produzidos a partir da abertura desta nova trilha, dos quais destaco
três teses de doutoramento apresentadas nos anos 90: Os prazeres da noite. Prostituição e
códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1990); Do trabalhador indisciplinado ao
homem prescindível, e O engenho anti-moderno. A invenção do nordeste e outras artes (cf.
Rago, 1991; Caponi, 1992; Albuquerque, 1993).
Ao contrário dos estudos que buscavam privilegiadamente as relações de poder
constitutivas da vida social no mundo urbano, recortando o tema da disciplinarização e
higienização do mundo industrial, incorporou-se nestes estudos a noção de subjetivação,
tentando encontrar as formas através das quais os próprios sujeitos participaram de sua
construção enquanto sujeitos morais - prostitutas no primeiro caso, trabalhadores urbanos
no segundo, nordestinos no terceiro - aceitando, recusando, incorporando, apropriando-se
diferenciadamente das linguagens existentes num determinado momento histórico para
construírem suas identidades pessoais, sociais e sexuais.
No primeiro estudo, para além da constituição da própria noção de prostituição pelo
discurso médico e jurídico e pelas práticas disciplinarizantes que instituíram o submundo
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nos limites da cidade, procurei pesquisar como as próprias prostitutas se constituíram


enquanto sujeitos morais, incorporando, redefinindo, experimentando uma ou várias
definições dos amores ilícitos. Menos uma história social da prostituição que procurasse dar
conta do cotidiano das meretrizes em São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, do
que um estudo sobre a construção de nossa moderna referência sobre as “sexualidades
insubmissas” e as práticas da comercialização sexual do corpo feminino.
O segundo estudo, produzido por Sandra Caponi, uma filósofa, sobre o pensamento de
Michel Foucault, destina um capítulo ao que ela denomina de “Estéticas da resistência”.
Tomando A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson e A noite dos
proletários. Arquivos do Sonho Operário, de Jacques Rancière, como fontes primárias, a
autora nos mostra, a partir das discussões foucaultianas sobre a “estetização da existência”
e as “técnicas de si” no mundo grego, os espaços de autonomia abertos pelos trabalhadores
ingleses nos inícios do século XIX. Preocupados em “embelezar essas vidas condenadas a
existir na escuridão da fábrica”, reinventavam o cotidiano e procuravam “esculpirem-se a si
mesmos como obras de arte”, educando-se, debatendo os textos que alguns liam para o
restante do grupo nas noites de folga, ou nos fins de semana, elaborando uma outra cultura,
definindo seus próprios códigos morais e suas formas de atuação política, questionando a
nova ordem burguesa que então se constituía (cf. Caponi, 1992, p. 235).
Durval de Albuquerque, que já discutira a questão da invenção do NE em outro trabalho,
aprofunda aqui sua análise trabalhando com a emergência da região Nordeste a partir de
múltiplas práticas discursivas. Em sua leitura, os regionalistas tanto quanto os modernistas
pretenderam instituir o lugar da história em oposição a uma outra região do país, outrora
inexistente no mapa – o NE – designado como lugar da ausência da História. No imaginário
que então se constitui, este mundo rural tradicional, quente e abafado, marcado por ritmos
lentos e pesados, lugar das “vidas secas”, da sensualidade forte de mulheres como Gabriela,
de movimentos sociais “pré-políticos” como o cangaço, centro da Casa Grande e Senzala,
não teria condições mínimas de possibilidade da produção de cidadãos suficientemente
racionais para merecerem espaço privilegiado na decisão ou condução dos rumos da Nação.
Finalmente, gostaria de destacar nesse mesmo campo de problematizações, a novidade
teórica trazida pelo feminismo contemporâneo: a categoria do gênero, conceitualizada
principalmente por uma historiadora que também vinha da história social, Joan Wallasch
Scott (1988). Através desta categoria, as intelectuais feministas têm procurado pensar a
constituição dos sujeitos sexuais num movimento relacional e complexo, rompendo com
uma lógica identitária que, incapaz de perceber e trabalhar as diferenças, aprisionava as
mulheres num gueto conceitual. Deixa-se progressivamente de lado o “estudo das
mulheres”, considerando-se que esta identidade não é biologicamente fundada, mas social e
culturalmente construída, e que portanto deve ser pensada em relação ao gênero masculino,
também ele social e culturalmente construído, assim como considerando-se as múltiplas
relações que se estabelecem na vida social.
Os estudos do gênero vêm certamente ganhando um espaço de destaque nas universidades e
nos núcleos de pesquisa, apontando para a necessidade da desconstrução de nossas
referências paradigmáticas sobre a feminilidade e a masculinidade, num mundo que
certamente aprendeu com Foucault que as essências e as identidades naturais são uma
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

ficção e não uma realidade empírica e que, como cantou o poeta, “as coisas estão no
mundo, só que eu preciso aprender”.
Recebido para publicação em maio/1995

ABSTRACT: The article analyses the transformations in the concepts of what is history
and, thus, in the forms of studying it after Foucault formulated his conceptual propositions.
The change of the analysis’ focus from facts and events to the epistemological bases of the
discourse forms that conceived them will make it possible for the historian to comprehend
the fields of power-relations in which power-games constitute themselves without detaining
in a supposed documentary truth.
KEYWORDS: history, documentary history, new history, descontinuity, subjectivity.

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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Sobre a analítica do poder de Foucault


ANTÔNIO C. MAIA
Professor da Faculdade de Direito da UERJ e do
Departamento de Direito e do curso de
especialização em Filosofia da PUC-RJ
“L’oeuvre de Foucault se ré-encheine
avec les grandes ouvres qui ont changé
por nous ces que signifie penser”
(Deleuze, 1986, p. 128)
RESUMO: Compreender a forma pela qual se estruturam as relações sociais, em especial
as relações desiguais de obediência e dominação que justificam a autoridade e a natureza
das obrigações políticas, tem sido uma tarefa constante do pensamento humano. Neste texto
sustentamos que Michel Foucault deu uma contribuição inegável a uma compreensão
melhor desta ordem de fenômenos. Na primeira parte examinamos algumas das
características do seu conceito de poder. Na segunda, privilegiamos um outro eixo de
análise, acompanhando as transformações que este conceito sofreu ao longo dos anos 70 em
sua obra.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, conceito de poder, bio-poder, governamentalidade.

Agradeço a Márcia Bernardes a ajuda


que me deu na preparação do texto
para a publicação

Introdução
Poucos autores do cenário contemporâneo trilharam tantas áreas do saber como Foucault:
da epistemologia das ciências humanas à ética, da literatura à sexualidade, da loucura à
punição. Mas, o estudo do poder foi o causador da maior repercussão. As suas
investigações, ao longo dos anos 70, em torno da problemática do poder, com suas
características, táticas e estratégias o projetaram como o filósofo francês – ao lado de
Jacques Derrida – de maior presença no cenário cultural alemão e anglo-saxão. Entretanto,
esta parte de seu trabalho não foi objeto de uma organização de suas premissas, nem de
uma sistematização de seus resultados. Algumas causas podem ser apontadas para justificar
esta situação.
Em primeiro lugar, a própria características das investigações de Foucault, cujas pesquisas
avançaram impulsionadas por uma infatigável vontade de saber, onde a curiosidade o
levava constantemente a novos assuntos e diferentes domínios, deixando, em geral, de lado
as reflexões de caráter mais tipicamente metodológico. Um estilo de trabalho que
demarcava certos domínios – por exemplo, medicina, práticas punitivas, emergência das
ciências humanas nos séculos XVIII e XIX –, submetendo-os a um minudente exame, à luz
de uma erudição excepcional, privilegiando sempre os dados empíricos obtidos em suas
pesquisas de natureza histórico-filosóficas. Este privilégio do material positivo pesquisado,
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as conclusões parciais à medida dos desdobramentos dos estudos, os instrumentos


conceituais forjados a partir da análise do material examinado, davam o tom de um trabalho
mais preocupado em sacudir as evidências e perturbar as nossas familiaridades do que em
estruturar uma obra sistematicamente integrada. Aliado a isto, uma desconfiança em
relação às generalizações e grandes sínteses contribuíram para uma situação na qual certos
assuntos se encontram expostos de forma não muito articulada. Em relação à problemática
do poder, estas características até aqui destacadas do projeto de Foucault ensejaram uma
reflexão – que embora original e profunda – não foi merecedora de nenhum grande trabalho
de exposição e sistematização1. O que se observa são inúmeras e esparsas referências,
espalhadas pelos mais diversos textos: livros, cursos, conferências e entrevistas.
Este breve trabalho procura alinhavar considerações a respeito da análise foucaultiana do
poder. Tal problemática será enfocada a partir de dois eixos. Primeiramente, destacar-se-á
certos traços de seu trabalho acerca desta questão; em segundo lugar, serão acompanhadas
algumas modificações e diferenciações expostas e explicitadas ao longo de suas
investigações: poder disciplinar, o bio-poder e a governamentalidade.
Antes ainda de iniciar a descrição de certos traços do conceito de poder, cabe destacar que
Foucault não tem uma teoria geral do poder, a – histórica, podendo ser aplicada a todas as
relações de poder existentes em sociedade, em qualquer contexto. Ao contrário, ele não
pretende fundar uma teoria geral e globalizante, e sim trabalhar uma analítica de poder
capaz de dar conta do seu funcionamento local, em campos e discursos específicos e em
épocas determinadas. Como ele destaca: “O que está em jogo nas investigações que virão a
seguir é dirigirmos menos para uma ‘teoria’ do poder que para uma ‘analítica’ do poder:
para uma definição do domínio específico formado pelas relações de poder e determinação
dos instrumentos que permitam analisá-lo” (Foucault, 1979b, p. 80). O ponto de vista
adotado pela analítica do poder assume uma reflexão com âmbito mais limitado a respeito
desta problemática, evitando determinadas questões – como, por exemplo, a respeito da
origem do poder – e adotando uma perspectiva eminentemente descritiva, procurando
identificar e explicitar os diferentes mecanismos, táticas e estratégias empregadas, bem
como a forma de funcionamento, das relações de poder em sociedade. Como salienta o
autor de Vigiar e punir:
“(...) o problema não é de constituir uma teoria do poder que teria como função refazer o
que um Boulainvilliers ou Rousseau queriam fazer. Todos os dois partem de um estágio
originário em que todos os homens são iguais, e depois o que acontece? Invasão histórica
para um, acontecimento mítico para outro, mas sempre aparece a idéia de que, a partir de
um momento, as pessoas não tiveram mais direitos e surgiu o poder. Se o objetivo for
construir uma teoria do poder, haverá sempre a necessidade de considerá-lo como algo
que surgiu em um determinado momento, de que se deveria fazer a gênese e depois a
dedução. Mas se o poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e
sem dúvida mal coordenado) de relações, então o único problema é munir-se de princípios
de análise que permitam uma analítica do poder” (grifo meu) (Foucault, 1979a, p. 154).
É importante observar com clareza as ambições de Foucault no tocante às análises
formuladas pela genealogia do poder. Em geral as dimensões e objetivos de sua empreitada
1
A única exposição sistematizada de Foucault a respeito das suas reflexões sobre poder se encontra no texto
Sujeito e poder (1982).
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não são corretamente apreciados por seus leitores. Críticas aos resultados das investigações
realizadas por Foucault a respeito da problemática do poder, por vezes não estão atentas aos
limites – por ele reconhecidos de suas pesquisas. Quem destaca com precisão a forma de
trabalho e o âmbito da reflexão de Foucault acerca do poder é Roberto Machado:
“Mas é preciso ser menos geral e englobante. Porque a análise de Foucault sobre a
questão do poder é o resultado de investigações delimitadas, circunscritas, com objetivos
bem demarcados. Por isso, embora as vezes suas afirmações tenham uma ambição
englobante, inclusive pelo tom muitas vezes provocativo e polêmico que as caracteriza, é
importante não perder de vista que se trata de análises particularizadas, que não podem e
não devem ser aplicadas indistintamente sobre novos objetos, fazendo-lhe assim, assumir
uma postura metodológica que lhes daria universalidade” (Machado, 1979, p. XII).
A partir destas considerações e delimitado o escopo do projeto foucaultiano a respeito do
poder, o primeiro traço que interessa destacar nesta analítica é o abandono de uma visão
tradicional do poder onde sua atuação se basearia fundamentalmente em seu aspectos
negativos: proibindo, censurando, interditando, reprimindo, coagindo, etc. Como ele
afirma: “Já repeti cem vezes que a história dos últimos séculos da sociedade ocidental não
mostrava a atuação de um poder essencialmente repressivo” (Foucault, 1979b, p. 79).
Talvez esteja aí um dos aspectos mais ricos de sua análise. É difícil avaliar se foi ele que
inaugurou esta visão da problemática do poder, porém com certeza poucos enfatizaram tão
tenazmente está idéia. Ora, chega a causar estranheza e se imaginarmos que as relações de
poder se fundam exclusivamente em um caráter negativo: como explicar o sucesso das
inúmeras redes de dominação existentes em sociedade? Como explicar a relativa
tranqüilidade do poder burguês em uma sociedade injusta e desigual, onde uma iníqua
divisão de bens e poder vem se perpetuando com certa facilidade? Talvez seja modificando
nossa percepção do fenômeno do poder que possamos entender melhor esta dinâmica.
Assim, parece fazer mais sentido sustentar a seguinte posição: “o que faz com que o poder
se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não,
mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”
(Foucault, 1979a, p. 8).
Por conseguinte, ao enfatizar o aspecto produtor do poder, Foucault se insurge contra uma
visão do poder que o encara predominantemente como uma expressão de uma operação que
teria a forma de enunciação da lei e do discurso da proibição, com toda uma série de efeitos
negativos: exclusão, rejeição, ocultação, obstrução, etc. Com efeito, a partir desta
perspectiva é a lei da interdição e da censura que atravessa todo o corpo social – do Estado
à família, do príncipe ao pai; dos tribunais à toda a parafernália da punições quotidianas –
como forma por excelência de exercício do poder. Para ele impõe-se uma mudança neste
enfoque, encarando o exercício do poder menos em termos jurídicos e de proibição e mais
como técnicas e estratégias com efeitos produtivos. Como ele afirma, “Temos que deixar de
descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ‘reprime’,
‘recalca’, ‘censura’, ‘abstrai’, ‘mascara’, ‘esconde’. Na verdade o poder produz realidade,
produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se
pode ter se originam nessa produção” (Foucault, 1977, p. 172).
Dentro desta perspectiva, Foucault propõe uma analítica do poder onde é abandonado o
modelo legal: “É preciso construir uma analítica do poder que não tome o Direito como
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modelo” (Foucault, 1979b, p. 87). Desta forma, procura-se fugir de uma tradição onde se
utiliza o modelo formal e centralizador do Direito como parâmetro à compreensão das
relações de poder, modelo este que tem se revelado insuficiente para dar conta da
incessante, fluida e matizada movimentação das relações políticas e de poder. Ademais,
esta concepção jurídica do poder ainda guarda influência – bem maior que a correntemente
admitida – da representação de poder estruturada quando da consolidação dos Estados
Nacionais na Europa, sob o regime monárquico. Como salienta Foucault: “No fundo,
apesar das diferenças de época e de objetivos, a representação do poder permaneceu
marcada pela monarquia. No pensamento e na análise política ainda não cortaram a cabeça
Ao afastar-se do modelo legal – afinal o poder não é algo de que se tenha propriedade, que
se “troque” ou “venda” – Foucault aponta para uma nova percepção deste fenômeno.
Assim, o poder não deve ser conhecido como algo detido por uma classe (os dominantes)
que o teria conquistado, alijando definitivamente a participação e a atuação dos
dominados2; ao contrário, as relações de poder presumem um enfrentamento perpétuo.
Desta maneira, o funcionamento do poder é melhor compreendido através da idéia de que
se exerce por meio de estratégias e que seus efeitos não são imputáveis a uma apropriação
mas a manobras táticas e técnicas. Como ele explica uma das mais esclarecedoras
passagens de Vigiar e Punir sobre a dinâmica do poder:
“Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como
uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam
atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a
funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre
em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes
a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou uma conquista que se apodera de
um domínio. Temos, em suma, que admitir que esse poder se exerce mais do que se possui,
que não é ‘privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito conjunto
de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos
que são dominados” (Foucault, 1977, p. 29).
A perspectiva aberta pela analítica do poder vai impor, também, um deslocamento sensível,
em relação às análises tradicionais sobre esta noção, no que concerne ao papel do Estado.
Ora, para Foucault, “uma sociedade sem relações de poder somente pode ser uma
abstração” (Foucault, 1982, p. 222), isto implica que qualquer agrupamento humano vai
estar sempre permeado por relações de poder, posto que a existência deste tipo de relação é
coexistente à vida social. Desta perspectiva, o Estado parece perder um certo privilégio que
a análise política lhe tem garantido. Isto se dá na medida em que a instituição estatal, via de

2
Refutando a perspectiva que veria numa oposição dominantes X dominados, o eixo central da articulação
das relações de poder Foucault propõe o seguinte: “que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das
relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados,
dualidade que repercute de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo
social. Deve-se, ao contrário, supor que as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam nos
aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de
clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de força geral que
atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca, procedem as redistribuições,
alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série, convergências, desses afrontamentos locais. As grandes
dominações são efeitos hegemônicos continuamente sustentados pela intensidade destes afrontamentos”
(Foucault, 1979b, p. 90).
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regra percebida como o foco originador das relações de poder, na analítica do poder vai ter
seu papel redimensionado. O Estado não detém a prerrogativa de ser o centro constituidor
das relações de poder. O fenômeno da dominação, com as inúmeras relações de poder que
pressupõe, preexiste ao Estado. O que se observa é que a partir da consolidação do Estado
Nacional, como forma por excelência de organização política, paulatinamente com o
alargamento das funções, há uma captura de focos de poder pelo aparelho do Estado. Como
assevera: “É certo que nas sociedades contemporâneas o Estado não é simplesmente uma
das formas especificas de exercício do poder – mesmo se for a mais importante – mas, de
um certo modo, todas as formas de relações de poder devem a ele se referir. Todavia isto
não se dá porque elas se derivam do Estado; mas porque as relações de poder vem sendo
paulatinamente colocadas sob o controle do Estado” (Foucault, 1982, p. 224).
A pesquisa de Foucault impõe um deslocamento em relação ao Estado ao identificar a
existência de uma série de relações de poder na sociedade atual que se colocam fora do
Estado e que não podem de maneira alguma ser analisadas em termos de soberania, de
proibição ou de imposição de uma lei. Eis que: “entre cada ponto do corpo social, entre
homem e mulher, entre membros de uma família, (...) entre cada um que sabe e cada um
que não sabe, existem relações de poder” (Foucault, 1980a, p. 187). Tais relações,
obviamente, não podem ser percebidas como projeções do poder do Estado. Dar conta
destas relações é uma das preocupações desta analítica, pois sem entendê-las dificilmente
se poderá alterar efetivamente o jogo do poder na sociedade. Mas não se negligencia o
papel do Estado, apenas este papel é deslocado em relação às análises tradicionais. Como
esclarece:
"Situar o problema em termos de Estado significa continuar situando-o em termos de
soberano e soberania, o que quer dizer, em termos do Direito. Descrever todos esses
fenômenos do poder como dependentes do aparato estatal significa compreendê-los como
essencialmente repressivos: o exército como poder de morte, polícia e justiça como
instâncias punitivas, etc. Eu não quero dizer que o Estado não é importante; o que quero
dizer é que as relações de poder, e, conseqüentemente, sua análise se estendem além dos
limites do Estado. Em dois sentidos: em primeiro lugar porque o Estado, com toda a
onipotência do seu aparato, está longe de ser capaz de ocupar todo o campo de reais
relações de poder, e principalmente porque o Estado apenas pode operar com base em
outras relações de poder já existentes. O Estado é a superestrutura em relação a toda uma
série de redes de poder que investem o corpo, sexualidade, família, parentesco,
conhecimento, tecnologia e etc". (grifo meu) (Foucault, 1980a, p. 122).
Um segundo aspecto, ainda em relação ao Estado, reside no fato do abandono de qualquer
modelo centralizador. Ou seja, o poder não deve ser pensado como fundamentalmente
emanado de um ponto (em geral, identificado com o Estado). Deve-se ter, pois, em mente,
na procura de uma compreensão da dinâmica das relações de poder, a idéia de uma rede.
Rede esta que permeia todo o corpo social, articulando e integrando os diferentes focos de
poder (Estado, escola, prisão, hospital, asilo, família, fábrica, vila operária etc.) que se
apóiam uns nos outros.
Ao lado deste deslocamento da análise tradicional, é estabelecido também um dos
princípios da analítica do poder: “o poder é um feixe de relações mais ou menos
piramidalizado, mais ou menos coordenado” (Foucault, 1979a, p. 248). Com efeito, esta
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assertiva conduz a uma forma diferente de perceber o poder, pois através deste modelo
relacional abre-se a possibilidade de compreender com mais acuidade a dinâmica,
fragmentada, móvel e, às vezes contraditória, do poder em funcionamento na sociedade.
Ora, dentro desta perspectiva o poder só pode ser concebido como algo que existe em
relação, envolvendo forças que se chocam e se contrapõe. Deve-se frisar esta característica
pois ela é absolutamente essencial à compreensão foucaultiana de poder. Afinal, “o poder é
uma relação de forças ou antes, toda relação de força é uma ‘relação de poder’” (Deleuze,
1986, p. 77). A partir desta idéia temos um dos princípios da analítica do poder: deve se ter
sempre em mente o reconhecimento de uma pluralidade de correlações de forças3 –
constitutivas das relações de poder – que atravessam todo o corpo social. Assim, este
aspecto relacional informa toda a perspectiva foucaultiana, como ele explica:
"O que caracteriza o poder que estamos analisando é que traz à ação relações entre
indivíduos (ou entre grupos). Para não nos deixar enganar; só podemos falar de estruturas
ou de mecanismo de poder na medida em que supomos que certas pessoas exercem poder
sobre outras. O termo ‘poder’ designa relacionamentos entre parceiros (e com isto não
menciono um jogo de soma zero, mas simplesmente, e por ora me referindo em termos mais
gerais, a um conjunto de ações que induzem a outras ações, seguindo-se uma às outras)”
(Foucault, 1982, p. 217).
É dentro dessa natureza relacional, inerente ao funcionamento do poder, que as relações se
encontram menos envolvidas em confronto face – à – face, que possivelmente paralisaria
ambos os lados imersos em um antagonismo constante. Há nas relações de poder um
enfrentamento constante e perpétuo. Como corolário desta idéia teremos que estas relações
não se dão onde não haja liberdade. Na definição de Focault a existência de liberdade,
garantindo a possibilidade de reação por parte daqueles sobre os quais o poder é exercido,
apresenta-se como fundamental. Não há poder sem liberdade e sem potencial de revolta. As
relações de poder não são relações de constrangimento físico absoluto (logo a escravidão
ou relação com um homem acorrentado não caracteriza uma relação de poder). Como ele
explicita:
"O poder é exercido somente sobre sujeitos livres e apenas enquanto são livres. Por isto,
nós nos referimos a sujeitos individuais ou coletivos que são encarados sob um leque de
possibilidades no qual inúmeros modos de agir, inúmeras reações e comportamentos
observados podem ser obtidos. Onde os fatores determinantes saturam o todo não há
relação de poder; escravidão não é uma relação de poder pois o homem está acorrentado
(Neste caso fala-se de uma relação de constrangimento físico). Conseqüentemente, não há
confrontação face a face entre poder e liberdade, que são mutuamente excludentes (a
liberdade desapareceria sempre que o poder fosse exercido), mas uma interação muito mais
complicada. Nessa relação, a liberdade pode aparecer como condição para exercício do
poder (simultaneamente sua pré-condição, já que a liberdade precisa existir para o ‘poder’

3
Como destaca Foucault em uma das páginas mais esclarecedoras sobre este assunto: “Parece-me que se deve
compreender o poder, primeiro como uma multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde
se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as
transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram uma nas outras, formando
cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias
em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na
formulação da lei, nas hegemonias sociais” (1979b, p. 88).
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ser exercido e, também, seu apoio uma vez que sem a possibilidade de resistência, o poder
seria equivalente à determinação física)” (Foucault, 1982, p. 221).
Um outro aspecto interessante reside no papel desempenhado pela violência nesta
concepção de poder. Sem descartar a importância da utilização do recurso à violência por
aqueles que exercem o poder – não esquecendo que o que se oferece à análise são as
relações de poder – Foucault vai afirmar que a violência pode ser um instrumento utilizado
nas relações de poder mas não um princípio básico da sua natureza4. A atuação do poder se
dá de formas muito mais sutis, não se exercendo basicamente em aspectos negativos – o
poder reprime, obstaculiza, etc., ou através da violência física. Diferentemente, o poder tem
um aspecto produtivo fundamental. Deste modo, o exercício do poder deve ser
compreendido como uma maneira pela qual certas ações podem estruturar o campo de
outras possíveis ações. Como afirma:
"Em si mesmo o poder não é violência nem consentimento o que, implicitamente, é
renovável. Ele é uma estrutura de ações; ele induz, incita, seduz, facilita ou dificulta; ao
extremo, ele constrange ou, entretanto, é sempre um modo de agir ou ser capaz de ações.
Um conjunto de ações sobre outras ações” (Foucault, 1982, p. 220).
Assim, as relações de poder se dão em um campo aberto de possibilidades onde, embora
constate-se o fato de encontrar-se todo o tecido social imerso em uma ampla rede de
relações de poder, não temos como corolário a existência de um poder onipresente,
esquadrinhando todos os recantos da vida em sociedade levando a uma situação na qual não
haveria espaço a resistências e alternativas de transformação. A capacidade de recalcitrar,
de se insurgir, de se rebelar e resistir são elementos constitutivos da própria definição de
poder. Desta forma, “digo simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de
poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder:
podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma
estratégia precisa” (Foucault, 1979a, p. 241). Novamente nos deparamos com um ponto
fundamental da analítica do poder. Importa observar o seguinte: a possibilidade de
resistência se apresenta em múltiplos focos (da mesma maneira que o poder funciona a
partir de uma multiplicidade de pontos no tecido social). Como afirma:
"que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca
se encontra em posição de exterioridade (...) Não existe, com respeito ao poder, um lugar da

4
Este aspecto do conceito de poder de Foucault se encontra explicitado em The subject and power (1982, p.
220), texto fundamental à compreensão desta noção. Como esclarece Foucault: “Quer isto dizer que se deve
procurar o caráter próprio para as relações de poder na violência, que deve ter sido sua forma primitiva, seu
segredo permanente e seu último recurso, que em sua análise final, aparece como sua natureza real quando ela
é forçada a tirar sua máscara e mostrar-se como realmente é? De fato, o que define uma relação de poder é
que ela é um modo de agir que não atua direta e imediatamente sobre os outros. Ao invés, ele atua sobre suas
ações: uma ação sobre outra ação, sobre ações existentes ou sobre aquelas que podem surgir no presente e no
futuro. Uma relação de violência age sobre um corpo ou sobre coisas; ela força, dobra, destrói ou fecha a
porta a todas as possibilidades. O seu pólo oposto pode ser apenas a passividade e, ao se deparar com
qualquer resistência, sua única opção é tentar minimizá-la. Por outro lado, uma relação de poder somente
pode ser articulada com base em dois elementos que são indispensáveis tratando-se realmente de uma relação
de poder: que o ‘outro’ (aquele sobre quem o poder vai ser exercido) seja plenamente reconhecido e mantido
até o fim como uma pessoa que age; e que, em face de uma relação de poder, todo um campo de respostas,
reações, resultados, e possíveis invenções seja aberto.
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grande recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas
sim, resistências no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis,
espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas
ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição não podem existir a
não ser no campo estratégicos das relações de poder. (...) Elas não são o outro termo nas
relações de poder; inscrevem-se nestas relações como interlocutor irredutível” (Foucault
1979b, p. 91).
Um outro aspecto capital da analítica do poder é a adoção do modelo da guerra à
inteligibilidade das relações de poder. Assim, “o poder é guerra, guerra prolongada por
outros meios” (Foucault, 1979a, p. 176). É em termos de confronto e de combate com suas
táticas e estratégias, onde se tem “por princípio cumular vantagens e multiplicar benefícios”
(Foucault, 1980, p. 37), que melhor podemos compreender o modo pelo qual se desdobra e
articula a extensa rede de poder que atravessa o corpo social. A base das relações de poder
seria o confronto belicoso das forças sociais em antagonismo constante, já que tais relações
implicam pelos próprios princípios teóricos desta noção (como já brevemente descrito nos
parágrafos anteriores) uma rebeldia e insurgência constantes por parte daqueles que estão
submetidos às relações de poder.
Foucault ao utilizar-se do paradigma da guerra tenta escapar das insuficiências da análise
tradicional do poder, onde em geral, a reflexão se dá em termos de Direito e soberania5,
como já destacado anteriormente, os quais, via de regra, caíam numa perspectiva onde o
poder se exerceria basicamente através de aspectos negativos – proíbe, obstaculiza,
constrange, etc. – e sob a forma da lei. A utilização deste modelo se inscreve na
preocupação de Foucault de desenvolver o instrumental teórico necessário à uma nova
análise do poder. Ele constata e afirma a inexistência de ferramentas conceituais aptas a
compreender a dinâmica das relações de poder6. Esclareça-se, entretanto, que Foucault não
se coloca na posição de descobridor do modelo da guerra como forma de inteligibilidade
das relações sociais e de poder e, ainda mais, ele não deixa de mencionar a sua constante
utilização – talvez a hipótese mais freqüente quando se procurou evitar o modelo legal –,
todavia, ele critica a má utilização deste modelo, apontando para a necessidade de um
desenvolvimento deste tipo de análise. Neste sentido:
"O que me parece certo é que, para analisar as relações de poder, só dispomos de dois
modelos: o que o Direito nos propõe (poder como lei, proibição, instituição) e o modelo
guerreiro ou estratégico em termos de relações de forças. O primeiro foi muito utilizado e
mostrou, acho eu, ser inadequado: sabemos que o Direito não descreve o poder. O outro
sei bem que também é muito usado. Mas fica nas palavras: utilizam-se noções pré-

5
Como indica Foucault “Para levar a cabo a análise concreta das relações de poder, deve-se abandonar o
modelo jurídico da soberania. Com efeito, este modelo pressupõe o indivíduo como sujeito de direitos
naturais ou poderes primitivos; ele se coloca como objetivo de dar conta da gênese ideal do Estado; enfim, ele
faz da lei a manifestação fundamental do poder” (1974-82, curso 75/76, p. 361).
6
Em passagem esclarecedora Foucault comenta este ponto: “(...) parece-me que a história e teoria econômica
forneceram (um bom) instrumento para as relações de produção; que a linguística e a semiótica ofereceram
instrumentos para o estudo das relações de significação; mas para as relações de poder não há instrumentos
para estudar. Nós temos recorrido somente a maneiras sobre o poder baseadas em modelos legais, isto é: O
que legitima o poder? Ou então recorremos ao modo de pensar baseados nos modelos institucionais, isto é: O
que é Estado?” (grifos meus) (Foucault, 1982. p. 209).
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fabricadas ou metáforas (‘guerra de todos contra todos’, ‘luta pela vida’) ou ainda
esquemas formais (as estratégias estão em moda entre alguns sociólogos e economistas,
sobretudo americanos). Penso que seria necessário tentar aprimorar esta análise das
relações de força” (Foucault, 1979a, p. 241).
Enfim, nesta primeira parte, foram destacadas algumas das características da concepção de
Foucault a respeito do poder. Certamente um assunto como este poderia ser tratado de
forma mais detalhada e exaustiva. Aqui foi merecedor apenas de uma primeira abordagem.
Na segunda parte deste artigo o enfoque será distinto, procurando descrever algumas
modificações observadas ao longo dos anos 70 nas investigações de Foucault.
O deslocamento da noção de poder em Michel Foucault
Nesta segunda parte a análise se dará em outro eixo, privilegiando a dimensão temporal. Ao
discutirmos alguns outros aspectos da noção de poder de Foucault, ficará patente que certas
preocupações estarão mais presentes em um ou outro momento da pesquisa genealógica.
Assim, nossas considerações referir-se-ão a certas características desta discussão
relacionadas aos períodos onde se encontram mais enfatizadas. Por exemplo, segundo a
nossa análise, a questão do poder disciplinar se apresentará como absolutamente central de
1973 a 1975, já a discussão sobre a governabilidade será destacada a partir de 1978 e,
quanto ao bio-poder, sua problematização recairá no período de 76/77. Ao acompanhar a
trajetória da temática do poder ao longo dos anos 70, observando a maneira como certos
aspectos serão ressaltados em um período, para posteriormente cederem lugar a uma
discussão um pouco distinta, nos parece que podemos afirmar a existência de um
deslocamento na noção de poder de Foucault.
Ora, antes mesmo de iniciarmos a análise desta segunda parte, onde procuraremos detalhar
este deslocamento da noção de poder – em especial a passagem para a questão da
governamentalidade – poderíamos afirmar que talvez este deslocamento seja quase um
corolário da forma de Foucault trabalhar. Durante toda a sua carreira ficou claro um estilo
onde as pesquisas, com os conseqüentes desdobramos teóricos, avançam ao sabor do
material empírico trabalhado, animadas por uma infatigável curiosidade. Esta marca do
método de Foucault explica o caráter, em certo sentido, deslizante de seu trabalho.
Ademais, as sucessivas transformações na sua obra ficam justificadas a partir de um dos
cuidados principais de todo o seu trajeto filosófico, sintetizado em uma das suas últimas
entrevistas: “São as coisas gerais que surgem em último lugar. É o preço e a recompensa de
todo o trabalho em que as peças teóricas se elaboram a partir de um certo domínio
empírico” (Foucault, 1977, p. 76).
Por outro lado, este deslocamento/modificação no percurso de Foucault no tocante à
questão de poder pode ser encarado como um progressivo aperfeiçoamento do arsenal
teórico a partir dos domínios empíricos trabalhados. Ou melhor, na medida em que
Foucault ia se aprofundando nas pesquisas em torno das formas pelas quais, na Civilização
Ocidental, se estruturam as diversas práticas (e as instituições que lhe eram e são correlatas)
que veiculam e fazem funcionar as relações de poder, foi paulatinamente desenvolvendo
diferentes categorias, para dar conta do material analisado. Como destacado no parágrafo
anterior, no trabalho de Foucault não há uma intuição primeira que o analista procura
comprovar através dos exemplo oriundos de sua interpretação histórica. Para Foucault, o
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
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dado empírico impõe a sua positividade, obrigando a uma posterior conceitualização que
acompanhe sempre os avanços da pesquisa. Neste sentido, ao mapearmos os
desdobramentos de seu trabalho ao longo dos anos 70, destacaremos as diversas categorias
utilizadas para identificar e entender a dinâmica do funcionamento do poder. Assim, poder
disciplinar, bio-poder, governamentalidade, etc., são diferentes tecnologias de poder postas
em funcionamento – às vezes com hegemonia de uma, mas em geral coexistindo em
complexos arranjos na sociedade ocidental a partir do século XVI.
O bio-poder (poder disciplinar e bio-política)
A preocupação com a identificação e análise do processo pelo qual se dá a tomada do poder
sobre os corpos, na sociedade ocidental, ocupará o centro das pesquisas de Foucault a partir
de 1972/73. A sua analítica procurará retraçar a trajetória das diversas tecnologias de poder
que se desenvolveram no Ocidente a partir do final do século XVI até constituírem a
sofisticada estrutura de poder que envolve o homem contemporâneo. Estes diversos
processos que acarretaram uma progressiva organização da vida social, através de
meticulosos rituais de poder que tem como objetivo o corpo, se deram através do que
Foucault caracterizou como bio-poder. O estudo desta problemática se encontrará
privilegiado nos dois livros de Foucault dos anos 70, Vigiar e punir e a Vontade de saber
cumprindo um dos projetos avançados no texto programático desta fase do seu trabalho:
Nietzsche, a genealogia e a história. Desta forma, “A genealogia (...) está portanto no ponto
de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado, e a
história arruinando o corpo” (Foucault, 1979a, p. 22).
Como Foucault afirma no início de Vigiar e punir: “(...) o corpo também está diretamente
mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre eles; elas
o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais” (Foucault, 1977, p. 28). Por conseguinte, devemos ter em
mente que a genealogia do poder terá o corpo como um objeto privilegiado de análise e
preocupação. Quem destaca esta questão é François Ewald, no texto que apresenta a
discussão mais profunda sobre Vigiar e punir, Anatomie et corps politique:
“A genealogia é física e microfísica do poder. Se ela descobre os corpos de poder, ela os
vê sempre aplicados sobre outros corpos. Sobre o que um corpo poderia agir senão sobre
um outro corpo? A genealogia adota o ponto de vista dos corpos, aquele do supliciado,
adestrado, marcado, mutilado, decomposto, obrigado, constrangido; aquele dos corpos
que se repartem, que se separam e que se reúnem. A lei de exercício do poder é aquela do
corpo a corpo, de corpos que se aplicam sobre outros corpos para educá-los, fabricá-los;
de corpos que resistem a esta aplicação. A genealogia descreveu os efeitos: produção de
almas, produção de idéias, de saber, de moral, ou seja, produção de poder que se reconduz
sobre outras formas. O poder é ao mesmo tempo causa e efeito” (Ewald, 1975, p. 1237).
A atuação do poder sobre os corpos que Foucault chamara de bio-poder tem que ser
percebida nas suas especificidades. Vale dizer, sob esta denominação, Foucault designará
principalmente dois níveis de exercício do poder: de um lado, as técnicas que têm como
objetivo um treinamento “ortopédico” dos corpos, as disciplinas e o poder disciplinar; de
outro lado, o corpo entendido como pertencente a uma espécie (a população) com suas leis
e regularidades. O primeiro nível de análise se encontra tratado predominantemente em
Vigiar e punir, quanto ao outro, na Vontade de saber, veremos esboçados os princípios
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desta análise, que posteriormente serão retomados nos Cursos do Collège de France de
77/78. Estes dois planos trabalhados na analítica do poder são destacados por Pasquale
Pasquino e Alexandre Fontana numa questão endereçada a Foucault na entrevista Verdade
e poder:
“Ter-se-ia, por um lado, uma espécie de corpo global, molar, o corpo da população, junto
com toda uma série de discursos que lhe concernem e, então, por outro lado e abaixo, os
pequenos corpos, dóceis, corpos individuais, os micro-corpos da disciplina. Mesmo que se
esteja no início de pesquisas neste ponto, poder-se-ia dizer como se vê a natureza das
relações (caso existentes) as quais são engendradas entre estes diferentes corpos: o corpo
molar da população e os micro-corpos dos indivíduos” (Foucault, 1980a, p. 124).
Acreditamos que a identificação destes dois níveis – corpo molar da população e
microcorpo dos indivíduos, como denominam Fontana e Paquino – marque também uma
modificação no tratamento de Foucault no tocante ao poder. Observa-se que, embora estas
tecnologias de poder estejam profundamente articuladas e entrelaçadas no mundo
contemporâneo, além de terem origens distintas, elas vão sendo paulatinamente
identificadas ao longo do trabalho de Foucault nos anos 70. Assim, do momento em que o
corpo passa a assumir posição de relevo no seu trabalho, em 73, até a publicação de Vigiar
e punir em 75, o destaque residirá no poder disciplinar. A partir da publicação da Vontade
de saber em 76, abrir-se-á uma outra área de pesquisa, focalizando o corpo molar da
população. Neste momento, Foucault fala da bio-política ou do bio-poder. Posteriormente
este último termo será empregada em um sentido mais amplo, dando conta também do
poder disciplinar, posto que em ambos os casos o objeto de atuação do poder é o corpo e a
vida humana (se bem que atingidos de maneira distintas). Assim, de agora em diante
faremos neste trabalho uma pequena subdivisão: primeiramente, algumas observações
sobre o poder disciplinar, para depois nos determos nos aspectos da atuação do poder sobre
a população. Esclareça-se que quanto a este segundo aspecto nos referimos a ele como bio-
poder, observando a terminologia empregada na Vontade de saber – texto fundamental à
discussão deste particular, apesar do já exposto anteriormente quanto à utilização posterior
mais ampla desta categoria.
Ao constatar que “houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e
alvo do poder” (Foucault, 1977, p. 125). Foucault procurou identificar as formas e
procedimentos múltiplos pelos quais se deu esta “ocupação” dos corpos pelo poder. Por
conseguinte, a constituição de um arsenal teórico que possibilitasse a análise e, também, a
identificação do nível onde se dá este encontro poder/corpos7 marcará as preocupações de
Foucault, especialmente no fim de 73, em 74, e tratado com mais detalhe em Vigiar e punir.
O que o interessará, entre outras coisa, será destacar que mecanismos, táticas e dispositivos
serão progressivamente utilizados pelo poder na época clássica e como alguns destes
mecanismos, com certas transformações, permaneceram até os nossos dias, integrando a

