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Édouard Glissant

Poética da Relação [Excertos]1

A barca aberta

Aquilo que petrifica, na experiência da deportação dos africanos para as Américas2,


é sem dúvida o desconhecido, enfrentado sem preparação nem desafio.

A primeira treva foi o ser arrancado à terra quotidiana, aos deuses protetores, à
comunidade tutelar. Mas isso ainda não é nada. O exílio suporta-se, mesmo quando
sidera. A segunda noite foi de torturas, de degenerescência do ser, provocada por
tantos incríveis sofrimentos. Imaginem duzentas pessoas amontoadas num espaço que
mal poderia conter um terço delas. Imaginem o vómito, a carne viva, os piolhos
pululantes, os mortos jacentes, os agonizantes apodrecendo. Imaginem, se forem
capazes, a embriaguez vermelha das subidas ao convés, a rampa que é necessário
subir, o sol negro no horizonte, a vertigem, esse deslumbramento do céu colado às
ondas. Vinte, trinta milhões de deportados durante dois séculos ou mais. A
degradação, mais sempiterna que um apocalipse. Mas isso ainda não é nada.

Aterrador é o abismo, três vezes ligado ao desconhecido. O primeiro é um terror


inaugural, quando mergulhas no ventre da barca. Uma barca, segundo a tua poética,
não tem ventre, uma barca não engole, não devora, uma barca pilota-se a céu aberto.
O ventre dessa barca dissolve-te, precipita-se num não mundo onde gritas. Essa barca
é uma matriz, poço-matriz. Geradora do teu brado. Produtora também de toda a
unanimidade por vir. Porque se estás só nesse sofrimento, partilhas o desconhecido
com alguns, que ainda não conheces. Essa barca é a tua matriz, um molde, que, no
entanto, te expulsa. Grávida tanto de mortos como de vivos condenados a uma morte
adiada.

O segundo abismo é o abismo do mar. Quando a Marinha dá caça ao negreiro, o


mais simples é aligeirar a barca, lançando ao mar a carga, com um lastro de grilhetas.
São os sinais de pista submarinos, do golfo da Guiné às Ilhas de Sotavento. Assim,
toda a navegação no esplendor verde do oceano – a melancolia das travessias em
transatlântico, a glória das regatas desportivas, a tradição das canoas ou de pagaias –

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sugere, como uma evidência das algas, esses abismos, essas profundezas, pontuados
de grilhetas enferrujadas. O abismo é verdadeiramente uma tautologia, todo o oceano,
todo o mar, por fim afagado com doçura pelos prazeres da praia, é um enorme
começo, só ritmado por essas grilhetas cobertas de verdete.

Mas, para que essas costas ganhem forma, e antes que possam ser concebíveis, ou
sequer visíveis, quantos tormentos desconhecidos! A face mais petrificante do abismo
encontra-se de facto diante da proa do navio negreiro, rumor pálido que tanto pode ser
nuvem de tempestade, chuva ou morrinha, como fumo de uma fogueira
tranquilizadora. De ambos os lados da barca desapareceram as margens do rio. Que
rio é este, então, sem meio? Apenas com um em-frente? Não vogará essa barca pela
eternidade, nos confins de um não mundo, que nenhum Antepassado frequenta?

A terceira forma do abismo projeta assim, em paralelo com a massa de água, a


imagem invertida de tudo o que foi abandonado, e que, para muitas gerações, só será
encontrado nas savanas azuis da memória ou do imaginário, cada vez mais ténues.

Essa ascese de atravessar assim a terra-mar que não se sabe ser o planeta-terra,
sentindo desvanecer-se não só o uso da palavra dos deuses, mas também a imagem
próxima do objeto mais quotidiano, do animal mais familiar. O gosto evanescente da
comida, o cheiro persistente da terra ocre e das savanas.

“Eu te saúde, velho Oceano!” Tu guardas nas tuas cristas o barco secreto dos
nossos nascimentos, os teus abismos são o nosso próprio inconsciente, povoados de
fugidias memórias. Depois desenhas essas novas costas, onde nós depomos as nossas
chagas estriadas de alcatrão, as nossas bocas ensanguentadas e os nossos gritos
silenciados.

