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D O S S I Ê

A OBRA PERSPECTIVAS
SOCIOLÓGICAS: UMA VISÃO
HUMANÍSTICA DE PETER BERGER*
Eliane Gonçalves**

Resumo: o presente artigo é uma versão reescrita e ligeiramente ampliada da conferência


proferida em 17 de setembro de 2020 na abertura do Webinário “Leituras de Peter
Berger”. A partir de uma apreciação situada, particular e interessada, ofereço uma
explanação comentada de sua obra mais longeva: Perspectivas Sociológicas, uma
visão humanística, oferecendo exemplos de sua utilização em sala de aula em turmas
de graduação em ciências sociais, além de conexões com outras abordagens teóricas.

Palavras-chave: Peter Berger. Teoria Sociológica. Ciências Sociais. Sociologia.

A
brir o Webinário “Leituras de Peter Berger”, este autor que tanto me ensinou
sobre a sociologia, me conduz imediatamente às suas ideias centrais: estar
aqui é como tatear no escuro quando se é criança, sentir este medo diante do
desconhecido que abala nossa segurança ontológica mediante o risco. Aqui
me explico:
1) Não é comum estar sob a pele de alguém que fala sobre um teórico das ciências
sociais. Minha ligação com a pesquisa empírica sobre gênero aliada à refle-
xão filosófica e política envolvendo o feminismo tem demarcado o escopo da
minha fala pública enquanto acadêmica. Assim, aceitei este empreendimento
meio perplexa e envaidecida, indagando o que exatamente queriam de mim.

* Recebido em: 19.01.2022. Aprovado em 28.03.2022.


Texto utilizado como roteiro da conferência proferida em 17 de setembro de 2020 no Webi-
nário Leituras de Peter Berger. Reitero meus agradecimentos ao professor e amigo Flávio
Sofiati (UFG) pelo convite para participar daquele evento. Link para a conferência no canal
NER/UFG no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCftHceEWxhWKu2UjL41glcg
** Doutora em Ciências Sociais. Professora na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Goiás. Coordenadora do Ser-Tão – Núcleo de Estudos, Extensão e Pesquisa em
Gênero e Sexualidade. E-mail: elianego@ufg.br

29 , Goiânia, v. 20, n. 1, p. 29-37, jan./abr. 2022. DOI 10.18224/cam.v20.n1.12294


Ser encantada com Peter Berger e utilizar seus livros há muitos anos em dis-
ciplinas de introdução à sociologia são as credenciais que apresento a meu
favor no início desse texto. Espero, ao final dele, ter alcançado meu intento.
Há algo engraçado sobre meu início com Peter Berger. Comprei A construção so-
cial da realidade, escrito em coautoria com Thomas Luckmann, em um sebo
de Campinas, São Paulo (quinta edição, bem velhinha, de 1983), em 2002,
quando cursava o doutorado na Unicamp. Alguns anos depois, já professora
na UFG, comprei o Perspectivas novinho em folha (29ª edição) e então, por
muito tempo, achei que a ordem de publicação fosse invertida, um sistema
teórico complexo primeiro e uma síntese de divulgação mais ampla, depois.
Mas, não! O Perspectivas é de 19631 e o Construção, de 1966. Eu me deixei
levar pelas aparências...
2) Tornei-me doutora em ciências sociais em 2007, e socióloga digo que me tornei
“by training” a partir de 2009, quando me tornei professora da Faculdade de
Ciências Sociais da UFG. Antes eu havia sido uma especialista em Saúde Pú-
blica, nutricionista de formação, que trabalhara por duas décadas com saúde
coletiva, sempre mediada pelas experiências com o feminismo que abracei
desde os anos finais da graduação (isso é 1984!) e dele não escapei, sendo
ainda uma identidade necessária para permitir experimentar o mundo como
“ordenado e inteligível”, recorrendo uma vez mais ao repertório de Berger.
A teoria sociológica é vasta demais para alguém se sentir treinado o suficien-
te em uma única vida. Com isso quero dizer que não me sinto “ainda” uma
Socióloga.
Diante desta pequena introdução, a de um self minimamente localizado, espero poder
agora abordar alguns aspectos do livro que me coube comentar, este “convite
à sociologia” - como no inglês Invitation to Sociology - Perspectivas socioló-
gicas: uma visão humanística na versão traduzida ao português, publicada no
Brasil pela primeira vez em 1972 pela Editora Vozes, de Petrópolis2.

