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Universidade de São Paulo

Biblioteca Digital da Produção Intelectual - BDPI

Departamento Sociologia - FFLCH/FLS Artigos e Materiais de Revistas Científicas - FFLCH/FLS

2009

Sociologia pública: engajamento e crítica


social em debate

Caderno CRH, v.22, n.56, p.223-232, 2009


http://producao.usp.br/handle/BDPI/6955

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Ruy Braga, Marco Aurélio Santana

SOCIOLOGIA PÚBLICA:

DOSSIÊ
engajamento e crítica social em debate

INTRODUÇÃO

Ruy Braga*
Marco Aurélio Santana**

Em agosto de 2004, Michael Burawoy, co- com as demais realidades nacionais.1 De acordo com
nhecido sociólogo e etnógrafo marxista do trabalho, Burawoy, a sociologia encontrar-se-ia contempora-
foi eleito presidente da Associação Sociológica neamente melhor preparada para retraduzir, de
Americana (ASA). Como ocorre rotineiramente com maneira sistemática, seu próprio saber disciplinar,
os presidentes recém-eleitos, ele contava com um no sentido de devolver o conhecimento científico a
ano para preparar sua conferência presidencial, pois, suas fontes inspiradoras, tornando públicas as ques-
nessa associação, a eleição dista em doze meses da tões referentes a problemas privados, “... regene-
posse nas funções. Tendo já desenvolvido uma re- rando a fibra moral da sociologia”.

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flexão a respeito da sociologia contemporânea – so- O diagnóstico elaborado por Burawoy parte
bre os diversos tipos contemporâneos de sociologia de uma constatação muito próxima daquela presente
e de sociólogos, trabalhando dentro e fora das uni- também em Bourdieu, ou seja, a de que o aumento
versidades –, ele decidiu consagrar sua conferência de interesse por uma sociologia pública deriva, em
a esse tema: a “sociologia pública”. parte, da reação ao “avanço generalizado da
O resultado de um ano de debate com dife- privatização”. Por sociologia pública, Burawoy (2005)
rentes públicos foi um estudo aprofundado acerca compreende genericamente um “estilo” de se fazer
das múltiplas práticas sociológicas contemporâne- sociologia “engajada” e que não confunde a indis-
as – pensadas, naturalmente, a partir do exemplo pensável busca da objetividade científica – com to-
estadunidense –, mas buscando sempre dialogar das as exigências éticas e compromissos valorativos
* Doutor em Ciências Sociais. Professor do Programa de Pós- inerentes a essa busca – com a adoção ostensiva de
Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 1063 - Cidade uma neutralidade moral ou mesmo política.
Universitária. Cep: 05508-010. São Paulo - Brasil. Ao contrário, trata-se de um estilo de se fa-
ruy.braga@uol.com.br
** Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós- zer sociologia que procura iluminar os elos exis-
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universida- 1
de Federal do Rio de Janeiro. Seguindo a tradição da Associação Sociológica America-
Largo de S. Francisco, 1 - Sala 420. Centro. Cep: 20051- na, o texto da conferência presidencial foi publicado na
070 – Rio de Janeiro -RJ. msantana@ifcs.ufrj.br American Sociological Review (2005).

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tentes entre os problemas privados e os desafios de mútua educação entre o sociólogo e o público.
públicos a partir da centralidade axiológica dos A sociologia pública orgânica se constitui
conhecimentos dos subalternos. Trata-se, antes de na relação dialógica entre o sociólogo e o público,
tudo, de um “estilo”, na medida em que supõe na qual cada parte apresenta sua agenda e trata de
uma maneira de escrever e de se comunicar com ajustá-la à agenda do outro. Na base desse estilo
diferentes públicos, além de supor, também, uma de se fazer sociologia, vamos encontrar, natural-
modalidade determinada de engajamento intelec- mente, um interesse de caráter “reflexivo” de que
tual. Em seu discurso presidencial, Burawoy ofe- esse diálogo seja ampliado no interior da comuni-
receu alguns indícios dessa suposta elevação do dade acadêmica e aborde os fundamentos de seus
interesse pela sociologia pública. programas de pesquisas.
Segundo ele, a sociologia política dos Esta- Afinal, “sociologia para quem?” e “socio-
dos Unidos, por exemplo, teria passado, nas últi- logia para quê?” Parece-nos que essas questões
mas duas décadas, do estudo das virtudes da de- bourdieusianas são realmente significativas para
mocracia representativa para o estudo das relações qualquer modalidade de sociologia reflexiva, seja
do Estado com as classes sociais (enfatizando a ela “crítica” ou “pública”. Em concordância – e
necessidade do aprofundamento da participação de forma complementar – com essa preocupação
democrática). Além disso, a sociologia do trabalho reflexiva de fundo, a sociologia pública orgânica
teria transitado definitivamente da análise dos pro- se interessa pela imagem pública da sociologia, o
cessos de adaptação ao estudo da dominação so- que supõe a apresentação dos resultados científi-
bre os trabalhadores. Finalmente, mesmo a teoria cos de forma acessível, o cuidado com o ensino
sociológica teria privilegiado uma visão “radical” básico da sociologia e a redação de material didá-
de Weber e Durkheim, somada à revalorização do tico. Dessa forma, a sociologia pública orgânica
pensamento do próprio Marx. busca garantir um diálogo entre os sociólogos e seus
Burawoy advoga que, contra a privatização públicos, capaz de superar a usual falta de conexão
e a degradação do mundo social, a sociologia pú- entre o habitus sociológico2 e a estrutura global do
blica deveria se transformar em um meio de campo disciplinar, responsáveis, em grande medi-
revitalização da própria ideia de “público”, tão vi- da, pelos excessos “compartimentalizantes” a que
lipendiada pela tempestade provocada pela ofen- frequentemente submetem o saber disciplinar.
siva neoliberal (2005, p. 7). Além da premissa É bem verdade que existe o risco “ideológi-
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“conjuntural” invocada em favor da radicalização co”, isto é, o risco de o saber disciplinar ser
política do saber disciplinar sociológico, Burawoy instrumentalizado por forças políticas exteriores
acrescentou uma problematização a respeito da ao campo e cujos interesses predominantes se apre-
natureza dos “compromissos axiológicos” ineren- sentem como refratários ao ethos científico e ao
tes aos diferentes tipos de sociologia pública: a compromisso com os resultados das diferentes
“tradicional” e a “orgânica”. pesquisas.3 Contudo, o reconhecimento da exis-
Com a sociologia pública tradicional, os gru- tência desse tipo de risco não deve servir de des-
pos de pessoas visadas normalmente são “invisíveis”, culpa para obliterar a questão fundamental
na medida em que não produzem muita interação 2
Um instigante exemplo apresentado por Burawoy a pro-
interna, além de “passivos”, por não constituírem pósito da conexão entre o habitus sociológico e a estru-
tura do campo é o do sociólogo negro, professor da Uni-
um movimento ou organização. “Existe, contudo, versidade de Atlanta e ativista dos direitos civis – autor
de Black reconstruction (1934), entre outros clássicos
outro tipo de sociologia pública – a sociologia públi- da sociologia estadunidense – W. E. B Du Bois: “Suas
ca orgânica – na qual o sociólogo trabalha em estreita [de Du Bois] incessantes campanhas em favor da justiça
racial foram o topo da sociologia pública, ainda que, na-
conexão com um público visível, denso, ativo, local turalmente, seu objetivo último fosse sempre a trans-
formação da política.” (2005, p. 14).
e, via de regra, na contracorrente” (2005, p. 7). A 3
Na realidade, as disciplinas são campos de poder nos
sociologia pública “orgânica” suporia um processo quais a interdependência recíproca frequentemente con-