A experiência do abismo está no abismo e fora dele. Tormento daqueles que nunca
saíram do abismo: que passaram diretamente do ventre do navio negreiro para o
ventre violeta dos fundos do mar. Mas a sua provação não morreu, vivificou-se nesse
contínuo-descontínuo: o pânico do país novo, a saudade da terra perdida, e por fim a
aliança com a terra imposta, sofrida, redimida. A memória não sabida do abismo
serviu de lodo para essas metamorfoses. Os povos que então se constituíram, mesmo
que tivessem esquecido o abismo, mesmo que não conseguissem imaginar o tormento
daqueles que aí pereceram, não deixaram de tecer uma vela (um véu) com a qual, não

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regressando à Terra-Anterior, se ergueram nesta terra aqui, súbita e estupefacta.
Encontraram nela os primeiros ocupantes, também eles deportados por um saque
imóvel. Ou então adivinharam apenas os seus vestígios devastados. Terra do além
tornada terra em si. E essa vela desconhecida, que por fim se desfralda, é irrigada pelo
vento branco do abismo. E assim o desconhecido-absoluto, que era a projeção do
abismo, e que transportava eternamente o abismo-matriz e o abismo infinito, tornou-
se por fim conhecimento.

Não só conhecimento particular, apetite, sofrimento e fruição de um povo


particular, não só isso, mas o conhecimento do Todo, que aumenta com a experiência
do abismo e que no Todo liberta o saber da Relação.

Tal como a separação primordial não implicava nenhum desafio, também a


antecipação e a vivência da Relação não implicam qualquer jactância. Os povos que
experimentaram o abismo não se vangloriam de terem sido eleitos. Não julgam ter
dado origem ao poder da modernidade. Vivem a Relação, que desbravam à medida
que adquirem o esquecimento do abismo e que a sua memória se consolida.

Porque, se essa experiência fez de ti, vítima original flutuando sobre os abismos do
mar, uma exceção, ela tornou-se comum para fazer de nós, os descendentes, um povo
entre outros. Os povos não vivem da exceção. A Relação não é feita de estranheza,
mas de conhecimento partilhado. Podemos dizer agora que essa experiência do
abismo é a coisa mais bem partilhada.

Para nós, para nós sem exceção, por muito que mantenhamos a distância, o abismo
é também projeção e perspetiva do desconhecido. Para além do abismo, apostamos no
desconhecido. Tomamos partido por esse jogo do mundo, pelas Índias renovadas em
direção às quais gritamos, por essa Relação de tempestades e de calmarias profundas
onde possamos honrar as nossas barcas.

É isso que nos faz insistir na poesia. Apesar de consentirmos em toda a irrecusável
tecnologia, apesar de concebermos as manobras das políticas a concertar, o horror de
vencer fomes e ignorâncias, torturas e massacres, e a totalidade do saber a conquistar,
o peso de cada maquinaria que acabaremos por controlar, e a fulguração desgastante
da passagem de uma a outra era, da floresta à cidade, do conto ao computador – há, à
proa, agora comungado, esse ainda rumor, nuvem ou chuva, ou fumo tranquilo.

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Conhecemo-nos enquanto multidão, no desconhecido que não aterroriza. Gritamos o
grito da poesia. As nossas barcas estão abertas, nelas navegamos para todos.

A errância, o exílio

Do exílio à errância, a medida comum é a raiz, que em ambos os casos falta. É por
aí que há que começar3.

Gilles Deleuze e Félix Guattari criticaram os conceitos de raiz e, porventura, de


enraizamento. A raiz é única, é uma origem que de tudo se apodera e que mata o que
está à volta; opõem-lhe o rizoma, que é uma raiz desmultiplicada, que se estende em
rede pela terra ou ar, sem que nenhuma origem intervenha como predador
irremediável. O conceito de rizoma mantém, assim, a noção de enraizamento, mas
recusa a ideia de uma raiz totalitária. O pensamento do rizoma estaria na base daquilo
a que chamo uma poética da Relação, segunda a qual toda a identidade se prolonga
numa relação com o Outro.

