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A OBRA DE GILBERTO VELHO – UMA LEITURA DISTANTE PARA OBSERVAR O FAMILIAR

Celso CASTRO, Suemi HIGUCHI, Sílvia MONNERAT1

O título deste artigo põe em interação duas ideias. Por um lado, a de “leitura distante”
(distant reading), técnica de análise literária proposta por Franco Moretti na qual o
distanciamento “é uma condição de conhecimento: permite que você se concentre em unidades
que são muito menores ou muito maiores do que o texto: dispositivos, temas, tropos - ou
gêneros e sistemas. E se, entre o muito pequeno e o muito grande, o próprio texto desaparece,
bem, é um daqueles casos em que se pode dizer com razão: Menos é mais.” (Moretti, 2000:57).2
Por outro lado, o título também faz referência a um famoso artigo do antropólogo Gilberto
Velho, “Observando o familiar”, no qual ele argumenta, em relação à pesquisa etnográfica,
especialmente no meio urbano, que familiaridade e proximidade não são sinônimos de
conhecimento. Mais que isso, a familiaridade pode vir a constituir-se em impedimento ao
conhecimento, caso não seja relativizada e objeto de reflexão sistemática. (Velho, 1978)

Juntando as duas ideias, e de certa forma buscando uma “afinidade eletiva” entre
ambas, este artigo pretende fazer um experimento: o que uma “leitura distante” da obra de
Gilberto Velho, mediada pela computação, nos permite observar? Há características familiares,
porém não necessariamente ou plenamente conhecidas em sua obra que essa técnica permitiria
observar? Cientistas sociais estão, cada vez mais, utilizando recursos digitais para a análise de
textos em suas pesquisas, no que se convencionou chamar de “mineração de texto”, utilizando-
se de métodos computacionais (Bonfiglioli & Nanni, 2015). Nosso objetivo será, portanto,
realizar uma análise metodológica e uma reflexão qualitativa, com base em um experimento
analítico desse tipo, a partir do corpus publicado por esse importante antropólogo brasileiro.

Gilberto Velho dispensa apresentações no campo das Ciências Sociais no Brasil por ter
sido um dos pioneiros da Antropologia Urbana e responsável pela consolidação no campo, bem

1
Professores e pesquisadores da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC).
2
No original: “Distant reading: where distance […] is a condition of knowledge: it allows you to focus on
units that are much smaller or much larger than the text: devices, themes, tropes—or genres and
systems. And if, between the very small and the very large, the text itself disappears, well, it is one of
those cases when one can justifiably say, Less is more.”

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como pela reflexão teórica sobre as sociedades complexas moderno-contemporâneas. Além dos
trabalhos que publicou, orientou mais de cem teses e dissertações no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Cabe, contudo, fazermos uma breve biografia para leitores não familiarizados
com esse campo, para evidenciar a importância que o autor assumiu nas Ciências Sociais no
Brasil, na Antropologia em particular.

Gilberto Cardoso Alves Velho nasceu em 15 de maio de 1945 no Rio de Janeiro, segundo
filho de Octávio Alves Velho e Dulce Cardoso Alves Velho. Seu irmão, Otávio Guilherme Cardoso
Alves Velho, também antropólogo, desenvolveu uma notória carreira acadêmica no Museu
Nacional, mesma instituição em que Gilberto trabalhou ao longo de sua vida.
Seu pai era militar e atuou como professor de português na Academia Militar de West
Point entre os anos de 1948 e 1951, época em que toda a família residiu nos Estados. Seu pai,
além de atuar como militar no exército brasileiro, também foi responsável pela tradução de
diversos livros para o português ao longo de sua vida. Sua biblioteca pessoal tornou-se forte
influência para a carreira intelectual dos filhos.
Em 1957, logo após concluir o ensino primário, Velho iniciou seus estudos no Colégio de
Aplicação da antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje Faculdade
de Educação da UFRJ), onde permaneceu até 1964, tendo sido orador de sua turma. Em 1965,
ingressou no curso de Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia (hoje, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais – IFCS) da UFRJ, onde se formou em 1968.
De 1969 a 1974 Gilberto Velho foi professor de Antropologia do IFCS/UFRJ e,
concomitantemente às atividades de docência que ali desenvolvia, ingressou em 1970 no
recém-criado mestrado em Antropologia Social no Museu Nacional, tendo sido orientado pelo
o professor norte-americano Shelton Davis, que estava como professor visitante na instituição. Durante
o mestrado Gilberto desenvolveu pesquisa sobre o bairro de Copacabana, tendo defendido a dissertação A
utopia urbana: um estudo de ideologia e urbanização, trabalho pioneiro em Antropologia
Urbana.
Após receber o título de mestre, no ano de 1971, especializou-se em Antropologia
Urbana e das Sociedades Complexas na Universidade do Texas (Austin/EUA), sob a orientação do
professor Richard Adams. No mesmo ano, Gilberto e sua então esposa, a antropóloga Yvonne
Maggie, foram para Cambridge (Massachussets/EUA), onde realizaram pesquisa sobre a
população de origem portuguesa que residia na região da Nova Inglaterra.

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De volta ao Brasil, em 1972 Gilberto Velho iniciou suas atividades como professor do
PPGAS do Museu Nacional da UFRJ, onde permaneceu desenvolvendo atividades docentes e de
pesquisa até sua morte em 14 de abril de 2012, aos 66 anos de idade.

Em 1973, Velho ingressou no doutorado em Ciências Humanas na Universidade de São


Paulo, sob orientação de Ruth Cardoso e em 1975 defendeu a tese Nobres e anjos: um estudo de tóxicos
e hierarquia. Como versava sobre o uso de entorpecentes entre jovens das camadas médias do
Rio de Janeiro, Velho só veio a publicar esta obra em 1998, garantindo, assim, o anonimato de
seus interlocutores de pesquisa.

