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RESENHA 1

As razões de um sociólogo O primeiro capítulo resgata os “anos de apren-


dizagem” (p. 13) de Boudon na sociologia, quan-
The reasons of a sociologist do começou a se consolidar sua convicção de que
os fenômenos sociais deveriam ser explicados pela
BOUDON, Raymond. A sociologia como ciência. combinação de ações individuais intencionais. Os
Petrópolis, Vozes, 2017. 173 pp. primeiros contornos do individualismo metodo-
lógico do autor, que se juntaria à tese de que os
Gabriel Peters indivíduos agem com base em razões e não devi-
http://orcid.org/0000-0002-0595-2663
do a determinações inconscientes, já despontavam
Professor do Departamento de Sociologia da fora de compasso com a atmosfera estruturalista
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife – que dominava a França dos anos de 1960. Bou-
PE, Brasil. E-mail: gabrielpeters@hotmail.com. don também discrepava de muitos de seus colegas
DOI: 10.1590/349906/2019 na sociologia pelo fato de que a indignação moral
e a paixão política não estavam, a crer no seu de-
“Minha ambição era explicar o macro pelo micro e o poimento, entre as motivações que o conduziram
micro por razões.” (p. 118) à disciplina. Graças à intermediação de Raymond
Aron, cujo weberianismo liberal também o torna-
Neste livro, Raymond Boudon revisita algumas va ave rara diante do humor intelectual ambiente,
etapas centrais do seu percurso intelectual, o qual Boudon pôde ir aos Estados Unidos para o que se-
impressiona em sofisticação analítica, substância ria uma experiência decisiva de estudo com Merton
empírica, versatilidade temática e fôlego interdisci- e Lazarsfeld (1961-1962). A sociologia mertonia-
plinar. Ao retraçar sua trajetória acadêmica, o autor na forneceu a Boudon um exemplar de conjuga-
francês sublinha, uma vez mais, as orientações teó- ção entre teorização e pesquisa que destoava tan-
ricas e metodológicas fundamentais de sua sociolo- to das abstrações estratosféricas da “grand theory”
gia: a busca de “teorias de médio alcance” acerca de à la Parsons quanto de um rasteiro empiricismo
fenômenos sociais bem delimitados, o individua- desligado de quaisquer modelos explanatórios de
lismo metodológico como estratégia explanatória alcance mais geral. O complemento lazarsfeldiano
e o postulado de que as condutas individuais, cuja aparecia como um pacote de técnicas de pesquisa
agregação engendra processos societários, são expli- sociológica mediante as quais poderiam ser formu-
cáveis pelas “razões” que motivam os atores a agir. ladas, aplicadas e testadas teorias de médio alcance
Desde o próprio título do seu memoir, Boudon não sobre problemas de investigação bem delimitados.
deixa dúvidas quanto à sua crença de que as diretri- Os estudos de Lazarsfeld e seus colaboradores co-
zes intelectuais que pautaram seu próprio trabalho lumbianos sobre mensagens midiáticas foram vistos
são aquelas que a sociologia, como tal, deveria se- por Boudon, ademais, como demonstrações con-
guir para ser digna do rótulo epistêmico de “científi- vincentes dos limites do determinismo sociológico.
ca”. Seria errôneo, no entanto, interpretar essa ideia O que valia para as respostas de receptores de men-
como sintoma de arrogância solipsista por parte do sagens midiáticas se aplicaria, Boudon viria a con-
autor, ainda que tal impressão possa ser alimentada cluir, para o conjunto dos fenômenos de que trata a
por enunciados como “A sociologia científica existe; sociologia: os contextos societários condicionam as
eu a encontrei” (p. 9). A frase que se segue a esse condutas intencionais, mas não as determinam me-
enunciado, assim como o livro in toto, evidenciam canicamente, de maneira que os interesses e crenças
que Boudon não reclama para si o título de “criador” dos indivíduos são variáveis sine qua non da expli-
da sociologia científica, mas acredita genuinamente cação sociológica.