Estes autores fazem um elogio do nomadismo, presumível libertador do ser, talvez


por oposição à sedentariedade, cuja raiz intolerante fundaria a lei. Kant, no início da
Crítica da razão pura, faz já corresponder os céticos aos nómadas, e diz também de
vez em quando “eles rompem com o laço social”. Parece assim estabelecer uma
correlação entre sedentarismo, verdade e sociedade, por um lado, e nomadismo,
ceticismo e anarquismo, por outro. Esta aproximação a Kant sugere-nos que o
interesse do conceito de rizoma parece provir do seu anticonformismo, mas que daí
não se poderia inferir uma função de subversão, uma capacidade do pensamento
rizomático de abalar a ordem do mundo, pois assim regressaríamos à pretensão da
ideologia que esta teoria pretende contestar4.

Mas não estará o nómada sobredeterminado pelas suas condições de existência? E


o nomadismo por uma obediência a contingências constrangedoras, e não por um
desejo de liberdade? É o caso do nomadismo circular: muda de direção à medida que
partes do território ficam esgotadas, a sua função é garantir, através dessa
circularidade, a sobrevivência de um grupo. Nomadismo dos povos que se deslocam
nas florestas, das comunidades arawaks que navegam de ilha em ilha nas Caraíbas,

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dos contratados agrícolas que peregrinam de quinta em quinta, de gente do circo que
atua de terra em terra, todos eles movidos por um movimento determinado em que
nem a audácia nem a agressão intervêm. O nomadismo circular é uma forma não
intolerante da sedentariedade impossível.

Oponhamos-lhe o nomadismo invasor, o dos hunos, por exemplo, ou o dos


Conquistadores, que tem como objetivo conquistar terras através do extermínio dos
seus ocupantes. Este nomadismo não é prudente nem circular, não mede os seus
efeitos, é um salto absoluto em frente: um nomadismo em flecha. Mas os
descendentes dos hunos, dos vândalos ou dos visigodos, tal como os descendentes dos
Conquistadores, que impunham os seus clãs, acabaram por se ir estabilizando,
fundindo-se nas suas conquistas. O nomadismo em flecha é um desejo devastador de
sedentarismo5.

Nem num caso nem noutro, o nomadismo circular ou o nomadismo em flecha, se


manifesta a raiz. Aquilo que “agarra” o invasor, antes de ser cativado pela sua
conquista, é o em-frente; e aliás também não poderia dizer-se que a sedentariedade
forçada constituiria o verdadeiro desenraizamento do nómada circular. Do mesmo
modo, o sofrimento do exílio não pesa nesses casos, nem o gosto pela errância se
acentua. A relação com a terra é demasiado imediata, ou predadora para que a
preocupação de identidade (essa reivindicação ou esse conhecimento de uma
linguagem inscrita num território) a ela esteja ligada. A identidade adquirir-se-á
quando as comunidades tiverem tentado, através do mito ou da palavra revelada,
legitimar o seu direito a essa posse de um território. Afirmação que pode surgir muito
antes da sua resolução efetiva. Daí às múltiplas formas da legitimidade,
frequentemente e longamente contestada, que em seguida traçarão as dimensões
feridas ou apaziguadoras do exílio ou da errância.

Na Antiguidade ocidental, o homem no exílio não se sente inferiorizado nem


desapossado, porque não se sente oprimido pela falta – em relação a uma nação, que
para ele ainda existe. Parece até que uma experiência da viagem e do exílio tenha sido
então considerada necessária à realização do ser, a acreditar nas biografias de
inúmeros pensadores gregos, como Platão e Aristóteles. Platão será um dos primeiros
a tentar fundar a legitimidade, não ainda – ou já não – da comunidade num território,

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mas da Cidade na racionalidade das suas leis. Num momento em que Atenas, a sua
cidade, estava já ameaçada por uma desregulação “final”6.