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endereçada ao próprio campo disciplinar pela so- conjuntamente com uma equipe multidisciplinar para
ciologia pública: é realmente viável – ou sustentá- enquadrar e estabelecer as aproximações às questões”
vel, para não dizer desejável – uma sociologia ci- (Burawoy, 2005, p. 24). Como é possível perceber,
entífica livre de qualquer compromisso público? estamos no terreno do sociólogo como um “compa-
Essa questão, na verdade, remete a outra, tam- nheiro”, conforme a expressão empregada por Alvin
bém proposta por Burawoy: afinal, o que poderia Goldner (1968) em seu conhecido ensaio.
ser a sociologia se não um compromisso com diver- Se por sociedade civil entendermos, a exem-
sos públicos sobre diferentes questões públicas? plo de Burawoy, um campo de lutas onde as for-
Implícito nessa segunda questão está o problema ças sociais do trabalho – partidos políticos operá-
que diferencia, em última instância, a sociologia rios ou radicais, sindicatos de trabalhadores, ins-
pública tradicional da sociologia pública orgânica: tituições educacionais, organizações ecologistas e
a centralidade axiológica – e, consequentemente, a feministas, comunidades religiosas, imprensa po-
capacidade explicativa – dos conhecimentos dos pular e uma ampla variedade de organizações de
subalternos. Conforme o registro dessa centralidade voluntários – enfrentam e resistem às investidas
é que podemos compreender integralmente a in- das forças sociais do capital, concluiremos que a
terpretação de Burawoy segundo a qual o sociologia pública busca estudar o Estado e a eco-
etnossociólogo é – ou deve ser – uma espécie de nomia do ponto de vista das classes “oprimidas e
intelectual orgânico da humanidade cuja tarefa mais combatentes”. Em resumo, o ponto de vista da
importante consiste em lutar contra a fetichização sociologia é o ponto de vista do conflito: “Nos tem-
da existência humana. pos da tirania do mercado e do despotismo de
Para tanto, a sociologia pública procura fa- Estado, a sociologia – e, particularmente, sua faceta
zer visível o invisível, tornar público o privado. pública – defende o interesse da humanidade”
Em suma: desfetichizar as relações sociais seguin- (Burawoy, 2005, p. 24).
do a trilha aberta por Gramsci (1999), quando de- Como já aludido, entendemos que a
finiu a função primacial do intelectual orgânico: virtuosidade da sociologia pública localiza-se em sua
“elaborar e tornar coerentes os problemas coloca- sensibilidade política e axiológica. Ou seja, na “co-
dos pelas massas”. Da mesma forma, o desenvol- nexão” da sociologia com a sociedade civil. Parte do
vimento do conhecimento público frequentemen- diagnóstico que inspira o apelo por uma sociologia
te se produz por meio de uma “colaboração pública orgânica radica exatamente na ideia de que,