tê-la encontrado – “em minhas experiências, em mi- O capítulo 2 discute sua obra de sociologia da
nhas leituras, nos trabalhos de inúmeros sociólogos educação sobre A desigualdade das oportunidades
clássicos e modernos, em muitos estudos de meus (1981). Publicado em 1973, o livro obteve signi-
colegas, amigos e estudantes” (p. 9). ficativo impacto internacional devido, entre outras
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coisas, à sua proposta de ir além de correlações es- de todo um conjunto de condutas irredutíveis ao
tatísticas para captar os mecanismos gerativos que as cálculo autointeressado das consequências. Este se-
explicavam (p. 59). Boudon se debruçou sobre um ria o caso, por exemplo, das ações motivadas por
paradoxo que marcava várias sociedades ocidentais princípios morais, como a obediência a uma norma
na década de 1960: a democratização do ensino, coletiva (por exemplo, não furar fila ou não roubar)
sobretudo nas suas faixas média e superior, aumen- mesmo na ausência de qualquer ameaça de punição.
tara o nível de instrução médio das populações Nesse sentido, as razões dos agentes não se reduzi-
como um todo, mas sem diminuir seja “a correla- riam à adequação de meios a fins, mas orientariam
ção entre a origem social e o nível escolar”, seja “a a escolha dos próprios fins. Boudon subsume as
correlação entre a origem social e o estatuto social formas instrumental e axiológica de racionalidade
alcançado” (pp. 50-51). Sua explicação da persis- no seu conceito mais amplo de “racionalidade cog-
tência na desigualdade das chances conferiu um nitiva”, o qual ele atrela ao postulado teórico de que
papel central às famílias dos estudantes. O aspecto os agentes atuam com base em um “sistema de ra-
decisivo da experiência no seio familiar não seria, zões” que fazem sentido para eles. Como de costu-
no entanto, a prévia distribuição desigual dos sabe- me, o autor argumenta em prol da sua abordagem
res que favoreceriam o sucesso escolar, mas o fato através da análise de um problema substantivo –
de que a família serviria como grupo de referência nesse caso, por que as pessoas sustentam frequen-
para as ambições e decisões do estudante: “o que temente crenças infundadas? Ao responder à per-
simboliza fracasso social para uma família é sucesso gunta pela via das razões contextuais que levam os
social para outra. [...] Uma família de nível social agentes a sustentar tais crenças, Boudon se empe-
elevado cujo descendente tem chances de tornar-se nha em oferecer pelo menos duas lições analíticas
professor de escolas verá nisso um fracasso, e uma mais gerais: 1) seu individualismo metodológico
família de operários uma conquista social. As crian- não se identificaria a qualquer atomismo cego ao
ças tendem a ter a mesma percepção que seus pais caráter socialmente contextualizado da conduta
na hipótese em que o grupo de referência é o grupo humana; 2) seu postulado de uma racionalidade
de pertença” (pp. 55 e 57-58). ordinária, operante em circunstâncias sócio-histó-
Boudon dá tamanha importância à problemá- ricas particulares, seria capaz de tornar compreen-
tica da racionalidade que dedica o miolo da obra, síveis as razões pelas quais os agentes se apegam a
nos capítulos 3 e 4, às suas investigações sobre esse “crenças duvidosas, frágeis ou falsas” (p. 71), ex-
tema nos domínios da cognição e da normativida- plicando a existência de tais crenças sem apelar a
de. Ao dar à sua abordagem o nome de “Teoria da determinismos estruturais ocultos ou a teorias da
Racionalidade Ordinária” (TRO), ele quis destacar “falsa consciência”.