7
No tocante a este aspecto, e apontando para este nível de análise, que obrigaria a construção de uma física
do poder, destaca Foucault: “A transformação da penalidade não depende apenas de história dos corpos,
porém, mais precisamente, de uma história das relações entre o poder político e os corpos. A coerção sobre o
corpo, o seu controle, seu assujeitamento, a maneira pela qual ela os dobra, os fixa, os utiliza está no princípio
da mudança estudada. Seria necessário escrever uma ‘Física’ do poder, e mostrar quanto ela foi modificada
em relação a suas formas anteriores, no começo do século XIX, quando do desenvolvimento das estruturas
estatais” (citado em Marietti, 1977).
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enorme parafernália do poder que envolve a sociedade contemporânea. Entre estes


mecanismos se encontram as disciplinas, isto é, “Esses métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõe uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1977, p. 126).
O que observa Foucault é que a partir do fim do século XVII, ao longo do século XVIII e
especialmente no início do século XIX, desenvolveu-se e estruturou-se toda uma nova
tecnologia de aproveitamento/utilização da força dos corpos. Tal tecnologia se organizará
basicamente em torno da disciplina, isto é, “o processo técnico unitário pelo qual a força do
corpo é com o mínimo de ônus reduzida como força política, e maximizada como força
útil” (Foucault, 1977, p. 194). Ligada aos imperativos econômicos e políticos de uma nova
ordem que se impunha8, as disciplinas – técnicas já conhecidas na civilização ocidental9,
como por exemplo nos conventos, nas oficinas e nas legiões romanas – passam a ser
utilizadas maciçamente. Fábricas, escolas, hospitais, hospícios, prisões, etc., instituições
fundamentais ao funcionamento da sociedade industrial capitalista, se estruturaram e tem
como lógica de funcionamento as técnicas e táticas oriundas deste processo de
disciplinarização. Por conseguinte, fica claro que nesta conjuntura se articula uma nova
relação entre o poder e os corpos, como ele explica:
“O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Formam-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de
seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia-
política”: que é também igualmente uma mecânica do poder, está nascendo (...) A

8
Em relação a esta nova realidade político-econômica que demandava a utilização das tecnologia disciplinar.
Esclarece Foucault: “Esse triplo objetivo da disciplina responde a uma conjuntura histórica bem conhecida. É
por um lado a grande explosão demográfica do século XVIII: aumento da população flutuante, (fixar é um
dos primeiros objetivos da disciplina; é um processo de antinomadismo); mudança da escala quantitativa dos
grupos que importa controlar ou manipular (...). O outro aspecto da conjuntura é o crescimento do aparelho de
produção, cada vez mais extenso e complexo, cada vez mais custoso também e cuja rentabilidade urge fazer
crescer. O desenvolvimento dos modos disciplinares de proceder responde a esses dois processos ou antes
sem dúvida à necessidade de ajustar sua correção” (Foucault, 1977).
9
Como destaca Foucault, em esclarecedora passagem: “A disciplina é uma técnica de exercício de poder que
foi, não inteiramente inventada, mas elaborada em seus princípios fundamentais durante o século XVIII.
Historicamente as disciplinas existiam a muito tempo, na Idade Média e mesmo na antigüidade. Os mosteiros
são um exemplo de região, domínio no interior do qual reinava o sistema disciplinar. A escravidão e as
grandes empresas escravistas existentes nas colônias espanholas, inglesas, francesas e holandesas, etc., eram
modelos de mecanismos disciplinares. Pode-se recuar até a Legião Romana e lá também encontrar um
exemplo de disciplina. Os mecanismos de disciplina são, portanto, antigos, mas existiam em estado isolado,
fragmentado, até o século XVII e XVIII, quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova técnica
de gestão dos homens. Fala-se, freqüentemente, das invenções técnicas do século XVIII – as tecnologias
químicas, metalúrgica, etc. – mas erroneamente, nada se diz da invenção técnica dessa nova maneira de gerir
os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua
atividade, graças a um sistema de poder suscetível de controlá-los. Nas grandes oficinas que começam a se
formar, no exército, na escola, quando se observa na Europa um grande processo de alfabetização, aparecem
essas novas técnicas de poder, que são uma grande invenção do século XVIII” (Foucault, 1979a, p. 105).
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disciplina fabrica assim corpos submissos, exercitados, corpos ‘dóceis’” (Foucault, 1977,
p. 127).
Neste momento de sua obra, há o privilégio da análise das técnicas de poder que se centram
no corpo; como que tratando-o como máquina, adestrando-o, amplificando a sua utilização,
aperfeiçoando a extração do trabalho, integrando-o ao novo circuito da produção instaurado
a partir do século XVIII. Neste sentido as análises de Vigiar e punir, em especial ao
destacar a questão do panoptismo, isto é: “o princípio geral de uma nova ‘anatomia-
política’, cujo objeto e fim não são as relações de soberania mas as relações de disciplina”
(Foucault, 1977, p. 183) marcam a emergência de uma nova forma de atuação do poder
sobre os corpos: o poder disciplinar. O panóptico representa o modelo por excelência –
utilizado nas prisões, fábricas, escolas, hospitais, etc. – desta tecnologia de poder que se
impõe ao longo do século XIX, que tem “por pura função impor uma tarefa ou uma conduta
qualquer a uma multiplicidade de indivíduos, desde que ela seja pouco numerosa e o espaço
limitado, pouco extenso” (Deleuze, 1986, p. 79).
A atuação do poder disciplinar apresenta aspectos distintos da maneira pela qual se
articulava o poder político na Idade Média, onde “o poder funcionava essencialmente por
meio de símbolos e taxas. Sinais de lealdade ao senhor feudal, ritos e cerimônias entre
outros, e taxas, na forma de impostos, pilhagens, guerras e etc” (Foucault, 1980a, p. 125).
Diferentemente, na época clássica começou a se estruturar uma tecnologia de poder – que
só estará plenamente desenvolvida no final do século XVIII – que repousou em outras
bases. A tecnologia que funcionou em torno do poder disciplinar se sustentará mais em uma
ação sobre os corpos e seus atos do que sobre os produtos retirados da terra. O fundamental
é colocar em operação mecanismos que possibilitem uma extração de tempo e trabalho dos
corpos, relegando a um segundo plano as velhas formas de atuação que tinham na extração
imediata de bens e riquezas seu objetivo primordial. Este novo tipo de poder se exerce
supondo mais um sistema minucioso de coerções materiais do que a figura de um príncipe
soberano.
Por fim, para que se possa perceber melhor as características da disciplina, cabe destacar
que ela “(...) nem é um aparelho, nem uma instituição: ela funciona como uma rede que os
atravessa sem se limitar a suas fronteiras; é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo,
um instrumento de poder” (Machado, 1982, p. 194). Assim, a disciplina se exerce em uma
série de espaços do corpo social, tendo como princípios básicos os seguintes aspectos ela é
uma arte de distribuição espacial dos indivíduos; a disciplina exerce seu controle não sobre
o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento; ela é uma técnica de poder que
implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos e ela é também um controle do
tempo.
Eis que, se esta discussão sobre a relação do poder sobre os corpos e a caracterização do
poder disciplinar estão nitidamente presentes no período de 74/75, com o lançamento da
Vontade de saber, em 76, pode-se falar de uma mudança. Foucault não abandonará a idéia
do poder disciplinar, mas a articulará com uma outra tecnologia, que será destacada nas
análises dos anos subseqüentes, o bio-poder, que se distinguirá do poder disciplinar em
alguns aspectos, entre eles o fato de que esta nova forma de poder considerará “uma outra
função (...) gerar e controlar a vida dentro de uma multiplicidade desde que ela seja
numerosa (população), e o espaço estendido ou aberto” (Deleuze, 1986, p. 79).
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Embora o objetivo das análises ainda seja o corpo, agora é o corpo-molar da população, que
será ressaltado. Assim, dentro da nossa análise, destacaríamos a ênfase dada por Foucault
no seu trabalho, dos anos 76 a 78, na análise desta tecnologia própria às sociedades
ocidentais: o bio-poder. Como ele afirma, no final da Vontade de saber (distinguindo o
poder disciplinar do bio-poder):
“O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII,
centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como
suporte dos processos biológicos; a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível
de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los
variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles
reguladores: uma bio-política da população (...) A velha potência da morte em que se
simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos
corpos e pela gestão calculista da vida” (Foucault, 1979b, p. 131).
Desta forma, a partir da articulação da existência de um novo objeto à atuação do poder – a
população, com suas regularidades: taxa de natalidade, mortalidade, longevidade, etc10. –
estrutura-se toda uma nova tecnologia do poder. Esclareça-se, contudo, que esta nova
tecnologia não implica o abandono da idéia e utilização do poder-disciplinar; pelo
contrário, as duas – poder-disciplinar e bio-poder – se integram para um controle/gestão
mais efetivo dos corpos. Apenas uma nova área e forma de atuação do poder nas sociedades
ocidentais é posto a nu pela análise de Foucault com a noção de bio-poder. A preocupação
da análise desta realidade é marcante nos anos de 76 a 78. Se temos somente uma breve
descrição do bio-poder no capítulo quinto da Vontade de saber, os cursos do Collège de
France neste período fornecem indicações sobre esta problemática.
Entretanto, pode-se observar que a questão do bio-poder parece ter sido a menos trabalhada
por Foucault: à exceção dos textos já mencionados, é escassa a referência a esta
discussão11. Contudo, ainda poderíamos afirmar a existência de uma mudança de ênfase no
trabalho de Foucault, posto que o nível de atuação do poder focalizado – diferentemente do

10
Este novo processo de atuação do poder se dará, como diz Foucault, com “a entrada dos fenômenos
próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder no campo das técnicas políticas” (Foucault,
1979b, p.133). Como ele afirma em outra passagem, a população vai passar a ser, na segunda metade do
século XVIII, um objeto privilegiado de atuação do poder: “Os traços biológicos de uma população tornam-se
fatores relevantes para a administração econômica e torna-se necessário organizar ao seu redor um aparato
que vai afirmar não apenas a sua sujeição mas também o crescimento constante de sua utilidade” (Foucault,
1980b, p. 172).
11
Como já afirmado, alguns traços do bio-poder são expostos no final da Vontade de saber. No tocante aos
cursos do Collège de France, as referências não são muito numerosas também. O Curso 75/76 tratou,
resumidamente, da questão da utilização do modelo guerreiro como possibilidade de inteligibilidade das
relações de poder. Em 76/77 não houve curso. É no curso de 78/79 que basicamente temos algumas
informações já que, no curso de 78/79, Foucault privilegiou a análise em termos da Governamentalidade e no
estudo da racionalidade liberal. Assim, no curso de 77/78, há uma esclarecedora passagem acerca desta
questão da população, objeto do bio-poder: “Assim, começa aparecer (...) o problema da população. Esta não
á concebida como um conjunto de sujeitos de direito, nem como um grupo de braços destinados ao trabalho;
ela é analisada como um conjunto de elementos que de um lado se aproxima do regime geral dos seres vivos
(a população depende então da espécie ‘humana’: noção nova à época, distinta da noção de ‘gênero humano’)
e de outro, pode dar lugar às intervenções concentradas (por intermédio das leis, mas também das mudanças
de atitude, da maneira de fazer e de viver que podem ser obtidas pelas ‘campanhas’)” (Foucault, 1974-82,
curso 77/78, p. 447-448).
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poder disciplinar – se apresenta em outro plano. Neste momento o objeto de análise é a


forma de poder que “se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos
maciços de população” (Foucault, 1979b, p. 129).
Cabe precisar, entretanto, o seguinte: Foucault não afirma que foi no século XVIII que pela
primeira vez, a população surgiu como objeto de atuação do poder12. Já na antiguidade
clássica, em Roma, observou-se a existências de políticas públicas visando à
regulamentação da dinâmica da populacional, através de leis estimulando casamento,
isenção de impostos para famílias numerosas, etc. Porém, no século das luzes, a população
começa a ser estudada, analisada e esquadrinhada por uma série de políticas que tem como
suporte as ciências do homem que se constituem neste século, como a demografia e a
medicina social. Tais políticas procuram estabelecer um controle e gestão mais efetivo dos
membros de uma população, diferenciando-se das políticas que até então tinham como
escopo atingi-la, as quais, em geral, caracterizavam-se por uma atuação dispersa, sem
continuidade e deixando vários recantos deste conjunto intocados. Precisando as origens e
características desta tomada de corpo-molar da população como objeto de poder, Foucault
afirma:
“Qual é a base para esta transformação? Genericamente, pode-se dizer que ela se
relaciona com a preservação e conservação da ‘força de trabalho’. Mas, indubitavelmente,
o problema é mais amplo. Ele indiscutivelmente se refere aos efeitos político-econômicos
da acumulação de homens. O grande crescimento demográfico do século XVIII na Europa
Ocidental, a necessidade de coordenação e de integração ao aparato de produção e a
urgência de controlá-lo, com mecanismos de poder mais sofisticados e adequados,
possibilitaram a emergência da ‘população’, (com suas variedades numéricas de espaço e
cronologia, longevidade e saúde), emergisse não só como problema, mas como um objeto
de observação, análise, intervenção, modificação, etc. Um projeto de tecnologia da
população começa a ser desenhado: estimativas demográficas, o cálculo de pirâmides
etárias, diferentes expectativas de vida e níveis de mortalidade, estudos das recíprocas
relações entre crescimento da população e crescimento da riqueza, medidas de incentivo
ao casamento e procriação, desenvolvimento de formas de educação e treinamento
profissional” (Foucault, 1980b, p. 171).
Possivelmente esta discussão do bio-poder seja melhor percebida se encarada como uma
espécie de transição entre as pesquisas de Vigiar e punir e uma temática que marcará os
seus últimos anos de trabalho: a questão do governo. Esta perspectiva se abre a partir do
que Foucault afirma no início do Curso do Collège de France, de 77/78:

12
Como explica Foucault: “Certamente o problema da população sob a forma: ‘seremos nós muito
numerosos, não suficientemente numerosos? , há muito tempo colocado, há muito tempo que se dá a ele
soluções legislativas diversas: impostos sobre os celibatários, isenção de impostos para as famílias numerosas,
etc. Mas, no século XVIII, o que é interessante, em primeiro lugar, é uma generalização destes problemas:
todos os aspectos do problemas população começam a ser levados em conta (epidemias, condições de habitat,
de higiene, etc.) e a se integrar no interior de um problema central. Em segundo lugar, vê-se a este problema
novos tipos de saber: aparecimento da demografia, observações sobre a repartição das epidemias, inquéritos
sobre as amas de leite e as condições de aleitamento. Em terceiro lugar, o estabelecimento de aparelhos de
poder que permitiam não somente a observação, mas a intervenção direta e manipulação de tudo isto. Eu diria
que neste momento começa algo que se pode chamar de poder sobre a vida, enquanto antes só havia vagas
incitações descontínuas para modificar uma situação que não se conhecia bem” (Foucault, 1979a, p. 234-275).
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“o curso tratou da gênese de um saber político que colocou, no centro de suas


preocupações, a noção de população e os mecanismos suscetíveis de assegurar a sua
regulação. Passagem de um ‘Estado territorial’ a um ‘Estado de população’. Sem dúvida
não se trata de uma substituição mas de uma mudança de acentuação, e da aparição de
novo problema e de novas técnicas. Para seguir esta gênese, foi assumido como fio
condutor a noção de governo” (Foucault, 1974-82, p. 445).
Neste instante fica nítida aquela que parece ser a modificação mais radical dentro da
genealogia do poder. Como já destacamos anteriormente, é clara a passagem, nesta data da
discussão sobre o poder para outros termos, analisados até o final da obra de Foucault a
partir da questão do governo. Esclareça-se, antes mesmo de nos determos com um pouco
mais de atenção sobre este tema, que governo não deve ser entendido da maneira usual
como uma burocracia ou grupo de pessoas à frente da gestão da coisa pública, ou a
atividade exercida por aqueles que conduzem a máquina estatal (entre outros significados),
mas sim no seguinte sentido:
“Esta palavra (Governo) deve ser compreendida no sentido mais amplo que tinha no
século XVI. ‘Governo’ não se referia apenas a estruturas políticas ou a administração dos
Estados; antes, designava o modo pelo qual a condução de indivíduos ou grupos deveria
ser orientada: o governo das crianças, das almas, dos bens, das famílias, dos doentes. Ele
cobria não apenas as formas legitimamente constituídas de sujeição política ou econômica
mas também maneiras de agir destinadas a atuar sobre as possibilidades de ação das
outras pessoas. Governar, neste sentido, seria estruturar o possível campo de ações dos
outros” (Foucault, 1982, p. 221).
A governamentalidade
Talvez no seu texto mais importante de 1978, o debate com os historiadores acerca de
Vigiar e punir, publicado no livro L’impossible prison, Foucault marca a significação da
questão do governo na sua obra. Assim, “para dizer as coisas claramente: meu problema é
saber como os homens se governam (eles mesmos e os outros)” (Foucault, 1980a). Por
conseguinte, o poder passa a ser trabalhado em uma outra perspectiva; é o governo de si e o
governo dos outros – que obviamente pressupõem e estão inscritos nas relações de poder –
que constituirá o cerne do trabalho de Foucault até a sua morte.
Um texto central nesta perspectiva é a ‘Governamentalidade’, de 1978. Esta aula no
Collège de France lança os princípios deste tipo de análise que lida com “o problema de
como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc.”
(Foucault, 1979a, p. 278). Com efeito, Foucault faz o inventário do surgimento, a partir do
século XVI, de toda a literatura – estreitamente vinculada ao príncipe de Maquiavel, quer
por oposição, quer por recusa – que trata da arte de governo. Esta teoria não se resumiu a
mero exercício acadêmico, pois “a teoria da arte de governar esteve ligada desde o século
XVI ao desenvolvimento do aparelho administrativo da monarquia territorial: aparecimento
dos aparelhos de governo” (Foucault, 1979a, p. 285). Por outro lado, a arte do governo
rompe com a tradição da teoria jurídica da soberania – fundamentada no governo do
território, e afirmando que “o governo é uma correta disposição das coisas” (Foucault,
1979a, p. 282).
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Entretanto, nos parece importante frisar que a arte de governar se articula em torno de um
tema importante à análise política: a Razão de Estado, e aí, não no sentido moderno do
termo, mas naquele relacionado à racionalidade da atuação estatal. Assim este tema,
pesquisado por Foucault no final dos anos 70, não deve ser confundido com a idéia de
razão de Estado, como aquilo que justifica o desrespeito das regras formais do jogo político
em nome de um interesse superior, onde está, em geral, presente o arbítrio e a violência. O
sentido dado por Foucault se articula com uma noção de arte de governo, tematizada
freqüentemente ao longo do século XVII e início do XVIII. Como ele explica esta
distinção:
“Esquematicamente se poderia dizer que a arte de governar encontra, no final do século
XVI e no início do século XVII, uma primeira forma de cristalinização, ao se organizar em
torno do tema de uma razão de Estado. Razão de Estado hoje entendida não no sentido
pejorativo e negativo que lhe é dado (ligado à infração dos princípios do Direito, da
eqüidade, ou da humanidade por interesses exclusivos dos Estados), mas no sentido
positivo e pleno: o Estado se governa segundo as regras racionais que lhe são próprias,
que não se deduzem nem das leis naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou
da prudência: o Estado, como a natureza, tem sua racionalidade própria, ainda que de
outro tipo. Por sua vez, a arte de governo em vez de fundar-se em regras transcendentais
ou em um ideal filosófico-moral, deverá encontrar sua racionalidade naquilo que constitui
a sua racionalidade própria” (Foucault, 1979a, p. 286).
Esta discussão de Foucault a respeito da Governamentalidade ocorre no momento em que
se dá a mudança mais drástica no projeto genealógico. Se durante os anos 70 as
preocupações estiveram concentradas em reflexões de caráter eminentemente político, de
78 até a sua morte em 84 a ética ocupará, basicamente, a sua atenção. Neste sentido as
pesquisas sobre a governamentalidade marcam uma transição: do governo dos outros – e
aqui incluídas todas as investigações sobre o poder – para o governo de si. Assim, é o
continente da Ética, o tema dos dois últimos livros de Foucault, O uso dos prazeres e O
cuidado de si. Com efeito, o estudo da Antigüidade não privilegiará os mecanismos de
constrangimento, nem as insidiosas técnicas utilizadas à submissão dos corpos e almas. As
pesquisas acerca da maneira como no século IV a.C., na Grécia, e no século I e II d.C., em
Roma, as condutas sexuais eram objeto de ponderações de natureza ética, se encontram em
um cenário bem diferente das problematizações anteriores de Foucault. Há a passagem de
um exame das práticas empregadas no governo de si. Não se estudam mais os efeito do
poder no processo de subjetivação dos sujeitos, mas sim as técnicas usadas no governo de
si. Talvez esta passagem para um universo tão diferente de investigações explique o fato de
que Foucault não se deteve por muito tempo nas investigações atinentes à
Governamentalidade. Além do texto já mencionado acerca desta questão, temos poucas
referências. Os anais do Curso do Collège de France do ano de 77/78 destacam também
esta investigação:
“Em seguida foi analisado, a respeito de alguns de seus aspectos, a formação de uma
‘governamen-talidade política., isto é, a maneira pela qual um conjunto de indivíduos se
encontra implicado, de maneira cada vez mais marcada, no exercício do poder soberano.
Estas transformações importantes são assimiladas nas diferentes ‘artes de governo’ que
foram redigidas, no fim do século XVI. Ela é ligada sem dúvida à emergência da ‘Razão de
Estado’. Se passa de uma arte de governar cujos princípios eram pedidos emprestados das
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

virtudes tradicionais (sabedoria, Justiça, liberdade, respeito às leis divina e aos costumes
humanos) ou das habilidades comuns (prudência, decisões refletidas, cuidado de estar
cercado dos melhores conselheiros) para uma arte de governar cuja racionalidade tem
princípios e seu domínio específico de aplicação no Estado. A ‘Razão de Estado’ não é o
imperativo a partir do qual se pode ou se deve ‘balançar’ todas as outras regras; [a razão
do Estado] é a nova matriz de racionalidade segundo a qual o príncipe deve exercer sua
soberania governando os homens. Se está longe da virtude soberana da justiça, longe
também desta virtude que é aquela do herói de Maquiavel” (Foucault, 1974-82, p. 446).
Por fim, deve-se observar que este nosso trabalho procurou apenas alinhavar algumas
considerações sobre as problematizações foucaultianas a respeito do poder. O tema merece
uma atenção e tratamento mais cuidadoso.
Fica aberto o caminho para uma pesquisa mais minudente e o convite à leitura de um dos
pensadores mais instigantes de nosso século.

Recebido para publicação em junho/1995


ABSTRACT: To understand the way social relations are structured, in particular the
unequal relations of obedience and domination which justify both autority and the nature of
of political obligation, has been one of the constant efforts of human thought. In this paper
we sustain that Michel Foucault has offered a decisive contribuition to a better
understanding of these social phenomena. In the first part, we examine some characteristics
of Foucault’s concept of power. In the second, we followed the transformations which this
concept suffered along the seventies in his work.
KEYWORDS: Foucault, concept of power, bio-power, governmentability.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Deleuze, Gilles. (1986) Foucault. Paris, Les Éditions de Minuit.
Escobar, Carlos Henrique de (org). (1984) Dossier. Rio de Janeiro, Ed. Taurus.
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Minuit.
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______. (1979a) Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Ed. Graal.
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______. (1980a) L’ impossible prison, recherches sur le systeme pénitentiaire au XIX
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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
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______. (1982) Subject and Power. In: Dreyfuss, H. & Rabinow P. Beyond structuralism
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Marietti, Angèle K. (1977) Introdução ao pensamento de Michel Foucault. Rio de Janeiro,
Zahar Editores.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Michel Foucault e a teoria do poder


JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE
Professor do Departamento de Ciência Política da
FFLCH-USP

RESUMO: Mais do que a teoria do poder, Foucault propõe regras ou cautelas


metodológicas. Diferentemente das concepções correntes, Foucault pretende explicar o
poder sem o rei como sua fonte e natureza. Depois de comparar diferentes concepções
correntes de poder, mostrando sua dependência da noção de um soberano, define-se o poder
em Foucault como uma relação assimétrica que institui a autoridade e a obediência, e não
como um objeto preexistente em um soberano, que o usa para dominar seus súditos. Para
ilustrar o conceito foucaultiano de poder, comenta-se uma situação atual da política
nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, teoria do poder, autoridade, poder como relação
assimétrica.

Seria, certamente, excessivo falar em teoria do poder tratando-se de Foucault. Ele rejeitava
a idéia de Teoria com T maiúsculo, à qual atribuía uma função de poder muito mais do que
de instrumento de conhecimento. Quando trata de maneira mais sistemática do poder,
Foucault prefere falar em “precauções metodológicas” , “regras” , etc., e nunca em teoria.
Portanto, quando eu falar em teoria do poder em Foucault, trata-se na verdade de um
conjunto de regras metodológicas a partir das quais se pode formular hipóteses, e que
configuram muito mais um modo de abordagem e um objetivo de pesquisa do que uma
teoria completa. Embora esteja, de muitos pontos de vista, nas antípodas do chamado
empirismo anglo-saxão, Michel Foucault nos legou muito mais um “programa de pesquisa”
no sentido americano da expressão, do que uma teoria ou um paradigma no sentido europeu
e particularmente francês.
Creio que uma boa maneira de abordar o enfoque foucaultiano do poder é uma espécie de
bravata intelectual do Iº volume da sua História da sexualidade; A vontade de Saber, onde
ele se propõe como missão construir uma concepção do desejo sem a lei e do poder sem o
rei. Trata-se de uma concepção totalmente revolucionária do poder que, embora seja
coerente com uma parte significativa da tradição do pensamento político ocidental – refiro-
me especificamente à tradição maquiaveliana, mas não pretendo desenvolver este ponto –
rompe não apenas com as características habitualmente atribuídas ao poder, seus efeitos e
modos de funcionamento, mas essencialmente com a maneira como concebemos sua
natureza.
Façamos um exercício para pensar num poder sem o rei, isto é, sem pressupor que o poder
emana de uma fonte que o detém e pode deixá-lo fluir. Tentemos pensar no poder sem uma
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

pessoa, autoridade, ou instituição que não apenas o possui mas determina sua natureza, seus
limites e seu modo de funcionamento.
Inútil: tudo o que podemos pensar é em recursos de poder, que só são considerados como
tais quando podem ser utilizados por pessoas, grupos, entidades, instituições; tudo o que
podemos pensar é em prerrogativas atribuídas a autoridades ou entidades; tudo o que
podemos pensar é em coisas possuídas por uns e das quais outros são despossuídos, é
impossível pensar o poder sem o rei – ou sem súditos, o que vem a dar no mesmo – na
nossa concepção corrente, que Foucault chama de concepção do poder-soberania.
Experimentemos algumas definições simples e mais correntes do poder. “O poder é a
capacidade que tem o Estado para obter obediência dos seus súditos” . É impossível dar
sentido a esta frase sem colocar alguém na posição do rei, no caso, o Estado. Podemos
substituir Estado por autoridade, líder, instituição, mas sempre o poder será alguma coisa
que pertence – ou é possuída – por alguma entidade.
Também podemos substituir capacidade de obter obediência por capacidade de submeter,
por prerrogativa de impor, por probabilidade de influenciar o comportamento – esta última
uma definição mais sociológica, weberiana – é inútil: sempre se supõe um rei, uma entidade
que submete, que impõe, que influencia.
Vejamos esta definição de poder nacional da Escola Superior de Guerra: “Poder Nacional é
a capacidade de que a nação, decidida, dispõe para conquistar e manter seus objetivos” . A
entidade que aqui substitui o rei é a nação, e não por acaso, porque o Estado nacional é o
substituto do rei absolutista, o modelo mais acabado do poder-soberania segundo Foucault.
A frase é rigorosamente equivalente à anterior, embora contenha um ator e um objeto, e não
dois atores. Aqui, poder é a capacidade de A para obter X, enquanto na frase anterior poder
é a capacidade de A para agir sobre B, ou para obter X de B.
Podemos substituir poder nacional e nação por poder pessoal e pessoa, e teremos, poder
pessoal é a capacidade de que a pessoa, decidida, dispõe para obter seus objetivos, ou
para obter algo de outra pessoa, entidade ou grupo de pessoas.
Na concepção corrente do poder o rei (A) sempre estará presente, assim como seu
simétrico, o súdito (B). E poder sempre será um objeto que passa do rei para o súdito ou
que o rei retira do súdito.
Passemos a uma noção mais sofisticada: o poder é o conjunto de recursos, de natureza
psicológica, material ou econômica, existentes na sociedade, que os indivíduos põem a
serviço de uma autoridade suprema, para manter a ordem pública. É esta a noção que
corresponde ao conceito de poder em Thomas Hobbes, uma das vertentes do pensamento
político moderno. Aqui, de novo, aparecem os mesmos elementos: o poder é um objeto (um
conjunto de recursos) possuído pelo rei (a autoridade suprema) e oferecido por seus súditos
(os indivíduos da sociedade). Hobbes se encarrega de dar concretude à entidade que detém
o poder chamando-a Leviatã.
Curiosamente, mas não por acaso, o Leviatã é freqüentemente retratado na figura de um rei.
Uma imagem muito conhecida retrata o Leviatã como um rei guerreiro, cujo corpo é
composto por uma infinidade de corpos de seus súditos. A significação é clara: o poder do
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rei é a soma dos poderes de seus simétricos súditos. Mais do que a soma, a incorporação de
seus súditos, no sentido literal da palavra. O poder é uma espécie de corpo místico do rei.
O que dá sentido à frase é a incorporação, incorporação dos recursos dos indivíduos no
poder do rei. Para que haja incorporação é preciso que os indivíduos, ou seus corpos, para
manter a metáfora do Leviatã, sejam previamente investidos de poder (embora sob a forma,
ainda, de recursos materiais e espirituais), e que o rei esteja disponível para ser investido de
poder. Alguma pessoa ou entidade deve existir previamente, embora destituída de poder e
de autoridade, isto é, da condição de rei.
Fim do exercício: está suficientemente ilustrado o fato de que não é possível, nas
concepções dominantes de poder no pensamento político moderno, pensar o poder sem
aqueles que o possuem.
Isto se deve a que a concepção moderna do poder é uma representação do funcionamento
do poder na transição para o poder moderno. É uma representação do poder-soberania na
acepção de Foucault, isto é, do modo de funcionamento do poder na transição das
monarquias clássicas para as monarquias absolutas, na formação do Estado moderno.
O absolutismo se caracterizou, entre outras coisas, por uma grande concentração de
recursos de poder na monarquia. O modo de funcionamento do poder se caracterizava por
um processo de contração de recursos e forças no centro, para distender-se em direção a
alvos periféricos, seguido de nova contração em direção ao centro.
Tratava-se de um poder de ação intermitente, sempre visando esmagar ou aniquilar seu
alvo. Juntar e recolher recursos, distender e aniquilar o objetivo, recolher e juntar novos
recursos, eis a seqüência lógica do funcionamento do poder-soberania.
Daí a imagem do poder com três componentes: o centro que concentra poder, o rei; a
periferia sobre a qual se desencadeia o poder, o súdito; a força material que se concentra e
se desencadeia, o poder propriamente dito. Todos preexistindo em sua própria essência: o
poder estava lá, só não estava concentrado; o rei estava lá, só não concentrava poder; o alvo
estava lá, só não estava submetido ao poder-soberania.
Só que essa representação nos faz esquecer que o rei estava lá, mas não o monarca
absoluto. A monarquia absoluta é o resultado, não o pressuposto desse processo. O súdito
estava lá, mas não como súdito submetido ao poder monárquico, e sim como vassalo de
soberanias competitivas e sobrepostas, e sim como sujeito de foros e privilégios. O poder
estava lá, mas sua concentração mesma nas mãos do monarca muda-lhe a natureza e o
processo de funcionamento.
Em suma, o poder-soberania, esse aglomerado de recursos que se concentra e se
desencadeia para esmagar seu alvo não é uma invenção do monarca absoluto. A monarquia
absoluta é que é uma invenção de um poder que funciona concentrando-se para submeter
seus súditos.
Se reconsiderarmos agora a noção hobbesiana de poder, base de toda a concepção moderna,
tanto absolutista como democrática de poder, poderemos encará-la com outros olhos. Agora
á mais factível dar-lhe significado sem o par simétrico reis-súditos. Se retirarmos os atores
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de cena, isto é, tanto o corpo majestático do rei, quanto a infinidade de corpos que lhe dão
corpo, o que fica?
Fica o conjunto de recursos de natureza psicológica, material e econômica existentes na
sociedade, (que os indivíduos) põem a serviço (de uma autoridade suprema) para manter a
ordem política.
O que temos aqui? Primeiro, o conjunto de recursos existentes na sociedade quer dizer tudo
e não quer dizer nada. O poder pode ser tudo e qualquer coisa. Não são os recursos de
poder que o definem. O poder não são coisas ou objetos. O que chamamos de recursos ou
instrumentos de poder só dão lugar ao fenômeno do poder quando são postos a serviço de
uma autoridade suprema, para manter a ordem política.
Segundo, além de objetos, que podem ser tudo e nada, temos uma relação e uma meta. A
relação é a que estabelece, de um lado, indivíduos, de outro, autoridade: pôr a serviço,
conferir, erigir, legitimar, alienar.
Quanto à meta, isto é, manter a ordem política, prefiro falar em meta a objetivo, para evitar
qualquer conotação teleológica e, portanto, a noção de uma consciência desejante
previamente existente. Eu diria que essa meta define a natureza da relação de poder.
Pois bem, para pensar o poder sem o rei, terei que pensá-lo como uma relação assimétrica
(pôr a serviço de, conferir, alienar a, dar legitimidade, prestar obediência a, etc.) que institui
dois pólos, um que exerce, outro que é objeto do poder. A natureza dessa relação
assimétrica é sua subordinação à manutenção da ordem política.
Creio que isto nos permite compreender agora a teoria do poder em Foucault. Ele opõe uma
concepção do poder como um conjunto de forças materiais que se concentra no centro da
sociedade, e se irradia de forma intermitente em direção à periferia, mediante espasmos que
se desencadeiam para submeter aos bons súditos e esmagar os insubmissos; que funciona
negativamente, por confisco e por coleta; a uma concepção do poder como relação
assimétrica entre indivíduos, entre grupos, que se irradia da periferia para o centro, de baixo
para cima, que se exerce permanentemente, dando sustentação à autoridade, e que funciona
positivamente, dinamizando, incrementando as forças e recursos existentes.
Assim, em vez de coisas, o poder é um conjunto de relações; em vez de derivar de uma
superioridade, o poder produz a assimetria; em vez de se exercer de forma intermitente, ele
se exerce permanentemente; em vez de agir de cima para baixo, submetendo, ele se irradia
de baixo para cima, sustentando as instâncias de autoridade; em vez de esmagar e confiscar,
ele incentiva e faz produzir.
Agora que estamos familiarizados com a teoria do poder em Foucault ou, se quiserem, com
as regras e precauções metodológicas propostas por Foucault para estudar o poder,
podemos dedicar estes minutos finais a um pouco de masturbação sociológica. Perdoem-me
a expressão, mas é uma homenagem a nossos governantes, uma vez o Presidente domina a
Ciência Política, mas o governo prefere agir por instinto. Quanto a mim, prefiro
infinitamente masturbações sociológicas sobre as relações de poder, às ruminações de senso
comum sobre a “vontade política” .
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Se estamos de acordo sobre a possibilidade de pensar o poder sem o rei, como propôs
Foucault, não há lugar, nas relações de poder, para a vontade política. Sem o rei para
expressar e exercer a vontade como sujeito, sem os súditos para cumpri-la como objeto, o
poder não conhece a vontade de quem quer que seja.
Se o poder se sustenta de baixo para cima, ao contrário de se originar de cima para baixo,
quanto mais alto na hierarquia de poder, menor a autonomia do indivíduo para alterar as
redes de poder na sociedade. Nesse sentido, a ação individual do chefe de governo é menos
decisiva do que a do mestre-escola. Foi por isso que todos os Estados modernos forjaram
sua nação através da instrução pública, e não pela vontade do rei.
Pensar que a vontade pode apertar um botão em Brasília e haverá qualquer modificação,
para melhor ou para pior na ponta do balcão, nos confins do Amapá, é de uma ingenuidade
tal, que espanta. Para que deixe de faltar mercurocromo num pronto-socorro, para que se
distribuam boas merendas, boas cartilhas e um pouco de instrução numa sala de aula, são
mais importantes as relações de poder entre o pessoal mais humilde dessas agências
governamentais e a clientela local do que os devaneios de qualquer ministro.
A capacidade de atuação, positiva ou negativa de um chefe de governo depende de sua
relação com as lideranças políticas; estas, por sua vez, têm seu raio de ação traçado de
acordo com as relações entre partidos e lideranças, que dependem, por sua vez, do sistema
eleitoral. Os acordos do governo com as lideranças deixam de se cumprir não apenas
porque as lideranças prefiram trair, mas porque os partidos não as seguem. E os partidos
não seguem as lideranças porque seria irracional fazê-lo, já que o sistema eleitoral não pune
a irresponsabilidade política, e assim é porque o sistema eleitoral obriga o eleitor a dar um
cheque em branco ao eleito.
Portanto, se fosse eu, estaria menos preocupado em ruminar sobre a vontade política dos
governantes, do que com a relação irresponsável que o sistema eleitoral estabelece entre
eleitores e eleitos. Porque se o resultado do voto é irrelevante, o eleitor também se torna
irresponsável. Já que o voto é um cheque em branco, é melhor limitar o prejuízo, e votar no
dentista do bairro. Pelo menos é certo que não fará mal nenhum ao País, porque sequer será
eleito.
Nosso passaporte para o mundo das democracias estáveis, da inflação baixa, dos governos
confiáveis, até agora só tem um visto de turismo que é o Plano Real. O visto definitivo só
virá quando começarmos a mexer no voto e fizermos dele, não um cheque em branco, mas
um vínculo de poder.
Recebido para publicação em abril/1995