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multidisciplinar”, como, por exemplo, o caso da durante os últimos trinta anos, os interesses das
“investigação participativa”, que coloca em comu- classes subalternas foram sendo progressivamente
nicação as comunidades acadêmicas de discipli- aviltados pelo neoliberalismo. Ainda hoje, a oposi-
nas complementares. ção a essas forças tem sua origem na sociedade ci-
A sociologia pública orgânica supõe esse tipo vil, tanto local quanto nacional e internacional.
de vínculo com os diferentes públicos criados, as- Contudo, vale a pergunta: é possível tornar
sociados, suportados ou estimulados por ela: um coincidentes os pontos de vista da sociologia e das
liame essencialmente solidário estabelecido sobre o classes oprimidas e combatentes? Quer por seu ra-
terreno da centralidade axiológica do conhecimen- dicalismo crítico, quer por sua posição institucional
to dos subalternos: “Uma comunidade define uma (afinal, tratava-se da antiga presidência da ASA),
questão – moradia, poluição ambiental, doenças, tal proposta produziu naturalmente um vivo de-
salário mínimo, escolarização... – e então trabalha bate na comunidade sociológica estadunidense. Do
lado das críticas a Burawoy, é possível dizer que
verte-se em relação assimétrica e antagônica. Em
consequência, o “risco” – menos alardeado, mas muitís- muitos consideraram a proximidade da sociologia
simo mais presente – que o campo disciplinar corre é o pública com o marxismo uma fonte de problemas,
da dominação do conhecimento instrumental sobre o
conhecimento reflexivo. na medida em que serviria para enraizar ainda mais

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as divisões existentes no interior do campo disci- sociologia pública entre nós.


plinar. Por outro lado, muitos reprovaram a socio- Abrindo o dossiê, o artigo de Michael
logia pública argumentando que a sociedade civil Burawoy, baseado no discurso por ele dirigido à
não é a única arena, e a justiça social não é a única Sociedade Japonesa de Sociologia, na Universida-
ferramenta para “defender a humanidade” (Boyns; de de Tohoku, recoloca as formulações centrais do
Fletcher, 2005; Turner, 2005; Brint, 2005).4 que seria a sociologia pública a partir do cenário
Outros, ainda, verificaram problemas e aberto com a profunda crise por que passa o siste-
ambiguidades relacionados à operacionalização da ma capitalista. Mesmo ciente das diferentes tradi-
proposta no que concerne às pesquisas sociológi- ções nacionais e da desigualdade internacional, e
cas (McLaughlin, Kowalchuk e Turcotte, 2005). apesar delas, Burawoy acredita que, como soció-
Ulrich Beck (2005), por exemplo, considerou sim- logos, compartilharíamos “uma ambição e uma
plesmente que o mainstream sociológico não se missão comum”, que seria o combate ao paradigma
encontra realmente preparado para esse tipo de “aven- baseado no fundamentalismo do mercado, que atu-
tura” militante e que, antes de garantir uma voz almente demonstraria “gravíssimos sinais de crise
pública para a sociologia, devemos reinventá-la para e de exaustão”.
o século XXI. No entanto, a mais áspera das críticas Ao mesmo tempo em que considera a elei-
recebidas por Burawoy foi desferida por Mathieu ção de Barack Obama um “evento histórico”, avalia
Deflem (2005), que considera que a sociologia pú- o contexto de piora da crise em que ela se dá, assi-
blica não é “nem sociologia, nem pública”: ela se- nalando uma possível mudança na posição ameri-
ria, para Deflem, epistemologicamente inconsisten- cana contra o fundamentalismo de mercado. Con-
te, estaria confinada a determinadas áreas de pes- tudo, chama atenção para o fato de que a démarche
quisa, seria, portanto, sectária, além de utópica... dessa mudança é um tanto contraditória e não se
Em suma, seria uma espécie de ideologia marxista pode dizer ainda a “coloração ideológica” que assu-
disfarçada de ciência social.5 mirá e seu alcance, bem como “sua conexão com os
O dossiê que o leitor tem em mãos pretende movimentos sociais subalternos e se suas respostas
apresentar, de uma maneira plural, essa proposta permanecerão confinadas ao âmbito nacional ou se
para o público brasileiro e, ao mesmo tempo, cola- elas também deverão ser globais”.
borar com o desenvolvimento do debate acerca da De todo modo, partindo da proposta da so-
ciologia pública, Burawoy afirma que, indepen-
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Evidentemente, revalorizar as forças sociais presentes
na sociedade civil não implica fetichizar os interesses dentemente das direções assumidas pelo governo
subalternos. Na realidade, também o campo da socieda-
de civil encontra-se fraturado por segregações, domina- Obama, os sociólogos deveriam “canalizar as rea-
ções e explorações de várias ordens. Contudo, concorda-
mos com Burawoy quando afirma que, “na conjuntura ções em direção à criação de uma sociedade civil
atual, [a sociedade civil] ainda é o melhor terreno possí- mais fortalecida e democrática; e de uma esfera
vel para a defesa da humanidade”. Não o “único”, mas o
“melhor”. Assim, a questão estratégica a ser respondida pública mais robusta e inclusiva”. Isso seria fun-
pela sociologia diante do processo de privatização do
mundo social é exatamente esta: seremos capazes de damental não só porque se trataria de uma pro-
assumir um compromisso – inspirado por um século de
extensa investigação, de elaboração teórica, de investiga- posta “mais progressista”, mas, sobretudo, porque
ções práticas e de pensamento crítico – com os movi- a sociologia retira sua vitalidade exatamente da
mentos sociais que vá além dos limites acadêmicos tra-
dicionais? sociedade civil. Assim, segundo Burawoy, “nes-
5
Uma parte substantiva das críticas à sociologia pública
deriva, como é possível notar, da sua relação com o mar- tes tempos de indefinição e de insegurança”, a
xismo. Sejamos claros: Burawoy é um reconhecido so- sociologia pública, tem “tanto a oportunidade como
ciólogo marxista. Contudo, sua proposta, a nosso ver,
não consiste em diluir a cientificidade sociológica no a obrigação de defender os fundamentos que sus-
marxismo, ou vice-versa. Trata-se, na realidade, antes de
mais nada, de definir um espaço para um saber crítico e tentam a sociologia e, por consequência, o interes-
reflexivo, engajado com públicos extra-acadêmicos e ca-
paz de tornar públicas questões sociais relevantes. Não se comum e universal”.
existe um vínculo necessário da sociologia pública com Mas, para tanto, os sociólogos precisam sair
o marxismo – apesar de ele, evidentemente, reconhecer-
se, em certa medida, naquela. das “conchas dentro das quais se abrigaram en-