Nessa época, a identificação faz-se com uma cultura – que é concebida como
civilização – e não ainda como uma nação7. O Ocidente pré-cristão partilha esta
maneira de ver e de sentir com a América pré-colombiana, com a África dos grandes
conquistadores e com a maior parte dos países da Ásia. Foi contra a generalização (a
pulsão de um identitário universal) promovida pelo Império Romano que primeiro se
exerceram as ações sucessivas do nomadismo em flecha e da sedentarização. O
particular resiste então ao universal generalizador, para em breve engendrar, em
círculos concêntricos (províncias, depois nações), os particularismos. A ideia de
civilização ajudará pouco a pouco a manter juntos esses contrários, que inicialmente
só se identificam por oposição ao Outro.

Na época dos nomadismos invasores, a paixão de se definir adquire a feição da


aventura pessoal. Ao longo dos seus périplos, os conquistadores constituem impérios
que se desmoronam com a sua morte. As suas capitais deslocam-se com eles. “Roma
não está em Roma, está sempre onde eu estou.” Não é a raiz que importa, mas sim o
movimento. O pensamento da errância não se destaca, travado pela realidade insana
desse nomadismo demasiado funcional, cujos fins nunca teria podido conhecer.
Centro e periferias equivalem-se. Os conquistadores são a raiz móvel e efémera dos
seus povos.

É pois aí, no Ocidente, que o movimento se torna fixo e que as nações se


pronunciam até se repercutirem no mundo. Essa fixação, esse enunciado e essa
expansão requerem então que a ideia de raiz ganhe pouco a pouco esse sentido
intolerante que Deleuze e Guattari certamente pretendiam recusar. Se regressamos a
esse episódio ocidental, é precisamente porque ele proliferou pelo mundo. O modelo
propagou-se. A maior parte das nações que se libertaram do colonialismo tenderam a
formar-se em torno da ideia de poderio, pulsão totalitária da raiz única, e não de uma
relação fundadora com o Outro. O pensamento cultural de si era dual, opondo o
cidadão ao bárbaro. Não houve nada mais absolutamente oposto ao pensamento da
errância do que esse período da história das humanidades em que as nações ocidentais
se constituíram e que depois se repercutiram no mundo.

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Esse pensamento da errância, que ia a contracorrente da expansão nacionalista,
transforma-se então “em” aventuras muito pessoais – tal como o aparecimento das
nações fora precedido da deriva dos construtores de impérios. A errância do trovador,
ou a de Rimbaud, não é ainda a vivência densa (opaca) do mundo, mas é já o desejo
apaixonado de contrariar a raiz. Ao mesmo tempo, a realidade do exílio é sentida
como uma falta (temporária), sendo interessante notar que ela dirá, antes de mais,
respeito à língua. No Ocidente, as nações constituíram-se sobre o modo da
intransigência linguística, e o exilado confessa de bom grado que aquilo que mais o
afeta é a impossibilidade de comunicar na sua língua. A raiz é monolingue. Com o
trovador, com Rimbaud, a errância é vocação, que apenas se diz pelo desvio. É o
apelo, e ainda não a plenitude, da Relação.

Contudo, e isso é um imenso paradoxo, os livros fundadores da comunidade, o


Antigo Testamento, a Ilíada, a Odisseia, as Canções de Gesta, as Sagas, a Eneida ou
as epopeias africanas eram livros de exílio e, muitas vezes, de errância. Essa literatura
épica é espantosamente profética: diz a comunidade, mas através da relação do seu
fracasso aparente ou, em todo o caso, da sua superação, e a errância, considerada
como tentação (desejo de contrariar a raiz) e quase sempre sentida nos factos. Os
livros coletivos do sagrado ou da historicidade contêm em si o exato contrário das
suas turbulentas pretensões. Neles, a legitimidade da posse de um território, sempre
mitigada pela relativização da própria noção de território. Livros do despertar para a
consciência coletiva, eles introduzem assim a percentagem de mal-estar e de angústia
que permite, ao indivíduo reencontrar-se, sempre que ele se torna um problema para si
mesmo. A vitória dos gregos na Ilíada depende de um embuste, Ulisses, ao regressar
da sua Odisseia, é apenas reconhecido pelo seu cão, o David do Antigo Testamento é
desonrado pelo adultério e pelo homicídio, a Canção de Rolando é a crónica de uma
derrota, as personagens das Sagas estão marcadas pelo signo de uma fatalidade
incontornável, e assim por diante. Esses livros fundam algo de muito distinto de uma
certeza absoluta, dogmática ou totalitária (independentemente da utilização religiosa
que deles será feita): são livros de errância, para além da procura ou do triunfo do
enraizamento que o movimento da História exige.