ABSTRACT: Power is defined in Michel Foucault's conceptions as a set of


methodological cautions rather than a complete theory. As oposed to current modern
conceptions, Foucault deals with a definition of power that does not include “the king” as a
source and a center from where power is supposed to flow. After comparing different
modern current definitions of power, emphasizing their need for the impersonation of a
“king” to explain power, Foucault's definition is presented as an assymetrical relationship.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Rather than two preexisting actors, one full of power and other powerless, which would
explain authority and obedience, that relantionship is presented as resulting in the existence
of two political actors, a “sovereign” and subject. As an illustration, a current situation in
Brazilian politics is commented in Foucault's terme.
KEYWORDS: Foucault, theory of power, authority, power as an asymmetric relation
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Espaço-tempo e poder-saber
Uma nova epistéme? (Foucault e Bachelard)
ELYANA BARBOSA
Professora de UCSAL e da FAFI-UFBA

RESUMO: Esta comunicação objetiva interrogar se as transformções ocorridas na Física (a


Teoria da Relatividade de Einstein e a Mecânica Ondulatória – a Microfísica) conduziram o
saber (a ciência e a filosofia) a um novo olhar sobre o mundo: a contemporaneidade. A
questão central deste trabalho é mostrar a relação entre o comportamento dos elementos
infinitesimais, objeto da Mecânica Ondulatória, e a nova concepção sobre o poder em
Foucault. A partir dessa relação, permanece a indagação sobre as transformações ocorridas
no campo do saber e se elas, conjuntamente, conduziram a uma nova epistéme.
PALAVRAS-CHAVE: relativização, microfísica, poder, a revolução einsteiniana,
verificação, Foucault, Bachelard.
O objetivo desta comunicação é indagar se a concepção de tempo da relatividade
einsteiniana e o comportamento dos elementosinfinitesimais (a Microfísica) conduziram o
saber para uma nova epistéme. Trataremos de Bachelard como um “instaurador de
discursividade”, ou, melhor dizendo, procuraremos apontar um certo número de analogias
entre o pensamento de Bachelard e o de Foucault; mostrar como Bachelard abriu espaço
para outras análises. Partilhando dos mesmos pressupostos, do mesmo instrumental de
análise, do mesmo discurso, encontramos: A. Koyré, G. Canguilhem, L. Althusser, M.
Foucault, P. Bourdieu e G. Deleuze.
Seguindo uma regra foucaultiana: “Trata-se de retirar do sujeito (ou do seu substituto) o
papel de fundamento originário e de o analisar como uma função variável e complexa do
discurso” (Foucault, 1969, p. 70). Não importa quem fala, o importante é perguntar “como
é que um saber se constitui”.
Bachelard, diante das revoluções científicas do começo do século (Teoria da Relatividade,
de Einstein e Mecânica Ondulatória, de Louis de Brooglie), percebe que elas trouxeram
para o campo do saber, novidades que modificaram completamente a história do
pensamento ocidental. Como conseqüência destas revoluções, o saber passou por
transformações significativas, e, como fundamento destas transformações, está
principalmente a concepção de tempo da relatividade.
Canguilhem segue a orientação de Bachelard, “mas concentrando-se nas ciências da vida e
deixando de lado a Física”, como afirma Eribon. Conforme esse biógrafo, “Foucault, em
seu texto de 1977, demonstra, que faz parte dessa linhagem de filósofos encarnada por
Bachelard, Cavailles, Koyré, que se opõe, fundamentalmente e desde sempre, à linhagem
adversa da filosofia da experiência encarnada por Sartre e Merleau-Ponty, pelos
existencialistas e fenomenologistas” (Eribon, 1990). Hoje, já distanciados da década de 60,
com toda essa discussão sobre a Crise de Paradigmas na Sociologia, com uma Antropologia
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

que se denomina “pós-moderna”, com a discussão sobre a Modernidade e a Pós-


modernidade em Filosofia instaurada por Habermas no “Discurso Filosófico da
Modernidade” (1985), é possível percebermos por que Foucault foi tão mal interpretado e
tão mal compreendido na sua metodologia histórica – a questão da descontinuidade – e no
seu conceito de epistéme.
A História das ciências aponta, no seu desenvolvimento, para uma certa autonomia,
remetendo para um campo de pensamento, na medida em que cada época mostra o que se
pode e o que não se pode pensar. Toda ciência se desenvolve no âmbito de uma epistéme, e
isto leva Foucault a pensar num a priori histórico no mesmo sentido do a priori kantiano,
independente da experiência, ou seja, um campo de pensamento autônomo. Tanto
Bachelard como Foucault mostram como o pensamento, na sua relação com a verdade, tem
também uma história. Uma história do pensamento enquanto pensamento da verdade,
verdade como processo de objetivação. Objetivação significa problematização, e isso não
quer dizer representação de um objeto preexistente, nem criações através de um discurso de
objetos que não existem. Problematização significa dizer: “o conjunto das práticas
discursivas ou não discursivas que aparecem num ‘jogo do verdadeiro e do falso’ e o
constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma de uma reflexão moral, do
conhecimento científico, de análise política, etc.)” (Foucault, 1984).
M. Foucault é um pensador fortemente influenciado pelo “novo espírito científico”; percebe
que é no campo da Microfísica que acontecem as maiores novidades – Bachelard afirma
que “é no domínio da microfísica onde se forma o novo espírito científico” (1934, p. 66).
É preciso destacar que as mudanças, as revoluções, não são tão bruscas; às vezes, são
necessários alguns séculos para que o homem possa substituir o quadro de referências do
seu pensamento (cf. Koyré, 1957, p. 13).
Do mesmo modo que o século XVII sofreu, e realizou, uma radical revolução espiritual, o
pensamento contemporâneo, o século XX, está a indicar esta transformação. As análises
efetuadas por Koyré para mostrar ser impossível separar o aspecto filosófico do científico
nos processos de transformação (os “saberes” se mostram interdependentes e estreitamente
unidos) nos levam a perceber esta mesma relação no pensamento contemporâneo e a poder
apontar para uma nova concepção de poder, na medida em que há um novo campo
epistêmico que possibilita o estabelecimento desta relação.
Koyré, ao mostrar como o século XVII provocou a destruição do Cosmos (mudança no
quadro de referências do pensamento), aponta “o desaparecimento dos conceitos válidos,
filosófica e cientificamente, da concepção do mundo como um todo finito, fechado e
ordenado hie-rarquicamente e a sua substituição por um universo indefinido e até mesmo
infinito, que é mantido coeso pela identidade de seus componentes e leis fundamentais, e no
qual todos esses componentes são colocados no mesmo nível de ser” (Koyré, 1957, p. 14).
Esta mesma idéia está em Foucault, ao falar de uma epistéme, mostrando uma relação entre
os saberes: “Em uma cultura e em dado momento, só existe uma epistéme, que define as
condições de possibilidade de todo saber” (Foucault, 1966, p. 179). A epistéme remete a um
quadro referencial de pensamento, como aponta Koyré, ou seja, há um campo de
pensamento que mostra como os saberes estão relacionados, por mais diferentes e
diversificados que pareçam ser. Para Foucault, a epistéme de uma época não é a “soma de
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

seus conhecimentos”, mas indica o “afastamento, as distâncias, as oposições, as diferenças,


as relações de seus múltiplos discursos científicos” (Foucault, 1972, p. 60). Este campo
“indefinidamente descritível de relações”, este campo de saber possível de uma dada época,
possibilita apontar para a relação entre a concepção da Microfísica e a nova abordagem
sobre o poder realizada por Foucault.
As análises sobre o poder, de um modo geral, apontam o Estado como o locus onde estas
podem ser efetuadas. Foucault rompe com esta perspectiva analítica e vai mostrar como o
poder é constituído historicamente. Para isso, trabalha alguns conceitos, principalmente
apontando des-continuidades e mostrando como a história das ciências é, essencialmente,
“a história das ligações racionais do saber”. Por isso, mesmo se desenvolvendo dentro de
uma epistéme, as ciências não fazem parte da grande história, mas são tipos de histórias
que, através da análise de suas práticas, levam-nos a perceber mudanças e transformações –
que caracterizam os diferentes discursos (a história das Matemáticas não obedece ao
mesmo modelo da história da Biologia, da Física, da Química, etc). Para Foucault, a
epistéme não é um estágio geral da razão, é uma “relação complexa de decolagens
sucessivas” (Foucault, 1972, p. 61).
O objetivo deste trabalho é mostrar como Foucault chega à idéia de uma microfísica do
poder, e, conseqüentemente, como a contemporaneidade é formada por signos diferentes
dos vigentes nos séculos XVII, XVIII e XIX, tentando responder a indagação inicial, o
pensamento contemporâneo inicia uma nova epistéme?
Foucault, em As palavras e as coisas mostra como há uma relação entre as palavras, as
coisas e a sua ordem (1966, p. 147) apontando para um campo de pensamento onde é
possível perceber esta relação. Ao falar da representação do signo na época clássica, ele
mostra como a metade do século XVII foi marcada por uma mudança nos signos: “O signo
só surge a partir do momento em que é conhecida a possibilidade de uma relação de
substituição entre dois elementos já conhecidos” (Foucault, 1966, p. 87).
Para Foucault, o campo epistemológico indica a relação entre os saberes – a Economia, a
Biologia, a Filosofia possuem uma identidade: todos se relacionam em um único campo. O
pensamento contemporâneo começa a esboçar essa identidade referida por Foucault, na
medida em que surge uma nova concepção de tempo.
O primeiro pensador a utilizar a metodologia da descontinuidade é Bachelard. Ao analisar a
história da ciência Física, ele percebe que, entre os Paradigmas de Galileu, Newton e
Einstein, não há passagem; são momentos descontínuos. Entretanto essa percepção só é
possível através da análise dos discursos científicos, dos significados dos conceitos pela sua
atualidade, dentro de um determinado momento histórico, numa idéia completamente nova
de história, uma história que nunca se esgota, uma história sempre refletida, sempre
recomeçada, sempre reescrita (Bachelard, 1951, p. 146). Koyré fala dessa mesma idéia,
quando diz que “O historiador projeta na história os interesses e a escala de valores de seu
tempo: e, a partir das idéias de seu tempo – e das suas próprias -, empreende sua
reconstrução. Justamente por isso é que a história se renova, e por isso nada muda tão
depressa como o imutável passado” (Koyré, 1973, p. 379).
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Gaston Bachelard faz referência às modificações conceituais ocorridas com a fusão espaço-
tempo e mostra como tudo está contra esta idéia – a imaginação, os sentidos, as
representações: “só vivemos o tempo esquecendo o espaço, só entendemos o espaço
suspendendo o curso do tempo, mas a fusão espaço-tempo é uma relação total...”
(Bachelard, 1929, p. 99).
A substituição da idéia de um espaço absoluto pela fusão espaço-tempo vai permitir a
Foucault pensar no poder-saber, fora de um locus. É esta idéia que está presente na
Genealogia. Deleuze chama a atenção para essa nova abordagem sobre o poder quando ao
interpretar Vigiar e punir, examina a visão do poder no século XVIII. O locus leva a se
conceber um “‘repartir no espaço’ (o que se traduz como enclausurar, esquadrilhar,
arrumar, pôr em série...), um ordenar no tempo (subdividir o tempo, programar o ato,
decompor o gesto), um compor no espaço-tempo (todas as maneiras de constituir uma força
produtiva cujo efeito deve ser superior ao somatório das forças elementares que o
compõem)” (Deleuze, 1992, p. 100).
A perda do locus que aparece na nova concepção de tempo-espaço, conduz à possibilidade
de se pensar no poder-saber como relacionamento de forças, como mobilizador de matérias
e funções não estratificadas. Agora é possível pensar no poder como relacionamentos que
não emanam de um ponto central, mas como um “campo de forças” e, por isso, não é
“localizável”. A sua capacidade de se mobilizar “de um ponto a outro, num campo de
forças, marcando inflexões, recuos, retornos, rodopios, mudanças de direção, resistências”
(Deleuze, 1992, p. 103), permite pensar a questão do poder a partir de uma nova
racionalidade.
Para argumentar logicamente e fundamentar as afirmações precedentes, é preciso
seguirmos uma linha de raciocínio que poderá nos levar a aceitar a afirmação de que a
periodização da historia geral proposta por Foucault delimita conjuntos sincrônicos,
reunindo os saberes na figura de sistemas unitários (cf. Foucault, 1987, p. 196). Perceber
que existe relação entre as diferentes séries, leva-nos a identificar certos valores que, em
determinado momento histórico, tornam-se obstáculos para a aceitação de uma idéia nova
e, em outros, até permitem que idéias diferentes apareçam. Vamos trabalhar a noção de
determinismo e de indeterminismo na Física, seguindo os passos de Bachelard. Para falar
no determinismo, precisamos retomar a história da Astronomia. A Matemática astronômica
conduz a geometria e o número a se associarem estreitamente ao pensamento experimental.
Mais recentemente, a astronomia newtoniana passa a conferir rigor às idéias kantianas das
formas a priori de espaço e de tempo. Idéias relacionadas são impedimento para o
surgimento de outras, e, por isso, que só tardiamente – 1926 – aparece a idéia de
indeterminismo. O determinismo, ligado ao pensamento astronômico, mostra o caráter do
fenômeno como a forma a priori do conhecimento objetivo. Isso, de uma certa maneira,
esconde os problemas relativos às perturbações, aos erros, às incertezas no estudo dos
fenômenos físicos (cf. Bachelard, 1934, p. 94). Pensar o determinismo impediu, por muito
tempo, que fossem admitidas certas idéias presentes no indeterminismo. Segundo
Bachelard, o determinismo é uma conseqüência da simplicidade da geometrização. O
sentimento do determinado, é o sentimento da ordem fundamental, o repouso que leva a
acreditar na simetria, na segurança do saber. Só quando se percebe que o determinismo é
derivado do esforço para racionalizar o real é que se abre um espaço para a idéia de
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deformação e de perturbação. Quando surge a teoria da relatividade, mostrando que o


tempo é inseparável do espaço, passa-se a contrariar a idéia, presente no determinismo
físico, de que afirmar o estado do universo num dado momento determina completamente
sua evolução posterior. As três dimensões do espaço-tempo mostram que falar no estado do
universo num dado instante não tem, portanto, um sentido absoluto, possibilitando, com
isso, o aparecimento da idéia de indeterminado.
Bachelard considera a revolução einsteiniana mais significativa que a revolução
copernicana, operada pela filosofia kantiana. Para ele, a partir desta nova concepção de
tempo, a ciência inaugura um verdadeiro “abalo nos conceitos”. Agora, a Terra, o Mundo,
as coisas se prendem a outra estrutura, e se inicia uma explicação sobre bases novas. Os
conceitos que provocam uma verdadeira transmutação dos valores racionais são: o espaço
absoluto, o tempo absoluto, a velocidade absoluta. O universo da espacialidade une três
séculos de pensamentos racionais. Uma só experiência do século XX “transformou” os três
séculos de pensamentos racionais. A relatividade permitiu que se pudesse pensar na
experiência e na filosofia da teoria física (que rompe com a racionalidade vigente) como
fortemente justapostas. A possibilidade de pensar a experiência e a racionalidade como
coisas justapostas acaba o dilema presente na idéia de espaço absoluto – pensar ou através
de uma realidade absoluta, ou sobre uma intuição absoluta à maneira kantiana. Para
Bachelard, ter que pensar o absoluto através de uma realidade ou de uma intuição a priori
é algo estranho. Experiência e razão não podem se excluir. A relatividade permite uma
filosofia que é, ao mesmo tempo, experimental e racional. Bachelard afirma que o
criticismo relativista é mais revolucionário, mais genial que o criticismo kantiano. E cita
uma declaração de Einstein: “a posição do espaço absoluto leva à afirmação de uma espécie
de materialização, de imobilidade que está enraizada em um sujeito incondicionado no
centro de todas as relações condicionantes, eis aí uma posição sem provas. É preciso –
revolução copernicana ao nível de um único conceito – formular a relatividade essencial da
intuição de localização e da experiência de localização, o que destrói, de uma só vez, dois
absolutos: 1) a intuição de um observador não tem uma virtude absoluta; 2) a extensão de
um mundo objetivo não possui uma virtude absoluta” (Bachelard, 1957, p. 124).
As novas intuições do tempo exigem uma longa preparação. Elas devem lutar contra a
clareza cega das intuições comuns, contra o criticismo kantiano. A relatividade coloca em
dúvida o caráter absoluto da noção de simultaneidade. Isto provoca um choque nos
filósofos racionalistas e nas filosofias realistas. A relatividade permite assumir o
pensamento científico moderno, substituindo a afirmação de Schopenhauer “o mundo é
minha representação” por “o mundo é minha verificação” (Bachelard, 1957, p. 126).
A mudança da representação pela verificação opera uma transformação radical. O que está
em jogo são séculos de racionalismo ou realismo em cujo pensamento o conceito de espaço
e tempo estão enraizados. Espaço e tempo fazem parte da realidade ou do entendimento.
Não há real (res) que não esteja situado. Situação e localização são idéias enraizadas no
pensamento ocidental – como diz Bachelard, obstáculos epistemológicos que é preciso
ultrapassar para compreender o novo espírito científico.
Do mesmo modo que a intuição do espaço é uma condição sine qua non da experiência do
mundo exterior, o tempo é a forma a priori da sensibilidade interna para os kantianos. No
mesmo estilo filosófico, se se quer julgar o funcionamento da noção espaço-tempo na
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ciência relativista é preciso operar uma transformação e mostrar como “o complexo


algébrico espaço-tempo” é uma condição sine qua non da validade geral dos conhecimentos
eletromagnéticos (Bachelard, 1957, p. 128).
A verificação substitui a representação. As teorias de Einstein foram construídas antes dos
experimentos empíricos. As coisas possuem um movimento próprio. Pensar os discursos,
num campo epistemológico que possui uma temporalidade diferente da temporalidade da
experiência, leva a perceber a relação entre as palavras, as coisas e a sua ordem. O mundo
como verificação, ao contrário do mundo como representação, considera os aspectos não-
conscientes refletidos na linguagem. Como diz Foucault, “o papel do conceito de
significação é mostrar como uma linguagem, mesmo que não se trate de um discurso
explícito, e mesmo que não se desenrole para uma consciência, pode, em geral, ser dada à
representação” (Foucault, 1966, p. 470). Esta idéia de representação das coisas, que se
explicita através das normas, das leis, das proibições, dos interditos, que se refere a um
conjunto de significantes, é diferente da idéia de representação kantiana, por isso não
importa o autor do discurso, mas o que ele diz – aqui há uma inversão total, pois, nesta
idéia, o sujeito, autor do discurso, desaparece, não é a interpretação do autor que está em
jogo; mas sim, a possibilidade de perceber como, em determinados momentos históricos, há
um campo epistemológico, uma epistéme, como diria Foucault, onde é possível perceber
uma certa relação entre os saberes, por mais diversificados que sejam. É possível, então,
perceber tipos diferentes de transformação. Ao falar em duas medidas de tempo, Foucault
se refere a uma historicidade própria das coisas e uma outra temporalidade que diz respeito
às ligações racionais, através das quais o homem se apropria desta historicidade. Ao chamar
a atenção para uma fugacidade, própria dos fenômenos, quer naturais, quer sociais,
Foucault se reporta ainda a outra temporalidade, a do tempo suspenso, que constitui uma
normatividade de certos pensamentos racionais e implica, também, em uma mudança de
configuração1.
A relação entre os signos, a epistéme que aparece com a teoria da relatividade, reclama uma
nova racionalidade. A relatividade não pode aparecer fechada dentro de um sistema
filosófico, como o sistema cartesiano, ou mesmo o hegeliano. A perspectiva relativista
exige uma conversão de valores, pois ele contraria os ensinamentos ligados à experiência
dos sentidos, à tradição. A eficiência funcional da teoria da relatividade força a um
rompimento com as idéias de evolução e cumulatividade presentes nos sistemas vigentes.
Pensar a relação entre os signos da relatividade einsteiniana permite compreender a
contemporaneidade. A questão que se coloca, no momento presente, não é mais onde está o
real, mas “Em que direção e por qual organização de pensamento, podemos ter a segurança
de que nos aproximamos do real”? (Bachelard, 1929, p. 203). A relatividade evidencia que
existe uma retificação de idéias e que esta retificação nem sempre é cumulativa, podendo
dar-se por rupturas2.
Do mesmo modo que tempo-espaço estão relacionados, poder-saber possuem a mesma
relação. O campo eletromagnético é inteiramente autônomo, não representa mais estados
mínimos. É constituído de realidades independentes que não podem ser reduzidas a
nenhuma outra e não estão ligadas a nenhum substrato (cf. Bachelard, 1929, p. 217). Na
microfísica do poder, o campo de validade não pode reduzir-se a quem restringe, a quem
proíbe ou a quem obriga, como se fosse uma propriedade, passando a ser encarado por
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Foucault como estratégias, disposições, manobras, táticas, técnicas de funcionamento


(Foucault, 1975, p. 31). O poder passa por relações, está nas relações, “O que significa que
essas relações aprofundam-se dentro da sociedade, que não se localizam nas relações de
Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir,
ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos componentes, a forma geral da lei ou
do governo” (1975, p. 148). Com isso, Foucault pretende ressaltar que “Não há relação de
poder sem constituição correlativa de um campo de saber, nem de saber que não suponha e
não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (Foucault, 1975, p. 32).
Diz Foucault: “analisar a microfísica do poder supõe, então, que se renuncie – no que se
refere ao poder – a oposição violência-ideologia, a metáfora de propriedade, ao modelo do
contrato ou da conquista; no que se refere ao saber, que se renuncie à oposição do que é
‘interessado’ e ‘desinteressado’, ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito”
(1975, p. 30).
Alguns postulados ainda ligados à epistéme passada levam a pensar o poder como:
“Postulado de propriedade – o poder seria propriedade de uma classe que o teria
conquistado; Postulado de localização – o poder seria poder de Estado; Postulado de
subordinação – o poder encarnado no aparelho de Estado seria subordinado a um modo de
produção, a uma infraestrutura” (Deleuze, 1992, p. 46 ss.). Ora, pensar uma microfísica do
poder é romper com esses postulados, é pensar o poder a partir de uma nova concepção, e
isto é realizado por Foucault na sua Genealogia. É possível pensar o poder como estratégia,
fora de um locus, de uma situação. Esta nova perspectiva passa a ter uma função, pois
acompanha a mudança na epistéme, que ocorre com uma nova concepção de tempo-espaço
e com o corportamento dos elementos infinitesimais da Microfísica.
Deleuze mostra que, em Foucault, o poder não tem essência, o poder é operatório. Ele não é
atributo, mas relacionamento: “a relação de poder é o conjunto dos relacionamentos de
forças, conjunto que não passa menos pelas forças dominadas que pelas dominantes, umas
e outras constituindo singularidades” (Deleuze, 1992).
As idéias de tempo e espaço absolutos vigentes nos séculos XVIII e XIX formavam o
campo epistêmico onde se assentavam grande parte dos postulados, presentes também na
Teoria Marxista e na Fenomenologia, impedindo, portanto, uma outra perspectiva. O
quadro metodológico em que estas teorias se fundamentam – uma que remete ao sujeito
constituinte, outra que remete ao econômico em última instância constitue obstáculo para
uma análise dos discursos, nos quais o sujeito, como protagonista do movimento,
desaparece. Estamos agora diante de uma outra temporalidade, que se movimenta
independente do tempo vivido, ou seja, a história das ligações racionais do saber tem uma
temporalidade própria (Foucault, 1977, p. 7).
A idéia de uma “microfísica do poder” aponta para a irredutibilidade do micro na medida
em que essa análise não pretende problematizar nem os grandes conjuntos, nem os grandes
homens (cf. Deleuze, 1992, p. 104).
Recebido para publicação em abril/1995
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

ABSTRACT: This paper purports to discuss whether the transformations which occurred
in Physics (Einstein’s Theory of Relativity and Wave Mechanics – Microphysics) have lead
knowledge (Science and Philosophy) to acquire a new way of considering the world:
contemporaneity. The central issue proposed is to show the relationship between the
behaviour of infinitesimal elements, which are the object of Wave Mechanics, and the new
concept of power in Foucault. This relation being established, the paper moves on to
inquire as to the transformations which have taken place in the field of knowledge and if
such transformations have jointly lead us to a new epistéme.
KEYWORDS: relativization, microphysics, power, the Einsteinian revolution,
verification, Foucault, Bachelard.

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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

O sujeito em Foucault: estética da


existência ou experimento moral?
JURANDIR FREIRE COSTA
Professor do Instituto de Medicina Social da UFRJ

RESUMO: O artigo discute as objeções levantadas às idéias de Foucault sobre a ética do


sujeito, que levariam a um descompromisso com os valores universais e princípios das
democracias liberais. Discutindo as proposições de Taylor, Hochlitz, Hadot e Rorty, a
resposta de Foucault se construiria a partir de uma mudança radical na imagem do sujeito e
nos modos de vida relacional que, no caso da sexualidade, ao se redescreverem as
categorias, colocaria em questão a atual hierarquia moral das práticas sexuais, com suas
relações fixas de dominação e sujeição.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, sujeito, estética da existência, práticas e papéis sexuais,
homossexualismo, sado-masoquismo.

Os últimos trabalhos de Foucault sobre a ética do sujeito despertaram várias objeções.


Penso em retomar uma delas, procurando analisar os argumentos que a sustentam. A
objeção é a seguinte: Foucault defende a idéia de uma estética da existência voltada para a
auto-perfeição e auto-afirmação do sujeito. Esta estética dispensaria o compromisso com
valores universais ou com os princípios humanitários das democracias liberais. Os críticos
universalistas, entre os quais, Charles Taylor, Rainer Hochlitz e Pierre Hadot, enfatizam o
primeiro aspecto. Alegam que Foucault se auto-engana ou se equivoca. Engana-se quando
assume tacitamente valores universais que desacredita; equivoca-se quando interpreta
erroneamente textos histórico-filosóficos que justificam sua teoria. Richard Rorty,
representante do neo-pragmatismo, chama a atenção para o segundo aspecto, criticando a
insensibilidade de Foucault para com os princípios e ganhos das sociedades liberais.
1. A crítica universalista
Foucault, diz Taylor, admite, com Nietzsche, que “não existe uma ordem da vida humana,
ou de nossa maneira de ser, ou da natureza humana à qual possamos nos referir para julgar
ou avaliar os modos de vida. Existem apenas diferentes ordens impostas pelos homens ao
caos primitivo, segundo sua vontade de potência” (Taylor, 1989, p. 113). Esta tese, para o
autor, se auto-refuta nos dois postulados centrais, o relativismo e a onipresença do poder.
Se Foucault aceita que é “impossível fazer um julgamento sobre as diferentes formas de
vida”- tese relativista – e se aceita que todas formas de vida “colocam em jogo uma
imposição de poder” (p. 113), como justificar, diz Taylor, suas opções éticas? . Por que
considerar a dominação e a sujeição como coisas más? Por que não se limitar meramente a
constatar a vigência deste regime de ordem, sem entrar em considerações valorativas? Das
duas uma: ou Foucault enuncia coisas sem sentido ou utiliza implicitamente uma moral
cujos pressupostos desconhece ou tenta esconder.
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Para Taylor, o segundo pólo da alternativa é o verdadeiro. Foucault não traz à superfície os
fundamentos morais responsáveis por suas escolhas teóricas. Combater o poder, a
dominação e a sujeição exigem a contrapartida da liberdade de recriar novos modos de
subjetividade. Mas, se isto é verdadeiro, então, existem ou não valores universais na teoria
foucaultiana? Pressupor que a liberdade de auto-criação é melhor do que a dominação e a
sujeição, implica ou não na admissão de noções morais universalmente válidas? Taylor vai
além. Afirma que Foucault quer situar-se no lugar metafísico de crítico atemporal da
cultura. Isto, porém, choca-se com suas intenções genealógicas. Não se pode “adotar o
ponto de vista de um observador completamente estrangeiro, como se estivesse em Sirius
ou como se fosse uma alma no mito platônico da caverna: a mim de decidir se quero ser um
chinês da dinastia Song, um sujeito do Hamurabi, na Babilônia, ou um americano do século
vinte” (Taylor, 1989, p. 118). “Sem uma identidade prévia, continua Taylor, ninguém
poderia sequer pensar em escolher” (p. 118).
Foucault, portanto, ilude-se, imaginando que é um zero identitário, flutuando acima da
história ou da cultura. Sem a idéia de “vontade” como algo produzido por nossa autonomia
“interior”, sem os valores do humanitarismo moderno, como o desejo de preservar a vida,
de satisfazer as necessidades do homem e de aliviar seus sofrimentos, sem a idéia de
satisfação emotiva ou a de que “nossos sentimentos são uma das chaves para uma vida de
qualidade”, enfim, sem a preocupação com a “vida ordinária”, e não com a contemplação,
as virtudes cívicas, a honra de casta, os valores espirituais, etc., das sociedades antigas, será
que Foucault poderia pensar em sua estética da existência ou ética dos prazeres? Taylor
responde pela negativa, concluindo que Foucault é filho da ética ocidental, cuja genealogia
quer fazer e cuja legitimidade quer negar. Uma coisa, argumenta ele, é dizer, por exemplo,
que a burocracia, as práticas disciplinares de sujeição, a importância desmesurada do sexo
no Ocidente, etc., são itens indesejáveis na constituição de nossas identidades e
moralidades. Outra coisa é negar a validade do quadro ético geral que permitiu a
emergência de tais fenômenos mas também do pensamento de Foucault. Sem esta base
ética, o pensador Foucault seria impensável, improvável ou impossível.
Os argumentos de Rochlitz são semelhantes, mas variam ligeiramente de rumo. Para o
autor, a teoria e a prática política de Foucault “possuem um conteúdo normativo e mesmo
uma normatividade virtualmente universalista, quando se referem a uma exigência de
autonomia da pessoa e opõem-se ao sofrimento injusto” (Rochlitz, 1989, p. 290). Mas ele
não só nega isto como não pode admitir que “as qualidades que lhe permitem escapar aos
poderes tenham uma existência independente dele, inscrevendo-se na estrutura mesma da
sociedade moderna, como crítica institucionalizada, espaço de liberdade e de discussão,
irredutível ao sistema de poder” (p. 296). Ou seja, Foucault além de possuir uma ética
virtualmente universalista condena uma estrutura social de que depende e sem a qual não
teria como pensar o que pensou. A estética da existência, prossegue Rochlitz, não se opõe
ao bio-poder como algo que lhe é exterior. “A idéia de um prazer partilhado sem
dominação é tributária das idéias modernas de igualdade, reciprocidade e não-violência que
se desenvolveram simultaneamente ao bio-poder” (Rochlitz, 1989, p. 293) posto na mira
das críticas foucaultianas.
Portanto, diz Rochlitz, a reinvenção de modos individuais de existência só é possível
porque a ordem criticada permite e incentiva a diversidade, a singularidade e a pluralidade
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de pensamentos e estilos de vida. Foucault não vê que sua proposta de novas formas de
vida é um tópico do universalismo ético da cultura a que pertence. O que significa querer
fazer da “vida uma obra de arte”, senão estender o projeto das elites das sociedades antigas
para toda sociedade? Na Grécia e em Roma, a tarefa da estética da existência cabia às
“minorias privilegiadas, liberadas de toda função na reprodução material da sociedade e
que podiam empregar todas suas forças para realizar o refinamento de seus estilos de vida”
(Rochlitz, 1989, p. 297); no programa de Foucault, deve estar ao alcance de todos. Nos dois
casos, a pretensão ao universalismo é evidente, consideradas as diferenças nas imagens do
sujeito. No entender de Rochlitz, Foucault propõe “um equivalente anarquizante da ética
pós-convencional” como substituto do universalismo ético. Mas esta ética é somente um
caso particular do universalismo (cf. Rochlitz, 1989, p. 297).
Quanto à interiorização, pergunta ele, como Foucault poderia romper com as intuições
morais correntes, sem “um exame crítico da norma denunciada como um elemento no
dispositivo de poder” (Rochlitz, 1989, p. 297). Ou seja, nos termos de Taylor, como fugir
da idéia de autonomia, vontade interior, reflexão crítica, etc., como motor da transformação
das subjetividades? Foucault, em sua formulação, não se subtrai à “exigência de
interiorização”. Querendo, ou não, está na órbita do sujeito cristão do desejo, do qual
afirma ter-se libertado.
Para um outro autor, Hadot, Foucault utiliza indevidamente o material histórico da
antigüidade, na pressa de fundamentar suas próprias crenças. Não é verdade que o
pensamento estóico caucione a idéia de uma ética sem universais, assim como é incorreto
ou discutível dizer que sujeito moderno está presente no pensamento cristão das origens, na
figura da interiorização individualizante ou da hermenêutica do desejo. Ao utilizar a idéia
de ética dos prazeres dos estóicos, Foucault oculta a distinção entre prazer e alegria, central
naquele pensamento. Os estóicos elegeram a palavra alegria como foco de suas reflexões,
justamente porque “recusavam-se a introduzir o princípio do prazer na vida moral” (Hadot,
1989, p. 262). Esta distinção é fundamental. A ética da alegria, e não dos prazeres, não se
centrava no “eu” singular de cada sujeito. Era expressão da “melhor parte do eu”, daquela
orientada pelo “bem verdadeiro”, de acordo com a “razão e a natureza universais”. Havia,
segundo este autor, um apelo ao universalismo moral nos estóicos que Foucault desprezou,
em benefício de suas concepções.
No que diz respeito ao pensamento cristão, o procedimento intelectual foi quase o mesmo.
De fato, os exercícios espirituais visavam à interiorização do sujeito ou à hermenêutica do
desejo individual. Mas a interiorização era vista como “superação de si em direção da
universalização” (Hadot, 1989, p. 267). Hadot pensa que uma estética da existência
descolada de qualquer referência a valores transcendentais, poderia ser nada mais, nada
menos, do que “uma nova forma de dandismo, versão fim do século XX” ( p. 267). Este é
seu temor. Uma cultura de si, sem vínculos com valores universais, pode tornar-se uma
questão de preferência de um ou de poucos, mas nunca recomendação moral para todos.
2. A crítica neo-pragmática
A crítica neo-pragmática de Rorty é de outro teor. Como os autores precedentes, ele
acredita que o esteticismo de Foucault acaba indo de encontro aos objetivos da
comunidade. Mas não acha que a garantia de compromisso com o bem coletivo seja a
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crença em valores universalmente válidos. A obra de Rorty dirigiu-se, em grande parte, à


crítica do universalismo como fundamento racional das moralidades. Os argumentos que
emprega podem, deste modo, servir de réplica ao que foi objetado à Foucault. Brevemente,
Rorty, como Foucault, não acredita na existência de valores universais, se pela expressão se
entende um conjunto de postulados morais apriorísticos e invulneráveis à revisão histórica.
Mesmo concedendo que tais valores existissem, restaria aos universalistas provarem como
o acesso epistêmico às entidades transhistóricas pode estar ao alcance de sujeitos históricos.
Por este motivo, a seu ver, os valores tidos como necessários e atemporais, pelos
universalistas, nada mais são do que os valores do humanitarismo democrático moderno
metafisicamente transferidos para o domínio das entidades transcendentais.
Para o neo-pragmatismo, nenhum procedimento racional consistente pode afirmar a
permanência empírica ou conceitual de uma mesma identidade essencial do mundo, do
sujeito e da linguagem. Conhecemos contingências e não necessidades. Buscar a identidade
do sujeito ou de valores morais no que é perene é uma tarefa fútil. Nenhuma de nossas
crenças vem de uma fonte de sentido prévia à ação humana. A história mostrou que
inúmeros candidatos ao papel fundacional não resistiram ao teste do tempo. Ou perderam
completamente a plausibilidade intelectual ou retraíram-se e converteram-se em crenças
opcionais, de grupos ou pessoas, como no caso das convicções religiosas. Podemos tratar
certas imagens do mundo e do sujeito como universais. Mas isto quer dizer, simplesmente,
que certas formas de vida nos são de tal modo familiares que não conseguimos pensar em
descrições alternativas do que consideramos natural e universal. Os universais mudam
quando mudam as formas de vida. Por conseguinte, tudo o que podemos fazer é aceitar a
tradição ética que herdamos, procurar transformá-la ou abandoná-la por outra tradição. Não
temos saída: falamos de crenças sempre do interior de outras crenças. A preferência atual é
um simples produto da persuasão cultural tornada convicção. Justificamos nossas crenças
porque acreditamos que são superiores à outras. Superioridade que não se funda na maior
ou menor racionalidade da crença aceita – todas são racionais – mas na força performativa
dos meios de transmissão da cultura de cada um.
Assim sendo, a crítica universalista a Foucault perde o sentido. Liberdade, autonomia,
respeito à vida, etc., são vocábulos da prática lingüística das democracias liberais,
individualistas e humanitárias e não verdades atemporais plantadas no céu das idéias desde
sempre e para sempre. Quanto ao sujeito da interioridade, Rorty também dá pouca
importância à esta disputa. O sujeito, no neo-pragmatismo, nada mais é do que “a rede de
crenças e desejos postulada como causa interior dos atos lingüísticos”. As redes são
múltiplas, mutáveis, e saber quando e como teve início o “sujeito da autonomia, da vontade
e da interioridade” só tem interesse, se se trata de conservar ou alterar esta descrição, em
função de propósitos éticos. O problema, portanto, não é o de saber se Foucault repete,
inadvertidamente, as aspirações do sujeito do desejo e da interioridade. Esta questão é
secundária. Mais importante do que isto é saber se sua ética do sujeito atende ou não aos
requisitos da moral liberal e democrática defendida pelo neo-pragmatismo. Rorty acha que
não, e este é o centro de sua crítica. Foucault e seu sujeito levam-nos a ver os princípios da
democracia liberal não só como datados, o que faz sentido, mas como caducos e opressivos,
o que lhe parece inaceitável. Neste aspecto, concorda com os universalistas. Acredita, como
eles, que Foucault participa da cultura do “ressentimento”, ou seja, da corrente intelectual
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que procura negar, subestimar ou minimizar o progresso moral alcançado pelas


democracias liberais do Ocidente.
Para fundar seu ponto de vista, Rorty procura retificar Foucault de forma parecida à que
utilizou para corrigir, num dado momento, seu próprio trajeto teórico1. Resumidamente,
para ele, as grandes mudanças na vida política e na moralidade social coincidem com as
inovações culturais. Inovação cultural é uma expressão que deve ser entendida segundo os
postulados da teoria da linguagem de Donald Davidson2. Em Davidson, tanto palavras,
frases e enunciados quanto crenças e desejos são teias lingüísticas causadas por fatos
lingüísticos e não-lingüísticos. Os fatos não-lingüísticos são aqueles descritos como fatos
físicos e os lingüísticos como palavras, enunciados ou crenças que promovam
transformações nos estados mentais anteriores dos organismos humanos. A conseqüência
desta afirmação, à primeira vista obscura e enigmática, é a de que nem toda causa de
mudança em nossas crenças provém de outras crenças e, ainda menos, de crenças fundadas
em argumentos racionais com pretensão à universalidade. Em síntese, todas nossas crenças
são causadas, mas nem toda causa de alterações de crenças são razões ou justificativas.
Davidson distingue, assim, causas de razões. Uma razão, ou seja, um conjunto de
enunciados ou de argumentos com sentido familiar, pode ser causa de alteração de crenças.
Mas um fato físico também pode ser causa de mudanças, assim como fatos lingüísticos sem
sentido. É o caso do que denomina de “metáfora viva” ou simplesmente metáfora. Uma
metáfora é um termo, expressão ou enunciado cujo uso ainda não foi “literalizado”, ou seja,
regularizado pelo hábito lingüístico corrente. É, portanto, um ato lingüístico novo, até ser
usado convencionalmente, com extensão e significação familiares à comunidade
competente de falantes. Não tendo sentido convencional, a metáfora sugere, solicita ou,
como prefere Davidson, “intima” os sujeitos renovarem a descrição de si ou do mundo.
Age, por isto mesmo, como uma causa lingüística de mudança de crenças que ainda não se
tornou “justificação” aceitável da mudança.
Rorty rebate a concepção de Davidson sobre sua filosofia moral. As metáforas mais
inventivas, diz ele, podem redescrever o sujeito de maneira imprevisível. E quando são
historicamente felizes, funcionam como justificativas para a recriação de novos modos de
vida e sistemas morais. Rorty vê na reinvenção da língua e dos estilos de vida correlatos, o
principal motor da transformação cultural, ética e política das sociedades. Donde o papel
que reserva aos artistas. Os artistas em geral, e os ficcionistas em particular, poetas e
novelistas, são os experimentadores culturais por excelência. Em vista disso, tornaram-se os
grandes artífices das subjetividades modernas. “Revolucionários utópicos, ironistas
liberais” e “poetas fortes” formam a tríade dos heróis da narrativa rortyana. Todos são
agentes capazes de criar novas metáforas sobre o sujeito e o mundo. Mas o ironista liberal,
além disto, duvida de seus próprios vocabulários finais, comparando suas crenças e valores
a outras formas de vida, e tentando produzir novos experimentos morais que possam
enriquecer sua existência e a dos outros. Em outras palavras, a metaforização constante das
imagens do sujeito amplia seu espectro de escolhas éticas e suas oportunidades de bem-