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quanto a euforia do mercado rugia ao seu redor”. logia crítica são duas orientações que se comple-
Faz parte de sua tarefa de sociólogos “lutar por um tam”, podendo ser também consideradas como
contra-ataque centrado na sociedade civil, e não “subprodutos da sociologia pública”. Finalmente,
por uma reação que instale um governo despótico teríamos uma nova sociologia profissional que “apa-
ou apele para uma reforma utópica do mercado”. rece como o estudo de instituições que não estão
O segundo artigo, escrito por Alain Touraine, mais dedicadas às necessidades dos sistemas so-
parte da aceitação das principais orientações de ciais, mas sim à proteção dos indivíduos e grupos
Burawoy quanto à sociologia pública e a sua rela- contra as forças sociais dominantes”.
ção com outros estilos do fazer sociológico, princi- Em seu entendimento, a sociologia pública
palmente no que diz respeito ao posicionamento não pode se reduzir “à simples difusão das pes-
de que “é chegado o momento de superarmos a quisas profissionais”. Na medida em que nos diri-
contradição insustentável entre a sociologia pro- gimos “a qualquer espécie de público”, isso signi-
fissional e a sociologia crítica”, as quais, isolada- ficaria, antes de tudo, “falar sobre ‘direitos’ de uma
mente são “igualmente irrelevantes para nossas forma que corresponda às capacidades e expectati-
expectativas”. vas destes públicos”. Mas, por outro lado, isso
Mas essa aceitação se dá a partir do que ele não significaria dizer que deveríamos “formular
chama “de uma perspectiva privilegiada”. Isto é, uma ideologia que seja congênita aos interesses e
como “um forasteiro que elabora seus próprios valores dos públicos”.
conceitos, ao aproveitar elementos provenientes da Na verdade, sendo a sociologia o estudo do
vida intelectual europeia, estadunidense e latino- “comportamento normativamente orientado”, o que
americana”. Por tal via, formula um programa dis- ela faria seria explicitar “a presença, numa dada
tinto, à medida que, ao invés “de considerar a re- situação e para determinada categoria de indivídu-
lação de oposição ou o relacionamento de os, de uma disputa em torno de direitos”. O grau
complementaridade entre a sociologia pública e a de autonomia dos atores sociais, “em face das es-
sociologia profissional, como diferentes modalida- truturas políticas” e “em face de sua nova atribui-
des de conhecimento”, ele tem como proposição o ção defensiva”, definiria aquela que seria “a im-
foco “nas diferenças teóricas que existem entre as portância relativa de cada uma das quatro orienta-
principais orientações da pesquisa sociológica, mas ções da sociologia”. Esse nível de autonomia dos
considerando que tais ideias são afetadas por dife- atores sociais variará dependendo das diferentes

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renças nas situações históricas e culturais sob as situações históricas e geográficas. Nesse sentido,
quais vivemos”. “nós não podemos fechar as fronteiras” entre elas
O ponto de partida de Touraine é o de que a que nos fornecerão exemplos da variação para mais
sociologia clássica está em declínio. Ela tem se ou para menos nessa autonomia.
“apresentado como sociologia profissional, mas Touraine traça as linhas de desenvolvimen-
sem o direito de fazê-lo, pois a relevância conferida to distinto seguidas pelos “quatro tipos principais
ao critério profissional precisaria ser dada a todas de orientação” da sociologia, quando pensamos em
as outras orientações da sociologia”. A sociologia sua trajetória nos EUA, na Europa ou na América
pública ocuparia o lugar central exatamente por- Latina. Nesse sentido, concordando com Burawoy,
que “ela é a busca por atores”. Sua centralidade Touraine assinala que “... a diferenciação interna
residiria em nossa desconfiança em relação aos da sociologia precisa ser combinada com sua
“filósofos da história ou doutrinas políticas” e em integração ou, pelo menos, com a influência recí-
nossa “necessidade de identificar os principais proca de suas principais orientações”. Seria a com-
“problemas sociais do nosso tempo”. binação entre a sociologia pública e a sociologia
No caso dos dois outros “tipos de orienta- profissional, das pesquisas empíricas com análi-
ção”, a “sociologia para políticas públicas e a socio- ses mais teóricas, que nos possibilitaria não só a