que não há uma diferença de natureza, mas apenas O capítulo 4 dá continuidade ao pleito de
em graus de “refinamento” procedimental (p. 72), Boudon em favor da TRO. Ao apreender a opera-
entre o raciocínio de senso comum e o raciocínio ção da racionalidade cognitiva no senso comum e
científico.1 O autor francês concede à versão ins- na ciência, assim como nos juízos de fato e de valor,
trumentalista da teoria da escolha racional o mérito ela superaria “o abismo que diversas tradições de
de se associar ao individualismo metodológico, em pensamento ajudaram a cavar entre o pensamento
contraposição a modelos sociológicos que explicam ordinário e o pensamento científico, bem como en-
a conduta como efeito de forças coletivas que ope- tre o descritivo e o normativo” (p. 125). Aplicada
ram “pelas costas” dos atores. Ao mesmo tempo, a à sociologia das ideias, a TRO também permitiria
evolução da obra de Boudon se ancora na ideia de dar conta da relatividade histórica e cultural das
que o individualismo metodológico, assim como o crenças e valores humanos, mas sem comprometer
postulado da racionalidade como principal motor o cientista social seja com o “irracionalismo analí-
da conduta humana, não precisa se restringir a uma tico”, seja com o relativismo epistêmico e moral.
visão utilitarista da ação social. O autor propõe que Boudon critica o dualismo paretiano segundo o
o modelo instrumentalista da ação não dá conta qual as crenças dos agentes que o cientista social
RESENHA 3

julgar válidas devem ser tidas como fundadas em de tirania por parte de “uma pequena elite políti-
razões (por exemplo, “os princípios de navegação co-midiático-cultural atravessada por fenômenos
colocados em prática pelos marinheiros gregos da de conivência” (p. 136). Uma das expressões dessa
Antiguidade” [p. 76]), enquanto aquelas que ele tirania de minorias apoiadas por grupos poderosos
considera inválidas devem ser apreendidas como de influência seria, segundo Boudon, “o politica-
resultados de forças irracionais em sua psique (por mente correto” (p. 146). Boudon depositava suas
exemplo, o fato de que esses mesmos marinheiros esperanças de resistência contra a tirania politica-
“tenham sacrificado a Poseidon antes de lançar-se mente correta na rede mundial de computadores:
ao mar” [p. 76]). Com o apoio de Tocqueville, “Graças à internet, o indivíduo que se sente opri-
Weber e Durkheim, Boudon defende que a análise mido pelo politicamente correto pode [...] colocar
da operação de crenças mágicas e religiosas em seu em prática seu direito fundamental de expressão.
cenário histórico-cultural frequentemente mostra [...] a expressão espontânea na internet de uma mi-
que, ali, os indivíduos possuem razões contextuais ríade de opiniões divergentes em relação ao politi-
inteligíveis para acreditar no que acreditam. camente correto pode constituir uma força de resis-
Nesse sentido, Boudon defende, por exem- tência eficaz” (p. 148). Bem, para quem observou a
plo, que a crença do antigo aborígene australiano reação ao “politicamente correto” alimentar fenô-
nos efeitos reais da dança da chuva é tão racional menos como Trump e o crescimento da extrema
quanto a confiança do indivíduo moderno nas in- direita europeia, o alerta soado por Boudon nesse
dicações da meteorologia. Acaso isso significa que livro de 2010 pode parecer, no mínimo, unilateral.
ele endosse uma posição relativista, segundo a qual E assim entramos em uma seara crítica. O que
ambas as crenças seriam igualmente válidas? Lon- dizer das orientações analíticas mais gerais de Bou-
ge disso. Diferentemente do aborígene australiano don? No que toca ao individualismo metodológico,
que não foi apresentado a sistemas concorrentes o autor, salvo engano, jamais enfrentou um desafio
de explicação do mundo, diz Boudon, o indivíduo decisivo lançado por Lukes (1977): se os defensores
moderno habita um contexto na qual uma teoria dessa estratégia analítica têm de se sair sempre com
alternativa àquela que sustentava a dança da chu- a habitual ladainha de lembretes (os indivíduos
va emergiu e difundiu-se, ao parecer a um número não agem em um vácuo sócio-histórico; suas liber-
cada vez maior de pessoas “repousar sobre razões dades de ação não são ilimitadas, mas delimitadas
mais aceitáveis” (p. 111) do que a crença em rituais pelo contexto societal; suas condutas intencionais
mágicos. Nesse sentido, “compreendemos perfeita- produzem frequentemente consequências não in-
mente que alguns acreditem nos rituais de chuva, tencionais etc.), não causa mais confusão do que
mas também temos razões para não acreditar nisso” esclarecimento insistir em falar em individualismo
(p. 112). O mesmo princípio antirrelativista valeria metodológico? Nos trabalhos de Boudon, a insis-
para as crenças normativas. Assim, por exemplo, tência corresponde, é claro, a um alvo de comba-
compreender as razões contextuais pelas quais Aris- te: abordagens que tomam entidades coletivas à
tóteles aprovou a escravidão obviamente não com- maneira de atores concretos dotados de vontade e
prometeria o analista moderno a também aprová- consciência, reduzindo os indivíduos a marionetes
-la, já que o último está ciente de que a crença dos governadas por forças coletivas que eles não com-
“gregos antigos” na impossibilidade de “que a agri- preendem nem controlam. Como viu Lukes (Idem,
cultura pudesse abster-se de escravos” consistia em p. 176), entretanto, a bem-vinda oposição a esses
“uma ideia falsa” (p. 114). holismos falaciosos não precisa importar na adoção
No último capítulo do livro, Boudon examina do individualismo metodológico.