1
Nosso objetivo não é o de apresentar sistematicamente o pensamento de Richard Rorty. Limito-me, aqui, a
enviar o leitor aos estudos que mais diretamente dizem respeito ao te-ma discutido neste texto. Além de
alguns textos do próprio Rorty, citados no trabalho, ver Murphy, 1990 e Hall, 1994.
2
Sobre Davidson, ver: Davidson, 1982, 1990, 1991a, 1991; Evnine, 1991; Ramberg, 1989; Engel, 1989.
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estar e felicidade. Este objetivo, em sua opinião, é um efeito do Romantismo sobre a cultura
ocidental. O desejo romântico de singularização do indivíduo faz com que ele deseje
permanentemente redescrever-se e, nesta atividade, pode vir a criar novos valores e
subjetividades, até então inexistentes.
Mas, chegado a este termo, Rorty deu-se conta de que o experimentalismo romântico tinha
“um lado escuro”. Quando a idiossincrasia do inventor era levada a ponto de “usar outros
como o propósito de gratificações privadas; ou a utilizar mais do que permite uma justa
repartição de recursos; ou quando o montante de tempo despendido na auto-criação exclui
todo exercício no suporte da justiça pública; ou quando o self que criamos é um cabeça-
dura embotado ou um esteta arrogante, insensível à dor e à humilhação dos outros”(Hall,
1994, p. 111), nestes casos, a auto-realização tornava-se ilegítima e condenável. Propôs,
então, um limite à criatividade pessoal. A atividade metafórica do poeta forte e do
revolucionário utópico deveria parar onde começavam a dor e a humilhação do outro.
Desprezando a distinção formal entre ético e estético, sugere uma divisão dos discursos
entre os que visam a auto-perfeição e os que visam à justiça e a decência. Os enunciados
dirigidos a auto-realização buscam proteger e enriquecer as experiências pessoais; os
dirigidos ao bem comum, procuram atingir um justo equilíbrio entre as aspirações à vida e à
liberdade de todos. A democracia liberal é a forma de vida que possibilitou e fez coexistir
os dois tipos de jogos de linguagem, pela divisão do espaço social entre uma esfera pública
e uma esfera privada. As duas áreas da práxis do sujeito podem, deste modo, expandir-se
sem que uma venha atropelar a outra. Podemos ser, diz Rorty, “tão irracionalistas,
esteticistas quanto nos agrade, desde que não venhamos a causar mal aos outros” (Rorty,
1989, p. XIV). Inversamente, podemos criar tantas formas políticas de governo quantas
sejamos capazes de imaginar, contanto que não impeçam as aspirações a auto-realização
dos indivíduos. Esta a posição do ironista liberal rortyano, diante das novas metáforas.
A crítica a Foucault tem origem nesta premissa. Em seu entender, a estética da existência
foucaultiana é alheia ou avessa a estes princípios. Entretanto, pergunta ele, sem os valores
ou instituições da democracia liberal, Foucault teria podido criar livremente as metáforas
que exprimem suas necessidades de auto-perfeição, auto-afirmação ou auto-realização? O
que Foucault diz, continua, não parece endereçar-se à nenhum “nós”. Ele quer “servir à
liberdade humana, mas, no interesse de sua autonomia privada, tenta ser um sem-face, sem-
raízes e sem-teto. Um estranho à humanidade e à história” (Rorty, 1991a, p. 195). Foucault,
em suma, seria ou tenderia a ser um esteticista em busca do sublime e não do puramente
belo. Ora, o êxtase do sublime pode facilmente tornar-se cego e surdo à dor do outro. Dito
de outra forma, Foucault quis derivar de uma única narrativa o que é bom para um e o que é
bom para todos. Conciliar numa só recomendação os dois objetivos, é, a seu ver,
impossível. A noção de estética da existência hipertrofia o valor da experimentação
individual. Rorty rejeita esta posição. Melhor seria, portanto, propor experimentos morais
que respeitem o equilíbrio entre necessidades privadas e necessidades públicas, ao modo do
ironista liberal. Só assim, acredita ele, a felicidade de um não compromete a justiça devida
a todos. Por desconhecer este risco, Foucault nega os avanços morais da democracia liberal,
tornando-se um potencial aspirante a sacrificar a solidariedade em benefício da auto-
perfeição. Cabe investigar o que de pertinente ou não existe nestas afirmações.
3. A resposta de Foucault
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Relendo os Ditos e Escritos de Foucault sobre a genealogia da ética e a ética do sujeito,


muitas das questões levantadas por seus interlocutores se esclarecem. Como afirmei antes,
deixo de lado as objeções dos universalistas. Penso que a argumentação de Rorty contra a
transcendentalidade dos valores é suficiente para arbitrar o litígio. Retenho a idéia do
descompromisso de Foucault em relação à sua comunidade. Este, parece-me, é o
denominador comum entre a crítica rortyana neo-pragmática e a crítica dos universalistas.
Pergunto, de início: em que sentido pode-se falar, com propriedade, de alheamento de
Foucault para com a comunidade de seus pares e seu presente histórico? Acho que
Foucault, de fato, é reticente quando se trata de conceder qualquer mérito aos ideais
humanitários das democracias liberais. Mas sugiro que isto se deve, em primeiro lugar, à
forma como vê a complexidade das relações humanas e, em segundo lugar, aos temas que
aborda. Antes de examinar com cuidado estes aspectos, qualquer alusão à pretensa omissão
política ou insensibilidade de Foucault à dor e à humilhação dos outros é precipitada.
Vejamos cada um dos itens em separado.
No que diz respeito às relações humanas, Foucault foi, sem dúvida, um pessimista. Embora
tenha revisado a idéia de que os dispositivos disciplinares são a única matriz das
subjetividades modernas, continuou a ver o impulso de dominação como uma disposição,
por assim dizer, instituinte da interação entre sujeitos. Sua visão do que somos capazes de
fazer uns aos outros sempre vai no sentido do pior. Em alguns trechos de entrevistas ou
artigos, isto aparece de maneira inequívoca. Na entrevista Da amizade como modo de vida,
dizia: “Mas a idéia de um programa e de proposições é perigosa. Desde que um programa
se apresenta, ele faz a lei, é uma proibição de inventar” (Foucault, 1994b, p. 167). Em A
propósito da genealogia da ética: um resumo do trabalho em curso, afirmava: “Não
procuro dizer que tudo é mau, mas que tudo é perigoso(...). Se tudo é perigoso, então temos
sempre qualquer coisa a fazer. Assim, minha posição não conduz à apatia, mas ao contrário
à um hiper-militantismo pessimista” (Foucault, 1994b, p. 386).
O pessimismo foucaultiano, como se vê, não tem meias medidas. Mas, pergunto, isto basta
para torná-lo alguém neutro quanto a valores, indiferente à comunidade de seus fellows ou
virtualmente insensível à dor e à humilhação do outro? Penso que não. Freud, por exemplo,
tido por Rorty como um “experimentador” exemplar da vida privada, era mais ou menos
pessimista do que Foucault? E o próprio Rorty? Como qualificar sua hipótese sobre nossas
atitudes frente ao sofrimento dos outros? Rorty não hesita em dizer que a solidariedade, a
compaixão, a simpatia, etc., que podemos manifestar ao nosso próximo nem são constantes
morais universais, nem estão inscritas no coração ou na razão dos humanos. Pelo contrário,
reafirma a todo instante que tais atitudes éticas são instáveis e recentes. Formaram-se, no
Ocidente, à duras penas, após séculos de violências e atrocidades cometidas contra os mais
frágeis. Na sua ótica, sempre podemos voltar a redescrever nosso próximo como um
estranho e, em virtude disto, submetê-lo às piores brutalidades, se dispusermos dos
instrumentos de força ou coerção adequados. Isto é pessimismo ou otimismo? Onde
começa e termina a linha que separa um do outro?
Dependendo de quem julga, Rorty poderia ser perfeitamente etiquetado de pessimista! No
entanto, seus receios quanto à crueldade latente em todos nós, não o tornam, a seus olhos,
indiferente aos valores democráticos, liberais e humanitários. Por que o pessimismo de
Foucault seria diferente? Por que emprega a categoria de “poder” e não a de “disposição
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para humilhar e ferir o outro”? Mas se Rorty define humilhação como “redescrição
forçada”, em que isto se distingue substancialmente dos efeitos de poder sobre os
indivíduos analisados por Foucault? E, afinal, se o critério pragmático para saber o que é ou
não eticamente aceitável, são os resultados morais práticos e não um acordo sobre
princípios transcendentais ou racionais, como ignorar o papel de Foucault na sensibilização
intelectual moderna para com a dor e a humilhação do outro? Como notou Hall, poucos
pensadores atuais denunciaram com tanto vigor quanto Foucault o que existe de cruel e
moralmente abusivo nas relações humanas. O fato de não procurar justificar sua prática
teórico-política por meio de princípios definitórios, por acaso invalida o mérito do que
disse, pensou ou fez? Seus estudos sobre presídios, hospitais, hospícios, escolas, casernas,
indústrias, etc., são exemplos de indiferença ou relativismo axiológico ou de engajamento
na luta em favor dos humilhados e ofendidos? Foucault, considerado tudo isto, é um
faceless, um homeless, ou alguém que fala por um “nós” e empresta sua voz a um “nós”?
Mas o que Rorty reprova em Foucault, principalmente, não é propriamente sua pretensa
impermeabilidade à dor do outro. É seu laconismo quando se trata de elogiar as instituições
liberais das democracias modernas. Também neste nível, creio, a atitude de Foucault é
explicável, quando se observa os problemas por ele estudados. Foucault não pensava, como
Rorty, que todos os enunciados morais reduzem-se à dicotomia do público e do privado.
Certos problemas, seguramente, cabem nesta classificação; outros, não. O excessivo
classicismo político de Rorty não lhe deixou ver o que, na cultura, rompe com estas
fronteiras. É verdade, como observou Berten, que Rorty nunca pretendeu definir o público e
o privado, como se fossem “essências”. Sua intenção era a de utilizar uma classificação
pragmaticamente operante, capaz de diferenciar as aspirações individuais legítimas das
ilegítimas, no que diz respeito às aspirações do outro (cf. Berten, 1994). No entanto, mesmo
feita a reserva, discussões culturais recentes mostraram que fatos tidos como exclusivos da
vida privada podem ter relevância pública e vice-versa. Fraser notou, por exemplo, que
aquilo que Hannah Arendt chamou de social tem, ao mesmo tempo, uma dimensão privada
e uma pública. A vida familiar, a sexualidade, a questão da mulher, a educação sentimental
das crianças, as tecnologias de saúde, as práticas de cuidado do corpo, etc., são casos deste
tipo. Aliás, o próprio Rorty, respondendo à Alexander Nehamas, dizia que “público” e
“privado” podem ter significações variáveis (Rorty,1992, p. 211-212). Citando duas
situações conflitivas, apontava a família como sendo o referente do “privado” em um caso e
o referente do “público”, em outro.
Mas se é assim, por que não considerar que a especificidade dos assuntos discutidos por
Foucault pode dispensar tal divisão, sem prejuízo do respeito ao sofrimento do outro? Em
última instância, penso que o que Rorty não aceita é a redescrição do sujeito e da vida
relacional proposta por Foucault. Esta redescrição, em minha opinião, não afeta em nada a
“mínima moral” defendida por Rorty. Porém, pode parecer uma “redescrição forçada” para
quem acredita que as instituições e os problemas com que lidamos estão em ordem,
bastando alterar, aqui e ali, o que anda enferrujado ou fazendo muito barulho. Como
exemplo, dou o caso da sexualidade. Foucault acreditava que só uma virada radical na
imagem de sujeito e dos modos de vida relacional poderia desfazer certos impasses criados
pela atual hierarquia moral das sexualidades. Para efeito de exposição, tomo as duas
questões em separado – a da imagem do sujeito e a da imagem da vida relacional – para
analisá-las em detalhes.
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

A mudança na imagem do sujeito defendida por Foucault é conhecida. Corresponde à


noção de estilo de vida ou estética da existência baseada numa ética dos prazeres e não do
sexo. Dando ênfase aos prazeres e não ao sexo, os sujeitos poderiam reinventar-se, sem
recorrer às identidades criadas pelo sistema de nominação preconceituoso. Sexo,
hermenêutica do desejo, obsessão pela verdade de si, identidades sócio-sexuais fixas, etc.,
são termos do mesmo vocabulário moral articulado aos dispositivos de sexualidade. A este
propósito, Foucault dizia: “ Outra coisa de que é preciso desconfiar é da tendência para
trazer a questão da homossexualidade para o problema do “Quem sou eu?”, “Qual o
segredo de meu desejo?”. Talvez fosse melhor perguntar: “Que relações podem ser
estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas, por meio da homossexualidade”. O
problema não é o de descobrir em si a verdade de seu sexo, mas o de usar, de agora em
diante, de sua sexualidade para chegar à multiplicidade de relações. É, sem dúvida, aí que
está a verdadeira razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo mas
alguma coisa de desejável. Nós devemos, então, dedicar-nos a tornarmo-nos homossexuais
e não a nos obstinar em reconhecer que somos homossexuais” (Foucault, 1994b, p. 163).
Mais adiante, na mesma entrevista, reiterava: “Cabe a nós avançar numa ascese
homossexual que nos fizesse trabalhar sobre nós mesmos e inventar, não digo descobrir,
uma maneira de ser ainda improvável” (p. 165).
Em outra entrevista, comentando os livros de John Boswell e Karl Dover sobre o
homossexualismo, afirmava: “É preciso usar de sua sexualidade para descobrir, inventar
novas relações. Ser gay é ser se tornando [c'est être en devenir] e, para responder à sua
questão, acrescentaria que é preciso não ser homossexual mas insistir em ser gay”
(Foucault, 1994b, p 295). Depois, na entrevista intitulada O triunfo social do prazer sexual:
uma conversação com Michel Foucault, dizia: “Fazer escapar o prazer da relação sexual do
campo normativo da sexualidade e suas categorias; fazer, por esta mesma razão, do prazer o
ponto de cristalização de uma nova cultura, é, acredito uma abordagem interessante”(p.
309). Por fim, em Entrevista de Michel Foucault confirmava os pontos de vista anteriores:
“ Foi só a partir do momento em que o dispositivo de sexualidade implantou-se
efetivamente, quer dizer, no momento em que um conjunto de práticas, instituições e
conhecimentos fez da sexualidade um domínio coerente e uma dimensão absolutamente
fundamental do indivíduo, foi neste momento preciso, sim, que a questão “Que ser sexual
você é? “tornou-se inevitável(...) Se bem que do ponto de vista tático importa num dado
momento poder dizer 'Eu sou homossexual', é preciso, a meu ver, a longo prazo e no quadro
de uma estratégia mais vasta colocar questões sobre a identidade sexual. Não se trata,
então, de confirmar sua identidade sexual, mas de recusar a injunção de identificação à
sexualidade, às diferentes formas de sexualidade. É preciso recusar satisfazer a obrigação
da identificação por intermédio e com a ajuda de uma certa forma de sexualidade”
(Foucault, 1994b, p. 662).
Nas entrevistas fica claro o objetivo de Foucault. Só uma redescrição inédita das
subjetividades poderia destronar o sexo-rei e sua corte de identidades sexuais. Enquanto a
auto-realização ou a auto-perfeição privada curvarem-se ao sujeito sexual dominante,
poucas chances existem de que venhamos a imaginar um modo de vida sem a violência do
preconceito. Ora, este modelo do sujeito sexualmente descentrado e voltado para uma ética
ou estética dos prazeres, não tem lugar no imaginário de Rorty. O ironismo por ele
recomendado parece assustar-se com as metáforas de Foucault. Em sua ética, não obstante
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seus protestos, tudo o que deve ser feito é o que vem sendo feito. Assim, falando a respeito
do tema das escolhas morais privadas, afirma que “intelectuais românticos, religiosos
místicos, fetichistas sexuais” (Rorty, 1991a, p. 197) podem ter direito a buscar sua auto-
realização, desde que respeitem o limite do público. Em outro artigo, mostrando a meta
liberal de convívio humano diz: “para tornar os Brancos mais amáveis com os Negros, os
machos com as mulheres, (...) ou os heterossexuais com os homossexuais...” etc. (Rorty,
1994, p. 27). Ou seja, quando fala de conflitos, Rorty deixa de lado a contingência do
sujeito e da linguagem e toma como perenes as identidades instituídas de raça, sexo, gênero
etc.
Ora, é justamente isto que Foucault procura redescrever. Mas, em sua ficção de um mundo
novo, a vida relacional transborda o quadro institucional estabelecido. Foucault não cansa
de repetir: não basta “liberar” o que se supõe sufocado ou reprimido. O próprio reprimido e
sufocado foi produzido pelos dispositivos disciplinares. A miséria sexual, dizia ele, é
produzida como o capitalismo produz miséria econômica. Ou seja, não basta dar pão
sexual aos famintos; é preciso que deixemos de produzir um mesmo tipo de fome. Na
famosa entrevista Não ao sexo rei, Foucault observava: “Um movimento se desenha hoje
que parece subir a ladeira do 'sempre mais sexo', 'sempre mais verdade do sexo' à qual
séculos nos haviam fadado; trata-se, não digo de redescobrir, mas simplesmente de fabricar
outras formas de prazeres, de relações, de coexistências, de ligações, de amores, de
intensidades” (Foucault, 1994a, p. 261). Na entrevista mencionada, Da amizade como modo
de vida, volta ao tema: “Aquilo para o que se orienta os desenvolvimentos do problema da
homossexualidade é o problema da amizade. (...) Homens de idade notavelmente diferentes,
que código terão eles para se comunicarem entre si? Eles estão um em face do outro sem
armas, sem palavras convencionais, sem nada que possa reassegurá-los sobre o sentido do
movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda
sem forma e que é a amizade: quer dizer a soma de todas as coisa pelas quais pode-se dar
prazer um ao outro” (Foucault, 1994b, p.163-164). Em outra passagem da mesma entrevista
é dito: “Esta noção de modo de vida me parece importante. Será que não seria preciso
introduzir uma diversificação outra que não aquela devida às classes sociais, diferenças de
profissão, de níveis culturais, uma diversificação que seria também uma forma de relação
e que seria “o modo de vida”. Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de
idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar à relações intensas que não
se parecem a nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de
vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. Ser gay é, creio, não se identificar aos
traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas buscar a definir e a
desenvolver um modo de vida” (Foucault, 1994b, p. 165).
Este modo de vida, contudo, pede uma rede institucional outra que não a conhecida. Na
entrevista O triunfo social do prazer sexual: uma conversação com Michel Foucault
indícios deste modo de vida são sugeridos: “Vivemos em um mundo relacional que as
instituições empobreceram consideravelmente. A sociedade e as instituições que constituem
sua ossatura limitaram a possibilidade de relações porque um mundo relacional rico seria
extremamente complicado de gerir. Devemos bater-nos contra este empobrecimento do
tecido relacional. (...) Tomemos, por exemplo, as relações de amizade. (...) Elas
desempenhavam um papel considerável, mas havia toda uma espécie de enquadramento
institucional flexível – mesmo se, por vezes, era coercitivo – com um sistema de
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obrigações, de tarefas, de deveres recíprocos, uma hierarquia entre amigos, e assim por
diante. (...) Quando você lê um testemunho de dois amigos desta época, você se pergunta
sempre o que acontecia realmente. Faziam eles amor juntos? Tinham uma comunidade de
interesses? Nenhuma das duas coisas ou as duas?” (Foucault, 1994b, p. 309-310).
Continuando, diz Foucault: “Em realidade, a vida de solidão à qual é condenado o
celibatário é, freqüentemente, o efeito do empobrecimento das possibilidades relacionais
em nossa sociedade, onde as instituições tornam exangues e necessariamente raras todas
as relações que se poderia ter com um outro e que poderia ser intensas, ricas, mesmo se
fossem provisórias, mesmo e sobretudo se não tivessem lugar nos laços do casamento”
(Foucault, 1994b, p. 311).
Em outra passagem de suas intervenções, diz: “Que em nome do respeito aos direitos do
indivíduo, deixemos que ele faça o que quiser, tudo bem. Mas se o que se quer fazer é criar
um novo modo de vida, então a questão dos direitos do indivíduo não é pertinente. Com
efeito, vivemos num mundo legal, social, institucional, onde as únicas relações possíveis
são extremamente pouco numerosas, extremamente esquematizadas, extremamente pobres.
Existe, evidentemente, a relação de casamento e as relações de família, mas quantas outras
relações poderiam existir, poderiam encontrar seus códigos não nas instituições mas em
suportes eventuais? Isto não acontece em absoluto” (Foucault, 1994b, p. 309).
Resta perguntar em que o desejo de criar um tecido relacional mais rico, intenso, plural, que
ofereça novas possibilidades de satisfação emocional pode ser contrário à consideração pela
dor e sofrimento do outro? Em nada, penso. Obviamente, Rorty poderia replicar que esta
crítica aos espaços institucionais poderia violentar as convicções dos que aceitam os limites
morais do estado de coisas existentes. Como observou Visker, ele crê que “a maioria das
pessoas não deseja ser redescrita” e “quer ser levada à sério nos seus próprios termos, ou
seja, na maneira como é como fala” (Visker, 1994, p. 281-282). A “redescrição
freqüentemente humilha”, “sugerindo que o eu e o mundo” de quem está sendo redescrito
“é fútil, obsoleto e vão” (Rorty, 1989, p. 89-90). Mas isto aplica-se ao próprio Rorty! A
distinção entre o “ironista” indiferente ao outro e o “ironista liberal rortyano” atento ao
outro, não pode ser feita com base nos riscos de “humilhação”, presentes em toda
redescrição. A distinção entre o indiferente e o sensível ao sofrimento do outro, passa pela
defesa que o segundo faz do “valor do respeito ao sofrimento alheio”. Porém, em que
sentido pode-se dizer que Foucault mostrou-se indiferente à idéia de sofrimento? Em
nenhum, sugiro. Como prova, tomo seus depoimentos sobre o sado-masoquismo, figura da
sexualidade, onde o sofrimento é, mais do que em outras, problematizado.
Falando a respeito do sado-masoquismo dizia: “Eu vou arriscar a hipótese seguinte: numa
civilização que, durante séculos, considerou que a essência da relação entre duas pessoas
residia no fato de saber se, sim ou não, uma das duas partes ia ceder à outra, todo o
interesse e toda a curiosidade, toda audácia e a manipulação de que dão prova as partes em
questão sempre visaram à submissão do parceiro afim de dormir com ele. (...) O sado-
masoquismo não é uma relação entre aquele (ou aquela) que sofre e aquele (ou aquela)
que infringe sofrimento, mas entre um senhor e a pessoa sobre a qual se exerce sua
autoridade. O que interessa aos adeptos do sado-masoquismo é o fato de que a relação é,
ao mesmo tempo, submetida às regras e aberta. Ela parece um jogo de xadrez, onde um
pode perder e outro ganhar. O senhor pode perder (...) se se revela incapaz de satisfazer as
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necessidades e as exigências de sofrimento de sua vítima. Do mesmo modo, o escravo pode


perder se não consegue superar ou se não suporta superar o desafio lançado pelo seu
mestre. Esta mistura de regras e abertura tem por efeito uma intensificação das relações
sexuais, introduzindo uma novidade, uma tensão e uma incerteza perpétuas, de que é
exemplo a consumação do ato. O objetivo é assim de utilizar cada parte do corpo como um
instrumento sexual” (Foucault, 1994b, p. 331-332).
Em outro lugar, voltando ao assunto, diz ele: “O sexo não é uma fatalidade; é uma
possibilidade de aceder a uma vida criativa. (...) Eu não penso que este movimento [a
chamada cultura sado-masoquista] de práticas sexuais tenha nada a ver com a atualização
ou a descoberta de tendências sado-masoquistas profundamente enterradas em nosso
inconsciente. Penso que o s/m é muito mais do que isso. É a criação de novas
possibilidades de prazer, que não tínhamos imaginado antes. A idéia de que o s/m está
ligado a uma violência profunda; que sua prática é um meio de liberar esta violência, de
dar livre curso à agressão é uma idéia estúpida. Sabemos muito bem que o que estas
pessoas fazem não é agressivo; que elas inventam novas possibilidades de prazer,
utilizando certas partes bizarras de seus corpos – erotizando este corpo. Penso que temos
neste caso uma espécie de criação, da qual uma das principais características é o que chamo
a dessexualização do prazer. A idéia de que o prazer físico provém sempre do prazer
sexual e a idéia de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis, isto, penso,
é verdadeiramente qualquer coisa de falso. O que as prática s/m nos mostram é que
podemos produzir prazer a partir de objetos muito estranhos, utilizando certas partes
bizarras de nosso corpo, em situações muito inabituais (...). A possibilidade de usar nosso
corpo como fonte de prazer possível de uma multidão de prazeres é algo de muito
importante. Se consideramos, por exemplo, a construção tradicional do prazer, constatamos
que os prazeres físicos, ou prazeres da carne, são sempre a bebida, a comida e o sexo. É aí
que se limita nossa compreensão dos corpos, dos prazeres. (...) O jogo s/m é muito
interessante porque, embora seja uma relação estratégica, é sempre fluido. Existem papéis,
é claro, mas cada um sabe que estes papéis podem ser invertidos. Por vezes, quando o jogo
começa, um é o mestre e o outro o escravo e, no fim, quem era escravo tornou-se mestre.
(...) Este jogo estratégico é muito interessante, enquanto fonte de prazer físico. Mas não
diria que constitui uma reprodução, no interior da relação erótica, da estrutura de poder. É
uma encenação das estruturas de poder por um jogo estratégico capaz de produzir um
prazer sexual e físico” (Foucault, 1994b, p. 735-746).
Com a longa citação, não penso em caucionar, ponto por ponto, a explicação dada por
Foucault ao sado-masoquismo. Concordo, no entanto, com sua tentativa de desmantelar
uma categoria pretensamente homogênea de “seres sexuais” inventadas no século XIX, que
teriam algo em comum que seria a “sado-masoquistidade” de todos os sado-masoquistas. A
citação visa mostrar que, para ele, a condição de aceitação do sado-masoquismo é sua
total redescrição. Redescrição que rompe com imagem oitocentista que temos do fenômeno
e que o aproxima das práticas dos prazeres ou práticas sexuais correntes na nossa cultura.
Em primeiro lugar, nesta interpretação, o fundamento do sado-masoquismo não é o
sofrimento e sim o prazer físico que pode ser sexual ou não. Em segundo lugar, o
deslocamento do prazer, do exclusivo campo da sexualidade, permite a encenação do que
Foucault entende como sendo desmontagem das relações fixas de dominação e sujeição,
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

presentes no ato sexual. Quem manda e quem obedece; quem é passivo e quem é ativo, são
papéis reversíveis na versão foucaultiana do sado-masoquismo.
É possível que, para muitos, psicanalistas inclusive, o sado-masoquismo de Foucault tenha
algo de angelical. Mas este é o coração do problema. Um metafísico, na terminologia de
Rorty, diria que existe uma verdadeira natureza do sado-masoquismo que Foucault tenta
mascarar, dourando a pílula, em favor da própria teoria. Um ironista descomprometido com
sua comunidade, limitar-se-ia a defender o direito de cidade do sado-masoquismo, sem
maiores preocupações com a imagem que a maioria das pessoas tem do que representa
gozar com a humilhação moral ou com sofrimentos físicos. Foucault, entretanto, justifica
sua opinião, criando uma versão compatível com as exigências éticas de respeito à dor e ao
sofrimento do outro. Procura fazer dos adeptos do sado-masoquismo não só “um de nós”,
mas “alguns dos melhores dentre nós”. Ao condenar. por exemplo, o estupro, a necrofilia e
a moral grega dos eros e afrodisia, deixa claro que o sofrimento e a dominação dos sujeitos
é aquilo reprova e que não imagina que possa ser aceito.
Onde estaria, então, seu descompromisso com credo moral básico de seu tempo e de sua
comunidade? O que ele faz, por exemplo, no caso do sado-masoquismo, é desconstruir a
descrição médico-sexológica do século XIX, propondo uma outra. O que ele faz é criar uma
nova metáfora que nos leva a duvidar de nossas crenças e a perguntar: por que acreditar na
versão de Kraft-Ebing e não na sua? Será que existe, de fato, um “sado-masoquismo
comum” à todos os sado-masoquistas? E se, em vez de carimbar pessoas com este rótulo
infame, pudéssemos redescrever esta prática como uma “encenação reversível” do jogo da
dominação/submissão, passividade/atividade, deslocando o sofrimento físico de seu papel
de fim para o de meios com vistas a outros fins? Neste caso, por que horrorizar-se com o
sado-masoquismo, nós que convivemos, entre bocejos e risadas, com lutas de boxe,
viciados em exercícios físicos, pancadarias em estádios de futebol, programas de calouros
em domingos televisivos, etc. Em todos estes casos, e em muitos outros, a excitação física
com o sofrimento é patente. Mas nem por isso construímos identidades sócio-sexuais ou
sócio-físicas dos praticantes “destes esportes”! O escândalo do sado-masoquismo não é o
sofrimento; é sua vinculação ao sexo. Foucault não só procura desvincular a relação de
necessidade entre um e outro, como mostra que, deixando de acreditar na verdade do
sujeito sexual, podemos pensar em relações humanas onde o “referente do pronome nós”,
como exige Rorty, seja sensivelmente ampliado.
Finalizando, penso que Rorty entendeu mal ou intimidou-se com a imaginação de Foucault.
Não pôde ver que, num certo sentido, a démarche foucaultiana é mais rortyana do que
Rorty poderia prever. Foucault não me parece nenhum candidato à crueldade. Parece-me,
isto sim, um dos últimos revolucionários utópicos de nosso presente histórico. Pertence a
linhagem dos Marcuses, sem a crença ingênua “na boa natureza do sexo” e nas virtudes
universais da “razão estética”. Não por acaso, respondendo à questão de um entrevistador –
qual é a solução? – disse: “Devemos começar por reinventar o futuro, mergulhando em um
presente mais criativo. Deixemos cair a Disneylândia e pensemos em Marcuse”(Foucault,
1994a, p. 678).
Nada mais pragmático; nada mais “humanamente útil”.
Recebido para publicação em julho/1995
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

ABSTRACT: The article discusses the objections taken to Foucault's ideas about the
subject's ethics which would lead to an absence of compromise with universal values and
principles of the liberal democracies. Discussing Taylor's, Hochlitz's, Hadot's and Rorty's
propositions Foucault's answer would be formulated based on a radical change in the
subject's image and in the ways of building up relations which, in case of sexuality, as the
categories are re-defined, would question the actual moral hierarchy of sexual practices
with its fixed domination and subjection relationships.
KEYWORDS: Foucault, subject, aesthetics of existence, sexual practices and roles,
homosexualism, sado-masochism.

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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Foucault e Heidegger
A ética e as formas históricas do habitar (e do não habitar)
LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO
Professor do Departamento de Psicologia
Experimental do IP-USP, da PUC-SP e da UNIP

RESUMO: A partir de uma entrevista em que Foucault coloca a obra de Heidegger como
uma das duas bases fundamentais de seu próprio pensamento (a outra é Nietzsche), o texto
desenvolve uma das possibilidades de aproximação entre Heidegger e Foucault: a
compreensão da ética enquanto morada e habitação. Os trabalhos derradeiros de Foucault,
em que se renova o pensamento da ética através de uma nítida separação entre ética e moral
e mediante uma análise da ética enquanto procedimentos e técnicas de subjetivação – as
tecnologias de si – são então contemplados por este ângulo. Ao final, é retomada e
discutida a última mensagem de Foucault, a sua proposta de uma ética entendida como uma
nova estética existencial.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, Heidegger, ética, modos de subjetivação, estética
existencial.