Em 1976 Velho viajou para mais um período nos Estados Unidos. Desta vez, como
Visiting Scholar no Departamento de Sociologia de Northwestern University (Ilinois), ocasião em
que estabeleceu forte relação de amizade e parceria intelectual com o sociólogo Howard Becker.

Velho se consolidou como um dos nomes mais influentes da antropologia no Brasil e sua
notoriedade pode ser comprovada por suas muitas orientações, palestras e cursos (no Brasil e
no exterior), além da sua importante atuação em diversas associações científicas e agências de
fomento. Ele foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia e da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), vice-presidente da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciências (SBPC) e tornou-se o primeiro cientista social a ingressar
como membro titular na Academia Brasileira de Ciências. Atuou também como membro de
comitês, coordenações ou conselhos deliberativos do CNPq, da Capes e do IPHAN. Foi, ainda,
criador e diretor da importante Coleção Antropologia Social da editora Zahar.
O arquivo pessoal de Gilberto Velho encontra-se, desde o final de 2018, sob guarda da
FGV CPDOC, o que nos levou a poder dimensionar o tamanho de seu acervo pessoal e
possibilitou o desenvolvimento de diversas atividades e trabalhos acadêmicos, que têm como
objetivo comum divulgar sua atuação nas Ciências Sociais brasileiras, assim como sublinhar a
importância de sua trajetória para a criação e consolidação do campo da Antropologia Urbana.
Neste movimento, foram e estão sendo desenvolvidos na FGV CPDOC seminários e mesas em
eventos científicos que versam sobre sua obra; foram oferecidas disciplinas para cursos de
graduação e pós-graduação que possibilitam a leitura e a discussão de grande parte da obra de
Velho com uma nova geração de estudantes, e está sendo desenvolvido um documentário sobre
sua vida e obra.

Dividimos o restante do artigo em três seções: na primeira, damos explicações técnicas


sobre como organizamos e processamos o material; na segunda, analisamos os resultados do
processamento; na terceira, fazemos algumas considerações gerais sobre o experimento.

15
*

Embora possa parecer simples o trabalho de reunir os textos de um autor para que se
possa proceder ao seu processamento, trata-se na realidade de uma etapa complexa que exige
cuidados e decisões a respeito do que selecionar e de como organizar o material. Descrevemos,
a seguir, as principais opções que tomamos durante as diferentes etapas da pesquisa, pois
acreditamos que a explicitação dessas escolhas metodológicas possibilita o aprofundamento das
análises deste experimento, que busca articulação no uso de técnicas quantitativas e
qualitativas para abordar a obra de um autor, em toda sua extensão e ao longo do tempo. Pensar
sobre os caminhos epistemológicos que guiaram a pesquisa e que possibilitaram as análises aqui
desenvolvidas permitem uma melhor compreensão sobre os objetivos e escolhas deste estudo.

Selecionamos para compor nosso universo os livros, capítulos de livros ou artigos de


autoria de Gilberto surgidos em publicações acadêmicas. Decidimos não utilizar entrevistas,
prefácios ou orelhas em livros de terceiros, artigos de jornal ou publicações em revistas não
acadêmicas. Também não utilizamos versões de seus textos publicadas noutras línguas. Como
um dos interesses principais para a análise era observar possíveis mudanças nas categorias
analíticas por ele empregadas e nos autores mais citados ao longo do tempo – sendo, portanto,
necessária a atribuição de um ano de publicação único – decidimos também suprimir, nos livros,
os adendos a novas edições (como prefácios ou posfácios).

Gilberto publicou cinco livros integralmente com textos de sua autoria: as monografias
resultantes de suas teses de mestrado e doutorado – respectivamente, A utopia urbana (1973)
e Nobres e anjos (1998) – e três coletâneas de textos exclusivamente seus: Individualismo e
cultura (1981), Subjetividade e sociedade (1986) e Projeto e metamorfose (1994). No caso de
Nobres e anjos, versão da tese de doutorado defendida em 1975, porém publicada apenas 23
anos depois, com mínimas mudanças, optamos por atribuir a data de 1975. No caso de
Individualismo e cultura e de Projeto e metamorfose, que reuniram textos sobre temas diversos
publicados ao longo de vários anos, optamos por separar o livro pelos capítulos, atribuindo a
cada um o ano de publicação original. Já no caso de Subjetividade e sociedade, uma pequena
coletânea de seis textos sobre uma mesma temática, todos escritos entre 1983 e 1986 e
visivelmente consolidados para o livro, decidimos tomá-lo como um único documento,
mantendo o ano de publicação (1986).

Em relação aos artigos, os textos estavam disponíveis na internet, embora muitas vezes
em formato pdf, tendo, portanto, que ser convertidos para formato texto. No caso dos livros,

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conseguimos os arquivos com as editoras que os publicaram.3 Mesmo tendo todas as unidades
convertidas para o formato texto, tivemos ainda que corrigir manualmente erros de conversão
ou características originais das publicações como hifenização de palavras, presença de colunas
e numeração de páginas. A “limpeza” dos textos suprimiu também outros elementos que não
lhes eram “orgânicos”, como informações biográficas sobre o autor, divulgação da lista de livros
da coleção em que foi publicado, ficha catalográfica e sumários.