O LIVRO E SEU CONTEXTO DE ELABORAÇÃO

Este livro introdutório tem uma missão: seduzir leitores(as) para a compreensão da
sociologia. Um livro para ser lido e não estudado, já nos alerta Berger no
primeiro parágrafo do prefácio. Se conseguimos chegar até o final e não pular

1 Christiano, Kevin, 1990.


2 É bastante impressionante a longevidade e o êxito editorial das obras iniciais de Peter
Berger. Ambas, Perspectivas Sociológicas e A Construção Social da Realidade foram
traduzidas e publicadas em diversas línguas, constando por décadas dos programas de
teoria sociológica na formação de sociólogas/os no mundo inteiro (CHRISTIANO, 1990).
O tratado de sociologia do conhecimento A Construção... foi considerada a quinta obra
mais lida no mundo neste âmbito, de acordo com a International Sociological Association
em 2015 (HAMILIN, 2016).
Cf. http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/1443

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as referências bibliográficas, o autor nos explica em um breve parágrafo que
o “convite à sociologia” (por isso o título em inglês é mais fiel aos objetivos,
além de ser mais bonito também) se assemelha ao convite para ir a uma festa e
este é o momento de conhecer os convidados! Outro aspecto que chama aten-
ção é a forma como o autor se coloca no texto, fora do eixo da suposta neutra-
lidade e objetividade. Ele fala como um sociólogo da religião, seus exemplos
reverberam esta especialidade. Para nós feministas que criticamos o objetivis-
mo e a não implicação subjetiva no objeto como ciladas epistemológicas, ter
este crédito de confiança biográfica é um alento. Com isso não quero dizer que
Berger seja um autor feminista ou aliado de toda hora das causas feministas.
Alguns de seus exemplos dão claramente esta feição, outros nem tanto. Mas,
como direi daqui a pouco, Berger está antecipando muita coisa que se tornará
central na análise sociológica critica contemporânea.
Outro aspecto fundamental da obra é que se trata de uma Sociologia com uma afinida-
de essencial com a história e a filosofia (isso já aparece na brochura do livro),
o que puxa a argumentação para uma teoria da sociedade com múltiplos olha-
res. A sociologia não é o caminho, o conhecimento, mas uma dentre outras
explicações possíveis sobre o social.
A preocupação de Berger neste livro é abrir a ciência sociológica a olhares fora dos
âmbitos correntes das universidades e institutos de pesquisa nos EUA da-
quele período marcadamente empiricista. Eu diria que é uma obra de divul-
gação e encantamento, mais do que de formação teórica, embora como eu
disse, vários capítulos sejam dedicados a expor o que o autor compreende
por conhecimento sociológico, dentro desse marco da sociologia do conhe-
cimento que elaborará mais tarde como sua contribuição a uma teoria me-
diadora. Uma sociologia comprometida profundamente com o humanismo,
com o pensamento progressista, com a inclusão e com a relativização dos
saberes, não concedendo primazia ao conhecimento científico, mas colocan-
do-o lado a lado com outros saberes e localizando-o na dimensão que ele
merece. Nesse sentido, Perspectivas Sociológicas não apenas fornece um
quadro conceitual de mediação entre teorias aparentemente inconciliáveis,
como antecipa, em 1963, uma vasta gama de temas que hoje chamamos de
interseccionais - gênero, raça, sexualidade, classe, geração - nos sistemas de
estratificação sociais que determinam, em última instância, nossos lugares
de localização nas coordenadas deste “mapa social” desde o nascimento.
Berger faz isso a partir de inúmeros exemplos ilustrativos de sua teoria des-
de as primeiras páginas. O leitor e a leitora se veem neles e essa é a natureza
desta obra: tecer a partir da vida cotidiana um olhar sobre o senso comum e
valorizá-lo na ordem do conhecimento.
Para compreender os exemplos de que lança mão para esmiuçar a teoria e torná-la acessí-
vel, é útil lembrar o contexto histórico daquele momento: a guerra fria (ou cortina
de ferro, em suas palavras), as guerras de independência em países colonizados, a
sangrenta luta pelos direitos civis dos negros, e em menor escala, (porque viriam
a se tornar mais intensos no final dos anos 1960), o movimento de mulheres e de