1. Foucault e Heidegger?
Dada uma relação que é sem dúvida muito significativa, que passa por natural e de todos
conhecida entre Foucault e Nietzsche, cabe, de início, perguntar acerca do sentido e da
pertinência da aproximação que aqui se fará entre Foucault e Heidegger. Para os leitores de
um dos mais belos e elucidativos textos sobre o conjunto da obra de Michel Foucault –
Michel Foucault: Beyond structuralism and hermeneutics, de Dreyfus e Rabinow – esta
aproximação não surpreende. Assinalo, inclusive, que há uma entrevista de Foucault
autorizando explicitamente esta relação. Diz ele: “Fiquei surpreso quando dois amigos de
Berkeley escreveram que eu fora influenciado por Heidegger. Certamente é verdade, mas
ninguém na França o tinha enfatizado” (Foucault, 1994, p.780). Contudo, é numa outra
entrevista, concedida no dia 29 de maio de 1984, menos de um mês antes de sua morte,
ocorrida em 25 de junho, que Foucault diz o que era necessário dizer sobre sua vinculação a
Heidegger:
“Certamente Heidegger foi para mim o filósofo essencial(...). Todo meu futuro filosófico
foi determinado por minha leitura de Heidegger (...). Meu conhecimento de Nietzsche é
bem melhor do que o que tenho de Heidegger; não obstante foram estas as minhas duas
experiências fundamentais. É provável que se não tivesse lido Heidegger não teria lido
Nietzsche. Tinha tentado ler Nietzsche nos anos cinqüenta, mas Nietzsche sozinho não me
dizia nada. Enquanto que Nietzsche e Heidegger, aí sim, este era o choque filosófico. Mas
nunca escrevi nada sobre Heidegger e nada escrevi sobre Nietzsche além de um pequeno
artigo. São, contudo, os autores que mais li. Creio que é importante termos um pequeno
número de autores com os quais se pensa, com os quais se trabalha, mas sobre os quais
não se escreve” (Foucault, 1994, p. 703).
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

O que, brevemente, pode ser identificado como o legado heideggeriano na obra de


Foucault? Certamente é um legado multifacético, mas, sem dúvida todas estas faces nos
remetem à crítica empreendida por Martin Heidegger às metafísicas do sujeito, ou seja, à
crença num sujeito como fundamento auto-fundante do mundo e das representações.
Quando Foucault afirma:
“Penso que não há sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito que
poderíamos encontrar em toda parte” (Foucault, 1994, p.733).
tema que atravessa toda a sua produção, estamos indiscutivelmente no campo reflexivo
instaurado por Heidegger com sua “destruição da metafísica” e, em particular, com sua
crítica à metafísica da Modernidade. Embora o método genealógico seja uma criação de
Nietzsche, não tenho dúvidas de que somente a destruição da metafísica do sujeito
heideggeriana abriu o espaço para a obra de genealogista realizada por Foucault.
2. O interesse em Foucault
As genealogias elaboradas por Michel Foucault exploraram três domínios:
“De início uma ontologia histórica de nós mesmos em nossas relações com a verdade, que
nos permitem que nos constituamos como sujeitos do conhecimento; em seguida, uma
ontologia histórica de nós mesmos em nossas relações com um campo de poder onde nos
constituímos como sujeitos capazes de agir sobre outros; enfim, uma ontologia histórica de
nossas relações com a moral, que nos permitem nos constituirmos como agentes éticos.
Todos os três eixos estavam presentes, mesmo que de uma maneira um pouco confusa na
História da loucura. Estudei o eixo da verdade no Nascimento da clínica e na Arqueologia
do saber. Desenvolvi o eixo do poder em Vigiar e punir e o eixo moral na História da
sexualidade” (Foucault, p. 393).
A mim, particularmente, a partir de meus interesses psi, são os dois últimos eixos
mencionados – os das “técnicas de dominação”, com seus estudos das disciplinas, dos
governos, das bio-tecnologias, e o das “técnicas de si” – os que mais atraem a atenção. Vale
mencionar que ambos os eixos tendiam na obra de Foucault a uma certa integração, como
se depreende de um dos seus últimos textos – sua participação em 1982 na Conferência
sobre A Tecnologia Política dos Indivíduos. Neste trabalho, entre outras indicações dos
rumos futuros de suas pesquisas – que retornaria à questão das bio-tecnologias, após os
estudos sobre as técnicas de si que resultaram nos dois últimos volumes da História da
sexualidade, além de inúmeros textos avulsos que seriam material para o quarto volume (As
confissões da carne) – Foucault afirma que
“A característica maior da racionalidade moderna não é nem a constituição do Estado,
nem a emergência do individualismo burguês, mas o seguinte fato: a integração dos
indivíduos a uma comunidade ou totalidade resulta de uma correlação permanente entre
uma individualização sempre mais avançada e a consolidação desta totalidade”
(Foucault,1994, p. 827).
Assim sendo, as técnicas de dominação (governo) e as técnicas de si, as principais
responsáveis pelo adensamento das subjetividades individuais, articulam-se na constituição
da subjetividade moderna e contemporânea (e daí o interesse crescente de Foucault nas
questões do liberalismo). Esta articulação, por sinal, foi o objeto da análise da
contemporaneidade que tentei elaborar nos últimos capítulos de meu livro A invenção do
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

psicológico. Quatro séculos de subjetivação (1500-1900), ao mostrar as íntimas e


paradoxais alianças que se formam entre liberalismos e disciplinas desde o século XIX,
tema a que retornarei adiante.
3. O âmbito das éticas
Uma das principais contribuições de Foucault para o estudo genealógico das subjetividades
reside, creio eu, na sua concepção do que é abrangido pelo campo da ética. Ao separar
conceitualmente dois domínios – o dos códigos morais e o dos atos ou condutas –
enfatizando este segundo como decisivo para a constituição das subjetividades, ele abriu
um vasto campo de pesquisas e descobertas.
A dimensão ética da existência abarca, naturalmente, o campo de nossas relações com os
outros mediadas, explícita ou implicitamente, por códigos de prescrições e proibições, por
padrões de legitimação das condutas. Porém, a dimensão ética implica fundamentalmente
os humanos em relações reflexivas, vale dizer, instauram-se aqui relações de cada um
consigo mesmo. É no âmbito destas relações de si para consigo que as propostas analíticas
de Foucault parecem mais fecundas. Numa rápida recapitulação, estas relações podem,
segundo ele, ser analisadas em quatro aspectos: (1) o da substância ética (isto é, a parte de
si que é visada pelo ditames morais), (2) o modo de assujeitamento (ou seja, o modo dos
indivíduos reconhecerem a força destes ditames), (3) os meios acionados para os controles
e transformações desejadas (vale dizer, os procedimentos ascéticos e ensinantes da ética) e,
finalmente, (4) a teleologia de todo este processo (que são os ideais normalizadores e
norteadores de todos os esforços de transformação, definindo o tipo de homem perseguido
nos processos de subjetivação). Estes quatro aspectos não são meros reflexos passivos das
experiências humanas: eles têm, articulados aos códigos, uma eficácia constitutiva. Por
outro lado, como sabemos, para Foucault tanto os códigos de prescrições e proibições
como, e principalmente, as relações consigo são históricas e sujeitas a amplas variações e
múltiplas combinações. Assim, as pesquisas genealógicas visam responder a seguinte
questão:
”Como nós constituímos nossa identidade por meio de certas técnicas éticas de si que se
desenvolveram desde a antiguidade até nossos dias?” (Foucault, 1994, p. 814)
4. A ética e o habitar1
A questão que me ocorre é a seguinte: haverá, para além destas variações e sem se opor a
elas uma figura que metaforize a dimensão ética da existência em toda a sua complexidade
e eficácia? Recorrendo aqui explicitamente a Heidegger proponho a casa, a morada, o
habitar2. Já no plano etimológico, ethos se refere tanto aos costumes como a morada. Na
verdade, hábitos e habitações compartilham a mesma raiz.

1
Nesta seção, o material que estou apresentando se baseia em grande parte no meu artigo Ética, saúde e
práticas alternativas (1995) em que as relações da ética com o habitar e deste com a saúde são mais
desenvolvidas.
2
Para as considerações que se seguem vali-me dos textos de Heidegger Batir habiter pen-ser (1986), Sérénité
(1990) e Pour Servir de Commentaire a Sérénité. Foi-me também de grande valia a fenomenologia do habitar
desenvolvida por E. Lévinas em Totalité et Infini (1990), embora no conjunto as elaborações levinianas sobre
a ética pretendam se colocar em oposição a Heidegger.
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

O homem é arremessado num mundo que ele não escolheu e é aí como a abertura ao que
deste mundo lhe vem ao encontro, ou seja, ele existe no sentido preciso de ser fora de si
mesmo, de ser o seu fora. Ora sustentar-se neste existir, e só assim se existe, exige um
espaço de separação, de recolhimento, de proteção que não encerre o existente numa
clausura, mas lhe ofereça uma abertura limitada em que se reduzam os riscos dos maus
encontros.
É claro que uma casa, qualquer feitio que ela tome pode ser concebida como um aparelho
para morar ou como um monumento a ser apreciado de fora. No entanto, para quem a
habita e enquanto a habita, a casa não é utensílio e objeto, tal como os demais entes. A casa
tem, como o próprio mundo, uma natureza pré-objetal, ela é como uma parte do mundo,
mas exatamente aquela parte em que podemos nos sentir relativamente abrigados. Pois
bem, considerar o ethos como uma casa, como uma instalação, é ver nele, nos códigos,
valores, ideais, posturas, condutas para consigo mesmo e para com os outros algo
equivalente à moradia.
O habitar sereno e confiado é a condição do gozar, do fruir, ou seja da experiência do corpo
como fonte de prazer – mesmo que limitado – livre dos riscos e das incertezas.
Mas o habitar sereno e confiado deve ser visto também como condição do trabalhar, ou
seja, do apropriar-se pelo trabalho dos elementos naturais do mundo para convertê-los
também em proteção, alimento e gozo.
Finalmente, é no relativo distanciamento dos acontecimentos do mundo “lá fora”,
propiciado pela habitação, que podemos desenvolver nossas capacidades cognitivas, tanto
na via do conhecimento representacional, calculador e científico, como na do jogo e da
criação, como na da meditação filosófica. O habitar sereno e confiado é assim também a
condição do pensar, do representar, do brincar e do experimentar, exatamente porque o
abrigo da casa nos dispensa uma acolhida que nos dispensa de maiores esforços.
Poderíamos também chegar a resultados semelhantes tomando como ponto de partida a
psicanálise, principalmente a psicanálise desenvolvida pelo grupo independente da escola
inglesa (Winnicott, Balint, Bollas, etc.) e pela psicologia do self (Kohut) cujas afinidades
com a filosofia de Heidegger já foram assinaladas por diversos autores3. Estudos
psicanalíticos daí provenientes nos revelam como o desenvolvimento psíquico de cada um
de nós exige que, nos inícios da vida, a criança seja acolhida e tenha a oportunidade de uma
inserção pré-objetalizada e pré-representativa no mundo. A mãe como “ambiente
facilitador” (Winnicott), os pais como “self-objetos” (Kohut) ou como “objetos
transformacionais” (Bollas) remetem-nos a esta condição em que os outros ainda não estão
plenamente diferenciados em sua alteridade, mas, ao contrário, cuidam da criança como se
fossem uma parte dela mesma. As obras destes autores revelam também que experiências
deste tipo continuam ocorrendo durante todo o processo normal de desenvolvimento e ao
longo de toda a vida. Há sempre ocasiões em que partes do ambiente social e físico nos
oferecem – gratuitamente – um certo resgate dessa relação primária com o entorno. Em
contrapartida, a ausência precoce destas experiências, que dão ao indivíduo a “quietude do

3
Elsa Oliveira Dias e Zeljko Loparic´, entre outros, já publicaram alguns trabalhos explorando estas
ressonâncias.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

centro” (Margaret Little), deixa marcas profundas no processo de desenvolvimento,


embora, naturalmente, seja o destino de todos nós o enfrentamento de situações de maior
diferenciação, isolamento, responsabilidade e risco. Contudo, é somente a partir de um
primordial sentir-se em casa que se criam as condições para as experiências de encontro de
alteridades e para os conseqüentes acontecimentos desalojadores.
Entre as partes do ambiente que, num processo normal, continuarão sempre a exercer, num
nível pré-reflexivo, estas funções protetivas, sustentadoras, acolhedoras, que nos oferecem
renovadamente a “quietude do centro”, ressaltamos as moradas, sejam as casas materiais de
madeira, pedra, tijolos ou mesmo papelão, sejam as moradas simbólicas proporcionadas
pelo ethos. Uma ética, na verdade, institui uma troca regulada de afetos e obrigações
recíprocas entre os indivíduos. É esta reciprocidade que permite que cada um possa, dentro
de certos limites, confiar, contar com a presença de alguns outros – em maior ou menor
número – como self-objetos em algumas circunstâncias. Mais que isso, a reflexividade
implicada nas éticas, ou seja, as relações de si para consigo, fazem com que partes de um
indivíduo possam assumir com alguma autonomia e diante dele mesmo certas funções antes
exercidas pelos outros. Poderíamos dizer, então, que o sujeito ético pode desenvolver a
capacidade de manter e, numa certa medida, edificar sua própria morada com uma relativa
independência.
5. As formas históricas do habitar o mundo
Gostaria agora de tratar com a brevidade que a circunstância requer das formas históricas
do habitar o mundo.
Numa rapidíssima recapitulação poderíamos nos reportar, de início, ao que chamei de ética
coesiva. O testemunho de antropólogos e historiadores nos ensina um pouco acerca do
ethos das chamadas civilizações fechadas. Observa-se aí um enraizamento quase fusional
da comunidade na natureza – ambas miticamente interpretadas – e de cada ‘indivíduo’ na
sua comunidade. O cosmos e a ordem social confundem-se e em ambos as posições de cada
um estão perfeitamente definidas, deixando um reduzido espaço para a individualização
singularizada. Corpo, vestes, casa e mundo; narrativas, rituais e atividades cotidianas estão
perfeitamente entrelaçados e integrados a um sistema de compreensão e ação. No centro
dessa ordem estão os espaços, tempos, personagens, gestos e falas sagrados em que a
realidade se mostra verdadeiramente e em torno dos quais se estende a trama do sentido. O
ethos coesivo domina, englobando sob o mesmo teto os seres humanos, os animais, as
plantas e forças da natureza. Trata-se de uma morada ampla e sólida, resistente e exclusiva.
Fora dela é o pavor do nada, fora dela, os inimigos.
Vai ser da perda de vigência desta casa sólida, resistente e comunitária que nascerão os
esforços mais ou menos explícitos de reconstrução das moradas; trata-se do campo em que
se configura o que os modernos chamarão de Razão Prática, campo que permite e exige
uma reflexão acerca dos modos desejáveis e legítimos de conduta. Surgem então questões
do tipo: como se conduzir adequadamente com os outros e consigo mesmo?; como e sobre
que condutas exercer um autodomínio?; como moderar-se, como conter sua natureza?;
como educar-se e trabalhar na construção de sua subjetividade?; como cuidar de si?
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Este pode ser o momento de acrescentar algumas palavras do próprio Foucault que me
parecem corroborar, incidentalmente, a aproximação dos seus estudos sobre as técnicas
éticas de si à problemática heideggeriana do habitar. Diz ele:
“Ocupar-se de si – o que de uma forma ou de outra está presente em toda ética desde a
falência da ética coesiva – não é uma preparação para a vida; é uma forma de vida. (...)
Não há outro fim nem outro termo além do propósito de estabelecer-se junto a si, ‘residir
em si mesmo’, fazer aí sua morada” (Foucault, 1994, p. 356).
Em muitas sociedades e épocas, perguntas a respeito de que casa construir e de como fazê-
lo podiam ser respondidas tomando-se como pressupostas as posições dos indivíduos na
trama social em que existiam com seus estatutos e papéis institucionalizados. Gerava-se,
assim, o que podemos designar como uma ética da excelência (MacIntyre, 1988; Ferry,
1995) ou uma estética existencial (Foucault): cada um era chamado a realizar por conta
própria o trabalho de se impor um estilo de vida que se orientava pela idéia de perfeição,
auto-superação, excelência no exercício de sua função e na ocupação do seu lugar.
Em níveis mais avançados de individualização, começam a faltar os pressupostos para uma
ética da excelência exclusiva e dominante, embora uma certa noção de excelência esteja
presente até os tempos modernos orientando à distância os movimentos de subjetivação.
Vai ocorrer porém uma fragilização das identidades posicionais e, em decorrência, dá-se
uma problematização muito mais severa das condutas individuais. O resultado foi o
surgimento e aperfeiçoamento do que Foucault denominou de cultura das práticas de si,
dos cuidados, às vezes obsessivos, de cada um consigo mesmo. Exames regulares e
sistemáticos da própria consciência, práticas de registros de vida e de escrita de si, trocas de
cartas pessoais, confissões, etc., foram alguns dos procedimentos desenvolvidos e
acionados para a sujeição dos indivíduos a seus próprios cuidados: é como se a partir daqui
cada um se convertesse plenamente no edificador de sua própria morada, de uma morada
talvez ainda bastante padronizada, mas já feita sob medida para cada um. Acentua-se desde
então a dimensão ascética da conduta ética, ao mesmo tempo em que se reduz a sua
dimensão estética. O problema já não é o de impor-se um estilo, mas o de renunciar em
nome de alguma noção de pureza ou da expectativa de um ganho futuro.
Embora estes procedimentos de cuidados de si tenham desde a antigüidade romana e, muito
particularmente, desde o advento da cultura cristã se convertido numa verdadeira cultura e,
assim, contribuído decisivamente para a constituição das subjetividades modernas, foi
apenas quando o cuidado de si veio a carecer quase que completamente de uma base
coletiva, consensual e tradicional na definição das metas e das formas legítimas da ação que
estas práticas conquistaram seu pleno florescimento. Em outras palavras, são as situações
de desenraizamento profundo tanto das sociedades em relação às suas condições naturais,
como dos indivíduos em relação às suas comunidades que engendram as mais intensas
exigências de cuidar de si e de construir/reconstruir nossas moradas. Ao mesmo tempo,
naturalmente, são estas as situações em que mais desnorteados estamos para empreender
esta construção. A tendência dominante nestes tempos será, então, a de se colocar a eficácia
das soluções éticas no lugar que antes fora ocupado pela excelência: trata-se agora de
escolher ou justificar escolhas em termos de seus efeitos, das suas conseqüências para a
vida, para o sucesso, para felicidade de cada um ou do conjunto.
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É neste contexto, o contexto do individualismo moderno, que a ética liberal articula um


projeto de mundo e promove procedimentos de auto-domínio organizados pelas noções de
soberania do indivíduo e de mérito individual. Mas é também neste contexto que, diante
dos impasses e precariedades dos liberalismos, emergem e se consolidam as práticas
disciplinares, tão focalizadas por Foucault em suas pesquisas sobre as bio-tecnologias.
Estas disciplinas, todavia, além de fazerem parte do campo das técnicas de dominação e
governo, geram suas próprias técnicas éticas de si organizadas pelas noções de integração,
ajustamento e funcionalidade. Por outro lado, é do trituramento de certos valores e posturas
liberais pelas práticas disciplinares nos contextos da vida pública e doméstica que emergem
os mais intensos apelos da ética romântica, organizada pelas noções de pertinência,
participação e autenticidade.
Minha sugestão, desenvolvida detalhadamente em outro trabalho (Figueiredo, 1992) é a de
que jamais se pensem liberalismos, disciplinas e romantismos em suas puras diferenças e
aparentes antagonismos. A “presença” de cada um dos pólos de nossa cultura
contemporânea deveria ser concebida a partir, talvez, da noção de diferença proposta por
Derrida:
“A diferença é o que faz com que o movimento de significação não seja possível a não ser
que cada elemento dito ‘ presente’, que aparece sobre a cena da presença, se relacione
com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento passado e
deixando-se moldar pela marca de sua relação com o elemento futuro(...) é necessário que
um intervalo o separe do que não é ele mesmo para que ele seja ele mesmo, mas este
intervalo que o constitui em presente deve, no mesmo lance, dividir o presente em si
mesmo, cindindo-o” (Derrida, 1991, p. 45).
Acredito que os liberalismos, as disciplinas e os romantismos sejam, cada um deles, o
diferendo (o diferente e o adiamento) dos outros dois, que cada um deles seja o rastro do
passado e o rastro do futuro, rastros dos outros que fazem de cada um o que ele é, mas que,
por isso mesmo, fazem de cada um um presente cindido. Só assim, sob o signo da
diferença, podem ser pensados os três pólos constitutivos da ética contemporânea e é sob
este signo que se constituem nossas subjetividades marcadas pelos rastros dos liberalismos,
das disciplinas e dos romantismos. É o caráter inapreensível deste “signo” que torna o
contemporâneo um território da ignorância: neste território, cada posição, cada identidade
contém em si mais – e menos – do que é capaz de reconhecer. É a diferença na sua
produtividade invisível que nos faz a todos uma realidade heterogênea de rastros: rastros
liberais, rastros disciplinares, rastros românticos. Uma “realidade”, portanto, nunca presente
a si mesma, já que constituída sempre pelos intervalos que nos separam dos outros e de nós
mesmos.
Creio que é desta experiência perturbadora de sermos habitados por três diferentes sem
podermos habitar serena e confiadamente uma só casa, é desta experiência de radical
desterritorialização que emerge uma figura paradigmática da cultura do narcisismo, como a
do “mínimo-eu” estudada por Christopher Lash. O mínimo-eu é o produto do esforço de
conservar o idêntico na sua presença mais forte e, supostamente, menos cindida: aqui,
agora. A ética de sobrevivente do mínimo-eu, se é que de ética ainda se trata, implica num
investimento maciço em si mesmo, sem a disposição para assumir uma história e para fazer
promessas. O mínimo-eu é o preço pago pela recusa em ser apenas uma composição
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

dinâmica de rastros heterogêneos. É o esforço desesperado, auto-mutilante, mas infrutífero,


de estar presente a si mesmo sem faltas, sem falhas, sem restos e sem sobras.
Penso que é apenas a partir de uma radical experiência de desterritorialização e, inclusive,
de uma observação rigorosa da cultura do narcisismo que Foucault pode elaborar sua
derradeira mensagem: a proposta de uma renovada estética existencial. Fazer da vida uma
obra de arte, sem qualquer compromisso com a autenticidade (crítica a Sartre; Foucault,
1994, p. 392, 617), sem qualquer procura de uma verdade de si (crítica ao cultivo de si
californiano; Foucault, 1994, p. 402, 624): a pura e simples afirmação de uma arte de viver,
tal como ele sugere ao movimento gay, em contraposição a qualquer ciência ou
conhecimento científico da sexualidade (Foucault, 1994, p. 735).
Ora, como entendermos esta idéia? Decididamente, fazer da vida uma obra de arte não
guarda nenhum parentesco com os esteticismos, seja o dos antigos dandys dos fins do
século passado, seja o dos novos yuppies do nosso fim de século. Não se trata para
Foucault, obviamente, de maquiar, decorar e perfumar a vida. Uma outra interpretação
possível seria a de supormos em Foucault uma nostalgia grega, ou seja, um desejo de
reeditar a estética existencial dos antigos, o que daria ao pensamento derradeiro de um
“pós-moderno” como Foucault um caráter paradoxalmente anacrônico. Julgo, porém que a
partir da estética de Nietzsche e de sua noção de grande estilo podemos fazer uma leitura
muito mais instigante da proposta foucaultiana. Em um Fragmento Nietzsche afirma:
“A grandeza de um artista não se mede pelos” belos sentimentos “que ele suscita, mas
pelo grau de aproximação ao grande estilo, pelo grau em que se é capaz do grande estilo.
Este estilo tem em comum com a grande paixão o fato de desdenhar o prazer, de se
esquecer de persuadir, de mandar, de querer... Dominar o caos que se é, obrigar o próprio
caos a tornar-se forma”(Nietzsche, 14(61) de 1988).
O grande estilo é o que resulta da capacidade de nos tornarmos senhores do caos que
somos em nós mesmos, sem mutilar as forças em combate, forçando o caos a tomar forma
(Ferry, 1995). Fazer da vida uma obra de arte seria assim suportar todas as tensões
instituídas pela diferença, pelos intervalos, pelos vestígios, pelas antecipações, pelos
diferendos de que somos feitos. Nesta perspectiva, fazer da vida uma obra de arte seria o
mais radical contraponto ao mínimo-eu que se constitui e conserva mediante as mais
severas mutilações.
Se há alguma viabilidade nesta proposta, não se sabe e talvez apenas o futuro nos diga.
Aparentemente, contudo, a carga de tensão que ela exige suportar e o potencial trágico que
ela contém jamais permitiriam que uma estética existencial concebida a partir da noção de
grande estilo pudesse ser amplamente acolhida e experimentada. Na verdade, por enquanto
o que vemos é que as experiências de desenraizamento radical, capazes de gerar, por um
lado, a cultura narcisista do mínimo-eu, vem gerando, de outro lado, formas extremamente
mortíferas, e igualmente narcisistas, de reter-ritorialização. A falta de uma casa, a falta de
um ethos confortável e sustentador está, creio eu, na raiz das ondas nacionalistas, racistas e
xenófobas dos últimos anos; está na raiz de um cultivo belicoso e intolerante dos
particularismos e das pequenas diferenças, está na raiz dos muitos processos agressivos de
retribalização.
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Infelizmente, já não podemos contar com Foucault para nos acompanhar nesta difícil
travessia.
Recebido para publicação em abril/1995

ABSTRACT: Based on an interview given by Foucault where he acknowledges the work


of Heidegger and Nietzsche as the two main pillars of his own thought, the essay explores
one way of approximating Heidegger and Foucault: the understanding of ethics as dwelling
and inhabitation. The renewal of thought on ethics which takes place in the latest works by
Foucault, through a sharp separation between ethics and moral philosophy and through an
analysis of ethics as procedures and techniques of subjectivation – as technologies of self –
are being here analysed from the point of view of ethics as dwelling and inhabitation.
Finally, Foucault's last message, his proposition of ethics understood as an new esthetic of
existence is here recuperated and discussed.
KEYWORDS: Foucault, Heidegger, ethics, modes of subjectivation, esthetic of existence.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Do império do olhar à arte de ver


JOÃO AUGUSTO FRAYZE-PEREIRA
Professor do Departamento de Psicologia Social e do
Trabalho do IP- USP

RESUMO: Martin Jay (1986) e John Rajchman (1988) escreveram ensaios sobre o espaço
da visão e do visual na obra de Foucault. Porém, se a questão é a mesma, o modo de ver
dos autores é oposto. Interrogando esses dois ensaios, este artigo pretende configurar uma
outra visão sobre o império do olhar e a arte de ver nos escritos de Foucault. A relação
entre visão e pensamento é considerada na perspectiva das problematizações.
KEYWORDS: Foucault, olhar, visão, visão-pensamento, arte de ver.

Império do Olhar e Arte de Ver são expressões que aparecem nos títulos de dois ensaios
sobre Foucault. O primeiro é de Martin Jay, publicado pela primeira vez, em Londres, em
1986. O segundo é de John Rajchman, publicado em Nova York, em 1988. Ambos tratam
de um mesmo tema: o espaço da visão e do visual na obra de Foucault. No entanto, se o
tema é o mesmo, o modo de ver dos comentadores é diverso, oposto. E é a nossa intenção,
ou pretensão, interrogar a relação entre os dois para ver melhor o sentido do olhar e a
expressão do ver em alguns escritos de Foucault.
Não nos parece necessário, nesse momento, fazer um comentário sobre a importância da
visão na Filosofia, especialmente na Filosofia Francesa, de Descartes ao próprio Foucault.
Apenas como um lembrete e tendo por referência alguns pensadores contemporâneos, por
exemplo, a questão do visível e do olhar pode ser encontrada, largamente tematizada, nas
obras de Merleau-Ponty, Sartre, Derrida, Barthes, Lyotard, Sarah Koffman, Louis Marin,
Deleuze, Starobinski, entre outros. E, além dos filósofos, pode-se acrescentar toda uma lista
de poetas (Baudelaire, Valéry, Appolinaire, Reverdy, todos os surrealistas, Ponge e
Bonnefoy) e, é claro, também alguns romancistas como, por exemplo, Robbe Grillet e
Michel Tournier. Quer dizer, Martin Jay (1989, p. 199) apóia-se nas obras de autores como
esses e de outros mais para afirmar – há uma “obsessão pelo visual entre os franceses”. E
dela Foucault não escapou. Mas, fez a crítica do visual e dos poderes do olhar, elaborando
um discurso que se pode designar, com base em Jay (1989), “antivisão”.
Ora, a fascinação de Foucault pelo visual está presente desde o início de sua carreira, como
se pode notar lendo a biografia escrita por Didier Eribon (1990). Essa fascinação coincide
com seus primeiros interesses pela Fenomenologia de Merleau-Ponty, pela Ontologia de
Heidegger e, sobretudo, pela Psicanálise Existencial de Binswanger. São pensadores que
repudiam radicalmente o tradicional primado cartesiano de um sujeito contemplativo,
separado do mundo. Tanto em Binswanger quanto em Merleau-Ponty surge a idéia de uma
visão encarnada, cruzamento reversível do visível e do invisível, do vidente e do visível, na
carne do mundo que poderia ser o princípio de um sentido positivo. Foucault escutou
atentamente a face oculta da hegemonia do visual. E bem antes de sua crítica ao
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Panoptismo – crítica que se tornou célebre e influente – seus escritos dos anos 60
testemunham a sua consciência do primado do visual e de suas sinistras implicações.
História da loucura (1961), O nascimento da clínica (1963) e As palavras e as coisas
(1966) são marcos dessa notável apreensão.
Na História da loucura, Foucault (1972) começa a análise mostrando que a constituição da
loucura moderna principia com a dissolução da unidade palavra-imagem – unidade presente
na Idade Média e no Renascimento e que, ao se desfazer, dará margem à emergência de
figuras da loucura desprovidas de toda e qualquer significação escatológica. Escreve
Foucault: “entre o verbo e a imagem, entre aquilo que é figurado pela linguagem e aquilo
que é dito pela plástica, a bela unidade começa a se desfazer: uma única e mesma
significação não lhes é imediatamente comum. (...) Figura e palavra ilustram ainda a
mesma fábula de loucura no mesmo mundo moral; mas logo tomam duas direções
diferentes, indicando, numa brecha ainda apenas perceptível, aquela que será a grande linha
divisória na experiência ocidental da loucura” (Foucault, 1972, p. 28).
Ora, para o espírito clássico, a essência da loucura era a cegueira, um termo que “fala dessa
noite de quase-sono que envolve as imagens da loucura, atribuindo-lhes, em seu
isolamento, uma invisível soberania; mas fala também de crenças mal fundamentadas,
juízos que se enganam, de todo esse pano de fundo de erros inseparável da loucura”
(Foucault, 1972, p. 260). E, nesse sentido, a loucura era, também, ofuscamento que
significa “a noite em pleno dia, a obscuridade que reina no próprio centro do que existe de
excessivo no brilho da luz (...). Dizer que a loucura é ofuscamento é dizer que o louco vê o
dia, o mesmo dia que vê o homem de razão (ambos vivem na mesma claridade), mas vendo
esse mesmo dia, nada além dele e nada nele, vê-o como vazio, como noite, como nada (...).
E, acreditando ver, permite que venham até ele, como realidades, os fantasmas de sua
imaginação e todos os habitantes das noites”. Em suma, delírio e ofuscamento formam uma
relação que constitui a essência da loucura, na mesma medida que o relacionamento
verdade-clareza constitui a razão clássica. “Descartes fecha os olhos e tapa os ouvidos para
melhor ver a verdadeira claridade do dia essencial; com isso, garante-se contra o
ofuscamento do louco que, abrindo os olhos, vê apenas a noite e, nada vendo, acredita ver
quando na verdade imagina” (Foucault, 1972, p. 262). Ora, se o círculo do dia e da noite,
como resume Foucault, circunscreve o mundo clássico, “o desatino mantém a mesma
relação com a razão que o ofuscamento com o brilho do dia. E isto não é uma metáfora.
Estamos no centro da grande cosmologia que anima toda a cultura clássica”. Porém, é
quando nasce o asilo, entre o fim do século XVIII e o começo do XIX, que a definição
visual da loucura se estreita e atinge um limite: no asilo, a loucura só existe como ser
visto...”1. Trata-se de um momento concreto na gênese da loucura moderna, momento que é
da “ordem da observação e da classificação” e que supõe a estranheza dos corpos dos
internados oferecidos à visão plena de um público burguês ávido de diversão.
Com efeito, durante o século XVIII, o hábito de exibir publicamente a loucura em carne e
osso, possuía um caráter quase institucional. Quando havia bom tempo, Bicêtre chegava a
receber 2000 pessoas por dia que pagavam para ver “um padre irlandês que ‘dormia na
palha’, um capitão de navio que ficava furioso vendo homens, ‘pois tinha sido a injustiça
dos homens que o havia tornado louco’, um jovem ‘que cantava de modo encantador’”
(Foucault, 1972, p. 162). Acima do silêncio dos asilos, a loucura é configurada em
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espetáculos nos quais os loucos são monstros, isto é, “seres ou coisas que merecem ser
mostrados”. E, nessas exposições, não há o que temer: a visão que deles se tem distrai.
Coisa a ser vista, é do outro lado das grades que a loucura é exibida: “ animal de estranhos
mecanismos, bestialidade da qual o homem, há muito tempo, está abolido” (p.163). Assim,
diante do espectador a loucura encontra-se do outro lado – ela é uma ausência total de
razão. E sob o seu olhar – o louco é uma individualidade singular cujas características
próprias distinguem-se daquilo que é encontrável no não-louco, isto é, no indivíduo
razoável que é o seu juiz. Para este, o louco é, portanto, o outro (no sentido da exceção)
entre os outros.
Com o advento do asilo, o louco e o não-louco encontram-se mais próximos. A barreira das
grades é abolida. No entanto, mais do que nunca a loucura adquire o estatuto de algo a
olhar-se. Se na loucura (como uma realidade cognoscível) há algo que diz respeito ao
indivíduo razoável, não é porque a loucura contesta para ele a totalidade do ser humano,
mas porque contribui para aquilo que se pode saber do homem. “Não é por acaso (...) que o
século XIX perguntou inicialmente à patologia da memória, da vontade e da pessoa o que
era a verdade da lembrança, do querer e do indivíduo” (Foucault, 1972, p. 481). Isto é, o
louco ganhou o estatuto de um documento vivo. Através dele, pode-se chegar a um
conhecimento do homem. E essa condição é enigmática, pois ao mesmo tempo que é objeto
de conhecimento, a loucura oferece ao homem a possibilidade de um auto-reconhecimento.
A contemplação da loucura adquire um novo sentido.
“Na época das visitas a Bicêtre ou a Bedlam, ao olhar-se o louco avaliava-se, do exterior,
toda a distância que separava a verdade do homem de sua animalidade. Agora, ele é olhado
simultaneamente com mais neutralidade e mais paixão. Mais neutralidade, uma vez que
nele se descobrirão as verdades profundas do homem, essas formas adormecidas nas quais
nasce aquilo que ele é. E mais paixão também, uma vez que não se poderá reconhecê-lo
sem reconhecer a si mesmo, sem ouvir subir em si mesmo as mesmas vozes e as mesmas
forças, as mesmas estranhas luzes” (Foucault, 1972, p. 537). Esse olhar que promete a
contemplação de uma verdade do homem não pode evitar o espetáculo de um impudor que
é o seu próprio: não vê sem ver a si mesmo. E, com isso, o louco fortalece seu poder de
atração e fascinação, pois carrega mais verdades do que a sua própria. Contudo, com as
promessas de conhecimento e cura que o asilo passou a oferecer, o costume de exibir a
loucura em espetáculos públicos gradualmente desapareceu.
Em suma, nesse percurso através do mundo clássico, Foucault mostra que a loucura ficou
reduzida a um simples espetáculo, a um teatro da desrazão.
O nascimento da clínica é para muitos um longo posfácio à História da loucura. Se na
análise da loucura, o poder disciplinar já se delineia na passagem para a época asilar, na
análise da clínica, Foucault (1977) sublinha o poder disciplinar do próprio olhar, descrito
minuciosamente como um poder alienante e objetivante. E aí, se o tema é de índole
sartriana – M. Jay (1989, p. 204) lembra o célebre capítulo sobre o olhar em O ser e o nada
– a sensibilização para essa temática veio a Foucault de Canguilhem – que na época se
ocupava com a visão como modelo da cognição no pensamento ocidental. Quer dizer, O
nascimento da clínica representa um segundo passo na crítica do visual. Escreve Foucault:
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

“O espaço da experiência parece identificar-se com o domínio do olhar atento, da vigilância


empírica aberta apenas à evidencia dos conteúdos visíveis. O olho torna-se o depositário e a
fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só recebe à medida que
lhe deu à luz; abrindo-se sobre a verdade de uma primeira abertura: flexão que marca, a
partir do mundo da clareza clássica, a passagem do ‘Iluminismo’ para o século XIX”
(Foucault, 1977, p. XI-XII).
Esse novo olhar da medicina, entretanto, não é a visão interior que os cartesianos
privilegiam em detrimento das percepções sensíveis. Sublinha, ao contrário, “o poder
soberano do olhar empírico” que, agora, gira em torno dos volumes, das superfícies sólidas
e opacas. E diz Foucault, “nenhuma luz poderá dissolvê-las nas verdades ideais; mas a
aplicação do olhar sucessivamente as despertará e lhes dará objetividade. O olhar não é
mais redutor, mas fundador do indivíduo em sua qualidade irredutível. E, assim, torna-se
possível organizar em torno dele uma linguagem racional. O objeto do discurso também
pode ser um sujeito, sem que as figuras da objetividade sejam por isso alteradas. Foi esta
reorganização formal e em profundidade, mais do que o abandono das teorias e dos velhos
sistemas, que criou a possibilidade de uma experiência clínica: ela levantou a velha
proibição aristotélica; poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o indivíduo um discurso de
estrutura científica” (Foucault, 1977, p. XIII).
E bem mais adiante, Foucault continua: “O olhar penetra no espaço que ele estabeleceu
como objetivo percorrer. A leitura clínica, em sua primeira forma, implicava um sujeito
exterior e decifrador que, a partir e além do que soletrava, ordenava e definia parentescos.
Na experiência anátomo-clínica, o olho médico deve ver o mal expor-se e dispor-se diante
dele à medida que penetra no corpo, avança por entre seus volumes, contorna ou levanta as
massas e desce em sua profundidade. A doença não é mais um feixe de características
disseminadas pela superfície do corpo e ligadas entre si por concomitâncias e sucessões
estatísticas observáveis; é um conjunto de formas e deformações, figuras, acidentes,
elementos deslocados, destruídos ou modificados que se encadeiam uns com os outros,
segundo uma geografia que se pode seguir passo a passo. Não é mais uma espécie
patológica inserindo-se no corpo, onde é possível; é o próprio corpo tornando-se doente”
(Foucault, 1977, p. 155).
Quer dizer, é a “figura do invisível-visível” que organiza a percepção clínica, anátomo-
patológica, do médico. Porém, essa organização só foi possível porque a morte se integrou
epistemologicamente à experiência médica, fazendo com que a doença se despregasse da
contranatureza e viesse a tomar corpo no corpo vivo dos indivíduos.
É, sem dúvida, decisivo para a nossa cultura que o primeiro discurso científico enunciado
por ela sobre o indivíduo tenha tido que passar por este momento da morte. É que o homem
ocidental só pôde se constituir a seus próprios olhos como objeto de ciência, só se colocou
no interior de sua linguagem, e só se deu, nela e por ela, uma existência discursiva por
referência à sua própria destruição: da experiência da Desrazão nasceram todas as
psicologias e a possibilidade mesma da psicologia; da colocação da morte no pensamento
médico nasceu uma medicina que se dá como ciência do indivíduo. E de modo geral, a
experiência da individualidade na cultura moderna está talvez ligada à da morte: dos
cadáveres abertos de Bichat ao homem freudiano, uma relação obstinada com a morte
prescreve ao universal sua face singular e dá à palavra de cada um o poder de ser
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indefinidamente ouvida; o indivíduo lhe deve um sentido que nele não se detém. A divisão
que ela traça e a finitude, cuja marca ela impõe, ligam paradoxalmente a universalidade da
linguagem à forma precária e insubstituível do indivíduo. O sensível, inesgotável à
descrição, e que tantos séculos desejaram dissipar, encontra finalmente na morte a lei de
seu discurso. Ela permite ver, em um espaço articulado pela linguagem, a profusão dos
corpos e sua ordem simples (Foucault, 1977, p. 227).
Em suma, a visão desempenha nessa cadaverização da vida um papel fundamental. Por ela
não só “a morte abandona seu velho céu trágico, tornando-se o núcleo lírico do homem: sua
invisível verdade, seu visível segredo”, mas também é pela percepção da morte na vida que
a medicina se torna importante para a constituição das ciências do homem: “importância
que não é apenas metodológica, na medida em que ela diz respeito ao ser do homem como
objeto de saber positivo” (Foucault, 1977, p. 227).
Ao abrir As palavras e as coisas com Velázquez e As Meninas, Foucault (1990) revela,
dando continuidade à linha de pesquisa iniciada nas obras anteriores, até que ponto o
humanismo repousa num campo epistemológico cujo princípio é visual. Escreve:
“Quando a história natural se torna biologia, quando a análise das riquezas se torna
economia, quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se faz filologia e se desvanece
esse discurso clássico onde o ser e a representação encontravam seu lugar-comum, então,
no movimento profundo de uma tal mutação arqueológica o homem aparece com sua
posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece: soberano submisso,
espectador olhado, surge ele aí, nesse lugar do Rei que, antecipadamente, lhe designavam
Las Meninas, mas donde, durante longo tempo, sua presença real foi excluída. Como se
nesse espaço vacante, em cuja direção estava voltado todo o quadro de Velázquez, mas que
ele, contudo, só refletia pelo acaso de um espelho e como que por violação, todas as figuras
de que se suspeitava a alternância, a exclusão recíproca, o entrelaçamento e a oscilação (o
modelo, o pintor, o rei, o espectador) cessassem de súbito sua imperceptível dança, se
imobilizassem numa figura plena e exigissem que fosse enfim reportado a um olhar de
carne todo o espaço da representação” (Foucault, 1990, p. 328).
A substituição do espectador ausente (o rei) pelo espectador olhado (o homem) significa
que o homem é ao mesmo tempo um “meta-sujeito” (pretensamente neutro) do
conhecimento e o objeto desse conhecimento (Jay, 1989). E esse sujeito, é o que importa
destacar, é função e não condição de uma visão todo poderosa, questão – a de ser observado
por um olho desconhecido e onipresente – que é circunscrita com a análise do Panoptismo
em Vigiar e punir (1991). Mas, se é nessa obra que Foucault chega a demonstrar o sutil
mecanismo que permite à dominação ocular ultrapassar os limites de um soberano que tudo
vê, desde a História da loucura, e sobretudo em O nascimento da clínica, o autor já punha
o dedo na relação entre forças políticas e sociais, de um lado, e o poder objetivante do
olhar, do outro, atribuindo, por exemplo, às reformas da Revolução Francesa o
aparecimento da medicina moderna (Foucault, 1977, p 56-58).
Ora, é preciso observar que em todas essas pesquisas de Foucault há uma noção que dá
suporte às suas análises. Trata-se da noção de espaço. E, como demonstra John Rajchman
(1988, p. 102), uma grande parte das discussões de Foucault sobre o espaço é consagrada
ao problema da visibilidade. Os espaços são destinados a fazer as coisas visíveis, visíveis
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de um modo específico. Com efeito, se ver, no trabalho de Foucault, tem o sentido de uma
operação que abre para o “impensado visual”, nas histórias da Loucura, da Clínica e da
Prisão são novos modos de ver que são revelados através de análises da construção de
espaços. Hospitais, albergues, banhos públicos, escolas, prisões, museus, asilos – são
espaços nos quais pode-se reconstituir a racionalidade de uma construção elaborada do que
pode ser visto. São “espaços de uma visibilidade construída”. E é a “arte da luz” e o visível
que tais espaços dispõem que tornam evidentes certos aspectos de nós mesmos. Então, na
análise da prisão, Foucault encontra uma inteligibilidade que a conecta às práticas
pedagógicas, ao exército, às formas de divisão do trabalho, etc. Quer dizer, Foucault,
segundo Deleuze (1988 p. 62), tem uma concepção do visível que é próxima à de Delaunay
para quem a luz cria suas próprias formas e seus próprios movimentos. Delaunay dizia –
“Cézanne quebrou a fruteira e nós não devemos colá-la novamente, como fizeram os
cubistas”. Ou seja, Foucault, com sua visão, rompe com o visível, mas circunda o evento
com uma espécie de “poliedro de inteligibilidade” cujos lados se expandem
indefinidamente em muitas direções (Rajchman, 1988, p. 107).
Ora, essa imagem visual do “poliedro de inteligibilidade” oferecida por Foucault aplica-se à
sua própria obra. Seus escritos, como se sabe, mudam quanto a objetivos, objetos e
métodos. Seu pensamento é pontuado por transformações no modo como concebe sua
própria tarefa filosófica.
Em O uso dos prazeres (1984c), esse processo aparece como um exercício ou ascese, como
um movimento de separação do filósofo em relação a si mesmo, através do ensaio que é “o
corpo vivo da filosofia”, uma experiência transformadora do modo de ver as coisas. Mas,
Foucault acrescenta: há uma ironia nesse processo, pois o esforço para liberar alguém de si
mesmo torna esse trabalho o seu próprio trabalho. Esse texto é belíssimo e vale a pena citá-
lo por inteiro. Interrogando-se quanto aos motivos que o levaram a realizar sua obra,
Foucault, então, escreve:
“Para alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade –
em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco
de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que
permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse
apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível o
descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se
se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é
indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Talvez me digam que esses jogos
consigo mesmo têm que permanecer nos bastidores: e que no máximo eles fazem parte
desses trabalhos de preparação que desaparecem por si sós a partir do momento em que
produzem seus efeitos. Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade
filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não
consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente
em vez de legitimar o que já se sabe ? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico
quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade
e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade
ingênua: mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento,
através do exercício de um saber que lhe é estra-nho(...). Os estudos que se seguem, assim
como outros que anteriormente empreendi, são estudos de ‘história’ pelos campos que
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