Ao final, tínhamos um corpus para a análise composto por 46 documentos (entre livros,
capítulos ou artigos) publicados entre 1971 e 2011. Esse conjunto aproxima-se bastante da
totalidade dos textos produzidos por Gilberto Velho.4

O que almejamos inicialmente com a ajuda de computação foi principalmente: 1)


observar a frequência de distribuição de palavras, nomes e conceitos ao longo da obra; e 2)
encontrar uma estrutura temática “oculta” nos textos através da tarefa de modelagem de
tópicos. Para apoiar o desenvolvimento deste trabalho utilizamos o R, que se constitui em uma
linguagem de programação e um ambiente voltados para a manipulação de variados tipos de
dados. Por favorecer a aplicação de técnicas e métodos de análise automatizada de conteúdo
para ciências sociais e humanidades, o software vem ganhando bastante espaço entre
pesquisadores dessas áreas (Wiedemann & Niekler, 2017).

Após serem carregados no R, os textos foram tratados como um corpus único, porém
cada um mantendo a sua estrutura individual de documento. No R, tudo é executado a partir de
“pacotes” prontos, ou seja, usamos módulos com funções já desenvolvidas pela comunidade de
programadores, apenas chamando-os em nossos códigos.

O primeiro dado extraído foi o ano de publicação (identificado junto ao nome do


arquivo), que nos deu uma visão quantificada da produção do autor:

1971 1973 1974 1975 1977 1978 1980 1981 1982 1986 1988 1990 1991 1992 1993
1 2 1 1 2 2 2 7 1 1 1 1 3 2 2
1994 1995 1999 2000 2001 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
2 1 1 1 1 1 1 1 2 1 2 1 1 1

3
Agradecemos às editoras Zahar e FGV a generosa cessão desses arquivos.
4
A relação total está anexada ao final do texto..

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Em seguida, procedemos à tokenização5 – ou atomização –, que é a etapa na qual
quebramos o corpus em unidades mínimas de informação. Um token pode ser uma palavra,
número, data ou sinal de pontuação, e normalmente sua delimitação é identificada através de
espaços em branco, caracteres de controle ou tokens delimitadores. Este é o ponto de partida
para as etapas posteriores. Agora, para cada documento, podemos contar quantas vezes cada
palavra aparece e obter um vetor de frequência de termos. Se desejarmos fazer isso para todo
o corpus, basta combinar todos os vetores de cada documento em uma matriz. A essa estrutura
de dados chamamos de DFM (document-feature matrix) ou DTM (document-term matrix).

O nosso DTM contabilizou 21.772 tokens distintos nos 46 textos de Gilberto: esse é o
tamanho do vocabulário utilizado pelo autor. Claro que estão incluídos aí elementos com pouca
ou nenhuma carga semântica, como pontuações, conectivos, artigos, preposições etc. Apesar
de úteis para o entendimento geral do texto, esses termos sozinhos são irrelevantes, e por isso
a sua exclusão faz parte da próxima etapa, que diz respeito à limpeza e redução do corpus. Um
dos pacotes R que utilizamos6 traz embutida uma lista já definida dessas palavras “vazias” – as
stopwords – comuns em português, mas também é possível adicionarmos outras, caso seja
necessário.

A esse processo acrescentamos ainda a tarefa de lematização, que nada mais é que a
redução das variações de uma determinada palavra à sua forma lexical de base, em geral a que
encontramos no dicionário. Isso vale principalmente para verbos, como por exemplo: “correm”,
“corri” e “correram” são flexões do lema “correr” e sua redução à forma canônica não implica
nenhuma perda semântica. Também podemos acrescentar outras variações de nosso interesse,
como foi o caso de ‘mediador’, que se tornou ‘mediação’, e de ‘estigmatizante’, que se tornou
‘estigma’. Por fim, executamos uma função para identificar nomes compostos frequentes (Rio
de Janeiro, Zona Sul etc.) e os transformamos em palavras únicas a fim de manter a unidade de
sentido (rio-janeiro, zona-sul). Juntamos tudo e aplicamos ao corpus.

Nosso novo DTM foi reduzido para 20.960 palavras únicas, e no topo das mais
frequentes agora já conseguimos localizar termos significativos como “poder”, “sociedade” e
“indivíduo”, que nos dão pistas muito mais consistentes sobre os temas subjacentes à obra do
autor. A partir de então foi fácil criar versões do DTM que continham apenas uma seleção de
termos que consideramos importante observar de perto. Assim, se pedirmos a frequência dos

5
Do inglês tokenization.
6
Utilizamos os seguintes pacotes: readtext, quanteda, dplyr, tm, topicmodels e openxlsx.

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termos “desviante", "divergência", "acusação", "estigma", "maconha" e "ácido” na obra de
Gilberto, obtemos o quadro abaixo:

Figura 1 - Frequência de termos na obra de Gilberto Velho

Rapidamente conseguimos descobrir em quais documentos (e períodos) estes termos


estão presentes ou ausentes. Para um olhar mais qualitativo, é possível localizar as ocorrências
em seus contextos de uso, no que chamamos de linhas de concordância. Este recurso permite
visualizar o termo em destaque e uma parte das palavras que ocorrem imediatamente antes e
depois dele, em cada trecho:

Figura 2 - Linhas de concordância para o termo "desviante" na obra de Gilberto Velho

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Podemos observar que o lema “desviante” (que inclui “desviante”, “desviantes” e
“desvio”) possui 251 entradas distribuídas em 22 documentos diferentes. A figura acima é um
excerto e mostra parte das ocorrências localizadas no artigo publicado em 1971, “Estigma e
comportamento desviante em Copacabana”, o primeiro do autor. Podemos fazer isso com
qualquer conceito, expressão ou nome sobre os quais desejemos lançar uma lente de
aproximação.