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identificação dos “principais ’problemas sociais’ elas já o sabem”. Elas “não precisam dos sociólogos
do nosso tempo”, mas, sobretudo, explicitar “as de vanguarda para engajá-las em torno de um mo-
condições de programas de reforma política e mo- vimento de organização. Elas, geralmente, já têm
ralmente eficazes”. habilidade para tanto”. O que esses públicos preci-
No terceiro artigo do dossiê, Jonathan Turner sariam é do “conhecimento – imparcial e preciso –
assume posição franca e abertamente crítica à pro- sobre o mundo social que pode ser utilizado pelos
posta de Burawoy por uma sociologia pública. públicos, clientes, formuladores de políticas ou
Segundo ele, “...existem perigos reais em perse- quem tiver um problema de organização social”.
guir agressivamente a presença pública da sociolo- Mas Turner diagnostica o que seria a exis-
gia”. Isso porque, tomando a distinção de Burawoy tência de “uma grande lacuna entre a teoria e a
entre as quatro sociologias, Turner não acha que pesquisa”, sendo “difícil para a sociologia ter mui-
elas possam “ser facilmente harmonizadas”. Para to que dizer em relação a questões importantes”. A
ele, “a sociologia pública [...] não soluciona os solução desse problema viria quando os “seus te-
pontos de fratura da disciplina; somente os ressal- óricos desenvolvam teorias e seus pesquisadores
ta”. Além do mais, privilegiaria “duas das quatro as testem, de modo que a disciplina consiga acu-
sociologias, rejeitando as outras duas: a ciência e a mular mais conhecimento. Sem conhecimento, o
prática”. Nesse sentido, na perspectiva de Turner, que vamos dizer aos nossos ’públicos’?”
seríamos “conduzidos por Burawoy na direção Apesar de se dizer solidário “com uma so-
errada”. Por seu turno, Turner recomenda “justa- ciologia levada a sério”, Turner se diz não “con-
mente a direção oposta, privilegiando a ciência e a vencido de que uma sociologia, carregada ideolo-
prática como uma melhor direção para a sociolo- gicamente, consiga fortalecer-nos e, mais impor-
gia, agora e no futuro”. De outra maneira, como tante, conceder-nos um lugar à mesa do poder, onde
com Burawoy, apenas faríamos a sociologia per- estão sendo tomadas as decisões mais importan-
der relevância. tes que afetam o bem estar das pessoas”. Para
Em sua visão, “... se os sociólogos expõem Turner, ele ficaria mais esperançoso, “se a ciência
suas políticas aos públicos, em muitas sociedades conseguisse realmente disciplinar esse discurso”.
eles possivelmente prestarão ainda menos atenção Mas ele vê “poucas possibilidades de a sociologia
aos sociólogos do que atualmente o fazem”. Nesses pública ser disciplinada” pela ciência.
termos, Turner defende a ideia de que para “que a Turner assinala que o “melhor caminho para
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sociologia exerça influência duradoura nas políti- que os sociólogos atraiam os públicos e os
cas públicas e nas decisões tomadas pelos que de- formuladores de políticas é como engenheiros,
têm o poder, precisamos engajar públicos como ci- embora usando um outro rótulo”. Isso significaria
entistas, com explicações que sejam úteis”. Já a pro- dizer que “começamos a criar princípios gerais,
posta da sociologia pública, que, para Turner, nada reduzidos à expressão mais simples em métodos
mais seria do que “engajar plateias como ‘cruzadas empíricos, para os problemas dos clientes”. As-
morais’”, tenderia “a reduzir ainda mais a influên- sim, a ideia seria “tornar a prática sociológica mais
cia já bastante limitada que os sociólogos exercem eficiente rumo a uma mentalidade mais de enge-
em debates e decisões importantes”. nharia”. Para tanto, “a sociologia precisa treinar
Em seu entendimento, a “... sociologia pú- novamente seus praticantes para que sejam mais
blica significa que os sociólogos devem tomar par- teóricos; e os teóricos precisam afirmar as teorias
te dos movimentos sociais – na realidade, a ’van- de maneira formal, para que fique claro o que a
guarda’ desses públicos, a partir da segurança dos teoria postula”. Nesse sentido, os “teóricos preci-
nossos gabinetes na academia”. Contraditando tal sam começar a montar o corpus de conhecimento
proposta, ele avalia que não “é preciso que os soci- sobre os processos sociais de modo que possam
ólogos digam às pessoas que elas têm problemas; ser usados pelos praticantes” da sociologia.

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Ruy Braga, Marco Aurélio Santana

Abrindo a participação brasileira desse sociólogos com os movimentos sociais, mas sim
dossiê, Simon Schwartzman problematiza a vi- na relação desses com uma pauta pública de inter-
são de Burawoy a respeito do vínculo orgânico venções estruturadas por meio da autonomia do
da sociologia pública com os movimentos sociais, campo acadêmico.
alegando que a liberdade de reflexão e o rigor das Em seu artigo, Leonardo Mello e Silva assi-
pesquisas científicas que a academia é capaz de ga- nala a importância atribuída ao ator pela sociologia
rantir são os verdadeiros pilares da ação dos soció- pública, partindo daí para explorar suas implica-
logos nos vários campos de intervenção da sociolo- ções “... para a pesquisa ordinária em sociologia”,
gia. Assim, o espaço privilegiado da ação sociológi- sempre as voltas com o dilema entre agência e es-
ca crítica e reflexiva não seria tanto a arena pública trutura, só para ficar em uma das polaridades das
tradicional ou orgânica, mas o universo acadêmico: muitas que se desenvolveram ao redor do mesmo
“Diferente de Burawoy, acredito que é no mundo tipo de debate. Nesse sentido, recuperando esse
acadêmico, da liberdade de pesquisa e do rigor ci- dilema por meio da sociologia pública, o autor tra-
entífico, que deveria estar a âncora que desse ao balha a “dimensão moral da disciplina, assim como
sociólogo a liberdade de trabalhar com autonomia e alguns paradoxos que ela acaba acarretando”.
independência intelectual nos outros setores”. Mello e Silva percebe a sociologia da ação
No intuito de aprofundar o debate acerca desenvolvida por Alain Touraine como “o princi-
dos modos de trabalho e do objeto da sociologia, pal contraponto” da sociologia pública. Dessa for-
Schwartzman apresenta um quadro geral do pro- ma, ele indica a existência de “muitos pontos em
cesso de institucionalização da sociologia brasilei- comum entre as duas abordagens”. Contudo, não
ra, destacando o papel desempenhado por algumas deixa de perceber também pontos divergentes.
entidades profissionais, especialmente o Sindicato Esses seriam relacionados “mais à concepção da
dos Sociólogos do Estado de São Paulo (Sinsesp). sociologia diante dos problemas do civismo e da
Ao descrever em traços gerais o atual estado dos política, de maneira ampla” e menos aos procedi-
programas de pós-graduação em sociologia no país mentos metodológicos. O autor visa a articular a
e reconhecer o potencial contido na recém-conquis- discussão sobre as “vicissitudes de uma sociolo-
tada obrigatoriedade do ensino de sociologia nas gia da ação” (e suas implicações públicas) com “o
escolas secundárias, Schwartzman aponta na reali- civismo e a política”.
dade para a ampliação da importância da sociologia Apesar da indicação de que as formas de