tratam e pelas referências que assumem; mas não são trabalhos de ‘historiador’. O que
não quer dizer que eles resumam ou sintetizem o trabalho feito por outros; eles são – se
quisermos encará-los do ponto de vista de sua ‘pragmática’ – o protocolo de um exercício
que foi longo, hesitante, e que freqüentemente precisou se retomar e se corrigir. Um
exercício filosófico: sua articulação foi a de saber em que medida o trabalho de pensar sua
própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e
permitir-lhe pensar diferentemente. Teria eu razão em correr esses riscos ? Não cabe a
mim dizê-lo.(...) Tal é ironia desses esforços feitos a fim de mudar-se a maneira de ver,
para modificar o horizonte daquilo que se conhece e para tentar distanciar-se um pouco.
Levam eles, efetivamente, a pensar diferentemente? Talvez tenham, no máximo, permitido
pensar diferentemente o que já se pensava e perceber o que se fez segundo um ângulo
diferente e sob uma luz mais nítida. Acreditava-se tomar distância e no entanto fica-se na
vertical de si mesmo. A viagem rejuvenesce as coisas e envelhece a relação consigo.
Parece-me que seria melhor perceber agora de que maneira, um tanto cegamente, e por
meio de fragmentos sucessivos e diferentes, eu me conduzi nessa empreitada de uma
história da verdade: analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as sociedades,
nem suas ‘ideologias’, mas as problematizações através das quais o ser se dá como
podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se
formam. A dimensão arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da
problematização; a dimensão genealógica, sua formação a partir das práticas e de suas
modificações. Problematização da loucura e da doença a partir de práticas sociais e
médicas, definindo um certo perfil de ‘normalização’; problematização da vida, da
linguagem e do trabalho em práticas discursivas obedecendo a certas regras ‘epistêmicas’;
pro-blematização do crime e do comportamento criminoso a partir de certas práticas
punitivas obedecendo a um modelo ‘disciplinar’. Gostaria de mostrar, agora, de que
maneira, na Antigüidade, a atividade e os prazeres sexuais foram problematizados através
de práticas de si, pondo em jogo os critérios de uma ‘estética da existência’ “(Foucault,
1984c, p. 13-15).
Em suma, a “nova luz” pela qual Foucault viu o que se realizava em sua obra foi a luz da
“problematização”. Analisar a história da loucura, da doença, do crime é ver tipos
específicos de perigo ou problemas que evidenciam um modo novo e particular de concebê-
los e de lidar com eles. Então, segundo Foucault (1984c), o que ele mesmo evidenciou em
sua obra prévia é como as pessoas viram o perigo em tornar-se louco, doente, criminoso,
como elas lidavam com esses perigos e como eram tornados visíveis ou espacializados no
conhecimento e na ação.
O que sempre esteve em questão é “através de quais jogos de verdade o homem se dá seu
ser próprio a pensar quando se percebe como louco, quando se olha doente, quando reflete
sobre si como ser vivo, ser falante, e ser trabalhador, quando ele se julga e se pune
enquanto criminoso? Através de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como
homem de desejo?”(Foucault, 1984c, p. 12).
Essa nova perspectiva da “problematização” põe o foco sobre as preocupações éticas do
filósofo e sobre o caráter autobiográfico de sua obra. Nos últimos cinco anos de vida, em
duas entrevistas, declarou:
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1°) “Cada vez que eu tentei fazer um trabalho teórico foi tendo por base elementos de
minha própria experiência – sempre nas relações que eu via ocorrerem à minha volta. Foi
na verdade porque eu pensei que reconhecia algo arruinado ou disfuncional no que eu via,
quer nas instituições com as quais eu lidava, quer nas minhas relações com os outros, que
eu realizei uma particular parte de uma obra que são diferentes fragmentos de uma
autobiografia” (Foucault, 1981, p.30-31).
2°) “Eu gostaria de fazer a genealogia dos problemas, das problemáticas. Meu ponto é que
nem tudo é ruim, mas que tudo é perigoso, e isso não é a mesma coisa que dizer que é mau.
Se tudo é perigoso, então, temos algo a fazer” (Hoy, 1986, p. 343).
Essa “arte de ver os problemas”, como aparece designada em sua última obra, Foucault
(1984c) relaciona à “escolha político ética” que um indivíduo faz, “determinando qual é o
real perigo” a ser enfrentado. A escolha de ver aquilo contra o qual nós temos de lutar para
nos libertarmos ( e nos libertarmos de nós mesmos) é uma escolha perigosa, porque é um
salto no ar: não temos, a priori, qualquer imagem dessa liberdade. Nesse caso, o perigo não
vem do risco de falharmos em nos tornarmos o que estamos destinados a ser, mas que
possamos ser apenas aquilo que podemos ver de nós mesmos. A beleza de nossa liberdade
está, portanto, no perigo. Quer dizer, segundo John Rajchman (1988, p.114), o perigo da
beleza dá margem a uma obra de si na qual ver o que se faria é mudar o próprio modo de
vida, mudança que envolve o próprio modo de ver. Ou seja, muda-se a si mesmo quando
um indivíduo vem a ver o que é perigoso na existência de alguém e chega a ver o que é
perigoso na mudança de si mesmo. E para Foucault (1984c, p.14), definir as condições nas
quais o ser humano “problematiza” o que ele é, e o mundo no qual ele vive, é a tarefa de
uma história do pensamento.
Ora, nesse momento, se não soubéssemos que essas idéias são de Foucault, facilmente
poderíamos atribuí-las a certos psicanalistas. No entanto, para evitar estremecimentos, mal-
entendidos, podemos torná-las mais precisas, perguntando – que é pensar?
Quanto a isso Foucault é explícito: pensar é problematizar. Diríamos nós, em Psicanálise, é
interrogar. Certamente, como diz Deleuze (1988, p.124), uma coisa pelo menos perturba
Foucault: o pensamento. E isto é perturbador porque, pensar é fazer com que o ver atinja o
seu limite próprio e o falar atinja o seu, de tal forma que os dois estejam no limite comum
que os relaciona um ao outro, separando-os. Pensar é, portanto, aquilo que se faz no
entremeio do ver e do falar. Nessa medida, afirmou Foucault, o pensamento não se
confunde com o conjunto de representações que subjaz a um certo comportamento, nem
com o domínio das atitudes que podem determinar esse comportamento. “O pensamento
não é o que habita uma certa conduta e dá a ela seu significado; melhor do que isso, é o que
permite a alguém voltar atrás quanto a esse modo de agir ou reagir, apresentá-lo como um
objeto de pensamento e interrogá-lo quanto ao seu sentido, suas condições e seus
propósitos. Pensamento é, portanto, liberdade quanto àquilo que se faz, o movimento pelo
qual nos diferenciamos dessa ação, a estabelecemos como um objeto e refletimos sobre ela
como um problema”(Foucault, 1984b, p. 388).
Ora, se Foucault é aquele que tem paixão pelo ver, segundo Deleuze (1988, p. 60), o que o
define acima de tudo é a voz, além dos olhos. Quer dizer – os olhos e a voz – termos que
balizam o pensamento de um filósofo encarnado que jamais deixou de ser um vidente (a
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expressão é de Deleuze), ao mesmo tempo que marcou a Filosofia com um novo estilo de
enunciado, as duas coisas num passo diferente, num ritmo duplo.
E quem desejar ver esse “novo estilo” como arte, novamente para evitar equívocos, é
preciso ter em mente as esclarecedoras palavras de Foucault, na última entrevista que nos
deixou:
“O que me espanta é que em nossa sociedade a arte só tenha relação com os objetos e não
com os indivíduos ou com a vida; e também que a arte seja um domínio especializado, o
domínio dos especialistas que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser
uma obra de arte? Por que um quadro ou uma casa são objetos artísticos, mas não a nossa
vida?”(Foucault, 1984a, p. 331).
Entre a escuta dessa fala e o que ela nos dá a ver, instala-se o exercício do pensamento.

Recebido para publicação em agosto/1995

ABSTRACT: Martin Jay (1986) and John Rajchman (1988) have written essays about the
space of vision and of the visual in Foucault’s philosophical work. Although the theme is
the same the author’s perspectives are very different. Thus, concernig these two essays, the
purpose of this article is to circumscribe another vision about the empire of the gaze and the
art of seeing in Foucault’s writings. The relationship between vision and thought is
considered under the perspective of problematizations.
KEYWORDS: Foucault, looking, vision, vision-thought, art of seeing.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

O intelectual e seu outro: Foucault e Sartre


RENATO JANINE RIBEIRO
Versão inicial e parcial deste artigo foi publi-cada no
antigo suplemento Cultura, do jornal O Estado de S.
Paulo, p. 4-5, em 11 de agosto de 1990.
Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-
USP

RESUMO: Foucault pensou o papel do intelectual na contestação a Sartre e aos


pressupostos do engagement, em especial os associados à filosofia da consciência e ao
humanismo. Depois de 1968, porém, quando os fundamentos políticos do sartrismo
desabavam – em particular a proximidade do Partido Comunista – Sartre pôde fazer causa
comum com Foucault, ao mesmo tempo que este assumia, de boa ou má vontade, papéis
que sempre negara, como o da voz pública.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, Sartre, humanismo,engajamento, consciência política,
papel do intelectual.

Que papel Michel Foucault alocou ao intelectual? Eis uma questão que é essencial formular
aqui, não só por sermos, nós, desta profissão, e assim lidarmos com um tema que fala a
nosso narcisismo; mas, sobretudo, porque junto com o anti-humanismo, a derrubada da
primazia que a filosofia existencialista outorgara ao homem, Foucault também efetuou uma
liquidação em regra desse outro legado sartriano que foi o relevo conferido ao intelectual
enquanto consciência moral da política. Uma política humanista tinha, assim, uma espécie
de fiador no intelectual; mas, para explicitar isso, devemos passar por Sartre, que nas
questões precisas da militância política (devemos quase nos controlar para não falar em
"engajamento") e do papel do intelectual, é a referência contra a qual Foucault se constitui1.
Seria impossível entender a política sartriana sem a presença, ainda que distante, do
comunismo. É verdade que o filósofo jamais se filiou ao Partido, e que suas relações foram,
por vezes, muito tensas. Depois da repressão soviética à rebelião húngara, ele escreve um
longo ensaio, O fantasma de Stalin (Sartre, s/d), que constitui um acerto de contas com o
que é antidemocrático no comunismo. Mas, antes disso, Sartre – enquanto trocava com
Merleau-Ponty as cartas que marcaram a ruptura, por razões precisamente políticas, da
amizade que tinham – ia editando nos Temps Modernes o longo artigo Os comunistas e a
paz (1952-1954)2, que mostrava um simpatizante do PC, porém que lhe fazia reservas, e
também as sofria. Para citá-lo: os comunistas "me acusavam de ter espionado a Resistência
em favor da burguesia fascista...".

1
Evidentemente, seria tolo reduzir a obra de Foucault a uma contestação a Sartre. O confronto decisivo entre
ambos se situa precisamente na questão do humanismo, na do engajamento, na da consciência política.
2
Inédito no Brasil.
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O fundamental, contudo, está numa tese de Os comunistas e a paz: Sartre conclui que a
única via política para a esquerda passa pela aliança com o PC. Com todos os seus defeitos,
o PC representa a classe operária: ele é a organização política que assumem os movimentos
sociais. Não há alternativa viável a ele. A única saída para quem pretende um movimento
de esquerda democrático consiste em dialogar com o PC: em recusar a exclusão a que é
submetido pelos assim-chamados socialistas, em evitar assim que ele assuma por conta
própria esse isolamento ao qual foi forçado e se encerre em políticas cada vez mais radicais,
que, por isso mesmo, só reforçam sua condição de pária da política. Digamos que esta era a
posição mais oposta que se podia ter ao que fazia a SFIO, o velho partido socialista, que
firmara com o centro-direita um acordo tácito pelo qual se esterilizava a extrema-esquerda.
Sartre quer, literalmente, devolver-lhe a vida, a fecundidade; ora, isso significa que,
entendendo o stalinismo como reação defensiva, quanto maior for o diálogo aberto com os
comunistas, mais condições terão eles de se abrir e de se democratizar. O filósofo assim
reconhece uma razão no isolamento praticado pelo PC mediante a estratégia da "guerra de
classes", mas isto não significa que ele lhe dê razão: há que retirar o anátema, para que o
Partido se integre na sociedade e lhe traga a vitalidade operária.
Esse é o quadro que reduz a estranheza que reponta à leitura, hoje, de certos textos duros,
como por exemplo as cartas que Sartre mandou a Merleau-Ponty ao condenar a reticência
deste seu amigo em face da política comunista e/ou soviética3: correspondência esta que,
lida hoje, causa razoável antipatia do leitor pelo filósofo do engajamento. Convém então
lembrar que, na política francesa no tempo da guerra fria, os gabinetes podiam ser
efêmeros, mas sua rápida alternância se dava quase sempre em torno de um consenso
centro-direita/centro-esquerda, o qual excluía parcialmente do governo a direita e
completamente do poder a esquerda (os comunistas). Um acordo tácito ou explícito
estipulava que nenhum governo socialista considerasse, na maioria de votos de que
necessitava no Parlamento, os comunistas, que eram assim literalmente nadificados. Um
eleitor de esquerda assim saberia que, para evitar um governo de direita, não adiantava
votar no PCF esperando que este desse um apoio crítico a um gabinete socialista: pela
simples razão que tal gabinete não consideraria, nos votos de que precisava, os dos
comunistas. A extrema-esquerda era, assim, tornada inexistente, ao menos no Parlamento.
Ora, esses governos de centro-esquerda ou centro-direita, para conservar as colônias da
Ásia e África, travaram as guerras da Indochina e da Argélia, massacrando centenas de
milhares de asiáticos e árabes. Foi nesse contexto de guerras coloniais genocidas, de
crescente subordinação da França ao aliado norte-americano e de exclusão ou mesmo
repressão aos movimentos operários, que Sartre formulou sua estratégia de relação
preferencial com o PCF. "Não podemos tirar as esperanças de Billancourt": essa sua célebre
frase, aludindo ao subúrbio parisiense da indústria automobilística, contém todo um
programa.
Tendo de escolher entre dois males – o comunismo stalinista e o capitalismo imperialista –
qual deles preferir? Desde 1948 e a estréia de sua peça As mãos sujas, conhecia-se a
resposta de sua personagem, o líder comunista Hoederer. "É preciso sujar as mãos", dizia
ele, para horror do intelectual Hugo, também comunista, mas que da doutrina

3
Estas cartas, em tradução minha, apareceram no suplemento Mais!, da Folha de S. Paulo, em 14 de agosto
de 1994.
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S. Paulo, 7(1-2), 1995.

revolucionária só aceitava os princípios, não a eficácia. Temos aqui a nítida contraposição,


para empregar termos weberianos, de uma moral da convicção, a de Hugo, a uma da
responsabilidade, a do líder partidário. Numa análise clássica desta peça (Sartre par lui-
même, 1955), Francis Jeanson elogia Hoederer e mostra, na personagem do intelectual
pequeno-burguês – cheio de dúvidas, de pouca potência sexual -o desdém de Sartre por
uma posição dúbia e vacilante. Não concordo, porém, com Jeanson, que, envolvido em
várias causas políticas (será, pouco depois, o articulador do apoio em território
metropolitano às ações até mesmo terroristas da Frente de Libertação Nacional argelina)4,
não tinha dúvidas sobre o sentido e a necessidade da luta política. Sartre não está
inteiramente do lado de Hoederer. Embora despreze Hugo, confere-lhe pelo menos um
traço básico de sua filosofia: o intelectual não abre mão da responsabilidade pelo ato que
cometeu – o assassínio de Hoederer -, ainda que "absurdo" (porque, primeiro, os dirigentes
comunistas que o encomendaram depois vieram a mudar de idéia, ao saberem que as idéias
do morto coincidiam com as de Moscou; segundo, porque Hugo se viu convencido, por
Hoederer, da justeza de suas posições, e somente o matou ao surpreendê-lo com sua
mulher). Para usar os termos de Sartre, o homem é o que faz, a existência precede a
essência: Hugo é o matador de Hoederer. Os motivos terão sido maus, não importa. Ele não
pode renegar o que fez.
De toda forma, Hoederer vai ter, aos olhos de Sartre, cada vez mais razão, à medida que a
guerra fria se prolonga e com ela as guerras quentes nos territórios coloniais. Se queremos
agir, temos de tomar partido, "sujar as mãos", e não só no sangue, que é nobre, mas também
"na merda" – nas alianças sujas, na mentira. Na verdade, há uma velha tradição terrorista
dos intelectuais, que apreciam – desde os niilistas do século XIX, pelo menos – os
atentados, a morte sacrificial do outro, até mesmo o sacrifício de si, o suicídio sagrado do
revolucionário; mas uma palavra é a chave, neste contexto: é que se trata de ações nobres,
validadas pela entrega de si, até mesmo – é o que insinua esse inteligente Hoederer –
armadas por um ódio a si mesmo. Ora, Hoederer, antes de mais nada, ama a vida em toda a
sua densidade e mesmo vulgaridade: corpos, comida, prazeres. A revolução não rompe com
o homem que existe, para instituir, como quer Hugo, um homem ideal sem nada em comum
com o vulgo de nossos dias. Por isso, o enfrentamento de ambos se dá, em boa medida,
seguindo o confronto do ideal nobre e da realidade vulgar, de um espírito desvairado e da
materialidade elementar. Dizendo de outro modo, esse confronto é a contestação do registro
nobre pelo vulgar, de um espiritualismo que se travestiu de esquerdista pelo materialismo
que serve de base à própria revolução, enquanto prática e não idéia. A verdade do que
passava por nobre está em suas tripas. É assim a pequena moral do intelectual que entra em
xeque.
Mesmo assim Sartre, em dois momentos decisivos, afastou-se do PC. O primeiro foi na
repressão soviética à revolta húngara de 56, a primeira grande tentativa de unir democracia
e comunismo, antes dos fracassos de Dubcek, na Tchecoslováquia de 1968, e de
Gorbatchev, na segunda metade dos anos 80. Sartre tomou então a defesa dos rebeldes
contra "o fantasma de Stalin", embora acabasse se reaproximando do PC.

4
Uma última grande aparição de Jeanson ocorre no filme A chi-nesa, de Godard, quando ele explica a uma
estudante maoísta a diferença entre a violência revolucionária que se apóia nas massas (a que a FLN argelina
praticara) e uma violência sem ligação com o povo.
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A segunda ruptura, e esta definitiva, se dá em 1968. O PC finalmente se revela um partido


burocrático, disposto a sacrificar a chance revolucionária de maio-68 a ganhos salariais e ao
reconhecimento, pelo poder gaullista, do poder sindical e partidário dos comunistas (os
acordos de Grenelle). Sartre vai então para os gauchistes, a extrema-esquerda, mas
preferindo os maoístas.
Por que os maoístas? Talvez Sartre não se tenha afastado do ideal de um PC: um partido
forte que organize e represente as massas. Anarquistas e trotskistas criticavam esse modelo
– sobretudo os primeiros. Já os maoístas europeus geralmente se propunham a "reconstruir"
um PC que se teria debilitado. Não rompiam com o molde leninista. Sua grande
contribuição eram novas reflexões sobre os intelectuais, de quem suspeitavam, e muito,
graças, sobretudo, à Revolução Cultural chinesa e ao assim-chamado pensamento de Mao
Tse-tung.
Aqui temos dois pontos essenciais no pensamento político de Sartre. Sua reflexão foi
balizada pela presença, no horizonte, de um PC forte com o qual negociar, e governada, de
dentro, por forte suspeita que sentia quanto aos intelectuais (inclusive a si mesmo), que
facilmente viravam "ratos gosmentos". Esse horizonte deixou de existir, de fato, desde
1990, e de direito desde 1968, quando o PCF se revelou um partido mais interessado em
sua própria estrutura de poder do que em transformar o mundo. Já os intelectuais, mesmo
de esquerda, mudaram de posição quanto à classe operária, reduzindo a culpa que sentiam e
passando a defender mais as liberdades "formais" ou "burguesas". O trabalhador hoje não
tem mais por modelo o operário das indústrias pesadas ou de transformação. Mas o
principal é que, sem o PC e sem a culpa, o intelectual de esquerda deixa de ter Sartre como
ferramenta que lhe explique a política.
Somente para encerrar esta parte, enfatizemos, a par dessa amizade tensa de Sartre com os
PCs (que o faz, no rescaldo de 68, optar pelos maoístas, os quais pretendem uma espécie de
reconstrução dos partidos somada a uma crítica devastadora aos intelectuais), a importância
que tinha em seu pensamento a culpa do homem de letras. Este, mesmo militante, aparece
como o modelo por excelência do pequeno burguês. As dúvidas, que constituem talvez o
cerne da atividade intelectual, passam assim a ser lidas como vacilação. Todo um modo de
ser, ou melhor, de produzir – que é o da atividade de pensar – vê-se assim traduzido em
termos de militância política, e nesse contexto é condenado. Talvez um dos traços
essenciais da nova política dos intelectuais, desta que acaba tendo em Foucault e em 1968
(mas num 68 diferente do que Sartre entendeu) seus pontos de reparo, seja, exatamente, o
fato de que essa culpa se esvazia ou, pelo menos, se reduz significativamente.
Será espantoso que o papel que foi de Sartre, nas duas décadas que vão do fim da II Guerra
Mundial até o fim da guerra da Argélia, fosse assumido por Foucault – com as mudanças
que veremos – após maio de 68? Refiro-me ao papel de pensador político de referência, por
vezes na moda, eventualmente quase um guru. Os dois filósofos começaram se defrontando
com hostilidade explícita quando Foucault, "estruturalista" (como então se dizia), publicou
As palavras e as coisas, em 1966. Nesse pensamento que submete a vasta pluralidade de
pensamentos, sensibilidades e ações de toda uma época (por exemplo, dos séculos XVII e
XVIII) a uma única rede conceitual, a uma episteme, Sartre via uma ameaça de tecnocrata
àquilo que para ele sempre constituiu o maior dos valores: a liberdade humana. Neste
sentido se deve ler, por exemplo, sua entrevista à revista L'Arc, por essa época, em que
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condena os procedimentos estruturalistas. Quer dizer – está implícito no que afirma Sartre
contra Foucault, naqueles anos – que o que os homens fazem seria apenas murmúrio vão,
como o do ator de Macbeth que vem à cena, cumpre sua parte, e se vai? Sartre sempre
reservou os direitos da consciência humana, e assim leu tanto a psicanálise quanto o
marxismo. O caso é particularmente significativo porque essas duas teorias lançam radical
suspeita sobre aquilo de que os homens têm consciência, ao mesmo tempo em que voltam a
atenção para o inconsciente (entendendo por ele quer o id, quer as relações de produção).
Ora, o que fez Sartre em ambos os casos foi reduzir o papel do inconsciente, para valorizar
a liberdade que, conhecendo-o, aclarando-o, ilumina-se melhor para suas escolhas. Já
Foucault o que fez foi acentuar esse primado do inconsciente, entendido como aquilo que
sequer pode vir à consciência, a ponto de até pôr em xeque a questão tradicional da
liberdade.
Com isso todo o mundo do engajamento político, à maneira sartriana, é posto em xeque. Se
a consciência que temos do que sucede é menor do que se supunha, que importância tem
discutir as questões políticas? Que primado pode ter o intelectual sobre o homem da mera
ação prática, se o desconhecimento que os une é maior do que a eventual vantagem do
primeiro sobre o segundo? Sartre, se nunca reivindicou para o intelectual uma
superioridade política sobre os demais homens, na prática assumiu porém um papel algo
parecido, de consciência moral pública sobre o político. Ora, é esse papel mesmo que
Foucault contesta, retirando, aliás, todas as consequências dessa contestação. E esta se
mostra ainda mais forte, se lembrarmos que para Sartre a questão se joga nas palavras; que
deu esse título a sua autobiografia, de 1962; e que para Foucault, seu biógrafo Didier
Eribon o repetirá várias vezes, escrever surgiu por acaso e (pelo menos ele o dizia – podia
ser coqueteria do próprio Foucault) poderia não ter surgido.
Foucault, pelo que nos revela Eribon, é tudo, menos um personagem com projeto: sua
integridade, sua coesão vão-se formando a partir de facetas que antes se contradiziam e
cujo surgimento parece, às vezes, fortuito. Ele quis, de início, fazer carreira diplomática, a
exemplo de muitos intelectuais que trabalham nos serviços culturais e nas Alianças
Francesas; em Uppsala, na Suécia, deu conferências, mais de literatura que de filosofia.
Perto de morrer, quis fazer-se jornalista, e nessas condições foi para o Irã, presenciar a
agonia do regime do Xá. Não foram meras fantasias, no começo e no fim de sua vida
adulta; dessas duas profissões ficaram resultados sólidos. Mostravam ambas um gosto
acentuado pela dimensão pública, pela fala que reverbera para fora do meio apenas
acadêmico. Onde ele melhor realizou esse gosto foi, está claro, na atividade de professor e
escritor. Mas como satisfazer essa dimensão pública, para um intelectual, sem se tornar
consciência sartriana?
Como professor no Collège de France, Foucault impressionava. Era um ator estupendo,
sabe-o quem o viu alguma vez falar: atrás de uma pequena lâmpada, que lhe iluminava
apenas parte do rosto e do busto, ele falava; cada movimento que fizesse – e cuidava para
que fossem poucos – tinha o efeito multiplicado, pela luz, pela escassez de gestos;
preparava os 75 minutos de aula montando uma demonstração fascinante, de poderosa
argumentação, mas que alcançava uns cinco ou sete momentos culminantes, frases que
sintetizavam o que precedia e constituíam fórmulas que ficavam gravadas – de tal modo
que a cada dez minutos ou doze se chegava a um patamar, sempre (ou quase) demolidor de
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imagens feitas. Como um número cada vez maior de ouvintes levasse gravadores portáteis
para registrar suas aulas, ele – por coqueteria ou generosidade ou, mais provável, ambas –
passou a fazer um rapidíssimo entreato, de um ou dois minutos, na metade da aula, quando
contava uma anedota, exemplar das teorias que estava criando; o que, aliás, apressava ainda
mais os donos dos gravadores, desesperados por terem, também, esta mediação quase
lúdica que se introduzia aos quarenta e cinco minutos de fita.
Esse Foucault, que dominava tão bem o seu público, não se teria tornado um tanto
sartriano? Quero apenas dizer (Sartre nunca teve essa maestria na fala, ou esse público
regular – era um escritor): depois de tanto criticar o filósofo-porta-voz, Foucault veio a
sentir-se bem no papel do pensador que fala e é ouvido. No entanto, os tempos haviam
mudado, e na sua atuação política, que começou relativamente tarde, os problemas com que
se defrontou foram muito distintos dos que Sartre teorizou.
Antes de mais nada, Foucault mal teve de lidar com a militância, no sentido tradicional, de
um partido político consolidado e forte. Ainda havia militância, é claro, nos grupúsculos de
extrema esquerda, e que então parecia ter certa importância (mais ou menos entre 68 e 72
ou 73), mas quem dialogou com ela foi Sartre – que, vimos, cessara de falar com o Partido
Comunista. A política em que Foucault acreditava ele teorizou num diálogo com Gilles
Deleuze que aparece no número 49 de L'Arc5 (1972): afirma ele que o poder do policial é
da mesma natureza que o do primeiro-ministro – ou seja, ambos, embora sua esfera de
atuação seja diferente, têm em comum o fato de impedirem as pessoas de fazerem o que
querem, e de obrigá-las a fazer o que não querem. O "Circulez!" do policial passa a ser
visto como revelador da essência do poder, tanto quanto as leis e decretos governamentais;
uma língua ferina poderia até criticar Foucault por de algum modo reduzir a complexidade
do poder a esse gesto elementar do policial. De todo modo, mais tarde, à medida que ele
desenvolver a idéia de que o poder é produtivo e repudiar explicitamente a tese libertária de
que, retirando-se a coerção, cem ou mil flores hão de florir, é claro que tal reducionismo, se
um dia ocorreu em seu pensamento, deixará de fazer sentido para ele.
Mas de todo modo, se na sociedade estão semeados estes mil poderezinhos que nos
oprimem, como enfrentá-los senão fazendo florescer milhares de ações pontuais? Daí que
Foucault defenda a ação local, que a seu modo pode ser exemplar, isto é, difundir novas
possibilidades de vida. É a época em que a fábrica de relógios Lip vai à falência, e seus
operários entram em conflito com o governo porque querem assumí-la eles mesmos, numa
proposta de autogestão que poderia ser ameaçadora para a tese capitalista segundo a qual
somente o empresariado assegura a racionalidade necessária à direção dos negócios: se o
recorte capital-trabalho deixar de recobrir as divisões racionalidade-obediência, decisão-
execução, que será do capitalismo? Ao mesmo tempo, um campo de pastores no Larzac,
região do sul da França, é desapropriado pelo exército para servir de campo de tiro e se
torna emblema das causas, a um tempo, pacifista, ecologista e camponesa – politizando,
ademais, uma camada, a dos trabalhadores do campo, tradicionalmente conservadora. As
violências da polícia contra árabes e negros, no final da presidência Pompidou, e a
mobilização da opinião pública contra a pena de morte somam-se a este quadro, em que
cada uma das lutas descritas, em vez de preparar a "luta final" que substituirá o capitalismo
5
Também publicada, como Os intelectuais e o poder. Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze
(1984a).
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pelo socialismo, tem riquezas próprias, deve ser respeitada em si mesma e não subordinada
a uma racionalidade superior e externa, à do Partido, da qual se sabe, só, que não deu
certo6.
E é o que mostram dois grandes exemplos de atuação de Foucault naqueles anos. Um foi o
Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), que ajudou a fundar, em 1970. Outro foi o
livro sobre Pierre Rivière.
O GIP foi algo inédito, pelo menos na França (a Anistia Internacio-nal tinha, no mundo
afora, uma atuação que recobria alguns de seus aspectos e ultrapassava outros, mas sem a
doutrinação francesa)7. Não defendia os presos políticos em particular, mas – sobretudo –
os de direito comum. Ora, os intelectuais, franceses ao menos, podiam se interessar pelos
presos, mas só para conferir sentido e destinação a sua luta; pois foi justamente isso o que
Foucault se proibiu. Os cadernos do GIP traziam depoimentos, davam a palavra a quem não
a tinha; essencial, aí, era romper com o padrão de ser "voz de quem não tem voz", que
apareceu em parte da pedagogia progressista de matriz católica, ou de quem traduz, decifra,
totaliza, interpreta melhor mesmo do que o sujeito falante o que este deseja (ou o que este
tem de desejar)8.
O livro sobre Pierre Rivière segue a mesma inspiração. É uma obra menor de Foucault, e
por algum tempo se viu um tanto superestimada, até favorecendo, como se fossem
foucaultianos, textos de qualidade menor, meras coletas de arquivos sem análise. Nele,
Foucault não quis interpretar o que dizia esse matricida do século XIX, que a normalidade
considerou louco; em vez de analisá-lo, os autores do livro redigiram textos

6
É inevitável uma referência à Sexpol de Wilhelm Reich: o cientista da sexualidade, militando no PC alemão,
iniciava alguns anos antes da tomada do poder pelo nazismo um empreendimento voltado especificamente
para os jovens, a fim de enfrentar sua "miséria sexual" através de uma educação liber-tária e esclarecedora,
bem como do incentivo a locais onde pudessem se encontrar para ter uma vida sexual limpa e praze-rosa. O
Partido apreciou a iniciativa enquanto ela ampliava os quadros de seus membros, mas bloqueou-a depois,
devido ao conservantismo de outros militantes. Este é um paradigma da forma pela qual uma luta dita "local"
ou "específica" (e no entanto de enorme am-plidão) se vê congelada pela subordinação à luta final.
Evidentemente, seria absurdo imaginar que o legado imediato de maio de 68 fosse a contestação deste
modelo. Os maoístas, já vimos, mantinham o modelo do PC, desde que "reconstruído" e que agravada sua
desconfiança dos intelectuais. Entre os tro-tskistas, um slogan que se repetia proclamava, pa-ra qualquer
problema, "uma única solução, a revolução". A grande organização trotskista chamava-se Liga Comunista.
Somente a médio ou longo prazo é que se firma a imagem de 68 como uma crítica, não a um PC traidor de
seu próprio ideal, mas à proposta mesma de um PC vanguarda das massas. Digamos, sucintamente, que Sartre
endossa mais a primeira crítica, e Foucault a segunda.
7
Com efeito, a Anistia Internacional defende a libertação de todos os presos de opinião, a supressão da pena
de morte, condições decentes de julgamento para todos os réus e de cumprimento da pena para todos os
condenados. Seu roteiro é portanto distinto do do GIP, embora se encontrem em vários pontos.
8
Recorde-se que por essa época faz sucesso na França a trilogia de filmes Français, si vous saviez, sobre a
era gaullista, dos quais um – Je vous ai com-pris – mostra a tomada do poder por de Gaulle em 1958. "Eu vos
compreendi" é a frase-chave do discurso que o general profere naquele ano em Argel, perante os colonos
franceses cuja revolta, ante a possibilidade de independência da Argélia, fora o fator que o levara ao poder.
Ora, quatro anos depois o presidente de Gaulle firmava os acordos que reconheciam uma Argélia
independente. Eu vos compreendi passa então a ser o motto de como idéias e sentimentos são anexados,
traduzidos e traídos ao se incorporarem naquilo que pretende ser uma racionalidade superior. Contra esse
empreendimento de "recuperação", valoriza-se uma concepção de cada discurso como irredutível. E pouco
importa, no caso, que tenham sido traídos os setores de extrema-direita: o empreendimento de
tradução/traição é visto como dispositivo essencial do poder.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

complementares ao do próprio Rivière. Daí, quando o lemos, uma certa frustração. Mas
proposital, porque produzindo-a Foucault rompia exatamente com o modelo que podemos,
com alguma perfídia e exagero (mas apenas alguma), denominar sartriano.
Sartre, por essa época, compreendia Flaubert, como antes havia compreendido Baudelaire;
é isso o que Foucault se recusava a fazer. Estranhamente, Foucault, que acreditava no
inconsciente, não queria desmantelar a consciência que alguém – até mesmo um preso,
personagem usualmente desdenhada – tinha de si e de sua situação (e com o tempo ele veio
a pensar que essa consciência era bastante justa, e merecia respeito não só ético, mas
também no plano do conhecimento), enquanto Sartre, para quem as escolhas sempre foram
algo prioritário, admitia ser a consciência alheia.
Na verdade, porém, as duas posições são coerentes com as idéias de seus defensores. A
importância da consciência e da liberdade, em Sartre, permitia que ele discutisse a obra ou
a vida alheia sem se situar num plano superior ao do outro: uma certa comunidade de
mundo une a todos nós. Dizer, aliás, que Sartre pretendesse ser a consciência alheia é fazer-
lhe uma crítica externa a suas convicções – uma crítica foucaultiana – e vazada em termos
que não são seus. Pois o que a importância do inconsciente ensinou a Foucault foi
humildade intelectual, negando-lhe e a qualquer outro credenciais para proferir um discurso
definitivo ou mesmo superior, estabelecendo uma autonomia irredutível de cada discurso
ou prática a qualquer outro. Trata-se da recusa da recuperação, a que aludimos antes9. O
risco disso, sabemos (e foi apontado), está em cortar de vez o diálogo, em negar entre os
homens a possibilidade de se constituir uma comunidade: mas Foucault se importava
menos com os riscos que seu pensamento causasse para os pensadores da ordem social, do
que com a contribuição que pudesse dar a novas falas e ações.
E, sobre o novo, uma palavra. Terá sido este um ponto decisivo na atuação de Foucault, não
só porque contribuiu extraordinariamente para renovar as ciências humanas e a própria
filosofia, mas também porque sua própria démarche destacava o novo, o inédito: eram
deste teor as frases de maior efeito com que, dissemos, pontuava suas aulas no Collège de
France, e era também deste modo que construía suas obras, quer em suas teses principais,
quer na simples composição, surpreendente, de sua escrita10. De teses surpreendentes,
citemos pelo menos duas: a conclusão de As palavras e as coisas, segundo a qual é
consolador imaginar que a figura do homem (enquanto objeto dotado de inteligibilidade
própria – mas esta ressalva não fica evidente) desaparecerá em breve do horizonte de nosso
saber – o que, sem a ressalva entre parênteses, parece tudo, menos consolador; e a tese que
norteia A vontade de saber, segundo a qual o que distingue a sexualidade moderna
ocidental é menos a repressão (segundo o lugar-comum que por ela responsabiliza a rainha
Vitória, e o qual o próprio Foucault antes havia exposto, em aulas) do que uma hybris de
conhecimento: mais, portanto, lançando luzes do que um véu sobre as coisas do sexo. De
frases de espantoso efeito, baste recordar, nos mesmos livros, a enciclopédia chinesa citada
no início de As palavras e as coisas, e o comentário, em A vontade de saber, segundo o
qual nossa cultura é a única que tem prepostos pagos para ouvir confissões: como se fosse