Com relação aos autores, o primeiro passo foi compilar a lista de todos os que apareciam
na obra. Isso foi feito manualmente a partir das referências bibliográficas e das notas de rodapé.
É comum encontrarmos neste processo variações de escrita para um mesmo nome, seja pelo
uso de abreviações, seja por erro de grafia. Como isto impacta diretamente nas análises de
frequência, foi necessário criar um dicionário de correspondência capaz de associar, por
exemplo, “Bakhtin” a “Bahktin”, “Gertz” a “Geertz”, e assim por diante.

Mais uma vez aplicamos ao corpus e criamos um DTM com estes nomes. Com as
informações que tínhamos, foi então possível obter rapidamente a frequência dos autores - ou
uma seleção deles - por toda a obra, por documento, por ano e por década. Em seguida,
visualizamos os resultados em quadros (dataframes), planilhas, gráficos etc. Abaixo está um
exemplo de gráfico representando o número de menções a cinco desses autores ao longo da
obra de Gilberto:

Figura 3 - Gráfico de menções a autores na obra de Gilberto Velho ao longo dos anos

Um olhar rápido nos fornece uma ideia sobre a localização desses autores e os pontos
de interseção entre si. No entanto, é preciso tomar cuidado antes de tirarmos qualquer
conclusão definitiva, pois o sentido real dos resultados somente poderá ser dado pelo
especialista do domínio, em função de seu conhecimento sobre o assunto. É ele quem vai
explicar as frequências, distribuições e eventuais distorções que os números podem trazer.

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Por fim, a última técnica que aplicamos neste experimento é conhecida como
modelagem de tópicos (topic modeling), usada para a classificação automática dos documentos.
Nesse contexto um tópico seria como “um padrão recorrente de co-ocorrência de palavras”:
grosso modo, o método olha para as palavras e as agrupa por um processo de similaridade,
onde, juntas, talvez façam algum sentido. Por exemplo, doença, malária e tuberculose fazem
parte de um mesmo tópico e computador, sistemas, software, de outro. O modelo que
utilizamos chama-se Latent Dirichlet Allocation (LDA), um modelo estatístico altamente
matemático e iterativo, o que significa que o corpus é “varrido” diversas vezes e o computador
vai identificando a ocorrência das palavras dentro dos tópicos e dentro dos documentos, e
comparando com a forma como elas são atribuídas em outros tópicos e outros documentos,
para assim encontrar as melhores combinações (Blei, 2012). No final, os documentos são
classificados de acordo com os tópicos levantados, indicando qual tópico melhor se encaixa para
cada documento, no que chamamos de probabilidade de atribuição.

A seguir, discutimos os resultados da aplicação das técnicas mencionadas nesta seção.

As duas principais perguntas que orientaram o experimento referiam-se à importância


de diferentes autores na obra de Gilberto e dos temas que ele pesquisou. Além de valores em
termos absolutos, interessava-nos também observar sua distribuição ao longo do tempo.

O primeiro indicador observado, em relação a suas principais referências (portanto,


presumivelmente influências) intelectuais foi a contagem das menções a autores. No total foram
citados no corpus 232 autores. Numa contagem simples, três tiveram mais de 100 ocorrências:
Georg Simmel (175), Howard Becker (129) e Erving Goffman (102). Em seguida, completando a
relação dos 10 mais citados, temos Alfred Schutz (95), Gilberto Freyre (92), Louis Dumont (87),
Robert Park (42) Clifford Geertz (41), Victor Turner (32) e Max Weber (38).

Muitos desses autores possuem, contudo, referências concentradas em poucos artigos.


É o caso, por exemplo, de Becker e Goffman – que receberam, respectivamente, 57 e 42
menções (ou seja, cerca de 43% do total) num único texto, escrito a respeito da relação de
ambos com o Brasil (Velho, 2002). Também é o caso de Gilberto Freyre, com 72 das 92 menções
(ou seja, 78%) concentradas num único artigo (Velho, 2008).

Percebendo essa distorção, procedemos também a uma análise que tomava apenas a
ocorrência ou não (sim/não) dos autores em cada um dos 46 documentos de análise,

15
independentemente do número de ocorrências em cada um deles. Neste caso, a distribuição
seguiu basicamente a anterior, porém com algumas variações. Dentre os autores estrangeiros
mais recorrentes encontramos: Simmel (26), Dumont (24), Schutz (24), Becker (21), Goffman
(18), Weber (18) e Geertz (16). Dentre os brasileiros mais citados aparecem Roberto DaMatta
(18), Yvonne Maggie (16), Luís Antonio Machado da Silva (14) e Gilberto Freyre (10).

É importante, contudo, ter um olhar qualitativo sobre os números decorrentes dessas


contagens. Em primeiro lugar, porque tivemos que fazer a desambiguação de várias palavras.
Um exemplo é “Boas”, que aparece em 31 ocorrências distribuídas em 7 documentos, porém
que em sua grande maioria não se referem ao antropólogo Franz Boas, e sim ao adjetivo “boas”.
Outra é “Mead”, que se referia tanto ao filósofo George Herbert Mead, quanto à antropóloga
Margaret Mead. Temos ainda casos como o do sociólogo americano Donald Levine, que aparece
citado em 18 das 46 entidades, porém sempre referidas à importante coletânea de textos de
Simmel que ele organizou e publicou com o título de On Individuality and Social Forms.7 Desse
modo, não caberia incluir Levine como importante referência intelectual para Gilberto.

Georg Simmel é o autor mais citado. Ele aparece pela primeira vez em 1977 e depois
está muito presente em toda a obra de Gilberto (aparece em 56,5% das unidades reunidas no
corpus analisado). A fonte mais utilizada, ao longo de toda sua obra, é a coletânea On
Individuality and Social Forms, publicada originalmente em 1971. Talvez não por coincidência,
Gilberto passou esse mesmo ano nos Estados Unidos. É possível que tenha então tido
conhecimento do livro; de qualquer forma, era a principal referência bibliográfica sobre Simmel
utilizada por Gilberto tanto em suas publicações quanto na bibliografia dos cursos que dava no
Museu Nacional.