o mito e a realidade da democracia francesa. Com Ainda que pretenda explicar quaisquer fenô-
efeito, se o jovem Boudon não começou sua car- menos sociais como efeitos intencionais ou não
reira sociológica motivado pela insatisfação com a intencionais de condutas individuais combinadas,
sociedade ao seu redor, o Boudon maduro via algo Boudon sempre toma como pressuposto que tais
de podre no regime político da França: a ameaça condutas estão situadas em contextos societários
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previamente dados. Sim, os contextos sociais que os das ficções heurísticas de uma psicologia simplifica-
atores em t têm de tomar como dados situacionais da, teria de prestar muito mais atenção à dimensão
podem ser eles próprios explicados pela composi- tácita e infraconsciente da subjetividade humana.
ção de ações individuais que deu origem a eles em Diante da ojeriza de Boudon a qualquer coisa que
t - 1. Tais condutas, no entanto, teriam elas mesmas lembre causas “inconscientes” ou “ocultas”, vale di-
de ser tomadas como situadas em um cenário social zer que a análise dessa dimensão poderia passar ao
explicável pelas condutas em t - 2... e assim nos ve- largo das “filosofias da suspeita”, que tanta suspei-
ríamos enredados em um problema do tipo “o ovo ta inspiravam nele próprio (por exemplo, a teoria
ou a galinha”. Eis o problema que visões dialéticas bourdieusiana do habitus). Tal análise poderia se-
da relação entre estrutura e agência, como a teo- guir, por exemplo, o caminho da teoria do “incons-
ria da estruturação de Giddens, preferem assumir ciente cognitivo” ou “Sistema 1” tal como explo-
como tal, sem tentar dissolvê-lo insatisfatoriamente rada no programa de pesquisa sobre “heurísticas e
nas alternativas unilaterais do individualismo ou vieses” desenvolvido por Daniel Kahneman e Amos
do holismo metodológicos. Individualistas meto- Tversky. A concessão do prêmio Nobel de econo-
dológicos têm toda razão em afirmar que mesmo mia a Kahneman, psicólogo de formação, pode ser
fenômenos que pareçam pairar acima das cabeças lida como reconhecimento de um desafio contun-
dos indivíduos, como o “capitalismo” ou o “idio- dente ao excesso de confiança analítica que econo-
ma português”, por exemplo, só adquirem conti- mistas depositam (ou depositavam até então) na
nuidade histórica porque indivíduos concretos os racionalidade humana – desafio advindo, portan-
reproduzem em suas ações. No entanto, querer ex- to, do interior mesmo do que era a cidadela mais
plicar o macro exclusivamente pelo micro significa bem guardada da teoria da escolha racional. À luz
negligenciar – ou, o que é mais frequente, admitir da publicação do monumental Thinking, fast and
de modo inconsistente – que o último também é slow (Kahneman, 2011), a tese boudoniana de que
dependente do primeiro; por exemplo, que o fato de as descobertas psicológicas de Kahneman e Tversky
um estranho poder obter de outro uma xícara de seriam apenas um produto artificial de seus experi-
café em troca de um pedaço de papel tomado como mentos (pp. 82-87) soa pouco convincente.