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brasileira no debate público. Contudo, isso carrega- intervenção propostas pela sociologia da ação de
ria também consigo o risco da subordinação da dis- Touraine “ecoam as divisões do fazer sociológico
ciplina aos interesses das organizações não-gover- presentes no esquema de Burawoy”, Mello e Silva
namentais da sociedade civil e do trabalho na ad- chama nossa atenção para os dois momentos his-
ministração pública, setores privilegiados da ação tóricos distintos das duas formulações. Touraine
dos sociólogos brasileiros, conforme o autor. escreveria em um período de ascensão dos movi-
É nesse sentido que o principal desafio per- mentos sociais nos países do centro e da periferia,
cebido por Schwartzman para os sociólogos do em que se apostava neles “como contratendência
país seria esse: “(...) estar atento e sintonizado com ao controle social e à socialização normalizadora
esta agenda pública e, ao mesmo tempo, consoli- oriunda de agências repressivas, formativas ou
dar uma sociologia que mantenha sua indepen- integradoras (Estado ou Empresa)”. Já Burawoy,
dência e sua relevância, tanto em relação aos ritu- formula sua teoria em um período distanciado trin-
ais acadêmicos quanto em relação às organizações ta anos no tempo. “Não é o contexto do Welfare
e movimentos sociais com os quais dialoga ou dos State, nem muito menos das ‘energias utópicas’,
quais participa”. Assim, o futuro da sociologia bra- mas, ao contrário, do neoliberalismo e da fragmen-
sileira não estaria localizado tanto na relação dos tação de ‘públicos’ esgarçados, ao invés de um es-

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SOCIOLOGIA PÚBLICA: engajamento e crítica social em debate

paço público ou de uma sociedade civil que apon- O artigo de Marco Aurélio Santana e Ruy
ta para o Estado ou a política”. Braga, analisando “a relação estabelecida entre a soci-
Assim, Mello e Silva assinala que “... a in- ologia do trabalho e o sindicalismo no Brasil”, a par-
tervenção sociológica foi concebida para o estudo tir de três momentos diferentes, e tendo como pano
dos movimentos sociais, e esses também têm uma de fundo as sucessivas conjunturas políticas e eco-
história e um contexto: a partir do final dos anos nômicas, parte de hipótese de que “a sociologia do
1960, na Europa; a partir do final dos anos 1970, trabalho no Brasil foi marcada, em seus primórdios,
no Brasil. Hoje, o cenário é bem diferente de quan- pela busca de afirmação e profissionalização”; “pos-
do os movimentos sociais emergiram”. Isso torna- teriormente, desenvolveu um forte engajamento
ria “difícil conceber como movimentos sociais pos- político-social, assumindo um caráter público e
sam emergir desse terreno menos e menos coleti- servindo para conformar certas identidades soci-
vo”. Por outro lado, como ele mesmo percebe “longe ais”; e, “por fim, teria derivado para uma sociolo-
está uma pacificação dos conflitos e uma ausência gia para as políticas públicas”.
de sofrimento e de experiência de exploração e Para os autores, no “decorrer do período de
opressão, produzidas socialmente”. profissionalização das ciências sociais no Brasil,
Em um quadro como esse, a “intervenção [...] as visões totalizantes de nossa realidade social
sociológica, pensada para atuar junto aos elemen- foram, até certo ponto, secundarizadas pelos estu-
tos mais salientes dos movimentos sociais, fica, no dos que priorizavam trabalhos mais voltados para
âmbito do mundo do trabalho e do protesto coleti- o esclarecimento sistemático de aspectos até então
vo, desarmada. Ela é pertinente para as ocasiões de não suficientemente estudados de nossa formação
‘ascenso’ (para usar uma linguagem militante), mas histórica”. Eles acompanhariam pari passu “a
não é tão boa para as ocasiões de ‘descenso’, como profissionalização das ciências sociais no Brasil”,
se observa na atualidade”. A tarefa do sociólogo adquirindo formas “claramente identificadas com
informado pelas orientações da intervenção as diferentes interpretações da sociedade capita-
aprofundar-se-ia, já que ele “precisaria ir mais fun- lista industrial moderna”. Tratava-se mesmo “de
do e adotar uma postura decididamente empática”, uma luta simbólica, travada no terreno científico,
além de “partilhar do drama social dos atores com contra as ideologias político-programáticas orien-
os quais está envolvido pelo desejo de produzir tadas por tradições partidárias. Daí o desejo de
algum conhecimento relevante: essa seria a condi- forte diferenciação verificado em alguns dos mais
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 56, p. 223-232, Maio/Ago. 2009