É possível observar também variações ao longo do tempo em relação ao uso que


Gilberto fez da obra de Simmel. Nos anos 1970 predominava a referência aos textos sobre “tipos
sociais”, como o “estrangeiro” e a “nobreza” (the stranger, the nobility, em inglês). Nos anos
1980, passam a predominar as análises de Simmel sobre o individualismo, a subjetividade e a
sociabilidade. Nesta mesma época entra em cena, com peso, o antropólogo francês Louis
Dumont, autor várias vezes citado por Gilberto, juntamente com Simmel, em relação aos
mesmos temas. Dumont aparece citado desde Nobres e anjos (1975), mas só alguns anos depois
é que passa a ser indelevelmente conectado à leitura que Gilberto fez de Simmel. Também é
nesse período que o diálogo com o “mundo psi” brasileiro, especialmente representado por

7
On Individuality and Social Forms: Selected Writings (Donald N. Levine, ed.) Chicago; London: University
of Chicago Press, 1971.

15
Sérvulo Figueira, é mais intenso. Nesse contexto, é várias vezes citado o texto de Simmel sobre
“A metrópole e a vida mental”.8

Junto a Dumont aparece também seu antecessor e referência fundamental Marcel


Mauss, principalmente por sua visão da gênese do individualismo (presente no texto “Uma
categoria do espírito humano: a noção de pessoa, de eu”) e pela visão de que as representações
coletivas estão associadas a um sistema classificatório que organiza toda a existência social. Max
Weber também entra nesse contexto, basicamente associado à sua análise do desenvolvimento
de um ethos individualista presente em A ética protestante e o espírito do capitalismo.

O grande marco de “virada” na presença de Simmel na obra de Gilberto é o livro


Individualismo e cultura (1981), em particular o capítulo “Emoção e orientação em sociedades
complexas.” Simmel permanece muito citado também em Subjetividade e sociedade (1986),
sendo que a partir deste livro a discussão passa a incluir a análise que Simmel faz da cultura
subjetiva (em relação com a cultura objetiva). O texto “Subjective culture” está incluído na
coletânea On Individuality and Social Forms, mas só 15 anos depois da primeira citaç~]ao de
Simmel é que Gilberto incorpora essa discussão à sua obra. Nos anos 1990, junta-se a essa
discussão mais um texto de Simmel, agora publicado em francês: “La tragédie de la culture” (“A
tragédia da cultura”, 1988).9

Simmel aparece sempre inserido na tradição sociológica do interacionismo,


especialmente na leitura feita pela Escola de Chicago. Em seus cursos e palestras ministrados a
partir de meados dos anos 1980, Gilberto várias vezes traçou sua “genealogia intelectual”
começando por Simmel e seguindo por Robert Park, Everett Hughes e Howard Becker, até
chegar a si. Nessa linhagem “interacionista” da tradição norte-americana, Becker e Goffman
aparecem com destaque. Gilberto, aliás, conheceu pessoalmente ambos e foi um dos principais
responsáveis pela introdução de suas obras nas ciências sociais brasileiras, inclusive publicando
vários de seus livros na Coleção Antropologia Social, que dirigia para a editora Zahar. Além disso,
foi responsável pela vinda de ambos ao Brasil e tornou-se amigo, até o final de sua vida, de
Becker.10

Howard Becker aparece citado desde 1971 e depois esteve sempre presente em toda a
obra de Gilberto. As referências a textos de Becker, contudo, concentram-se numa parte

8
Publicado em 1967 na coletânea O fenômeno urbano, organizada por Otávio Velho, irmão de Gilberto,
para a editora Zahar.
9
La tragédie de la culture et autres essais. Rivages, Paris, 1988.
10
No arquivo pessoal de Gilberto Velho, doado à FGV CPDOC, há extensa correspondência com Becker e
Goffman.

15
relativamente pequena de sua obra: o livro Outsiders, lido na abordagem interacionista do
desvio associada à “teoria da rotulação” (labelling theory) e os textos da coletânea Uma teoria
da ação coletiva, publicada em 1977 na coleção da Zahar.

Goffman também aparece citado desde 1971, principalmente em relação ao livro


Estigma, publicado originalmente em 1963. Essa presença diversificou-se a partir dos anos 1980,
incluindo os livros The Presentation of Self in Everyday Life (1956), Interaction Ritual (1957),
Behavior in Public Places (1963) e Frame Analysis (1974).

O filósofo Alfred Schutz, apesar de aparecer pela primeira vez em uma referência de
1974, torna-se presença constante somente a partir de 1981. Gilberto foi profundamente
marcado pela sociologia fenomenológica que Schutz desenvolveu, recolhida em seus Collected
Papers - The Problem of Social Reality (1971) e, no Brasil, principalmente no livro Fenomenologia
e relações sociais (publicada pela Zahar em 1979). Derivam diretamente da leitura de Schutz
noções fundamentais da obra de Gilberto, como as de projeto e campo de possibilidades, muito
associadas também à leitura que fez da obra de Simmel.

É interessante observar que autores da tradição “canônica” ou “clássica” da


antropologia aparecem relativamente pouco citados na obra de Gilberto. Isso talvez seja o
reflexo menos de um afastamento dessa tradição – que, aliás, Gilberto sempre valorizou em
suas aulas e palestras – do que ao fato de que seus temas privilegiados de estudo – o fenômeno
urbano e as sociedades complexas – estão pouco presentes nessa tradição, bem como pela
característica interdisciplinar da obra de Gilberto, sempre aberta a outras disciplinas, como a
história, a sociologia ou a psicologia.