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homossexuais, ou seja, todo o processo que culminaria no movimento da contra-
cultura dos anos subsequentes. Sem entrar em detalhes extensos desses cenários,
o livro fala em todas as suas referências e conexões deste espírito do tempo, do
estado de agonia de um velho mundo centrado nas tradições (família, religião,
moral) e o parto dolorido de uma nova moral, de um novo humanismo.
E agora, saindo agora dos prolegômenos, passo à discussão mais detalhada do conteú-
do do livro. Vou comentar brevemente o geral da obra e trarei alguns aportes
sobre aquilo que considero mais expressivo e isso é bem pessoal, ou seja, está
atravessado pelo meu olhar situado. Certamente não é uma exegese, não é
uma hermenêutica em seu sentido forte.

A SOCIOLOGIA COMO PASSATEMPO INDIVIDUAL

O primeiro capítulo, A sociologia como passatempo individual não é o mais bonito,


mas é muito interessante porque trata das representações sociais sobre soció-
logos, aparentemente pouco populares nos EUA naquele momento ou pouco
dignos de piadas em comparação aos psicólogos, por exemplo. Berger quer
problematizar a imagem do sociólogo “como um espectador impassível e im-
pessoal”, ou seja, aquele que se torna “estabelecido” como um especialista,
tal como resume ao final do livro (p. 170). Assim, o autor mapeia as muitas
confusões e ambiguidades acerca do que realmente esse profissional é ou faz.
O que leva a essas representações confusas – com o serviço social ou assistên-
cia social aos pobres e carentes, às ações nas comunidades etc. – é a palavra
“social” que induz a pensar em reformas, assistência, correção, ajustamento
etc. A isso Berger informa: “a sociologia não é uma ação, e sim uma tentativa
de compreensão´” (p.13, itálicos no original). Com esta asserção weberiana,
Berger aponta a sociologia como uma ciência que vê sem julgamento de valor.
Sabemos que essa visão é ela própria uma idealização, o julgamento se impõe
muitas vezes e o preceito weberiano da “integridade cientifica” não é levado
às últimas consequências porque é difícil separar a vida que se leva da vida
que se observa, característica fundamental da profissão. À visão de reforma-
dores sociais se somam outras: de realizador de pesquisas e coletor de da-
dos estatísticos; do excessivamente apegado a métodos e técnicas de pesquisa
como maneira de demonstrar o caráter científico da sociologia; aquele que es-
creve em um jargão impossível de compreender ou como um frio e calculista
manipulador de outros seres humanos. Mas o infeliz título do capítulo, como
conclui Berger, está menos para passatempo individual do que para paixão. A
sociologia envolve paixão, curiosidade e interesse pelo que está do lado de lá
da porta fechada... de modo que, se para alguém lhe bastar o “mundo aceito
sem discussão” (a frase é de Schütz), esta pessoa deve fugir da sociologia!
Porque uma vez adquirida a consciência não é mais possível viver da mesma
forma, o que certamente só interessa a algumas pessoas e não todas.

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A SOCIOLOGIA COMO FORMA DE CONSCIÊNCIA