ção para o entendimento completo da situação [...] importantes estudos dessa época”.
como conflito social. Esse é um dos limites, hoje, Já na conjuntura seguinte, “os sociólogos
da aplicação do paradigma da intervenção socioló- brasileiros mostraram-se profundamente atraídos
gica. Mas não significa que as promessas que ela pelo caráter inovador das demandas surgidas no
levantou estejam ultrapassadas ou impertinentes. contexto das grandes lutas do final dos anos 1970”.
A sociologia pública acaba revolvendo, indiretamen- Em um “momento marcado pelo avanço dos mo-
te, essas mesmas questões”. vimentos populares contra o regime autoritário,
As duas, inclusive, enfrentariam “perigos aná- ajudaram a construir a identidade desse novo su-
logos”, já apontados pelos dois autores: “o jeito político: o ‘novo sindicalismo’”. Certo “vín-
vanguardismo, por um lado, e, por outro lado, a culo ’orgânico’ entre estudiosos e sindicalistas foi
imersão completa no grupo, quando os pesquisado- sendo forjado, legitimando a opinião segundo a
res são capturados pela comunidade”. Segundo Melo qual esse sindicalismo representou uma reação de
e Silva, isso comporia “uma atualização de velhos di- um grupo social” importante.
lemas que sempre vêm à tona quando se trata de esca- Nesses termos, seria “possível afirmar que,
par do normativismo de uma postura pretensamente ao longo das décadas de 1970 e 1980, forjou-se
objetiva e exterior, nas ciências sociais”. uma sociologia pública ‘orgânica’ do trabalho no

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Ruy Braga, Marco Aurélio Santana

Brasil”, conforme a definição de Burawoy. ção e conhecimento inovador capaz de instigar a


Com as mudanças trazidas pelos anos 1990, participação e a cidadania ativa”.
“a direção muda no sentido de uma audiência cada A preocupação do autor seria “a de divul-
vez mais extra-acadêmica cujos interesses gravitam gar, junto à comunidade brasileira dos cientistas
em torno das políticas públicas e, consequentemente, sociais, algumas das leituras e diagnósticos que
do poder de Estado”. Na visão dos autores, a “vitó- temos proposto sobre as tendências de mudança
ria eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, no período recente, no campo das relações de tra-
parece ter coroado esse novo ciclo de balho e do sindicalismo”. Na visão de Estanque, a
profissionalização, com a entrega do Ministério do “reflexão sobre a questão laboral e social de uma
Trabalho e Emprego (MTE) para o controle da Cen- maneira geral não poderia, evidentemente, deixar
tral Única dos Trabalhadores (CUT)”. Assim, seria de ser observada sem se levar em conta alguns dos
“digna de nota a incorporação direta de acadêmicos traços específicos da sociedade portuguesa, mos-
aos órgãos do governo [...] os quais passaram à for- trando as suas vulnerabilidades particulares, que
mulação imediata, ao debate e à implementação de remetem para a história recente do país e para as
políticas públicas”. Isso imporia a questão de se a dificuldades que vem enfrentando na aproxima-
“sociologia pública terá sido definitivamente subs- ção aos padrões europeus”.
tituída por uma sociologia para as políticas públi- No entendimento do autor, qualquer “diag-
cas no Brasil? Ou estaria o pêndulo dos estilos so- nóstico que se faça acerca da questão laboral – seja
ciológicos prestes a oscilar novamente, inauguran- ele com respeito ao caso português, brasileiro ou
do um novo período?”. outro –, na difícil conjuntura internacional que
Fechando o dossiê, temos o artigo de Elísio hoje vivemos, não pode circunscrever-se à reali-
Estanque. Nele, o autor parte da apresentação da ex- dade presente [...], devendo, antes, perspectivá-la
periência do Centro de Estudos de Sociologia (CES), no quadro de um processo histórico mais amplo e
da Universidade de Coimbra. Esse centro tem como de um quadro estrutural mais vasto e profundo”.
orientação “construir um conhecimento progressis- Nesses termos, o “campo laboral é sem dúvida
ta, transformador e emancipatório, destinado a refor- aquele em que os impactos desestruturadores da
çar o espaço público”. Pretende “usá-lo como auxili- globalização têm se mostrado mais problemáticos”,
ar para ver para além do manto de opacidade que as com impactos devastadores “para milhões de tra-
instituições e o poder hegemônico tendem a lançar balhadores de diversos continentes”. A Europa não