Alguns desses livros são dedicados à suprema errância, como o Livro dos mortos
egípcio. Precisamente aquilo cuja função é consagrar a comunidade intransigente, já
transige, matizando, portanto, o triunfo comunitário em errâncias reveladoras8.

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Em L’intention poétique e Le discours antillais (de que a presente obra constitui
um eco reformulado, ou a repetição em espiral), abordei esta dimensão de uma
literatura épica, interrogando-me se nos dias de hoje não nos seriam ainda necessárias
obras fundadoras que se baseassem numa semelhante dialéctica do desvio: afirmando,
por exemplo, o rigor político, mas também o rizoma da relação múltipla com o Outro,
e fundando as razões de viver de qualquer comunidade numa forma moderna do
sagrado, que seria, em suma, uma poética da Relação9.

Este movimento (entre outros, noutras regiões do mundo, que serão igualmente
decisivos) levou, assim, do nomadismo primordial à sedentarização das nações
ocidentais e depois à Descoberta e à Conquista que se cumpriram, até aos limites do
místico, na Viagem.

Nesse percurso, a identidade, pelo menos no que toca a esses viajantes ocidentais
que forneceram a massa dos descobridores e dos conquistadores, reforça-se antes de
mais de modo implícito (“a minha raiz é a mais forte”), e em seguida é exportada
explicitamente como valor (“o ser vale pela sua raiz10”), obrigando os povos visitados
ou conquistados à longa e dolorosa busca de uma identidade que deverá sobretudo
opor-se às desnaturações provocadas pelo conquistador. Variante trágica da procura
de identidade. Durante um período histórico de mais de dois séculos, a identidade
afirmada dos povos terá de ser conquistada contra os processos de identificação ou de
aniquilamento desencadeados por esses invasores. Se no Ocidente a nação é antes de
mais um “contrário11 ” para os povos colonizados a identidade será, em primeiro lugar,
um “oposto a”, isto é, em princípio, uma limitação. O verdadeiro trabalho da
descolonização terá sido de superar esse limite.

A dualidade do pensamento de si (há o cidadão, e há o estrangeiro) repercute-se na


ideia que se tem do Outro (há o visitante e o visitado; aquele que parte e aquele que
permanece; o conquistador e a sua conquista). O pensamento do Outro só deixará de
ser dual no momento em que as diferenças forem reconhecidas. O pensamento do
Outro “compreende”, a partir de então, a multiplicidade, mas de uma maneira
mecânica que cultiva ainda as subtis hierarquias do universal generalizante.
Reconhecer as diferenças não obriga a envolver-se na dialética da sua totalidade. No
limite, “posso reconhecer a tua diferença e pensar que ela te prejudica. Posso pensar
que a minha força está na Viagem (faço a História) e que a tua diferença é imóvel e

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muda”. Há um passo a dar antes de entrar verdadeiramente na dialética da totalidade.
Parece aqui que, ao contrário da mecânica da Viagem, essa dialética é movida pelo
pensamento da errância.

Se supusermos que a procura da totalidade, a partir desse contexto não universal


das histórias do Ocidente, passou pelos seguintes estádios:

-­‐ pensamento do território e de si (ontológico, dual)


-­‐ pensamento da viagem e do outro (mecânico, múltiplo)
-­‐ pensamento da errância e da totalidade (relacional, dialético), teremos de
convir que esse pensamento da errância se afasta implicitamente da
desestruturação das compacticidades nacionais, há pouco triunfantes, e,
simultaneamente, dos aparecimentos difíceis e incertos das novas formas de
identidade que nos solicitam.