dinheiro, com ambos associando ainda os mesmos Com efeito, se os exageros anti-intelectualistas
sons aos mesmos sentidos, só é possível devido à de Bourdieu o levaram a submeter o habitus a uma
experiência socializadora prévia dos dois com as carga excessiva de trabalho analítico, o modelo ra-
macrorrealidades sociais a que nos referimos como cionalista da subjetividade humana empregado por
“economia capitalista” ou “língua portuguesa”. Boudon tende ao exagero contrário. Antecipando
Na sua preocupação em enfatizar o poder ex- essa previsível acusação de intelectualismo, no en-
plicativo da TRO, Boudon também dá a impressão tanto, o autor se defende:
de que seu compromisso com uma concepção ra-
cionalista dos motores subjetivos da conduta hu- Max Weber [...] já havia respondido a essa ques-
mana o impele a encontrar sempre, mais cedo ou tão: “Não são os interesses, mas as ideias que
mais tarde, algum artifício engenhoso para torná-la dominam em primeira instância a ação huma-
compatível com os fenômenos mais diversos. Bou- na”. [...] Durkheim [...] o teria aprovado: “O
don até admite que, no âmbito empírico, as razões conceito que, primitivamente, é tido por ver-
da ação podem ser apenas “mais ou menos” cons- dadeiro porque é coletivo tende a deixar de ser
cientes e explícitas para os próprios atores, mas não coletivo se deixar de ser visto como verdadeiro:
vai muito além da defesa de uma “psicologia abstra- nós lhe pediremos seus títulos antes de dar-lhe
ta” (p. 88) que, segundo ele, deve ser avaliada em nosso crédito”. Quanto ao grande antropólogo
termos de utilidade metodológica mais do que de Robin Horton, ele não hesitou em qualificar a
adequação ontológica.2 Qualquer perspectiva que recusa do intelectualismo [...] [entre] inúmeros
almejasse a um retrato tão realista quanto possível de seus colegas de sinistro preconceito3 (p. 116).
dos motores efetivos da conduta social, para além
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Diante do quanto Boudon preza o compro- terdisciplinar, entre outras. Ademais, em flagrante
misso com o rigor científico e menospreza a “mo- contraste com a rabugice do segundo para com os
rosa” (p. 152) sociologia ensaística de um Beck ou seus críticos (mesmo os mais simpáticos), o primei-
um Bauman, é surpreendente deparar com tal subs- ro se mostrou bem mais gracioso no trato com as
tituição da argumentação propriamente dita por críticas competentes de seu pensamento. Isso é evi-
um misto de apelo à autoridade (“Assim falou We- denciado, por exemplo, por suas citações elogiosas
ber...”) e insultos de efeito. O expediente “autorida- (pp. 21 e 61) dos trabalhos de Cynthia Hamlin,
de + insulto” reaparece em outros momentos, como cujo Beyond relativism (2002) é não só a melhor
quando Boudon ataca a existência de um “impos- reconstrução global do seu pensamento como tam-
to sobre fortuna” na França afirmando apenas que bém a mais vigorosa e, a meu ver, inteiramente váli-
“um economista de renome” o “qualificou de im- da crítica de seu individualismo metodológico. Eis
becil” (p. 138). Poder-se-ia justificar as afirmações um feliz indício de que Boudon não desaprovaria
apodíticas, os apelos à autoridade e as adjetivações que lições valiosas de seu pensamento fossem apro-
peremptórias presentes nessa obra pelo fato de que, veitadas por abordagens distintas, calcadas em uma
em livros anteriores, Boudon já teria oferecido ar- concepção mais plural de sociologia do que a que
gumentos e evidências detalhados em prol de suas ele próprio defendeu.