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sobre a realidade, ou, pelo menos, aquela parte da estaria fora disso, já que aí ocorrem “as alterações
realidade social tendente a pôr em causa as leituras em curso representam um flagrante retrocesso em
dominantes e a incomodar a ordem estabelecida”. face das conquistas alcançadas desde o século XIX”.
Em outras palavras, recusar-se-ia “a limitar-se a justi- O quadro particular da sociedade portuguesa
ficar o que existe só porque existe, e estar atento às não seria dos melhores. Nesse sentido, “se o
ausências e às emergências”. consumismo desenfreado e as expectativas de mobi-
Estanque fornece “uma amostra dos temas lidade ascendente puderam alimentar tais ilusões
de estudos que temos desenvolvido, guiados por durante algum tempo, com a entrada no novo milê-
essa orientação, ou seja, procurando usar a refle- nio e, sobretudo perante o reforço da competitividade
xão e a análise sociológica para, a partir dela [...], global, a contenção de custos, as pressões para a
intervir na esfera pública, procurando dirigir o flexibilização e privatização [...], deram início a uma
nosso conhecimento não apenas para as institui- profunda mudança na esfera do emprego, evidenci-
ções (“policy making”), não apenas para a comu- ando assim, uma vez mais, o caráter persistente e
nidade acadêmica (numa perspectiva “profissio- estrutural das nossas debilidades”.
nal” ou “crítica”), mas para os públicos subalter- Com isso, muitos problemas “supostamen-
nos e plurais, no sentido de disseminar informa- te resolvidos há décadas ressurgiram, tais como a

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SOCIOLOGIA PÚBLICA: engajamento e crítica social em debate

pobreza, a falta de qualificação de trabalhadores e material histórico para uma sociologia crítica, re-
empresários, as elevadas taxas de evasão escolar, o flexiva e engajada com públicos extra-acadêmicos
crescimento brutal das desigualdades sociais, o au- a debruçar-se. E, por outro, temos a presença de
mento do desemprego e da pobreza, as desigualda- uma larga tradição do fazer sociológico igualmente
des de gênero e uma rápida precarização do traba- crítico e militante, cujo exemplo mais conhecido
lho, que atingiu em especial os setores mais jovens é, sem dúvidas, o de Florestan Fernandes, que di-
(incluindo os mais escolarizados)”. No entendimento aloga fortemente com a sociologia pública. Por tudo
de Estanque, a crise atual, “ao mesmo tempo em isso, temos certeza de que os artigos presentes nes-
que ameaça desfazer um conjunto de laços sociais se dossiê encontrarão uma bem-aventurada acolhida
que até aqui garantiam a coesão mínima da socieda- por parte do público leitor da revista Caderno CRH.
de, pode [...] galvanizar de novo as multidões que
se sentem ressentidas e desprotegidas”. Uma au-
sência, de certa forma sentida, tem sido aquela dos (Recebido para publicação em julho de 2009)
(Aceito em agosto de 2009)
sindicatos. Mas, para o autor, “o fato de o sindi-
calismo apenas timidamente se envolver nesse tipo
de iniciativas, até agora, não garante que elas conti- REFERÊNCIAS
nuem a ter uma expressão modesta”. Contudo, para
tanto, no enfrentamento dos “atuais desafios (que a BECK, Ulrich. How not to become a museum piece. The
British Journal of Sociology, v. 56, n. 3, 2005.
crise apenas veio acelerar), o sindicalismo de hoje
BOYNS, David; FLETCHER, Jesse. Reflections on public
terá de se reinventar ou se reestruturar profunda- sociology: public relations, disciplinary identity, and the
strong program in professional sociology. The American
mente”, buscar redes transnacionais, a partir da ideia Sociologist, v. 36, n. 3, p. 5-26, 2005.
do que seria um “sindicalismo de movimento soci- BRINT, Steven. Guide for a perplexed: on Michael
al global”. Burawoy’s “public sociology”. The American Sociologist,
v. 36, n. 3, p. 46-65, 2005.
Finalmente, diríamos que, apesar de ainda
BURAWOY, Michael. For public sociology. American
germinal, o debate acerca da sociologia pública Sociological Review, v. 70, fev., p. 4-28, 2005.
poderá prosperar muito no Brasil. Afinal de con- DEFLEM, Mathieu. Public sociology, hot dogs, apple pie,
and chevrolet”. The Journal of Professional and Public
tas, é difícil imaginar um lugar no mundo onde Sociology, v. 1, n. 1, dez. 2005.
uma proposta como a elaborada por Burawoy faça GOULDNER, Alvin. The sociologist as partisan: sociology
and the welfare state. American Sociologist, n. 3, 1968.
mais sentido. Quais as razões que nos levam a afir-
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 56, p. 223-232, Maio/Ago. 2009

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. São Paulo: Ci-


mar isso? Em linhas gerais, diríamos que dois são vilização Brasileira, 1999.
os motivos principais. MCLAUGHLIN, Neil; KOWALCHUK, Lisa; TURCOTTE,
Por um lado, temos a estrutura social brasi- Kerry. Why sociology does not to be saved. The American
Sociologist, v. 36, n. 3-4, p. 133-151, 2005.
leira: afinal, não é nenhum segredo que o Brasil é
TURNER, Jonathan. Is public sociology such a good idea?
um dos países mais desiguais do planeta e que, The American Sociologist, v. 36, n. 3-4, p. 27-45, 2005.
portanto, oferece uma gigantesca quantidade de

Ruy Braga - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Professor do Departamento de Sociologia da USP é
Diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic – USP). Desenvolve pesquisas nas áreas de
Sociologia do Trabalho e Teoria Sociológica. Sua mais recente publicação é o livro intitulado Infoproletários:
degradação real do trabalho virtual (co-autoria com Ricardo Antunes. São Paulo: Boitempo, 2009 (no prelo).
Marco Aurélio Santana - Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Professor
do Departamento de Sociologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
da UFRJ. Desenvolve pesquisas na área de Sociologia do Trabalho, com ênfase em trabalhadores, sindicatos
e ações coletivas. Publicou, entre outros: Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil (São Paulo,
Boitempo, 2001) e Sociologia do trabalho no mundo contemporâneo (em co-autoria com José Ricardo Ramalho,
2ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2009).

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