Assim, o desenraizamento pode contribuir para a identidade e o exílio tornar-se


proveitoso, quando são vividos não como uma expansão de território (um nomadismo
em flecha) mas como uma procura do Outro (por nomadismo circular). O imaginário
da totalidade permite esses desvios, que afastam do totalitário.

A errância não provém de uma renúncia nem de uma frustração em relação a uma
situação de origem que se tivesse deteriorado (desterritorializado) – não é um ato
determinado de recusa, nem uma pulsão incontornável de abandono. Por vezes, é
abordando os problemas do Outro que nos encontramos a nós mesmos; as histórias
contemporâneas fornecem-nos alguns exemplos flagrantes disso: por exemplo, o
trajeto de Frantz Fanon, da Martinica para a Argélia. É bem a imagem do rizoma, que
nos faz reconhecer que a identidade não está só na raiz, mas também na Relação. É
que o pensamento da errância é também pensamento do relativo, que é o substituído
mas também o relatado. O pensamento da errância é uma poética, que subentende que
a certo momento ela se diz. O dito da errância é o da Relação.

Contrariamente ao nomadismo em flecha (descoberta ou conquista),


contrariamente à situação de exílio, a errância comunica com a negação de todo o
polo ou de toda a metrópole, estejam eles ligados ou não à ação conquistadora de um
viajante. Não nos cansamos de repetir que o que este exportava em primeiro lugar era
a sua língua. Por isso as línguas do Ocidente eram consideradas veiculares e faziam as

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vezes de metrópoles. Por oposição, o dito da Relação é multilingue. Além das
imposições das potências económicas e das pressões culturais, ele opõe-se em direito
ao totalitarismo das intenções monolingues.

Poderá parecer, neste caso, que nos afastámos bastantes dos sofrimentos e das
preocupações daqueles que suportam a injustiça do mundo. A sua errância é, com
efeito, imóvel. Não viveram o luxo do desenraizamento, melancólico e extrovertido.
Não viajam. Mas para eles o saber da raiz passa agora a ser-lhes dado pela intuição da
Relação: é essa uma das constantes do nosso mundo. Viajar já não é o lugar de um
poder, mas o momento de um prazer, se bem que privilegiado. A obsessão ontológica
do conhecimento dá lugar à fruição de uma relação, de que o turismo é a forma
elementar e, a maior parte das vezes, caricatural. Os que ficam sobressaltam-se com
essa paixão do mundo, comum a todos. Acontece-lhes sofrer os tormentos do exílio
interior.

Não falo daqueles que, no seu próprio país, suportam a opressão de um Outro,
como é o caso dos negros da África do Sul. Porque neste caso a solução é visível, a
resolução determinada; só a força se lhe opõe. Falo desse exílio interior que atinge os
indivíduos, quando as soluções não são, ou não são ainda, no que toca às relações de
uma comunidade com o seu meio, por ela globalmente consentidas. Essas soluções,
esboçadas através de resoluções precárias, permanecem o apanágio de alguns, que
assim são marginalizados. O exílio interior é a viagem para fora dessa prisão. Introduz
de forma imóvel e exacerbada o pensamento da errância. A maior parte das vezes,
distrai-se em compensações parciais de prazer, em que o indivíduo se consome. O
exílio interior predispõe ao conforto das coisas, que não distrai da angústia.

Se o exílio pode pulverizar o sentido da identidade, o pensamento da errância, que


é pensamento do relativo, quase sempre o reforça. Não é certo, pelo menos aos olhos
de um observador, que a errância perseguida dos judeus tenha reforçado muito mais o
seu sentido identitário do que a sua fixação em terra palestina. Os exílios dos judeus
transformavam-se em vocação de errância, por referência a uma terra ideal, cujo
poder poderá ter sido delido pela terra concreta (o território) eleita e conquistada. Mas
isso trata-se tão só de conjeturas minhas. Porque se se pode comunicar no imaginário
da errância, as experiências dos exílios são incomunicáveis.