posições sociológicas e políticas. Ainda assim, essas
deficiências são menos perdoáveis em um trabalho
que reivindica para si um status científico enquan- Notas
to o reputa inaplicável, é certo, a muito do que se
faz nas chamadas “ciências sociais”. Como outros 1 Na edição brasileira, lê-se erroneamente que Boudon,
representantes da “sociologia analítica”, Boudon contra Bachelard e o positivismo, “negava a existência
esposou com frequência a irritante tendência a su- de uma continuidade entre pensamento ordinário e
pensamento científico” (p. 72). Na verdade, como po-
gerir que, fora de abordagens como a sua, o que res-
dem intuir conhecedores da epistemologia bachelar-
taria na sociologia contemporânea seria uma terra
diana, o que Boudon negava era a descontinuidade en-
devassada por obscurantismo linguístico, denuncis- tre um e outro, como revela o original (2010, p. 51).
mo militante e outras mazelas.
2 Tal psicologia abstrata “se limita efetivamente a fazer
Isso dito, não há dúvida de que este pequeno o comportamento emanar de mecanismos sumários,
livro reconta a trajetória de um grande sociólogo, e de forma alguma visa a refletir a experiência dos
o que justifica que concluamos em uma chave po- indivíduos em sua complexidade concreta” (p. 28).
sitiva. Se Boudon demonstra notável má vontade Nesse sentido, ainda que Boudon viesse a ampliar sua
para com boa parte da sociologia contemporânea, concepção de ação racional para além do utilitaris-
essa atitude contrasta luminosamente com a aco- mo, ele continuou sustentando a tese epistêmica, já
lhida generosa que ele dispensa às contribuições da expressa em Efeitos perversos e ordem social, de que sua
ciência social clássica. Neste livro, como de resto psicologia abstrata não deveria ser julgada “num pla-
em toda a sua obra, o sociólogo francês mostra a no ontológico, mas apenas num plano metodológico”
(Boudon, 1979, pp. 232-233).
relevância continuada das questões de pesquisa, fer-
ramentas conceituais e achados analíticos de Weber 3 Tradução modificada por mim, já que a versão em
português diz “sinistro prejuízo”. No original (2010,
e Durkheim, Marx e Simmel, Tocqueville e Tarde,
p. 84), Boudon cita a expressão de Horton na sua for-
Adam Smith e Schumpeter.4 Por fim, já que não
ma anglófona: “sinister prejudice”.
precisamos repetir intrigas parisienses em paragens
4 Uma leitura mais cínica poderia sugerir que, após
tupiniquins, poderíamos até chacoalhar dois mau-
se convencer de que o individualismo metodológico
soléus ao mesmo tempo e sublinhar que Boudon é boa sociologia, Boudon passou a reconhecer em
exibe nesse texto, mutatis mutandis, algumas das toda boa sociologia o individualismo metodológico.
mesmas virtudes cognitivas que encantam na obra Ainda assim, cabe ressaltar, essa orientação habilitou
do seu arquirrival Bourdieu: desenvoltura analíti- o autor a oferecer releituras notavelmente inteligen-
ca, estofo empírico, variedade temática, alcance in- tes dos clássicos. Exemplos são sua demonstração de
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que, ao contrário do que reza o folclore pedagógico,


há, sim, uma “psicologia” em operação no estudo de
Durkheim sobre o suicídio (p. 28), bem como seu ar-
gumento (Boudon, 1979, p. 190) de que a teoria mar-
xiana da queda tendencial da taxa de lucro, formulada
no terceiro volume d’O capital, antecipa o formato
explicativo de “efeitos perversos” na teoria da escolha
racional: as condutas de cada agente individual que
persegue racionalmente seu autointeresse contribuem
para engendrar, quando combinadas, um efeito não
desejado por todos eles.

BIBLIOGRAFIA

BOUDON, Raymond. (1979), Efeitos perversos e


ordem social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
BOUDON, Raymond. (1981), A desigualdade das
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BOUDON, Raymond. (2010), La sociologiecomme
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HAMLIN, Cynthia. (2002), Beyond relativism.
Londres, Routledge.
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LUKES, Steven. (1977), “Methodological indivi-
dualism reconsidered”, in Steven Lukes, Essays
in social theory, Londres, Macmillan.

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