No 2. capítulo – A sociologia como forma de consciência, o autor se preocupa em


definir o social para a partir do objeto da sociologia, elaborar uma defini-
ção de sociedade, que é expresso enquanto “um grande complexo de rela-
ções humanas”, ou “um sistema de interação” (p. 36), sendo esta interação
compreendida como reciprocidade. Reunindo as concepções de Max Weber
e Émile Durkheim, Berger oferece esta conceituação: “A sociedade consiste
num complexo de fatos sociais nos quais as ações dos sujeitos são orienta-
das umas para as outras, sendo que a trama de significados, expectativas e
condutas que resulta desta orientação mútua constitui o material de análise
sociológica” (p.37). Vemos que cabem nesta definição relações ordinárias e de
grande escala: o cotidiano, a realidade suprema da vida; e as redes que estru-
turam o poder, o estado, o capitalismo, o patriarcado, as religiões etc., o que
se convencionou chamar de macroestruturas. E, por fim, a grande importância
concedida à interação e à intersubjetividade. Aqui cito, de uma outra obra
publicada com Brigitte Berger “a biografia dos indivíduos, desde o nascimen-
to, é a história de suas relações com outras pessoas” (BERGER; BERGER
[1975], 2008, p. 169).
Este belo capítulo expõe, ainda, as principais características do fazer sociológico que
Berger distingue entre quatro aspectos ou dimensões, profundamente interco-
nectadas, desta “consciência sociológica”: o caráter de desmistificação/des-
naturalização; da não-respeitabilidade; da relativização; e o caráter ou motivo
cosmopolita. Vou comentar rapidamente todas elas.
A Sociologia tem uma função desmistificadora, é aquela que retira o véu da ignorân-
cia, que revela para além das evidências simples ou das aparências ou na frase
coloquial: “ver atrás dos bastidores” (p.40). Dois exemplos muito interessan-
tes são oferecidos pelo autor: 1) ver como operam as relações de poder (pa-
ralelas e/ou informais) dentro do Estado, não aceitando as meras descrições
formais a partir das leis, decretos etc.; 2) ver nas distintas denominações pro-
testantes e históricas existentes nos EUA que seu modus operandi, digamos
assim, não tem nada a ver com as denominações em si ou suas constituições
teológicas, mas com a burocracia tal como definida por Weber. Ou um tercei-
ro, ainda mais interessante no meu olhar interessado: o de como o discurso
amoroso romântico esconde por trás do arrebatamento aparente entre casais
uma acomodação bastante consequente entre interesses de classe – e que eu
acrescentaria: da norma heterossexual, geracional, de raça/etnia etc. -, arran-
jos mediante os quais as pessoas se permitem apaixonar-se. De certa maneira,
é como se Berger nos dissesse o tempo todo: parem de se iludir!
Não apenas ver para além do que está dado – o que inclui quase tudo que a sociologia
estuda -, é preciso estar atento ao que está fora do “círculo de respeitabilidade
da sociedade” (de novo, as falsas aparências). Aqui Berger parte do estudo de
Thorstein Veblen (A teoria da classe ociosa [1934]), autor que Berger reputa

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como dos mais pitorescos da sociologia americana da fase inicial, por sua
radicalidade crítica contra as classes superiores, desmistificando uma série de
significados e valores caros a esta elite, que apenas aparentemente cultuava o
mérito individual e outras “virtudes” tais como a conquista pelo trabalho ár-
duo, a educação, a monogamia, o espírito comunitário etc. Mas também toma
como exemplos vários dos trabalhos em curso naquele tempo, na Escola de
Chicago, ou dos interacionistas com seus estudos sobre prostituição, drogas,
o mundo underground das ruas, que resulta no esforço de embrenhar-se pelo
“sujo”, pelo movediço, fronteiriço, de sair das camadas burguesas, de com-
preender as tramas insignificantes da vida social, de assumir os riscos desse
“fascínio com a concepção de uma sociedade não-respeitável” (p.54). E, por
fim, sendo moderna, a sociologia está investida do processo de relativização
dos valores, de ruptura com a tradição. O ser humano na modernidade está
“em perpétuo estado de dúvida” (p. 61), e isso inclui o caráter cosmopolita
da sociologia, ou seja, ela está profundamente enraizada na vida urbana, na
complexidade das tramas das relações dos indivíduos na e com a cidade onde
tanto os papeis quanto as identidades mudam a todo momento.

ALTERNAÇÃO E BIOGRAFIA

Então, Berger nos apresenta o seu Excurso no capítulo 3 – Alternação e biografia (ou:
como adquirir um passado pré-fabricado). Acho que foi a primeira vez que li algo
assim. Aqui o autor se aproxima muito do que para mim é a teoria do ponto de
vista (standpoint theory) na epistemologia feminista, algo controversa como todas
as teorias. Mas Berger a coloca de maneira muito interessante. Um ponto de vista
determinará o modo como o sociólogo percebe e descreve o seu objeto. E afetará
a maneira pela qual descreve a si mesmo, sua biografia. Há aí um respeito ao ca-
ráter relativo das verdades particulares; o que é certo, ou normal, varia conforme a
localização dos indivíduos. Essa possibilidade de ver os pontos de vistas alterados
de acordo com a experiência - morar em outro país, deslocar de um estrato social
a outro, mudar de partido político, tornar-se vegetariano, sair do armário, entre
outras - é o que o autor denomina de “alternação biográfica” - quando podemos
escolher entre sistemas de significados diversos e mesmo contraditórios -, um ter-
mo que, segundo o autor, soa melhor que “conversão” impregnado de conotações
religiosas. Esses significados mudam no curso da vida. Por esta via de compreen-
são dos processos de significação a partir da experiência, Berger alude à capa-
cidade de vivermos várias realidades mesmo contraditórias sem que percamos
nossa integridade ou nossa “segurança ontológica”. As inúmeras possibilidades
de alternação biográfica levam o autor a pensar novamente em cosmopolitismo,
uma característica comum à cena urbana em expansão no mundo moderno.