9
Na nota imediatamente anterior.
10
Desenvolvemos este ponto em O discurso diferente (Ribeiro (org.), 1985), artigo que republicamos,
modificado, em A última razão dos reis – ensaios de filosofia e de política (1993).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

tal o descompasso entre o desejo de falar e a disposição a ouvir, que se tornasse necessário
adequar a oferta à demanda.
Terá sido este destaque dado ao novo, esta sofreguidão com que Foucault e seus leitores
pactuavam na busca do que fosse diferente, um dos traços decisivos do clima intelectual
dos anos 70. Suponho assim que seu impacto sobre a chamada "nova história " devesse
muito ao desejo de romper imagens feitas e promover pesquisas cujo efeito fosse, ao pé da
letra, surpreendente. Mas é claro que as próprias surpresas se esgotam, e que por vezes
engendram uma nova ortodoxia; isso terá ocorrido, penso, em boa parte da nova história11;
mas, por esse efeito, Foucault não é responsável.
Assim foi que os caminhos dos dois pensadores mais impressionantes do último meio
século francês vieram a se cruzar: Foucault, tornando-se personagem público, sempre
tentou negar (o quanto lhe permitiram os media, a que tinha fácil acesso) o papel de guru;
Sartre, cortando a interlocução preferencial que mantivera com o PCF, tornou-se amigo dos
grupúsculos maoístas. Participaram, juntos, de várias manifestações.
Se, até o fim, Sartre parece ter conservado uma certa simpatia pelo comunismo – agora o da
versão que se dizia mais autêntica, a maoísta, o que o atraía neste não era a figura do
presidente chinês, mas a ênfase nas lutas dos trabalhadores, a combatividade que
demonstravam; com isso, seu pensamento se tornou menos globalizante, mais pontual –
assim como as ações de que participava, e que eram tão soixante-huitardes quanto as dos
filósofos da época, esses jovens que não eram seus discípulos. Nada expressa melhor suas
convicções da última fase de vida do que a frase que então imprimiu: Sempre há razão em
se revoltar. Esta frase talvez pudesse ser assinada pelo professor Michel Foucault, do
Collège de France – que, embora não conferisse o mesmo privilégio às lutas operárias, deu
pleno apoio a todas as lutas de "minorias" (árabes, judeus, negros, minorias nacionais,
homossexuais, ecologistas, mulheres, presos) com que se deparou.
Mas esse gosto pelas ações pontuais não terá impedido Foucault de pensar globalmente o
político? Essa crítica foi feita várias vezes – por exemplo, no debate de encerramento do
Colóquio Foucault da USP, em 1985: não seria a ausência de uma teoria do político que o
teria levado a erros graves, como a simpatia que expressou pelo aiatolá Khomeini nos
artigos para o Corriere della Sera, em 1978-79?
Ora, comecemos negando a gravidade do erro: esses poucos artigos em nada concorreram
para a instituição da República Islâmica no Irã; se Foucault errou, sua teoria pelo menos
não porta nenhuma responsabilidade pelos males do mundo. O liberalismo, a social-
democracia, o marxismo não podem dizer a mesma coisa.
O que surpreende, porém, nos artigos em questão, é o comedimento de Foucault. O que diz
ele? Primeiro, que uma vitória de Khomeini mudaria por completo os dados no Oriente
Médio. Isto se confirmou. Depois, que via a política trilhar novos caminhos, esquecidos do
Ocidente: "Uma espiritualidade política". Também acertou. O problema então é apenas um:
Foucault, com sua simpatia por tudo o que era dissidente em face dos discursos/práticas

11
Cf. meu artigo O risco de uma ortodoxia (1994).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

ocidentais, deu crédito (e talvez não muito) a um movimento que acabou exterminando
tudo o que fosse dissidência.
Aí está a questão, que hoje facilita os ataques a Foucault por parte daqueles que voltam a
exaltar o Ocidente e o liberalismo que ele e os pensadores franceses dos anos 70
desmontaram. Mas quem leu esse pensamento sério e apaixonante, profundo e ferino, não
pode contentar-se com uma tal volta do pêndulo, que reconstitui a razão, a democracia, o
consumo como valores definitivos. De Foucault lembremos a prudência intelectual que tão
bem se lê na sua descrença das palavras, em particular das grandiosas, "universais". No Irã
ele viveu uma experiência, que poderia, tivesse mais sorte, ser a dos seus nhambiquaras
(porque, se quisermos um dia perguntar onde Lévi-Strauss viu cair sobre a cabeça sua
"maçã de Newton", aquilo que o fez pensar, terá sido no Mato Grosso: a lição de escrita,
relatada nos Tristes trópicos): como um etnólogo, como um aventureiro, ele tentou viver os
sinais de mudança – como poderia ter sido em Lip ou no Larzac. Frustrou-se, errou mesmo.
Seus índios estavam em Paris, ou na Califórnia, ou em toda a parte; sem dúvida, eram
menos límpidos que os de Lévi-Strauss, sua selvageria não era boa. Mas esta curiosidade,
que ele elogiou no início do Uso dos prazeres12, esse cuidado intelectual, fizeram-no
recusar o que fosse sistema acabado, o que passasse por óbvio. Sabemos de pensadores que
se afastam dos poderes constituídos; estão entre os melhores; Foucault, contudo, foi além:
afastou-se até das identidades constituídas. Por isso, até seus equívocos aclaram. E talvez
pudéssemos concluir com uma passagem de Nietzsche, na epígrafe da Gaia ciência:
E zombei de todo mestre
Que não zombou de si mesmo.
Recebido para publicação em junho/1995

12
Na passagem em que afirma que o motivo que o levou a escrever essa obra foi "a única espécie de
curiosidade que vale a pena [...]: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite
sepa-rar-se de si mesmo" (Foucault, 1984b, p. 13).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

ABSTRACT: Foucault reflected upon the role of the intellect by contesting Sartre and the
pressupositions of the engagement, especially the ones associated to the philosophy of
conscience and humanism. After 1968, however, when the political bases of sartrism
crumbled – particularly the proximity of the Communist Party -, Sartre could make
common force with Foucault at the same time the latter assumed, willing of not, roles he
had always refused, as the one of being a public voice.
KEYWORDS: Foucault, Sartre, intellect, engagement, politics.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. (1984a) Os intelectuais e o poder. Conversa entre Michel Foucault e
Gilles Deleuze. In:______. Microfísica do poder. 4ª edição. Rio de Janeiro, Graal. p. 69-
78.
______. (1984b) História da sexualidade II – O uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal.
RIBEIRO, Renato Janine. (1985) O discurso diferente. In: ______. (org.) Recordar
Foucault. São Paulo, Brasiliense.
______. (1993) A última razão dos reis – ensaios de filosofia e de política. São Paulo,
Companhia das Letras.
______. (1994) O risco de uma ortodoxia. Revista USP, São Paulo, nº 23: 6-13.
SARTRE, J. P. (s/d) O fantasma de Stalin, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Foucault e a questão do quem somos nós?


FREDERIC GROS
Professor da Univer-sidade de Paris XII

RESUMO: O artigo procura mostrar que a evolução da noção de modernidade no


pensamento de Foucault (que num primeiro momento parte da Crítica da razão pura, e em
seguida se inspira no texto O que é ilustração, também de Kant, entendido como inaugural
de uma atitude de diagnóstico do presente) é indissociável de seu projeto teórico.
UNITERMOS: Foucault, modernidade, sujeito, razão.

Ao tomar como tema a noção de modernidade na obra de Foucault, não podemos evitar de
nos deparar, pelo menos num primeiro mo- mento, com a problemática tratada por
Habermas em seus Discursos sobre a modernidade. Lembraremos somente que, para
Habermas, a modernidade (encarnada pelo projeto das Luzes e sua conceitualização na
sistemática hegeliana) consiste na promoção daquilo que ele denomina "uma razão centrada
sobre o sujeito": advento de uma racionalidade que afirma em sua esteira o direito
inalienável de um sujeito portador de valores irredutíveis.
Uma grande parte da filosofia ocidental moderna esgotaria aí o seu destino: Nietzsche,
Heidegger, a Escola de Frankfurt, no caso da Alemanha, Bataille, Derrida e Foucault, no
caso da França, são todos transbordamentos da modernidade para uma crítica prematura do
sujeito e da razão. Não entraremos no detalhe destas análises da modernidade, da pós-
modernidade e da tentativa de Habermas de instaurar um novo conceito da razão (razão
comunicativa) desprovida de toda tentação nihilista. Basta tê-las situado. De resto, Foucault
estava longe de compartilhar tais pontos de vista, mas não se trata para nós nem mesmo de
erigir uma oposição conceitual entre os dois pensadores. O que nos interessará
particularmente é a própria evolução da noção de "modernidade" na obra de Foucault, pois
a elaboração deste tema permanece indissociável de uma definição de seu projeto teórico.
Podemos assinalar duas atitudes principais de Foucault em relação à "modernidade" (que
designa sempre para ele um período que começaria no final do século XVIII – início do
XIX, precedido pela "idade clássica"). No final dos anos 60, Foucault diz claramente que
"se trata de se desprender desta idade moderna que começa em torno de 1790 – 1810 e vai
até mais ou menos 1950" (Foucault, 1994c, p. 599)1. No final dos anos 80, Foucault, ao
contrário, se inscreve claramente na tradição da modernidade. Depois de ter colocado a
"modernidade como questão" (cf. Foucault, 1994b, p. 681) pode afirmar que: "é esta forma
de filosofia que, de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber,
fundou uma forma de reflexão na qual tentei trabalhar" (Foucault, 1994b, p. 688). A
atribuição de modernidade (que desta vez compreende Nietzsche, aquele pelo qual se
tornou possível, no final dos anos 60, o movimento de desprendimento) é pensada por
Foucault sob o signo da fidelidade.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

A questão é bem a da modernidade filosófica: trata-se, nos dois casos, de uma época que
está ligada à abertura preparada pela obra de Kant. Mas, também neste ponto, a disparidade
ressurge.
Se se considera um texto como As palavras e as coisas (no qual culmina o período
arqueológico de Foucault), é o Kant da Crítica da razão pura que constitui o limiar da
modernidade: momento no qual, longe de encontrar no desdobramento das representações o
próprio movimento do verdadeiro, se interroga sobre as condições de possibilidade a priori
das representações. A modernidade é compreendida como época do transcendental, e de
todas as suas variações antropológicas.
Nos anos 80, é Kant ainda que abre a modernidade, mas não é mais a obra crítica que serve
de frontispício: antes, um pequeno texto, marginal, anódino, um simples artigo de jornal, a
resposta de Kant à questão O que é a Ilustração?
Seria necessário poder compreender os lances teóricos de um tal deslocamento,
compreender o que aconteceu com o que só se dá a pensar como uma seleção de textos.
A cada série kantiana (a série transcendental e a série histórica) poderia corresponder uma
questão, questão infinitamente simples e que seria necessário poder fazer cintilar de novo
em sua simplicidade original, tanto o alarido das respostas abafou cada uma delas. Dizer
isto não significa afirmar que, para Foucault, cada época deve ser compreendida como a
extensão aberta e determinada de uma interrogação inaugural (logo saturada pelas
tentativas de respostas): mas talvez seja precisamente a especificidade da modernidade
confundir-se com a abertura de uma questão.
Nos anos 60, a modernidade é compreendida a partir da urgência de uma interrogação
teimosa, obstinada: o alfa e o ômega de todos os saberes, abrindo a idade de ouro das
antropologias. Toda investigação (estética, epistemológica, política...) se curva na tentativa
de definição de uma natureza humana (este é o viés comum aos saberes).
Este primeiro período da obra de Foucault se deixa então compreender como o ensaio
retomado de ultrapassar as sínteses antropológicas, convocando tanto a grande figura
nietzschiana do além-do-homem quanto a experiência "inumana" da literatura, como a
havia descrito Blanchot.
Se considerarmos agora a caracterização feita por Foucault da modernidade filosófica, tal
como ele a pensa a partir do texto de Kant sobre as Luzes, encontraremos uma paisagem
completamente diferente.
Foucault nos diz: neste texto, pela primeira vez, a filosofia se dá como tarefa a
determinação do instante presente. O que é este hoje no qual pensamos? A filosofia toma
por objeto o próprio lugar no qual ela se enuncia. Depois de Kant, é na interrogação direta
sobre a atualidade que a filosofia deve poder encontrar seu recurso mais essencial. Este
diagnóstico do presente, como Foucault o denominará também, pode encontrar sua
realização teórica em duas direções que ele distingue claramente. Trata-se, de um lado, de
pensar a relação entre a razão e a história. Colocar a questão da atualidade das Luzes, era,
com efeito, para Kant, pensar a descoberta, por ela mesma, da razão na história, no
momento em que a razão se pensa como razão da história. Esta questão da relação entre
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

razão e história (Qual a historicidade da razão? Quais os efeitos históricos de uma


dominação da razão? etc.) inaugura uma série de pesquisas que vai da fenomenologia de
Husserl à Escola de Frankfurt e à história das ciências tal como a compreenderam
Bachelard e Canguillem, passando por Marx e Heidegger.
Mas existe uma segunda direção de investigação. Colocar a questão das Luzes é abrir para a
filosofia um campo de questionamento que tem como objeto a atualidade direta (o que
significa ocupar-se menos com sujeitos da atualidade do que problematizar sua relação com
a história): Quando Kant pergunta, em 1784:Was heisst Aufklarung?, ele quer dizer: "O que
é que se passa nesse momento? O que é que nos acontece? Qual é este mundo, este
momento preciso no qual vivemos?". Ou, para dizer as coisas de outro modo: "Quem
somos nós? "(cf. Foucault, 1994a, p. 231). Vê-se como, desta vez, Foucault dirige a
interrogação kantiana para a questão do sujeito. Quem somos nós?, questão extremamente
banal, de uma evidência enganadora, levantada por Foucault no limiar de nossa
modernidade para desenhar sua abertura. Foucault assinala logo que não se trata de
perguntar "quem somos nós enquanto sujeitos universais", mas enquanto sujeitos, ou
singularidades históricas. Qual é esta historicidade que nos atravessa e nos constitui?
Pode-se compreender então, de um lado, que a questão "o que é o homem" não é senão a
retomada apaziguada, projetada num naturalismo neutro, da questão quem somos nós. Ou
seja, no momento em que a questão quem somos nós se perde numa investigação sobre as
constantes antropológicas, ela se altera e se esquece em sua violência e em seu eriçamento:
pois não há sujeito que não seja histórico, e a determinação da historicidade daquilo que
somos é ao mesmo tempo uma provocação à nossa liberdade.
Poder-se ia pensar também em segurar, com a questão quem somos nós , o fio vermelho dos
trabalhos de Foucault: quem somos nós, que para sermos nós mesmos, sujeitos dotados de
razão, temos necessidade de confinar os loucos? (História da loucura), quem somos nós,
que, para sermos nós mesmos, construímos fortalezas para delinqüentes? (Vigiar e punir).
Dir-se-á então que a marca de Foucault é repetir a interrogação kantiana curvando-a na
direção do quem somos nós, ou seja, é preciso sim dizer isto, enfrentar esta palavra, no
sentido de uma busca da identidade.
Mas este conceito permanece bem constrangedor. Deve-se realmente dizer que com
Foucault a tarefa moderna da filosofia seria, não mais estatuir sobre a ontologia do sujeito
do conhecimento, mas sobre a identidade do sujeito histórico?
Mas talvez se deva ir mais longe ainda para não reduzir o pensamento de Foucault a uma
investigação sobre as identidades históricas. Considerando os seus últimos trabalhos sobre
a história da sexualidade antiga, assiste-se com efeito a um esforço de Foucault para
ultrapassar a problemática identitária. Poder-se-ia mesmo dizer que é contra a investigação
identitária como tal que os últimos textos são escritos. O que se passa então com a questão:
quem somos nós?
A partir daí, não se considerava mais como histórica a identidade como conteúdo, mas a
identidade como forma da questão.
Tradução de Maria das Graças de Souza do Nascimento
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Recebido para publicação em maio/1995

RESUMO:The article intends to show that the evolution of the concept modernity in
Foucault's theory, based at a first moment on the Critique of pure reason by Kant and
afterwards on What is Enlightenment? which introduces an attitude of diagnosing the
present, cannot be dissociated from his theoretical project.
KEYWORDS: Foucault,modernity, subject, reason.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. (1994a) Le sujet et le pouvoir. In: _______. Dits et écrits.Vol. IV.
Paris, Gallimard.
_______. (1994b) Qu'est-ce que les Lumières? In: _______. Dits et écrits. Vol. IV. Paris,
Gallimard.
_______. (1994c) Sur les façons d'écrire l'histoire. In: _______. Dits et écrits. Vol. I. Paris,
Gallimard.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO
Michel Foucault
A obra e seus comentadores
MARCOS CÉSAR ALVAREZ & KLÉBER PRADO FILHO
Professor do Departamento de Sociologia e
Antropologiada UNESP-Marília
Professor do Depar ta mento de Psicologia
da Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO: Este trabalho realiza um levantamento bibliográficoda obra de Michel Foucault


e de seus principais comentadores.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, bibliografia.

Apresentação
O projeto de realizar uma bibliografia da obra de Michel Foucault e de seus
comentadoresesbarra em problemas que merecem algumas considerações prévias.
A reunião do conjunto dos trabalhos escritos por Foucault remetea uma multiplicidade
enorme de materiais, produzidos das mais diversasformas, para os mais diferentes fins, em
vários momentos e em distintos idiomas. Trata-se, efetivamente, de uma enorme quantidade
de textos, constituídanão só de livros e artigos elabora dos e publicados por
Foucaultdurante sua vida, mas também de fragmentos, como conferências,entrevistas,
debates, etc. , muitas vezes transcritos, compilados, traduzidos ou trabalhados por mãos
diversas e em diferentes épocas.
Assim, fr ente a esta vasta produção, o presente levantamento tem por objetivo estabelecer
uma visão de conjunto, mesmo que provisória,capaz de orientar estudantes e pesquisadores
que se interessem pelos temase idéias desenvolvidos por Foucault. Para isso, ele se
sobrepõea vários outros esforços anteriores no mesmo sentido - dos quais é tributário -
pretendendo ser talvez uma últimacamada, exaustiva para o mo mento, porém
necessariamente inacabada,adicionada ao conjunto de iniciativas já realizadas que
procuramempreender um mapeamento minucioso e amplo do que foi pro duzido por
Foucault.
Existem vários trabalhos de boa qualidade que pretendem montar uma bibliografiaexaus
tiva do autor. Todos, porém, tornam-se provisórios àmedida que passa o tempo e n ovas
luzes são lançadas sobrea riqueza da produção de Foucault. Nossa pesquisa s e
baseiadiretamente em três grandes levantamentos, o realizado por Bernauere Kee nan
(1988, p. 119-158), o levantamento feito por Jacques Lagrange(1986) e, por último, a
reunião de textos publicados em Ditset Écrits (1994), inclusive levando em conta o
complemento bibliográficoaí estabelecido por Lagrange no fina l do volume IV. Assim,
estelevantamento contém os anteriores - que são considera dos,cada um a seu tempo,
bibliografias completas de Foucault - e excede a todosn o que diz respeito ao número de
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

títulos apresentados, diferenciando-setambém por indicar, quando possível, as traduçõesem


português e espanhol dos títulos originais levantados,visando com isso facilitar o acesso e a
leitura da obra de Fouca ult aopúblico brasileiro. Deixamos de fazer comentários relativosà
natureza ou p rocedência de cada texto em funçãoda extensão da tarefa e também porque
isto é r ealizadonos levantamentos citados, sendo justamente o que nos permitiu cruzar as
informações e estabelecer a correspondência entre osoriginais e suas versões em p ortuguês
e espanhol.
Quando se trabalha uma obra complexa como a de Fouca ult, no entanto,muitas são as
sutilezas, pois os textos e suas traduções se desdobram de tal maneira que se torna difícil
estabelecer comprecisão as devidas corr espondências. Procuramos captar todo esse jogo
agindo como quem desfaz um novelo, porém nem sempre foipossível atravessar essa trama
cerrada, formada por tal mul tiplicidadede publicações, através das quais se produziu e
reproduziuo trabalho de Foucault ao longo de quatro décadas. Quando nãofoi possível
estabelecer corre spondências entre diversas versõesde um mesmo texto - especialmente
quando o tít ulo não constaem Dits et Écrits - procurou-se preservar a informação,mant
endo-se as diferentes indicações. Os títulos sãosempre apresentados no idioma de origem e
nas suas datas de publicação.Quando um texto aparece mais de uma vez, havendo diferença
de qualquernatureza, ambas versões constam no levantamento, en trando pelasrespectivas
datas de publicação. Só estão agrupadossob o mesmo títul o textos cujas traduções sãofiéis
aos originais. Deixamos de indicar as republic açõesidênticas. Não numeramos os títulos,
nem os separamospor ano, apesar de seguirmos uma seqüência cronológicana apresentação.
Também não fazemos distinçãoent re textos póstumos, autorizados, reconhecidos ou
não,uma vez que em Dits et É crits, particularmente no complementorealizado por Jacques
Lagrange, é feito tal mapeamento. Sugerimosentão, aos interessados em tais distinções, o
cruzamen todeste levantamento com suas fontes - só assim se completa o
detalhamentominuci oso da informação.
Além da obra de Foucault, foram levantados livros e ar tigos deperiódicos onde autores
diversos comentam e interpretam os muitosdesdobr amentos da trajetória foucaldiana. Este
levantamento doscomentadores e críticos é significativo pois aponta para a grande
influência de Foucault no debate contem porâneo emáreas como a filosofia, a história e as
ciências sociais.Mas também aq ui as dificuldades não são pequenas.Muitos são os autores
que dialogam com Fouca ult a partir de diferentespontos de vista, alguns limitando-se a
trabalhar temas específicos,outros tentando posicionar-se frente ao conjunto dos trabalhos
foucaldianos.Por isso, o levantamento dos textos e artigos de comentadores nãopode s er de
maneira nenhuma exaustivo, ainda mais porque o debate em tornoda obra de Foucault
permanece aberto, com muitos artigos sendo continuamenteproduzidos por p esquisadores
nos mais diversos países. Partindodestas limitações, nosso levantam ento foi baseado
principalmentena consulta exaustiva de três bases de dados - Hu manities Index (1984-
1994);Social Science Index (1983-1994); Philosopher's Index (1994) - juntamentecom o
cruzamento de indicações dispersas obtidas em algunsli vros de comentadores e em
periódicos especializados. As indicações localizadas nas bases de dados foram
confrontadas, por vezes, com as publicaçõescitadas, mas estas nem sempre estavam
disponíveis para consulta.Assim, mesmo quando a conferência não foi possível,man
tivemos a citação, tentando fornecer o maior númerode informações, que poderão s er
futuramente confirmadaspor outros pesquisadores.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Por tudo que foi dito, percebe-se que a amplitude e complexidade do trabalho realizado
torna-o sujeito a erros e imprecisões que devem ser futuramente identificadas. Ciosos da
respons abilidade da tarefa, procuramos limitar as possíveis incorreções através deum
tratamento metódico e sistemático das diversas fontes,visando sobretudo facilitar aos
pesquisadores brasileiros o acesso àobra de Foucault e aos seus desdobramentos.
A realização deste trabalho só foi possívelgraças ao Prof. Dr. Sérgio Adorno, que sugeriu o
tema dolevantamento, forneceu informações bibliográficase acompanhou o desenrolar das
pesquisas. Agradecemos também às bibliotecárias que trabalham na biblioteca da Unesp,
no campus de Marília, que ajudaram no levantamento das bases de dados e forneceram
informações acerca dos critérios de normatização bibliográfica.

1. LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO A CERCA DA OBRA DE MICHEL FOUCAULT:


1. 1. LIVROS DE MICHEL FOUCAULT:
1. 2. LIVROS EDITADOS POR FOUCAULT:

1. 3. TRADUÇÕES:

1. 4. INTRODUÇÕES, PREFÁCIOS:

1. 5. TEXTOS, ARTIGOS:

1. 6. CURSOS, PALESTRAS, CONFERÊNCIAS:

1. 7. ENTREVISTAS, DIÁLOGOS, DEBATES:


2. LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO ACERCA DOS COMENTADORES DA OBRA
DE MICHEL FOUCAULT:

2. 1. LIVROS SOBRE FOUCAULT:


2. 2. NÚMEROS ESPECIAIS DE REVISTAS SOBRE FOUCAULT

Recebido para publicação em setembro/1995


ABSTRACT: Bibliographical research about Michel Foucault’s worksand major
reviewers.
KEYWORDS: Foucault, bibliography.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

HOMENAGEM

O Professor Florestan Fernandes e nós


JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Professor do Departamento de Sociologia da
FFLCH-USP

"...alcancei a estatura de um artesão que domina e


ama o seu mister, porque sabe como
deve praticá-lo e para o que
ele serve" (Fernandes, 1977, p. 175)

RESUMO: O artigo trata da importância do legado intelectual e político do Professor


Florestan Fernandes, presente em seus sucessores no Departamento de Sociologia da
Universidade de São Paulo.
PALAVRAS-CHAVE: Florestan Fernandes, sociologia brasileira, sociologia de São
Paulo.

Mais do que um débito de formação de quadros em relação ao Professor Florestan


Fernandes, o Departamento de Sociologia da Fa- culdade de Filosofia da Universidade de
São Paulo tem ainda um nome respeitado que devemos a ele e ao grupo de docentes de que
passou a fazer parte, em 1945. E que devemos também ao sólido grupo de cientistas sociais
que foram seus alunos, que ele recrutou para o magistério na Universidade e que constituiu
a segunda geração de sociólogos brasileiros de nossa escola.
Talvez fique difícil entender o que isso significa nestes dias de prestígios fáceis, pessoais e
intransferíveis, em que um departamento acadêmico não é mais do que um aglomerado de
pesquisadores, cada qual navegando em suas próprias águas. Os tempos são outros, mas
não melhores.
O Professor Florestan empenhou-se, juntamente com vários de seus contemporâneos, em
fazer com que a preciosa dádiva da missão universitária francesa, que fundara a
Universidade de São Paulo, se tornasse um bem comum. Ele disse, mais de uma vez e com
razão, que a criação da nossa Universidade constituiu um acontecimento de conseqüências
culturais e sociais muito mais radicais do que a Semana de Arte Moderna. Lévi-Strauss,
nosso primeiro professor de Sociologia, expôs com a clareza de testemunha lúcida em que
contradições se apoiava a criação da Universidade e quais foram seus resultados sociais
inesperados. Tomo a liberdade de transcrever um parágrafo dessa espécie de livro de tombo
da criação da Universidade de São Paulo, que é o seu Tristes trópicos:
"Coisa curiosa: a fundação da Universidade de São Paulo, grande
obra da vida de Georges Dumas (articulador da missão universitária
francesa enviada ao Brasil, JSM), devia permitir a essas classes
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

modestas começar a sua ascensão, obtendo diplomas que lhes


abriam acesso às posições administrativas, de tal forma que a nossa
missão universitária contribuiu para formar uma nova 'elite', que se
ia afastar de nós na medida em que Dumas, e o Quai d'Orsay atrás
dele, se recusavam a compreender que era ela a nossa criação mais
preciosa, embora se entregasse à tarefa de solapar uma classe
feudal que nos havia, é verdade, introduzido no Brasil, mas para
servir-lhe em parte de caução e em parte de passatempo" (Lévi-
Strauss, 1957, p. 13).
Quando se fala em sociologia crítica na USP, deve ter-se em conta essas contradições de
origem, que na benéfica confusão de propósitos de 1934 de fato comprometiam a
Universidade com a democratização da cultura. Com a sua Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras, criada nesse ano, abria os cursos superiores, indistintamente, aos bem nascidos,
diletantes ou não, e aos de origem modesta, tanto os que entreviam na escola um caminho
de ascensão social, como os que nela viam uma porta aberta à expressão de vocações até
então bloqueadas pelo nosso regime universitário de escolas isoladas, devotadas ao direito,
à medicina e à engenharia. As razões desse projeto foram também assinaladas por Lévi-
Strauss:
"Nesse Brasil, (...) a cultura permanecera, até uma época recente,
uma distração dos ricos. E é por ter essa oligarquia necessidade
duma opinião pública de inspiração civil e laica, para
contrabalançar a influência tradicional da Igreja e do exército, bem
como do poder pessoal, que criou a Universidade de São Paulo,
decidindo abrir a cultura a uma clientela mais larga" (Lévi-Strauss,
1957, p. 103).

Se havia tais intenções na obra dos fundadores da USP, havia também intenções de
reformular o sistema educacional e democratizar o ensino, como se vê nos escritos e nas
ações de Fernando de Azevedo.
A fundação da USP criou um meio social propício à pesquisa, ao debate, à indagação sobre
a sociedade brasileira e seus dilemas. A educação era desde o início concebida como o
instrumento maior de difusão de uma consciência científica da sociedade, um instrumento
de mudança social através da ação dos educadores. Havia, portanto, mais do que Lévi-
Strauss podia ver e, como ele reconhecera, mais do que as oligarquias paulistas podiam ver.
As duas primeiras gerações de brasileiros formadas pelos europeus assumiram a
responsabilidade de levar adiante as promessas contidas no legado da missão universitária
francesa e as possibilidades contidas nas contradições representadas pela fundação da USP.
Mais: criaram uma cultura acadêmica que sintetizava esse legado e as fecundas
inquietações e inspirações dos jovens intelectuais paulistas dessa época. Dificilmente
encontraremos nas diferentes biografias das personagens dessa história perfis e
mentalidades convergentes. A convergência estava nas enormes possibilidades de
interferência numa sociedade marcada por contrastes agudos, como assinalaria em livro
posterior Roger Bastide, outro ilustre professor de sociologia de nossa escola. E estava,
também, num notável devotamento à idéia da educação como missão principal. O vigor
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

dessa idéia está em obras de Fernando de Azevedo, de Antonio Cândido, de Florestan


Fernandes e de pesquisadores e docentes que os sucederam.
O professor Florestan nunca concordou que o notável grupo de sua geração, na Faculdade,
em especial o grupo que ele mesmo constituiu e dirigiu, pudesse ser classificado como uma
escola sociológica. Ele considerava essa idéia uma falta de imaginação. Recusava o rótulo
de "escola" porque a constituição de seu grupo de pesquisadores "não supunha que
devêssemos todos pensar da mesma maneira, como uma escola, com certa 'doutrina' "
(Fernandes, 1977, p. 183). No entanto, é possível que ele não tivesse razão. Certamente, o
chamado "grupo de São Paulo" não chegou a constituir uma escola de unanimidade teórica,
como a chamada "escola de Chicago" (que ele tinha como referência1). Isso porque seus
vários membros, como facilmente pode ser visto em suas obras, tenderam a desenvolver
seus próprios caminhos, até mesmo produzindo contribuições teóricas originais. A própria
obra do professor Florestan tem uma dinâmica interna evidente, embora não seja ela
marcada por rupturas radicais entre um momento e outro. Mas, se há descontinuidades
entre, por exemplo, Mudanças sociais no Brasil e Sociedade de classes e
subdesenvolvimento, há nesses mesmos livros, sem dúvida, um claro desenvolvimento de
preocupações relativas à desencontrada historicidade da sociedade brasileira, aos seus
ritmos desiguais e às contradições que dela decorrem.
No entanto, penso, há sim uma "escola sociológica de São Paulo" no que se refere às
indagações mais ou menos comuns que orientaram os trabalhos de seus pesquisadores e
orientam ainda as investigações de seus alunos e continuadores. A grande obra dessa escola
vai além dos trabalhos notáveis que produziu. Ela está nas questões formuladas, nas
perguntas que nortearam suas pesquisas e suas interpretações do Brasil. Ela está no modo
como a realidade foi problematizada pela interpretação sociológica, está nos temas de
investigação que foram por ela definidos. O trabalho científico não expressa sua qualidade
apenas pelas respostas que dá, mas sobretudo pelas perguntas que faz, pelos problemas que
formula. O grupo de São Paulo dessa época foi responsável pela formulação de indagações
científicas essenciais, que são ainda as que orientam a pesquisa sociológica consistente em
nosso país. Quem foge delas, na verdade tende a mergulhar num estilo de trabalho próximo
do ensaismo pré-sociológico ou no diletantismo interpretativo de quem pretende exibir
erudição e familiaridade com os nomes da moda, sobretudo na Europa, no rumo claro de
uma recolonização do pensamento social no Brasil. Neste último caso, um retrocesso
evidente. A propósito, Lévi-Strauss já havia observado que entre os primeiros alunos da
USP:
"Nossos estudantes tudo queriam saber; mas, em qualquer domínio
que fosse, somente a teoria mais recente lhes parecia merecer
atenção. Embotados por todos os festins intelectuais do passado,
que, aliás, só conheciam de oitiva, pois não liam as obras originais,
conservavam um entusiasmo sempre disponível para os pratos
novos. No seu caso, deveríamos falar mais em moda que em cozinha:
idéias e doutrinas não possuíam aos seus olhos um interesse

1
A possibilidade de converter São Paulo numa espécie de laboratório especializado da investigação
sociológica, como ocorrera com Chicago, “atraía o melhor de minha imaginação”, disse Florestan Fernandes
num texto autobiográfico (cf. Fernandes, 1977, p. 170).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

intrínseco, eles as consideravam como instrumentos de prestígio


cujas primícias deviam assegurar-se. Partilhar uma teoria
conhecida de outrem equivalia a apresentar-se com um vestido já
visto; seria desmoralizante" (Lévi-Strauss, 1957, p. 105).

A grande obra dessa escola está, também, no modo como os métodos explicativos foram
desenvolvidos e utilizados. Florestan Fernandes fez um trabalho metodológico de primeira
linha no seu tratado sobre o método funcionalista de origem durkheimiana. A retomada
desse método por Robert K. Merton, em livro de 1949, foi seguida de interpretações críticas
em vários países. Na reedição de seu livro, em 1957, Merton arrolou, dentre outros, os
autores cujas obras nesse sentido ele conhecia e considerava dignas de relevo e os
respectivos anos de edição: Talcott Parsons (1951), Marion Levy Jr. (1953), Florestan
Fernandes (1953), Ralph Dahrendorf (1955), Georges Gurvitch (1955), David Lockwood
(1956), Bernard Barber (1956). No "Post-scriptum bibliográfico", diz: "Ensaio sobre o
método de interpretação funcionalista em Sociologia, por Florestan Fernandes (1953), é
uma monografia informativa e sistemática que recompensa uma leitura ainda que apressada
e falível como a minha" (cf. Merton, 1964, p. 93). Na verdade, já em 1952, o professor
Florestan havia feito um uso denso desse método em A função social da guerra na
sociedade Tupinambá.
Seus alunos Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Marialice Mencarini Foracchi e
Maria Sylvia de Carvalho Franco, juntamente com outros professores da Faculdade, por seu
lado, organizaram o seminário sobre o método dialético2 que influiu poderosamente em
suas pesquisas e interpretações, muito antes do modismo, desastroso aliás, que fez de
Althusser, e do althusserianismo, uma referência que dispensava a leitura do próprio Marx.
Tive oportunidade de ouvir uma exposição de Fernando Henrique Cardoso no México, em
seminário de que participavam alguns dos nomes principais do debate sobre transição para
o capitalismo. Nela, Fernando Henrique expôs o teor de seu livro Capitalismo e escravidão
no Brasil Meridional, cuja introdução trata de uma original leitura sociológica desse
método. Lembro bem que a primeira pergunta lhe foi feita pelo historiador francês Pierre
Vilar que, surpreso, queria saber se aquela interpretação havia sido produzida no Brasil e se
já estava publicada.
Embora o professor Florestan não visse no seu trabalho, no de seus contemporâneos e
discípulos o que pudesse ser definido como escola, empenhou-se em produzir e estimular a
produção do que se poderia chamar de uma "interpretação sociológica brasileira". Ele disse
expressamente que

2
A orientação desse seminário está exposta no artigo de J. Arthur Giannotti, “Notas para uma análise
metodológica de ‘O Capital’”, (1960, p. 60-72). Esse foi o primeiro seminário, na USP, sobre o método de O
Capital. De 1975 a 1987, houve um segundo e mais amplo seminário sobre o tema, organizado por mim, no
Departamento de Ciências Sociais, com alunos de pós-graduação e docentes de várias unidades, em que foi
feito o estudo da questão do método em boa parte da obra de Marx.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

"Pretendia, isso sim, implantar e firmar padrões de trabalho que nos


permitissem alcançar o nosso modo de pensar sociologicamente e a
nossa contribuição à sociologia"3.

Essa proposta ganhou corpo e definição no Projeto Economia e sociedade no Brasil: análise
sociológica do subdesenvolvimento, publicado em 1962. Nele, há um ponto de inflexão em
relação ao que os contemporâneos e os discípulos do professor Florestan haviam feito até
então:
“...vínhamos concentrando grande parte dos projetos de
investigação da Cadeira de Sociologia I no estudo macro-
sociológico das condições histórico-sociais de desintegração da
ordem escravocrata-senhorial e de formação da sociedade de
classes no Brasil”(Fernandes, 1963, p. 303).