Em relação à tradição antropológica, destacam-se as referências a Clifford Geertz, em


especial seu livro The Interpretation of Cultures, de 1973, e que Gilberto publicou em 1978 em
sua coleção da Zahar (A interpretação das culturas). Três elementos ressaltam da leitura que
Gilberto faz de Geertz: a natureza interpretativa do trabalho do antropólogo e as noções de
cultura como rede de significados (web of meanings) e de ethos (em relação ao qual outro
antropólogo, Gregory Bateson, também aparece referido). Em termos de distribuição ao longo
do tempo, as referências a Geertz se concentram em dois períodos: 1973-1992 e 2008-2011.
Valem ainda menções, em relação à tradição clássica da antropologia, a Raymond Firth,
principalmente por sua noção de “organização social”, e a Victor Turner, lembrado pelas noções
de “drama social” e de communitas, presentes em sua análise dos processos rituais.

Dois outros autores muito importantes na antropologia praticada no Brasil, em especial


no Museu Nacional, aparecem de forma menor e mais localizada na obra de Gilberto. Claude

15
Lévi-Strauss aparece 22 vezes, das quais 21 no período entre 1973 e 1986. Talvez essa fosse uma
citação quase obrigatória nesse período de apogeu do estruturalismo lévi-straussiano no Brasil
(e no Museu Nacional, em particular). Essa talvez seja também uma possível explicação para a
presença de Pierre Bourdieu, citado apenas 8 vezes, das quais 6 entre 1974 e 1986.

Em relação ao diálogo com a História, muito presente nos cursos oferecidos na década
de 1990, o fato de que todas as 22 referências a autores como Mikhail Bakhtin, Peter Burke,
Carlo Ginzburg e Evaldo Cabral de Mello são posteriores a 1991 indica também foi a partir dessa
época que se deu a aproximação maior de Gilberto com os estudos históricos, especialmente
pela análise dos nexos entre cultura popular e cultura erudita.

Quanto a autores brasileiros, o destaque vai para Roberto Da Matta, colega de Gilberto
por vários anos no Museu Nacional, citado desde 1973, embora relacionado basicamente a dois
elementos: seu texto sobre os “anthropological blues” (Da Matta, 1978), com o qual Gilberto
dialogou escrevendo o texto “Observando o familiar” (Velho, 1978) e a análise que Da Matta faz
de rituais na sociedade brasileira, consolidada em seu livro Carnavais, malandros e heróis
(publicado por Gilberto em 1979, em sua coleção na Zahar).

Gilberto Freyre surge em cena em 1980, devido às análises que faz das relações de
sociabilidade entre diferentes categorias sociais, presentes nos livros Casa Grande & Senzala e
principalmente em Sobrados e mucambos. A importância da obra de Gilberto Freyre seria
destacada posteriormente por Gilberto Velho num artigo de 2008. Vale observar que Gilberto
Velho foi um dos principais responsáveis pela “recuperação” da obra de Gilberto Freyre para a
antropologia brasileira, após este ter sido colocado num “ostracismo intelectual” tanto por suas
premissas teóricas (criticadas principalmente pela tradição sociológica paulista de matriz
marxista) quanto pelo apoio que deu ao regime militar instaurado em 1964.

Yvonne Maggie, com quem Gilberto foi casado alguns anos, também aparece citada com
regularidade, por seu livro Guerra de Orixá, e em conjunto, várias vezes, com Victor Turner,
principal referência teórica presente no livro. Finalmente, devemos destacar a referência ao
trabalho de muitos alunos que Gilberto orientou no Museu Nacional, e que é muito presente
em sua obra.

Além dos autores, buscamos também analisar os temas mais presentes na obra de
Gilberto. As tentativas de extrair estes temas automaticamente através do topic modeling não
trouxeram muito impacto. Como explicamos na seção anterior, trata-se de um método que olha
para as palavras e as agrupa por um processo de similaridade. No caso da obra de Gilberto Velho
dois fatores comprometeram o processo: 1) o corpus é relativamente pequeno e isso restringiu

15
a amplitude de combinações nas iterações; e 2) os temas – e por conseguinte, as palavras e
expressões presentes nos textos – não divergiram muito entre si, o que fez com que as fronteiras
entre os tópicos não ficassem tão evidentes. Mesmo assim, os resultados não são discordantes
no conjunto da obra:

Topic.1 Topic.2 Topic.3 Topic.4 Topic.5 Topic.6 Topic.7 Topic.8


sociedade desviante cidade universo copacabana antropologia pessoas social

indivíduo comportamento mundo amigos pessoas trabalho grupo sociedade

projeto acusação sociedade filhos bairro autores jovens indivíduo

complexa sistema social casamento apartamento social tóxicos vida

noção cultural fenômeno vida prédio obra maconha grupos

domínios sociocultural rio-janeiro sociabilidade moradores becker famílias cultura

diferentes mental violência pais querer goffman geral mundo

sistema doença modo política ficar pesquisa ficar forma

moderna subversão média subjetivo gente chicago certa trabalho

culturais regras geral tempo estrela campo tempo dentro

Figura 4 - Distribuição de termos nos tópicos

O quadro da figura 4 traz o resultado de um pedido de distribuição de 10 termos em 8


tópicos. Cada agrupamento deve ser avaliado pelo especialista e pode receber um rótulo que o
identifique e distinga dos demais. O que o sistema faz em seguida é calcular a probabilidade de
atribuição de cada tópico para cada documento, ou seja, quanto percentualmente tal tópico é
relevante para tal documento.