O HOMEM NA SOCIEDADE E A SOCIEDADE NO HOMEM

Tal processo faz parte do modo como somos moldados e de como moldamos de volta

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a realidade, ou seja, as formas de objetivação e de subjetivação que são apre-
sentadas nos capítulos 4 e 5: o homem na sociedade e a sociedade no homem
(eu sempre troco esse homem genérico por ser humano).
Esses dois capítulos tratam daquilo que é central conhecer para compreender de uma
perspectiva sociológica, a realidade e a relação indivíduo-sociedade, objetivi-
dade-subjetividade e assim por diante. É algo que está melhor sistematizado
em A construção social da realidade, onde o autor elabora os princípios que
norteiam sua sociologia do conhecimento que são Durkheim, Weber, George
Herbert Mead, Schütz, Simmel, Mannheim, para citar os mais importantes.
A imagem que Berger nos dá da sociedade aqui é a de claustrofobia, uma vez que a
sociedade é pensada enquanto círculos concêntricos de poder e força exerci-
dos sobre os indivíduos. Exagerando Durkheim, em “O homem na sociedade”
ele explica a exteriorização ou o que é tomado como a realidade objetiva e
dá elementos para entender o processo de institucionalização que garante a
sobrevivência de longa duração da sociedade e sua reprodução. Em “A socie-
dade no homem” o inverso, a interiorização e a formação subjetiva, colocando
de forma ainda incipiente o esquema teórico que elabora em A Construção...
retirando sobretudo de G.H. Mead e de Alfred Schütz as noções de sociali-
zação primária e secundária, a teoria do papel e a formação da identidade, a
sociologia do conhecimento e a teoria dos grupos de referência. O esquema
básico que todos aprendemos deste modelo é o seguinte:
Interiorização/exteriorização: a realidade objetivada, aquela que herdamos e que julgamos
que “sempre esteve lá” entra na consciência individual. Através da linguagem,
adquirimos a capacidade de pensar reflexivamente, julgar, apreciar, transmitir
e reter significados socialmente reconhecidos. Então, basicamente, Berger nos
introduz na dialética (aqui não usa este termo) da interiorização-exteriorização
ou de como a realidade objetiva se subjetiva (internalização) e a realidade
subjetiva se objetiva (externalização) num processo eterno. A realidade social é,
assim, continuadamente construída, desconstruída e reconstruída, num processo
histórico em andamento. Os indivíduos que constituem a sociedade são, por sua
vez, constituídos pela ela.

A SOCIEDADE COMO DRAMA - A SOCIOLOGIA COMO


UMA DISCIPLINA HUMANÍSTICA

No 6. capítulo, A sociedade como drama, Berger tenta reduzir a impressão de claus-


trofobia elaborando princípios de mudança social, o que faz colocando lado
a lado Durkheim e Weber enquanto elaborações antitéticas, mas não logica-
mente contraditórias. Aqui concede bastante centralidade aos significados
elaborados culturalmente pelos indivíduos em suas relações sociais (claro,
em contextos de restrição, sempre). Temas como liberdade e segurança são
aqui tratados com bastante ênfase e também a questão da responsabilização
quando o autor se vale da teoria de Sartre sobre a má fé (i.e. quando aceita-
mos o que nos é imposto afirmando que não tivemos escolha). A sociedade