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O pensamento da errância não é nem apolítico nem antinómico de uma vontade de
identidade que no fundo mais não é do que a procura de uma liberdade num
determinado meio. Se ela contraria as intolerâncias territoriais, à predação da raiz
única (que hoje torna tão difíceis os processos identitários), é porque, na poética da
Relação, o errante, que já não é o viajante, nem o descobridor, nem o conquistador,
procura conhecer a totalidade do mundo e sabe já que nunca conseguirá fazê-lo – e
que é aí que reside a beleza ameaçada do mundo.

O errante recusa o estatuto universal, generalizante, que reduzia o mundo a uma


evidência transparente, atribuindo-lhe um sentido e uma finalidade pressupostos.
Mergulha nas opacidades da parte do mundo a que acede. A generalização é
totalitária: elege, do mundo, um painel de ideias ou de factos que destaca e que tenta
impor, fazendo viajar os modelos. O pensamento da errância concebe a totalidade,
mas renuncia de bom grado à pretensão de a comandar ou de a possuir.

Os livros fundadores ensinam que a dimensão do sagrado nunca é mais do que o


aprofundamento do mistério da raiz, matizado pelas variantes da errância. Na verdade,
o pensamento da errância é postulação do sagrado que nunca se revela e que nunca se
apaga. Lembremo-nos que Platão, que conhecia o poder do Mito, desejara banir os
poetas, impositores do obscuro, para longe da República. Desconfiara da palavra
abissal. Não a encontraremos nós nos meandros imprevisíveis da Relação? Nada
obriga a pensar que as humanidades não conseguirão transmutar, nessa pensamento
da errância, as opacidades anteriormente enraizadoras do Mito e as claridades
desmultiplicadas da filosofia política, conciliando Homero e Platão, Hegel e o griot
africano.

Mas para isso haveria que adivinhar-se, vindas de outras partes do mundo, e
agindo ainda subterraneamente, outras suculências da Relação não poderão rasgar de
súbito outras vias, contribuindo em breve para corrigir as exclusões etnocêntricas e
simplificadoras que uma tal perspetiva terá podido suscitar.

Quanto ao domínio da literatura, duas criações contemporâneas fazem, quanto a


mim, o jogo da errância e da Relação, sem que seja necessário que eu as isole num
Panteão que elas recusariam.

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A obra de certo modo teológica de William Faulkner. Tratar-se-ia aí de escavar as
raízes de um lugar evidente, o sul dos Estados Unidos. Mas a raiz adquire a aparência
de um rizoma, as certezas não estão fundadas a relação é trágica. A disputa acerca da
fonte, o enigma sagrado, mas agora inexprimível, do enraizamento, fazem desse
universo de Faulkner um dos momentos palpitantes da moderna poética da Relação.
Em tempos, lamentei que um tal universo não se tivesse expandido mais: nas Caraíbas,
na América Latina. Mas essa reação provinha, porventura, do despeito inconsciente
de quem se sentira excluído.

A obra errática de Saint-John Perse em busca daquilo que se move, daquilo que
tende ao absoluto12. Obra que convida à totalidade – até à exaltação irredutível de um
universal que se esgota, de tanto ser dito.

                                                                                                               
1
A administração do ArtAfrica agradece à Sextante Editora a autorização para a publicação em linha
de “A barca aberta" e "A errância, o exílio" de Édouard Glissant. In Poética da Relação. Sextante
Editora, 2011, 17-30. Tradução de Manuel Mendonça.
2
O Tráfico passa pela porta estreita do barco negreiro, cuja esteira imita a reptação da caravana no
deserto. A sua figura seria a seguinte: . A leste, os países africanos, a oeste as terras
americanas. Esse animal tem o aspeto de uma fibrila.
As línguas africanas desterritorializam-se, para contribuir para a crioulização no Ocidente. É o choque
mais totalmente conhecido entre os poderes do escrito e os impulsos da oralidade. No barco negreiro, o
único escrito é o livro de contabilidade que diz respeito ao valor de troca dos escravos. No espaço do
barco, o grito dos deportados é abafado, como o será no universo das Plantações. Este choque ecoa até
nós.
3
O poeta Monchoachi organizou na cidade de Le Marin, no sul da Martinica, uma série de
conferências sobre este tema da errância. Creio que fui um dos primeiros contactados para o abordar
neste contexto. As Caraíbas são terra de enraizamento e de errância. Os exílios antilhenses
testemunham-no.
4
Kant, na Crítica da razão pura, apresenta deste modo o que diz sobre a Relação:

A unidade incondicionada
da RELAÇÃO
isto é
ela mesma, não enquanto inerente
mas enquanto
SUBSISTENTE
(Pléiade, vol. I, p. 1468)

Quer esta relação contribua para a unidade sistemática dos fins (princípio moral) ou para a unidade dos
conhecimentos (princípio arquitetónico), podemos reconhecer-lhe aqui duas qualidades: antes de mais,
que ela é o elo que garante a permanência do pensamento do indivíduo; em seguida, que ela faz parte
da substância. Esta diferença que Kant parece estabelecer entre substância e subsistência é preciosa.
Seja como for, a ideia de Relação não intervém nele enquanto abertura para a pluralidade, na medida
em que ela seria totalidade. Para Kant, a pluralidade tem lugar no tempo, não no espaço. No espaço há
existência, que parece não se diferenciar em si mesma.
5
Não nos deteremos aqui na ideia de que esta devastação tenha podido desencadear, em relação ao
declínio do Império Romano, por exemplo, um retorno positivo da história e engendrar um negativo
fecundante. Subentende-se geralmente que o nomadismo em flecha dá origem a novas eras, enquanto o

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nomadismo circular permaneceria endógeno e sem devir. Trata-se, pura e simplesmente, de legitimar o
ato da conquista.
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O Diálogo platónico substitui a função do Mito. Este funda a legitimidade da sua posse de um
território, apoiando-se quase sempre nos rigores não interrompidos de uma filiação. O Diálogo funda a
justiça da Cidade sobre a revelação de uma razão que organiza as sucessões rigorosas da ordem política.
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Através da noção ocidental de civilização, resume-se o adquirido de uma sociedade, para o projetar,
de imediato, num devir que é também e quase sempre uma expansão. Quando se diz civilização, torna-
se implícita a própria vontade de civilizar. Esta ideia está ligada à paixão de a impor ao Outro.
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Hegel mostra, no Livro III da Estética, como as obras fundadoras de comunidades surgem, de modo
espontâneo, no momento em que a consciência ingénua se assegura da sua legitimidade – sejamos
claros: do seu direito à posse de um território. Nesse sentido, o pensamento épico está muito próximo
do mito.
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A superação necessária do mítico ou do épico foi dada na razão política que organiza a Cidade. A
palavra épica é obscura e abissal; trata-se de uma das condições da ingenuidade. A razão política é
evidente. Superar pode ser a contradição.
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Isto é, essencialmente pela língua, como já dissemos.
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A ideia de civilização manterá juntos estes contrários: o universal generalizante será o princípio da
sua ação no mundo, que se realizará os conflitos de interesse numa concepção finalista da História.
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A tensão poética para a totalidade em nada recusa as minúcias daqueles que se empenham num
determinado lugar. Não há contradição na matéria, e Saint-John Perse não ofusca Faulkner. É, antes,
possível que o demasiado-dito do universal, em que Saint-John Perse tanto se arriscou, se disperse
diante da Relação, sem a tocar verdadeiramente. O discurso generalizante nem sempre acompanha o
grito dos povos nem dos países que se nomeiam.
Aliás o espírito universalizante apoia-se de bom grado na tendência para negar histórias e tempos
particulares – periféricos – (Borges ou Saint-John Perse), e a aspiração a esse universal tende a negar
espaços e devires singulares (V.S. Naipaul).
Através de uma tensão da mesma natureza, muitos intelectuais do nosso país, em vez de arriscarem em
obras as suas próprias imperfeições fecundas, deleitam-se com as perfeições realizadas, e
tranquilizadoras, do Outro. Chamam-lhes universal. Sentem nisso um amargo e legítimo prazer, que os
autoriza a elevarem-se acima daquilo que poderiam ter podido partilhar em redor. O seu afastamento
em relação a uma linha de medida comum leva-os assim, tão calmamente, a ajuizar sobre aquilo que
balbucia em sua volta. Mas essa serenidade é crispada.

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