Topic 1 Topic 2 Topic 3 Topic 4 Topic 5 Topic 6 Topic 7 Topic 8


1971 - Estigma e
comportamento 1,51% 9,01% 1,19% 1,11% 57,41% 1,43% 12,76% 15,58%
desviante em
Copacabana.txt
1973 - A Utopia 0,31% 0,20% 2,47% 3,90% 69,22% 1,01% 5,55% 17,33%
Urbana.txt
1973 - O estudo do
comportamento 4,10% 38,12% 2,32% 1,24% 1,83% 3,17% 3,21% 46,01%
desviante.txt

Figura 5 - Probabilidade de atribuição de cada tópico para cada documento

No excerto acima, os dois primeiros textos do autor receberam maior probabilidade de


pertencerem ao tópico 5, o que parece estar correto, pois sabemos que ambos partem de
pesquisas realizadas no bairro de Copacabana (na cidade do Rio de Janeiro) junto a moradores

15
de dois grandes edifícios, um deles chamado pelo autor de “Estrela”. Já o terceiro texto divide-
se principalmente entre os tópicos 8 e 2, que poderiam ser rotulados por “sociedade, indivíduo,
cultura” e “desvio, comportamento, subversão”, respectivamente, o que faz bastante sentido.
Importante notar que nenhum documento carrega 100% em um único tópico, e o segredo da
leitura é justamente esse: muitas vezes as diferenças entre os tópicos são pequenas e a
distribuição é equitativa. Além disso, pode acontecer de o tópico mais relevante para um
determinado documento ter ficado em segundo ou terceiro lugar por conta de fatores
circunstanciais como tamanho do vocabulário utilizado, lematização inadequada, presença de
stopwords etc., daí o modelo não ter uma performance tão boa.

De qualquer forma, o topic modeling pode ser um recurso rápido e conveniente para
realizar a classificação não supervisionada de um corpus de documentos. Mostra-se
particularmente útil para grandes volumes de textos de assuntos variados, o que não é o caso
da obra de Gilberto Velho. Como já apontamos, porém, é preciso que os resultados sejam
cuidadosamente analisados por especialistas do domínio e verificados para ver se fazem sentido.

A observação de uma lista de termos, vistas em sua distribuição cronológica, nos


permitiu fazer algumas observações interessantes. Partimos de uma lista de termos que
sabíamos previamente ser importantes na obra de Gilberto e buscamos observá-los em sua
distribuição ao longo do tempo. Não surpreendentemente, alguns desses termos aparecem
distribuídos por toda a extensão de sua obra, quer refiram-se a objetos de investigação empírica
– cidade (272 ocorrências), família (271), conflito (152), camadas médias (146), trajetória (109)
– quanto a conceitos ou noções – projeto (248), estilo de vida (168), visão de mundo (159),
identidade (124), sociedades complexas (110).11

No entanto, essa distribuição temática ao longo de um eixo temporal permite visualizar


como temas importantes na obra de Gilberto concentram-se em períodos específicos.
Poderíamos tentativamente dividir sua obra em dois grandes momentos, que não são
exatamente separados ou sucessivos, porém que se concentram quer na primeira metade de
sua obra, quer na metade final.

Na primeira metade incluiríamos a influência das obras de Becker e de Goffman, a


discussão sobre desvio social (principalmente relacionado ao uso de drogas) e o diálogo com o
“mundo psi”. Das 652 ocorrências das palavras “desviante”, “divergência”, “acusação”,

11
Listamos as que tiveram mais de 100 ocorrências. Se incluirmos as que aparecem mais de 50 vezes,
teremos também: ethos (98), interação (96), violência (85), tensão (78), complexidade (74), religião (74),
metrópole (69), parentesco (68), sociabilidade (62), heterogeneidade (57) e emoção (53).

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“estigma”, “maconha” e “ácido”, nada menos que 527 (ou seja, cerca de 80%) concentram-se
entre 1971 e 1992. Já numa segunda parte da obra de Gilberto teríamos outra concentração de
termos. Praticamente todas as 361 ocorrências das palavras “mediação”, “fragmentação”,
“memória”, “metamorfose”, “sociedade moderno-contemporânea”, “subjetividade”, “cultura
subjetiva/ objetiva”, “campo de possibilidades” e “trânsito” (entre diferentes mundos sociais)
aparecem após 1981. Podemos supor que essa segunda metade seja marcada principalmente
pela influência das leituras de Simmel e Schutz, e que tenha em Projeto e metamorfose (1981)
um ponto de inflexão, do ponto de vista teórico, na obra de Gilberto.

Para concluir, devemos perguntar se esse experimento com o uso de recursos


computacionais revelou algo de novo em relação ao conhecimento que se poderia ter da obra
de Gilberto Velho através de sua simples leitura “humana” ou “artesanal”.

A resposta é que não, em termos gerais, porém o experimento nos ajudou a precisar
mais e a compreender melhor o peso, ao longo do tempo, de suas principais influências
intelectuais e dos temas que pesquisou. Para usar duas palavras caras a Gilberto, pudemos
complexificar e matizar melhor algumas características de sua produção intelectual.

Nesse sentido, o experimento foi positivo. Vale observar, como já mencionamos, que o
corpus examinado é relativamente pequeno, e que Gilberto escrevia em geral textos curtos. Os
46 documentos analisados compreendem 560.368 palavras que ocupariam, em texto corrido,
aproximadamente 1.580 páginas (em espaçamento 1,5, letra Times New Roman 12). Para
conjuntos maiores, os recursos computacionais utilizados poderiam potencialmente ser ainda
mais úteis, revelando características mais difíceis de distinguir “a olho nu”.