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então é apresentada como um palco povoado de atores vivos e não como
prisão ou teatro de fantoches. A realidade é instável, frágil, não é uma es-
trutura de ferro.
Em continuidade, no Excurso do capítulo 7, Maquiavelismo sociológico e ética (ou:
como adquirir escrúpulos e continuar a trapacear), e no capítulo 8, final,
A sociologia como uma disciplina humanística, um Berger profundamente
sensível triunfa. Apresentando uma preocupação genuína com uma profissão
que, embora “desencantada”, não descambe para o cinismo (a capacidade de
trapacear, de mentir, de jogar contra os próprios valores humanos) ou, ainda,
que não se arvore em servir a um “catecismo secularista” (p. 171), ou seja,
a sociologia como ordenadora de uma moral objetiva da sociedade. Ele nos
convida a sair de fato, da prisão, e a entrar na rota da liberdade, a deixar a
identificação com o fantoche manipulado e interromper o seu mecanismo, fa-
zendo deste ato de consciência, o primeiro passo para a liberdade e é aí, então,
que a sociologia se justifica plenamente como uma disciplina humanística.
Para citar o autor por ele mesmo: “quaisquer que sejam nossas possibilidades
de liberdade, elas não se poderão concretizar se continuarmos a supor que o
“mundo aprovado” da sociedade seja o único que existe” (p. 166). É, de fato,
um convite à responsabilidade de cada um(a) de nós por nossos atos e por
nossas escolhas, sem a prerrogativa da má-fé.

CONCLUSÃO

Caminhando para minhas palavras finais, quero dizer que minha admiração pela pri-
meira leitura deste livro só encontra paralelo com a de Frédéric Vandenberghe,
em um ensaio sobre Berger como um tributo, no ano de sua morte:
Recordo-me, como se hoje fosse, o dia em que, ainda jovem universitário, li esse
livro, numa aula de estatística. Acostumado a uma concepção positivista
dos seres humanos como um fator, estes se transformaram, de repente, em
atores que começaram a dançar. (...) Agora, que ele já se foi, nós podemos
agradecer sua orientação para a teoria social, elogiar o brilhantismo de seus
primeiros trabalhos, enaltecer sua sensibilidade existencial sobre a condição hu-
mana, honrar a ausência de pretensão que marca seus escritos e nos deliciar com
algumas das brincadeiras que ele foi salpicando ao longo de sua obra (VAN-
DENBERGHE, 2017, s.p.).
Acredito que quando um autor ou autora nos afeta intelectual e emocionalmente é por-
que sua narrativa contém elementos de grande ressonância - consonante ou dis-
sonante, não importa - em nós mesmas/os. Significa que sua humanidade está
estampada no que escreve e que suas opiniões não são conciliatórias apenas, ou
seja, não buscam atrair pelo alinhamento fácil às suas ideias. Berger produziu
uma obra vasta e duradoura e, por isso mesmo, objeto de problematizações e
críticas. O webinário prestou-lhe uma justa homenagem. Estou muito feliz de
ter contribuído, ao me juntar a outras vozes, para fazer esta “pedagogia sobre
Berger” que alcançou tanta gente de dentro e de fora das ciências sociais.

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PETER BERGER´S WORK INVITATION TO SOCIOLOGY:
A HUMANISTIC PERSPECTIVE

Abstract: the present article is a rewritten and slightly expanded version of the lecture
given on September 17th, 2020, at the opening of the Webinar “Peter Berger’s
Readings”. From a situated, particular and interested appreciation, I offer
a commented explanation of his longest-running work: Invitation to Sociol-
ogy, a humanistic perspective, offering examples of its use in the classroom
in undergraduate social science classes, as well as connections with other
theoretical approaches.

Keywords: Peter Berger. Sociological theory; Social Sciences; Sociology.

REFERÊNCIAS

BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas, uma visão humanística [1963].


Petrópolis: Vozes, 2007, 29ª edição, tradução de Donaldson M. Garschagen.
BERGER, Peter L.; BERGER, Brigitte. Socialização, como ser um membro da
sociedade [1975]. In: MARTINS, José de Souza; FORACHI, Marialice (Orgs.).
Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 169-181.
CHRISTIANO, Kevin J. “Peter L. Berger’s “Invitation to Sociology”: Twenty-Five
Years of RSVPs.” Teaching Sociology 18, no. 4, 1990, p.503-09. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/1317637. Acesso em março de 2021.
HAMLIN, Cynthia. Peter Berger, esboço de uma biografia intelectual. Que
Cazzo é esse?!!, 2016. Disponível em: https://quecazzo.blogspot.com/2016/02/
peter-berger-esboco-de-uma-biografia.html. Acesso em setembro de 2020.
VANDERBERGHE, Frédéric. Debaixo do Dossel Sagrado: Peter Berger
(1929-2017). Disponível em https://blogdolabemus.com/2017/10/02/debaixo-
do-dossel-sagrado-peter-berger-1929-2017-por-frederic-vandenberghe/. Acesso
em maio de 2020.

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