O professor Florestan entendia que os países subdesenvolvidos precisam ir além da


importação de
“certos produtos do conhecimento científico e tecnológico (...)
assimilando, de fato, os padrões de pensamento associados à ciência
e à tecnologia científica; (...) conseguindo condições para colocá-los
em prática, de forma efetiva e criadora, nas situações de existência
histórico-social em que se encontrem. (...) Ou adquirem a
capacidade de produzir conhecimentos científicos e tecnológicos
originais (...) ou se vêem impossibilitados de pôr a ciência e a
tecnologia científica a serviço dos projetos nacionais de
desenvolvimento econômico, social e cultural.” (Fernandes, 1963, p.
301).

O “grupo de São Paulo” estava propondo uma sociologia que lidasse com as conseqüências
do salto histórico que poderia levar à superação das barreiras que mantinham o país em
estado de estagnação econômica, de atraso cultural e de dependência política. Quatro
projetos se articulavam nesse projeto maior, dando conta de três âmbitos em que havia
pontos de estrangulamento a serem objeto da análise sociológica: o empresariado industrial,
o Estado e os trabalhadores. Basicamente, o que se desejava conhecer eram os contrastes
entre o atrasado e o moderno, e o máximo de modernização que diferentes comunidades e
setores haviam logrado. Nesse grande esquema, que na verdade continha um projeto
nacional de desenvolvimento e modernização econômica, social e política, a sociologia
comparecia não só como instrumento de diagnóstico. Ela comparecia, também, como
instrumento de consciência, o que era próprio e característico das preocupações de
Florestan Fernandes e do próprio projeto de criação da Faculdade de Filosofia:

“...nos ‘países subdesenvolvidos’ ainda prevalece a fórmula segundo


a qual ‘só vê algo sociologicamente, quem quer algo socialmente’. A
situação coletiva de existência entrelaça o ‘querer comum’ e a

3
cf. Fernandes, A Socio-logia no Brasil (1977, p. 178). “Na medida em que o nosso trabalho cresceu, nós
tivemos de enfrentar os dilemas de tentar construir uma teoria sociológica original, adaptada à situação
brasileira”. Cf.. Fernandes (1978, p. 28).[
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

‘análise sociológica’, convertida em instrumento de autoconsciência


da realidade” (Fernandes, 1963, p. 309).

Nesse documento, tanto se fala em ressocialização do empresário, cuja conduta econômica


ainda está desviada da racionalidade esperada em conseqüência da herança senhorial, nuns
casos, e noutros das formas predatórias da acumulação; como se fala, também, em
revolução da mentalidade dos trabalhadores, ainda presos a uma cultura do trabalho em que
sua atividade carrega as marcas de degradação impróprias da sociedade moderna. Como
também se fala na superação dos entraves que a dominação patrimonial representa para a
modernização do Estado. A investigação sociológica identificaria e apontaria os entraves ao
desbloqueio das vias do desenvolvimento e ao mesmo tempo a sociologia indicaria as
formas de intervenção nos problemas causados pela aceleração do desenvolvimento.
Tratava-se de submeter os problemas a controle social,

“para reduzir os seus efeitos nocivos sobre a industrialização, o


crescimento econômico em geral e a expansão da ordem social
democrática”4.

Esse projeto parece ter pouco a ver com esta frase final do último artigo escrito pelo
professor Florestan, publicado no dia seguinte ao de sua morte:

“O subdesenvolvimento, em suma, tem alimentado o desenvolvimento. Esse


paradoxo só desaparecerá quando os de baixo lutarem organizadamente
contra a espoliação, exigindo transformações profundas na política
econômica, nas funções do Estado e na estrutura da sociedade de classes”
(Fernandes, 1995, p. 1.10).

No entanto, tem muito a ver. Há aí um diagnóstico e uma proposta de ação. O diagnóstico é


integralmente fiel às interpretações que já estão contidas em Sociedade de classes e
subdesenvolvimento, de 1968, e em A revolução burguesa no Brasil, de 1975. A proposta
de ação corresponde fielmente à linha do sociólogo e da escola de que ele foi uma das
maiores figuras. Em sua concepção a Sociologia é uma ciência que interpreta e uma
consciência que interfere. São momentos bem distintos, o do conhecimento e o da ação, o
do objeto (e da objetividade) e o do sujeito e da luta. Essa separação sempre esteve
claramente presente na sociologia de Florestan Fernandes. Ganhou força, sobretudo, com
sua participação na Campanha de Defesa da Escola Pública, entre o final dos anos
cinqüenta e o início dos anos sessenta. Com base nessa experiência de intervenção na
realidade social, ele mesmo disse:

“O problema diz respeito à natureza do conhecimento científico. Se


esse conhecimento é comunicado de uma ou de outra maneira, ou se
o investigador está exposto ou não ao contato com vários tipos de

4
cf. Fernandes (1963, p. 327). As concepções relativas à intervenção racional na realidade foram expostas em
cursos que Florestan Fernandes deu na Faculdade de Filosofia da USP, de 1956 a 1959. cf. Fernandes,
Ensaios de Sociologia geral e aplicada (1960, p. 93 e ss.).
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

público, isso não afeta a natureza do conhecimento científico”


(Fernandes, 1978, p. 61.)

Em nome justamente da neutralidade ética na produção do conhecimento científico, ele


sempre recusou a tese do cientista falsamente pudico, que se recusa a pôr sua sociologia a
serviço da sociedade, mantendo-se reservadamente protegido entre as paredes de gabinetes
e laboratórios. Aliás, é dele a idéia de que, na impossibilidade da experimentação nas
ciências sociais, a verificação da validade do conhecimento sociológico se dá na prática. É
a sociedade que verifica a verdade do sociólogo.
O professor Florestan sempre entendeu que a sociedade oferece à indagação do sociólogo
os seus dilemas (e a consciência que tem desses dilemas). A sociedade muda e muda
também com a intervenção do sociólogo e da sociologia. Muda, por isso, a consciência que
tem de seus problemas e o modo como problematiza as suas dificuldades e seus impasses.
Muda, também, portanto, o modo como o sociólogo vê a sociedade e o modo como
diagnostica a maneira de transformar a interpretação em ação.
É nesse quadro de referência que está o seu grande legado intelectual e político. Para quem
quis entender e teve princípios para fazê-lo, foram essas características de seu legado e do
legado de seu grupo original que permitiram atravessar as adversidades da brutal
intervenção da ditadura militar na Faculdade de Filosofia, em 1969. Foi a balsa que
atravessou a tormenta com a semente fecunda de um modo de pensar e de lutar. Se o
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP ainda existe e merece
respeito da comunidade acadêmica, deve-o sobretudo a ele e a esse grupo notável.

Recebido para publicação em setembro/1995

ABSTRACT: The article deals with the importance of Professor Florestan Fernandes'
intellectual and political legacy which can be perceived until nowadays in his successors'
works at the Sociology Departament at the University of São Paulo.
KEYWORDS: Florestan Fernandes, Brazilian sociology, São Paulo sociology.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fernandes, Florestan. (1953) Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista em
Sociologia. São Paulo, Universidade de São Paulo, Boletim nº 170.
_______. (1960) Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo, Livraria Pioneira
Editora.
_______. (1963) A Sociologia numa era de revolução social. São Paulo, Cia. Editora
Nacional.
_______. (1977) A Sociologia no Brasil. Petrópolis, Vozes.
_______. (1978) A condição de sociólogo. São Paulo, Editora Hucitec.
_______. (1995) O rateio da pobreza. Folha de S. Paulo, 11 de agosto, p. 1.10.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

Giannotti, J. Arthur. (1960) Notas para uma análise metodológica de O Capital. Revista
Brasiliense, nº 29, maio-junho, p. 60-72.
Lévi-Strauss, C. (1957) Tristes trópicos. Trad. Wilson Martins. São Paulo, Editora
Anhembi Limitada.
Merton, Robert K. (1964) Teoría y estructura sociales. Trad. Florentino M. Torner.
México, Fondo de Cultura Económica.
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

ENTREVISTA

Florestan Fernandes – 1920-1995


“Não se pode esquecer que a história é cruel com aqueles que pensam que ela é eterna.
Porque ela não é eterna. Ela muda as faces, muda as exigências. E pode se converter num
abismo e afogar aqueles que não perceberem que é momento de mudar de rumo”
Entrevista concedida em 12 de julho de 1995 para
Fátima Murad, jornalista, atualmente redatora da
Fundação SEAD

RESUMO: Nesta entrevista Florestan Fernandes discorre sobre temas de política brasileira
e, em especial, do atual governo Fernando Henrique Cardoso.
PALAVRAS-CHAVE: Florestan Fernandes, política brasileira, governo Fernando
Henrique Cardoso.

Até ser submetido a um transplante de fígado no último dia 4 de agosto, no Hospital das
Clínicas, em São Paulo, a que se seguiram complicações nos rins e seu falecimento, na
madrugada do dia 10, aos 75 anos de idade, Florestan Fernandes não descolou a atenção
dos problemas sociais que o preocuparam durante toda a vida e que motivaram sua carreira
de sociólogo e professor e sua militância política. Enquanto teve energia para falar, nos
intervalos entre as inúmeras internações hospitalares nos últimos anos, o velho professor
não se furtava a discorrer longa e lentamente sobre os temas mais candentes – como nesta
entrevista que nos concedeu no dia 12 de julho, durante cerca de duas horas.
Florestan Fernandes foi vítima de um erro médico. A necrópsia atestou como sua causa
mortis uma embolia gasosa, conseqüência de uma falha, mecânica ou humana, durante uma
seção de hemodiálise, após a cirurgia. Não foi esta a primeira vez que ele pagou pela
imperícia médica: o vírus da hepatite B que comprometeu seu fígado, obrigando-o ao
transplante, foi contraído numa cirurgia de próstata há mais de vinte anos e detectado
quando já era muito tarde. Ele encarava essa situação com muita objetivade, lembrando que
não é só no Brasil que o sistema hospitalar produz vítimas. “Na questão do erro médico
pode-se dizer que a democracia vingou, pois ele existe até nos grandes países capitalistas”,
dizia. Como demonstrou nesta última entrevista, não esperava milagres da cirurgia e previa
que, caso sobrevivesse, teria de continuar lutando arduamente contra o vírus, que se
proliferara por todo seu organismo.
Seu horizonte era o futuro. “Serei sempre um radical”, afirmava. Observava com muita
preocupação o agravamento dos problemas sociais no Brasil e no mundo. Aqui, previa
conflitos cada vez mais violentos no campo onde, segundo ele, a situação de opressão dos
trabalhadores se aproxima do extermínio. Coincidentemente, nas primeiras horas da manhã
do dia 10 de agosto, quando as rádios anunciavam seu falecimento, davam conta também
das primeiras informações sobre um violento confronto entre posseiros e a polícia, na
desocupação de uma fazenda em Rondônia, que resultou em mais de uma dezena de
mortos. Não nutria qualquer ilusão quanto à possibilidade de seu amigo e ex-aluno
Fernando Henrique Cardoso melhorar o Brasil. É a ele, aliás, que se refere a epígrafe
Tempo Social - Rev. Sociologia da USP.
S. Paulo, 7(1-2), 1995.

acima. Para ele, o presidente é apenas instrumento das forças conservadoras. Não chegou a
assistir ao episódio da intervenção no Banco Econômico, mas antevia a eclosão de
intermináveis conflitos entre os grupos no poder ao longo deste governo.
A vasta obra que Florestan Fernandes legou ao pensamento brasileiro é uma medida de sua
dedicação aos problemas que o instigavam e que poderiam ser sintetizados em sua
preocupação central com os despossuídos de tudo – os não-cidadãos. Ele deixou publicados
59 livros tratando de questões ligadas à estrutura do poder e da sociedade no Brasil, às
condições de existência das minorias, como negros e índios, ao ensino, ao Partido dos
Trabalhadores e muitos outros temas: lecionou na USP de 1945 até sua aposentadoria
compulsória pelo AI-5 em 1969 e em outras instituições, como a Columbia University, a
Universidade de Toronto e, finalmente, a PUC de São Paulo, onde encerrou sua carreira;
iniciou-se na militância política de esquerda na década de 40 e chegou a exercer dois
mandatos como deputado federal pelo PT entre 1987 e 1994.
Segue a entrevista:
O senhor diria que a USP chegou ao poder?
Longe disso. O que temos é a manutenção dos que sempre mandaram na sociedade
brasileira e que conseguiram, através de uma aliança com um setor da esquerda mais
moderado, restabelecer suas bases políticas de monopólio do poder, de modo a ambos os
lados fazerem concessões recíprocas. Eu diria que esse grupo no poder, com Fernando
Henrique à frente, representa a conciliação mais ampla e, ao mesmo tempo, mais escabrosa
que já ocorreu na história do Brasil. Parecia que a última conciliação seria aquela que se
deu com Tancredo Neves. Até costumo dizer que Tancredo Neves teve sorte de morrer,
porque, com aqueles arranjos que ele fez, acabou formando uma coligação de nomes que
jamais poderiam ser articulados em um governo estável, tal a contradição existente entre as
pessoas, o que elas pretendiam, o que elas representavam. Tancredo tinha uma visão de
conciliação que o levou a estabelecer não um arco, mas vários arcos, tentando unir setores
que não são articuláveis, que não são moldáveis. Todos os políticos e personalidades mais
importantes foram pensados para ocupar posições no governo. Ora, um governo tem de ter
uma política que unifica a sua atividade no plano internacional e nacional. Se não tem essa
política, ele está desarmado.
O atual governo tem uma política, ele está armado?
Atualmente estamos em face de uma situação menos calamitosa para o presidente da
República, porque o alcance do arco foi estabelecido em termos de alianças que tinham um
caráter eleitoral imediatista. Mas as circunstâncias acabaram se definindo como inflexíveis
e o resultado é que as alianças que pareciam de conjuntura acabaram se tornando de longa
duração... por enquanto não se pode falar de longa duração, mas a perspectiva é essa, a
duração de um governo, ou quem sabe até de outro sucessivo, se a oposição não for capaz
de se articular para derrubar essa influência externa dos estados conservadores em nossa
vida política.
Mas uma boa parcela da USP e da comunidade acadêmica está no governo.
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A USP entrou com alguns nomes, principalmente o do presidente da República e eu não


acho que isso tenha sido, por si mesmo, mau. Ninguém nega qualificação ao Fernando
Henrique Cardoso para ser o presidente da República. O problema é que ele foi movido por
uma situação na qual as forças sociais e políticas ativas jogam, internacionalmente e
nacionalmente, tantos nos países centrais quanto na periferia, na direção do conservantismo
e do chamado neoliberalismo.
Como o senhor explica a mudança de posição do Fernando Henrique?
Tenho um amigo que é descendente de árabes e, comentando com ele a situação política
dos países árabes, critiquei o fato de um político ser tão lábil a ponto de ter uma posição
durante vários anos e depois mudar para ficar dentro da corrente, ou subir. E ele me disse:
“Bom, é preciso considerar o seguinte: essa pessoa tem a alternativa de se manter na
posição e conquistar o poder, ou ela precisaria conquistar o poder para se manter na
posição?” É uma maneira de explicar porque isso acontece. Há um tipo de raciocínio, que
chegaram a chamar de maquiavélico, mas que não tem nada a ver com Maquiavel, a
respeito desse procedimento. Seria o maquiavelismo político. Mas o maquiavelismo
político não explica coisa alguma, porque o que está em jogo são forças que surgem na
sociedade nacional, no mundo contemporâneo, que têm uma importância muito grande na
determinação dos acontecimentos e dos processos históricos. Às vezes, um partido ou um
político tem de se submeter, dependendo, naturalmente, dos projetos que ele tem. Porque
fidelidade a uma posição política não necessariamente favorece a ascenção ao poder. Às
vezes até dificulta, bloqueia. Acredito que os políticos brasileiros se formam dentro daquela
tradição, defendida pelo meu amigo, que é libanês. Aliás ele não defendeu, ele apenas
explicou, porque, ao contrário disso, ele é um homem de posições democráticas avançadas.
Ainda hoje está na imprensa um artigo escrito por um sobrinho de um desses emires ou
sheikes das Arábias, dizendo que os governos têm formado súditos mas não cidadãos... é o
próprio sobrinho de um desses potentados que está dizendo.
Mas o senhor não acredita que Fernando Henrique, pelas idéias que sempre defendeu,
possa contribuir para melhorar o país?
Essa não é uma política que favorece a mudança no sentido de alterar o estado de coisas
vigente, como diria Marx. Se altera, altera num sentido muito limitado. O que é terrível é
que o impacto, a vitalidade dessas forças no plano internacional é excessivamente grande, e
os países da periferia não têm como se defender. Veja o caso da Sivam: um telefonema do
presidente dos Estados Unidos tem mais importância que as manifestações do Congresso e
de outros organismos públicos brasileiros. O mundo vive hoje a terceira fase do capitalismo
oligopolista. Uma forma de imperialismo inerente a esse tipo de capitalismo é terrivelmente
dura e se faz manifestar na periferia, fortalecendo governos duros, de direita. As elites das
classes dominantes têm uma tradição notória, que é a de se ajustarem às demandas políticas
desse setor externo, porque esperam melhorar sua perspectiva econômica, cultural e
política. Para a grande indústria, para o empresário que está no setor moderno da economia,
e hoje todos estão, de um jeito ou de outro, é muito importante contar com o capital
estrangeiro, ou ter a ilusão de que vai contar. Essas alianças se tornam, então, imperativas e
o que leva a isso não é uma conjuntura propriamente nacional. Há um erro quando se pensa
que isso só acontece no Brasil. Isso acontece em virtude do Brasil fazer parte desse mundo.
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Qual a alternativa a esse arranjo de forças no poder? O próprio Fernando Henrique


poderia ter encabeçado um outro tipo de aliança, mais à esquerda?
Se houvesse essa possibilidade não teria havido essa evolução. As oportunidades foram
definidas em termos das condições de transição lenta, gradual e segura, que não é algo que
estava ligado ao aparelho militar, mas às expectativa da grande burguesia brasileira – não
só do setor financeiro, mas de todos os setores altamente conservadores – e às pressões
externas. Os países que controlam a economia mundial detêm uma alta parcela do controle
da nossa economia e também da nossa cultura, da nossa midia, do nosso pensamento, da
nossa política e de tudo. E por aí chegamos ao sistema de poder estatal. Não havia, no
horizonte aberto pelas eleições, uma saída que favorecesse a alternativa oposta.
Eleitoralmente, o candidato que era realmente forte era Luís Inácio Lula da Silva, que vinha
com um programa muito mais construtivo, muito mais aberto, muito mais inovador. Por
isso mesmo era apoiado por setores da sociedade brasileira que estão sujeitos à dominação
e à influência dos de cima. Esses setores, na hora da votação, arrepiaram carreira, porque
acabaram aceitando as razões que faziam de Lula um candidato temível. Ele não era
temível para a nação, mas para aquele setor da nação privilegiado e para os interesses
internos investidos aqui e em processo de crescimento.
E Fernando Henrique era uma alternativa viável...
Acabou sendo. O Fernando Henrique Cardoso era, indubitavelmente, um candidato de
envergadura e com condições de ser eleito. E ele revelou uma grande plasticidade política,
mesmo porque estava convencido, a partir das avaliações do governo Collor, da
exeqüibilidade de uma política de desenvolvimento dentro dos padrões que convinham,
tanto aos interesses das empresas gigantes estrangeiras quanto aos dos estratos mais
privilegiados da burguesia interna. Desse modo a candidatura de Fernando Henrique
acabou crescendo. Ele teve dificuldade de se ajustar à posição de candidato popular, mas
acabou aprendendo. Pois, se uma pessoa é capaz de aprender coisas tão difíceis como ele
aprendeu, a ponto de chegar ao top da carreira universitária, nacional e internacionalmente,
ele também teria condições de se realizar como político. Um político capaz de satisfazer as
expectativas até de setores intelectualmente resistentes das classes médias e altas. O
resultado é que ele acabou sendo o candidato de conciliação dessas forças.
E a esquerda, porque não se viabilizou, se tinha um candidato mais forte?
A esquerda não tinha capacidade de mobilização para enfrentar uma tradição quase que
senhorial de poder que existe em todo o Brasil, não só no norte e no nordeste, como
também, em escala menor, nas regiões sul, sudeste e extremo sul: a tradição dos caudilhos
eleitorais. É verdade que os grandes caudilhos eleitorais estão no nordeste e, em parte, no
norte. Nessas regiões, o voto pode ser comprado. De diversas formas, inclusive as
tradicionais, como parte de uma lealdade, de uma reciprocidade mal entendida de uma
pessoa que recebe um favor e acha que pode compensar pelo voto, quando o voto deveria
estar separado de qualquer injunção dessa espécie, porque envolve secularização de atitudes
e de comportamento. O voto comprado acaba sendo altamente cômodo para muitos
políticos, que já nem se interessam pela campanha, só se interessam pela quantia que vão
ter de investir. Com tanto dinheiro, pode-se comprar tantos votos. E há alguns que custam
baratíssimo, porque é uma mercadoria desvalorizada.Compra-se um voto até por
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quinhentos réis e é nesse plano realista que se dão as coisas . Essa aliança entre a direita e
um setor moderado da esquerda redundou numa força muito maior que a esquerda, radical
ou não, teria capacidade de atingir. O PMDB, que poderia ter levado algum equilíbrio à
disputa eleitoral, estava dividido e acabou se acomodando nas expectativas mais brandas.
Os votos do PMDB foram divididos e poucos realmente ficaram dentro de uma orientação
de oposição sistemática. A multiplicidade de candidatos dispersou votos e embora o
Fernando Henrique Cardoso não tivesse a maioria da votação, ele teve uma votação
suficiente para se eleger. Ele desbancou o Luís Inácio da Silva que, por sua vez, atingiu um
pico considerável, tendo-se em vista suas origens populares e o sentido político de sua
candidatura que, como tenho sempre salientado, tinha um significado de ruptura. Nós nunca
teremos uma ruptura no Brasil se não surgir um candidato político, capaz de estabelecer o
divórcio pelo qual tudo o que existiu até hoje deixa de existir e partir para uma nova
modalidade de organização econômica, cultural e política.
O PT está suficientemente munido para promover uma tal ruptura?
Batem muito na tecla de que o PT não está preparado para o poder. Isso envolve uma
considerável dose de má fé. Quem estava preparado para o quê? De quanta improvisação
não resultou tudo isso? Quanto não estamos pagando por essa improvisação? Quanto não
vamos pagar daqui a algum tempo? Os diferentes partidos que se uniram em torno de Lula
e do PT, desde um Partido Comunista do Brasil até um Partido Socialista Brasileiro,
passando pelo PSTU, enfim todos os partidos que compuseram a teia de alianças de
esquerda, todos eles tinham uma ra-dicalidade específica e conhecida e um grau de firmeza
muito grande. Na verdade, quando se diz que Lula e o PT não têm proposta, está se fazendo
uma grande mistificação, porque as propostas não só surgiram nos programas dos partidos e
da coligação, como surgiram também com o próprio candidato. O PT fez um programa
muito rico de idéias e sugestões.
E como o senhor vê a atuação da esquerda hoje. Ela aprendeu com a derrota?
A esquerda tem sido muito construtiva. Ela tem trabalhado na área da mudança da ordem,
como passo para mudanças interiores de maior magnitude. Ela tem sido realista e
gradualista e, naturalmente, isso não satisfaz aos ideais da extrema esquerda, mas é uma
medida de sensatez, no sentido de entender que vale mais aproveitar as disposições à
mudança efetiva, do que assustar aqueles que não entendem, de fato, o que os adversários
estão propondo, porque não são capazes de imaginar tudo o que é necessário para que o
Brasil deixe de ser o que é.
O senhor se tornou mais moderado?
Absolutamente. Continuo marxista. Continuo a defender minhas posições de extrema
esquerda. Serei sempre um radical, mas sei que a gente não chega à lua sem mais nem
menos. Ninguém é barão de Munchausen, que pode sair da própria pele. A minha posição
marxista me leva a ser permanentemente extremista, mas não a ponto de querer pôr o carro
na frente dos bois. Às vezes se pode dar passos gradativos, que vão se somando e que vão
conduzir na direção de um processo que as forças conservadoras, os que estão tentando
manter o poder, não vêem. Foi por isso que sempre me mantive firme nessa posição, mas
sei que essa é uma perspectiva subjetiva. Onde eu estava quando se dá o Estado Novo?
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Estava na luta clandestina. Onde estive quando seu deu o golpe de Estado em 64? Estava
engajado na luta de resistência das forças vivas da sociedade. De 66 em diante, até fins de
68, tive uma atividade pública, conhecida, de combate tenso, nacional, pelas reformas
estruturais.
O golpe de 64 mudou o Brasil?
64 foi um momento que serviu para que os intelectuais e a esquerda brasileira tomassem
consciência da situação de fato do país, porque o tumor foi aberto e todo pus surgiu.
Ninguém mais podia dizer que não sabia o que era a sociedade brasileira. Diagnósticos
errados anteriores e fugas acomodatícias, que podiam ser justificadas e racionalizadas,
tornaram-se impraticáveis e, até certo ponto, covardes, porque era uma maneira de se
acomodar a uma situação de fato, como se se pudesse dizer: “Sou cidadão só até o
momento em que defender a cidadania não representa perigo. Daí em diante, je m’en fuis,
pouco me importa. Ora, cidadania que importa é a dos outros, a dos que não têm. O Brasil
nunca será nada se a cidadania não for universal, e para que ela seja universal é preciso que
todos os de baixo pertençam a uma classe social, que sejam capazes de ter aqueles
requisitos que permitem o aparecimento do cidadão.
Como o senhor define as classes sociais no Brasil hoje? O que se alterou nas últimas
décadas?
Há mudanças que têm significado estrutural e há mudanças que têm significado dinâmico,
estratégico. Mudanças estruturais ocorreram graças ao aprofundamento da industrialização,
ao aumento do mercado de trabalho. Há muita gente que fala em sistema de trabalho
universal, mas na verdade não existe sistema de trabalho universal. Porque sabemos que
nosso sistema de trabalho é parcialmente capitalista e parcialmente pré-capitalista. E nesse
pré-capitalismo, vamos do escravo até o espoliado, que recebe só a comida, e as crianças e
mulheres que recebem um terço do salário que deveriam receber. Há essa combinação de
elementos díspares, que torna difícil a idéia de que existe um sistema de classes
configurado. E tem de haver, porque não se pode ter capital e trabalho como mercadoria
sem ter uma sociedade de classes. O capital exige um trabalho que é recrutado no mercado.
Ele é sujeito a uma forma de espoliação que produz acumulação constante e crescente do
capital.
Com a tecnologia moderna, não mudou o significado do trabalho?
É claro que mudou. Mudou o significado relativo do trabalho e de outros elementos que são
capitalizáveis. Mudou a composição orgânica do capital, a ponto de reduzir o valor que o
trabalho chegou a ter na sociedade industrial moderna. Mas isso tudo não exclui a
existência de classes. É através das diferenças de classes que se dá o desenvolvimento
econômico, cultural e político. O sistema global criou também uma subclasse, os
desclassificados, um fator assustador para ele próprio. Esses que não foram incorporados
são indícios de que essa sociedade de classes está sujeita a perversões e a desequilíbrios
fatais. Entre eles, estão os deserdados da terra, que levantam a bandeira da reforma agrária
e fazem um movimento denso e significativo.
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Essa tem sido uma luta inglória. O senhor acha que esse movimento tem força para
mudar?
A sociedade brasileira tem sido um inferno para esses setores que vivem na miséria, ou se
não, nas fronteiras da miséria e, por menos que reivindiquem, reivindicam a condição
humana. E quem reivindica a condição humana tem uma força de negação muito forte, que
não precisa ser verbalizada, porque é sentida, e leva, assim, a atos de violência que, às
vezes, chegam a assustar. Esses setores representam uma área verdadeiramente explosiva
da sociedade.
De maneira geral, o sistema de classes se alterou...
Sim, ampliou-se o das classes assalariadas e dos assalariados qualificados, que passaram a
ter um nível de vida e de renda e, freqüentemente, também de cultura, mais alto, que
formam o setor pequeno burguês e baixo da classe média; por outro lado, há os setores que,
graças à formação educacional e à capacidade de pro-fissionalização, adquiriram uma
perspectiva de renda e de prestígio maior. Esse é o setor que vende a inteligência para o
grande capital nacional ou estrangeiro, ou se torna burocrata através do Estado e da
empresa capitalista moderna.
E como o senhor define a burguesia brasileira?
A burguesia é, como sempre foi no Brasil, muito articulada, o que faz com que ela tenha
uma unidade, se não econômica, no sentido de vencer as diferenciações regionais, pelo
menos cultural e de orientação política. E, apesar das diferenças setoriais, que implicam
também variações na participação do poder efetivamente político, no poder político estatal,
esse setores se entendem bem em qualquer momento de crise e são capazes de desenvolver
um esquema de conciliação que os acomode e que ofereça compensações a todos, além de
criar bandeiras para iludir o resto da sociedade. Porque essas conciliações são,
naturalmente, escamoteadas ideologicamente. A ideologia serve para esconder, e assim vai
se passando de uma fantasia a outra: da democracia à eleição livre, ao voto secreto, etc. Se
nunca nos perguntarmos quais são os requisitos da existência disto ou daquilo, quem vai se
beneficiar, o que a população como um todo tem a ganhar com isso, ou o que ela tem a
perder, o que representam para a nação e para o enfraquecimento da nação esses arranjos
todos, que são importantes para a cúpula e que se esgotam por si próprios, não fica nada. O
que ficou dessas grandes conciliações? Nada.
A sociologia, que já esteve muito em voga no Brasil, hoje parece ser desprezada.
O sistema de classes permite explicar muita coisa e isso é ignorado. Diz-se que essa
algaravia sociológica entre aspas não tem mais sentido, que as classes já não existem mais.
Ora, se existe capital e existe trabalho, tem de existir um sistema de classes, e este tem de
ser estudado, porque é o sistema que reúne a desigualdade econômica, cultural e política a
um anseio de superação dos excessos da desigualdade, à luta pela maior liberdade, pela
conquista de novos níveis de igualdade social.
O escritor alemão Hans Magnus Enzensberger, que esteve no Brasil recentemente, afirma
que a grande maioria de excluídos no mundo, além de terem sido destituídos das condições
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mínimas de sobrevivência e de tudo o mais, agora tendem a ser excluídos do pensamento.


Eles vão deixar de existir, porque ninguém mais vai falar deles.
É verdade. Esse é um processo que o capitalismo oligopolista, que o chamado neo-
liberalismo, que a globalização, etc., pressupõem. Nós ainda estamos num estágio anterior,
mas à medida que o capitalismo oligopolista entrar aqui, vamos ver como esse padrão de
dominação imperialista vai resultar numa dependência de tipo diferente daquela que houve
no passado. Vamos conhecer, então, essa forma extrema de marginalização que leva à
exclusão total das populações consideradas inassimiláveis. Porque realmente vai surgindo
uma parte da população que não pode ser incorporada ao exército de trabalho ativo. E o que
fazer com essa gente? Sustentar para manter o equilíbrio social ou sufocá-la pela opressão e
pela coerção? Então surge a alternativa de excluí-los de uma forma crescentemente mais
dura. Começam a se eliminar os direitos sociais, as seguranças obtidas a duras penas, e por
aí afora. São coisas que se pode estudar nos Estados Unidos, na Inglaterra e em outros
países, até no Japão, onde o caráter tradicional da empresa permitia uma certa segurança
para o trabalhador. Até lá isso está sendo corroído. Então, temos o excluído de tudo. Na
verdade, o excluído no Brasil também é excluído do pensamento. É uma forma de
animalização do ser humano. Na medida em que, por exemplo, o movimento negro, que eu
estudei, lutava contra o preconceito, a discriminação e a segregação – como eles diziam,
naquela época, “em primeiro lugar o sol” – eles estavam lutando pela condição humana,
pela humanização, contra esse fato de serem excluídos e, pela exclusão, exterminados para
o pensamento produtivo. Isso anula toda uma parte da sociedade, que não é mais reserva de
talento, nem reserva de trabalho, é um setor marginal em si e por si, que vem aumentando
numa progressão crescente e peculiarizando a periferia dos países centrais. Os países
centrais acabam formando suas próprias periferias. Eles tinham a periferia do mundo que
eles conquistaram e dominaram. Agora estão conhecendo as periferias que vivem lá dentro,
esses desníveis e desequilíbrios da própria sociedade capitalista.
O senhor vê caminhos para a mudança?
A luta não termina com a disputa eleitoral. A disputa eleitoral é uma etapa da luta. Na
medida em que se avança, naturalmente o projeto amadurece e se torna coletivo também. É
exatamente isso que os privilegiados no Brasil estão impedindo. Porque eles têm o projeto
deles, capenga e insuficiente. As elites não precisam provar a incompetência delas, porque
já provaram.
Mas elas se julgam mais inteligentes que a esquerda...
Elas se julgam mais inteligentes mas, na verdade, só infelicitaram o país, porque nunca
resolveram os problemas que estão aí, que são problemas postos pela incompetência delas
de enfrentar a situação concreta do país. Sabotam a educação, sabotam a reforma agrária,
sabotam os direitos dos trabalhadores, bloqueiam a passagem das populações excluídas,
sem classe, para o setor classificado, não criam uma interdependência de campo e cidade
acima, daquelas que são produzidas pela urbanização, pela industrialização. Na verdade,
estão sempre lutando por projetos para manter o monopólio do poder, lutando por si
mesmas. Esse é o projeto delas. Nosso projeto é outro, é criar um sistema de poder
alternativo, que comece a funcionar para todo o país, que tenha a capacidade de integrar a
nação para que outros processos que promovam a integração nacional se desencadeiem.
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O senhor acha que seu ex-aluno Fernando Henrique tem consciência desses processos?
Deve ter. Tanto que a coligação que ele sustenta, via de regra, reproduz um esquema pelo
qual o capitalismo se consolidou na Inglaterra, com nuances na França, nos Estados
Unidos, na Alemanha, no Japão. No Japão, é de uma Casa Imperial que surge um projeto de
modernização, com o apoio da burguesia, que era insignificante. Mas havia um poder
conservador forte, que serviu de barriga e de baluarte para o desenvolvimento que
acelerasse a acumulação de capital e as formas de modernização desejadas. Na Alemanha,
com a Prússia por trás, Bismarck representou uma forma de coligação política imposta de
cima para baixo à força, com intuitos nacionais agressivos. Nos Estados Unidos, a guerra
civil culminou com um processo de pilhagem do sul pelo norte. Então, é muito comum
isso. O capital tem maiores probabilidades de expansão, diferenciação, multiplicação,
quando ele encontra essa coligação entre um setor radical, em termos de aceitar as
mudanças, e outro reacionário, que se acomoda a algumas das mudanças ao mesmo tempo
que seleciona e restringe o caráter radical das inovações. Essa composição acaba sendo
prejudicial porque é através dela que as elites manipulam o processo e tiram todas as
vantagens possíveis da modernização. Veja-se que hoje a modernização está dando
dividendos, não para a massa do povo.
O que o senhor vê na linha do horizonte? Não há uma possibilidade de ruptura nessa
aliança, e até de uma eventual disputa entre Fernando Henrique a Antônio Carlos
Magalhães?
Acho que não se deve colocar em termos de pessoas, porque nenhuma aliança é fruto da
vontade exclusiva de agentes individuais. É produto de uma situação histórica, e o que
caracteriza o histórico é que ele é mutável. Há uma controvérsia hoje sobre a história, a
idéia de que a história acabou. Dizer que uma maneira de fazer a história, de estudar
história, esteja em crise, tudo bem, mas a idéia de que o processo histórico objetivo está
extinto, isso é absurdo, porque se isso acontecesse, diria que a vida acabou, porque
chegamos à estagnação, ou chegamos ao paraíso, e nenhum regime social até hoje
conseguiu atingir o paraíso, quanto mais o céu... As alianças, principalmente quando são
feitas em termos de pacto, são mutáveis. Isto porque o próprio ímpeto das mudanças
selecionadas muda a configuração histórica, muda até necessidades urgentes de intervenção
econômica, cultural, política, geográfica, ecológica, diplomática, militar, etc. O resultado é
que aliados num momento podem se tornar menos aliados à medida que o processo se
aprofunda e as alianças perdem consistência. Isso aconteceu com o regime militar. Os
militares foram bastante hábeis porque criaram um esquema de poder com um alto grau de
racionalidade e conseguiram sustentar um esquema de transição, que chamaram de lento,
gradual e seguro, que prendeu o Brasil nessa armadilha em que estamos. De qualquer
modo, a crise do regime político da ditadura militar mostra como as alianças mais
profundas, ou aparentemente mais profundas, que parecia que vinham para durar à
eternidade, acabam perdendo a sua eficácia e sendo um fator de exigências novas. E, ao
mesmo tempo, certos setores que ficaram excluídos dessa aliança, ou por oposição efetiva,
ou por inconseqüência, ou por qualquer outro razão, acabam crescendo, porque na medida
em que um poder que surgiu de um voto precário vai perdendo a capacidade de ser eficiente
vai, ao mesmo tempo, deixando de satisfazer seus próprios convivas, que vão procurar
refazer as teias de alianças. Não se pode esquecer que a história é cruel com aqueles que
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pensam que ela é eterna, porque na verdade ela não é eterna, ela muda suas faces, muda
suas exigências e pode se converter num abismo, e pode afogar todos aqueles que não
perceberem que é o momento de mudar de rumo.
Qual o futuro da esquerda brasileira?
Eu não acho que hoje a esquerda esteja tão fraca. Ela é fraca porque tinha de ser fraca. Na
medida em que faz um balanço das condições objetivas da vida política brasileira , seria um
ganho que a esquerda fosse forte. Na verdade, ela é estatisticamente forte, porque o número
de oprimidos e excluídos que têm reivindicações fundamentais é avassalador, mas eles não
têm eficácia política porque estão destituídos das condições de cidadania e de influência
sobre os acontecimentos históricos e políticos. Daí que a esquerda tenha de travar duas
batalhas: uma para aumentar sua capacidade de comunicação com aqueles que ela deve
representar, e que ela não conseguiu ainda socializar e, de outro lado, com os que estão na
órbita do poder e que tentam massacrar, ao mesmo tempo, a esquerda e os de baixo. Essa é
uma polarização espontânea. Agora, a esquerda tem de caminhar nessa direção e a sua
radicalidade vai depender muito dos ideais que a gente possa ter, porque é marxista, porque
é isto, porque é aquilo, mas também das potencialidades da própria situação política. Vejo
que o Brasil dificilmente vai se desprender desse enclave. O Brasil está metido dentro duma
carapaça que vem do período colonial. A dominação externa é um dado permanente na
nossa história, não que a história seja permanente, mas é um dado permanente da nossa
história essa submissão à dominação externa.
Recebido para publicação em agosto/1995

ABSTRACT: In this interview, Florestan Fernandes speaks about Brazilian politics and
Fernando Henrique Cardoso's actual government.
KEYWORDS: Florestan Fernandes, Brazilian politics, Fernando Henrique Cardoso's
government.

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