O experimento também deixou evidente a importância de se ter um olhar qualitativo


sobre esses dados quantitativos, evitando-se cair numa espécie de “fetichismo” dos recursos
computacionais que imaginasse que eles funcionariam por si só, revelando “verdades” ocultas
no corpus analisado. Muito pelo contrário, fica evidente que a visão de especialistas é
fundamental tanto na tomada de decisões mais “técnicas” quanto na análise “intelectual”.

No nosso caso específico, Celso e Sílvia foram, em diferentes épocas, orientados por
Gilberto tanto no mestrado quanto no doutorado e, portanto, conheciam bem o autor e sua
obra. Dessa forma, partindo de suas próprias experiências e memórias, vivenciadas durante o
processo de orientação e de convivência pessoal, puderam realizar algumas análises e

15
inferências qualitativas sobre o corpus analisado. Partindo desse lugar interpretativo,
consideramos haver uma aproximação substancial entre os conceitos e as referências
bibliográficas levantados por nosso experimento e os referenciais teóricos trazidos por Velho
durante as discussões de textos em sala de aula ou nas reuniões de orientação. A bibliografia
citada em seus artigos compunha também a bibliografia de seus cursos no PPGAS/ Museu
Nacional. Sendo assim, percebemos que sua obra se constituiu como um legado conceitual e
bibliográfico deixado aos seus alunos e orientandos, que resultou na consolidação de um campo
de pesquisa que hoje encontra-se legitimado, mas que teve seu momento “heroico” de
surgimento e consolidação, graças ao pioneirismo de Velho em suas pesquisas na e sobre a
cidade do Rio de Janeiro.

Assim, a disposição para experimentar novos caminhos, especialmente no campo das


humanidades digitais, deve vir acompanhada da compreensão de que não se trata de renunciar
ou se opor às abordagens tradicionais de investigação, mas de perceber que a
complementaridade entre os métodos computacionais e os mais artesanais tem potencial tanto
para ajudar a responder questões antigas quanto para suscitar novas questões.

15
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Blei, David M. "Probabilistic topic models." Communications of the ACM 55.4 (2012): 77-84.
Bonfiglioli, Rudi; Nanni, Federico. “From Close to Distant and Back: How to Read with the Help
of Machines”. 3rd International Conference on History and Philosophy of Computing
(HaPoC), Oct 2015, Pisa, Italy.
DaMatta, Roberto. “O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues”. Boletim do Museu
Nacional, Nova Série, n. 27, maio de 1978. Disponível em http://www.ppgasmn-
ufrj.com/uploads/2/7/2/8/27281669/boletim_do_museu_nacional_27.pdf
__________. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978
Moretti, Franco. “Conjectures on World Literature”. New Left Review, 1, jan-feb 2000, pp. 54-
68. Disponível em https://newleftreview.org/issues/ii1/articles/franco-moretti-
conjectures-on-world-literature
Schutz, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979
Simmel, Georg. On Individuality and Social Forms: Selected Writings (Donald N. Levine, ed.)
Chicago; London: University of Chicago Press, 1971.
___________ La tragédie de la culture et autres essais. Rivages: Paris, 1988
Wiedemann, Gregor; Niekler, Andreas. “Hands-on: A five-day text mining course for humanists
and social scientists in R”. Proceedings of the 1st Workshop on Teaching NLP for Digital
Humanities, 2017, Berlin.

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ANEXO - TEXTOS DE GILBERTO VELHO UTILIZADOS

1971 - Estigma e comportamento desviante em Copacabana


1973 - A utopia urbana
1973 - O estudo do comportamento desviante
1974 - Acusações - projeto familiar e comportamento desviante
1975 - Nobres e anjos
1977 - Cotidiano e política num prédio de conjugados
1977 - Vanguarda e desvio - arte e sociedade
1978 - Duas categorias de acusação na cultura brasileira contemporânea
1978 - Observando o familiar
1980 - Sobre conhecimento e heresia
1980 - Violência e cidadania
1981 - Cultura de classe média - reflexões sobre a noção de projeto
1981 - Individualismos e desmapeamento - antropologia e psicanálise
1981 - Os conceitos de relevância e motivação e a noção de subcultura
1981 - Parentesco, individualismo e acusações
1981 - Prestígio e ascensão social - dos limites do individualismo na sociedade brasileira
1981 - Projeto, emoção e orientação em sociedades complexas
1981 - Visão de mundo e estilo de vida em camadas médias urbanas
1982 - Literatura e desvio - Proust e Nélson Rodrigues
1986 - Subjetividade e sociedade
1988 – Memória, identidade e projeto
1990 - A vitória de Collor
1991 - Individuo e religião na cultura brasileira
1991 - O grupo e seus limites
1991 - Relações entre a antropologia e a psiquiatria
1992 - Becker Goffman e a antropologia no Brasil
1992 - Unidade e fragmentação em sociedades complexas
1993 - Cultura popular e sociedade de massas
1993 - Dimensão cultural e política do mundo das drogas
1994 - Sobre homens marginais
1994 - Trajetória individual
1995 - Estilo de vida urbano e modernidade

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1999 - Os mundos de Copacabana
2000 - Individualismo, anonimato e violência na metrópole
2001 - Biografia trajetórias e mediações
2003 - O desafio da proximidade
2004 - Orientação e parceria intelectual - dilemas e perspectivas
2005 - O futuro das ciências sociais e a importância de seu passado
2006 - Ciências sociais e biografia individual
2006 - Patrimônio, negociação e conflito
2007 - Memória cultura e conflito
2008 - Gilberto Freyre – trajetória e singularidade
2008 - Goffman mal-entendidos e riscos interacionais
2009 - Sujeito subjetividade e projeto
2010 - Metrópole cosmopolitismo e mediação
2011 - Antropologia urbana - interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento

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