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Lahire, B. (2016).

Viver e Interpretar o Mundo Social: para que serve o ensino da


Sociologia. Revista De Ciências Sociais, 45(1), 45–61. Recuperado de
http://www.periodicos.ufc.br/revcienso/article/view/2418

Davi Andrade Pereira1

Este texto tem como objetivo trazer um olhar panorâmico do artigo “Viver e
interpretar o mundo social: para que serve o ensino de sociologia?” do sociólogo francês
Bernard Lahire. Para tanto, tomaremos aquilo que consideramos interessante em seus
topicos de analise, no sentido do debate sobre o papel da sociologia e do seu ensino na
educação básica, culminando em uma síntese de suas propostas de ensino e
apresentando uma reflexão sobre o texto em relação a visão de outros autores, a saber, a
imaginação sociológica de Wright Mills (1965), as perspectivas sociológicas de Peter
Berger (1986) e a pedagogia da autonomia de Paulo Freire (1996).
Para que serve a sociologia? a esse questionamento Lahire não oferece uma resposta
definitiva. Ao longo do texto procede como se invertesse o jogo, colocando em
perspectiva não somente questões que levam a definir uma “utilidade” estandardizada
para esta,mas perguntando-se e apontando (de modo um tanto implícito) a quem serve, a
quem beneficia não ensinar sociologia, e, a quem não o beneficia - uma resposta
sociológica e crítica ao problema proposto, uma vez que desnaturaliza mesmo o lugar
de onde é feita a pergunta -.
O autor afirma que no questionamento, assim formulado: “Para que serve a
sociologia?”, nessa busca da “utilidade do sociólogo", reside tanto uma negação de sua
legitimidade e do seu saber, quanto uma vontade de submetê-lo à subordinação. O autor
faz um apanhado de papéis que são comumente associados aos sociólogos e aos saberes
por eles produzidos, segundo os quais poderiam ou não ser considerados toleráveis,
estes são: a) o político ( pesquisador expert) , conselheiro do príncipe, a la Maquiavel,
oráculo dos projetos institucionais de poder. b) uma função terapêutica, promovendo
uma espécie de autoanálise para lidar com sofrimentos individuais a partir de uma
compreensão geral do social. c) cognitivo-científica, pautada apenas na busca da
verdade científica sobre o social, a sociologia encarada como arte pela arte.
No entanto, é preciso afirmar que Lahire não reconhece nenhuma dessas possíveis
utilizações do sociólogo e das ciências sociais como funções necessárias da sociologia,
para ele, elas não configuram “a utilidade da sociologia”, mesmo que possam ser,
eventualmente, utilizações dela. Uma vez que, perguntar-se sobre a utilidade do ensino
da sociologia é perguntar-se sobre a utilidade do conhecimento produzido pelo cientista
social, este, como o autor aponta, apresenta multiplicidade, não possui apenas uma
consequência prática. Todavia, como faz questão de apontar, em sociedades
democráticas, converge de forma benéfica com os valores de diversidade e
reflexividade tão caros a esse sistema, o que já justificaria a sua presença nos currículos
escolares desde o ensino primário, como afirma Lahire.

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Graduando em Ciência Sociais
Neste ponto, trouxemos mais um dos posicionamentos do autor, a saber, a afirmação
da confluência entre os efeitos do ensino da sociologia e uma formação para a
democracia, ou seja, o argumento de que, por sua natureza, por seu caráter científico e
empírico, por proporcionar uma visão mais ampla da realidade social, contrastando com
discursos predatórias e tendenciosos, de corporações econômicas, políticas, discursos
demagógicos e pseudocientíficos, o ensino de sociologia ajudaria a prevenir a difusão e
aceitação de discursos e ações antidemocráticas. Em outras palavras, não ensinar
sociologia, seria, segundo Lahire, comparável a não preparar de modo adequado os
sujeitos para lidarem e precaver-se destes discursos. Seria potencialmente perigoso,
pois, uma vez que não prepara-se para a reflexividade, para a cidadania, a diversidade, a
alteridade e o exercício crítico do pensamento, resulta em uma sociedade em que os
sujeitos tornam-se vulneráveis à generalizações interessadas e enviesadas da realidade
social, que monopolizam as mentes dos sujeitos através destes discursos potencialmente
nocivos e não científicos sobre a sociedade, com ideais fracionários, fragmentados e
etnocêntricos. A título de exemplo, apontamos a realidade recente da história do Brasil,
onde podemos citar a proliferação do movimento antivacina, do movimento
bolsonarista, de grupos neonazistas e fascistas etc. em síntese, o que extraímos é que em
um contexto onde não há o ensino de formas mais complexas de compreender o social
de forma adequada, o campo para a fecundação desses discursos é mais livre e aberto.
Ademais, esta noção de positividade da sociologia em relação a difusão de valores
democráticos não deve restringir o sociólogo e o conhecimento sociológico a uma
função, pois, mesmo que potencialmente tenha capacidade de promover uma formação
para o exercício da cidadania e uma concepção mais democrática da realidade, a
sociologia não se define apenas sob essa função. Colocado o fato de que o
conhecimento sociológico converge com uma perspectiva mais “progressista” , de
crítica ao etnocentrismo, ao racismo, ao preconceito de classe, por uma visão relativista
e humanista de mundo, os seus efeitos, segundo Lahire, não devem meramente ser
traduzidos por uma perspectiva utilitária e instrumental, pois o discurso utilitário é o
discurso de controle social, a sociologia apresentada na perspectiva de Lahire é
potencialmente geradora de sujeitos autônomos, capazes de interpretar o mundo social,
sendo assim, o discurso sociológico e científico, mesmo que tenha potencial prático é
estranho ao utilitarismo, uma vez que , enquanto ciência, é construído e transmitido de
forma crítica e reflexiva, não servindo unicamente a conformação social (mediante
aceitação de valores democrático), mas, muitas vezes, a crítica do estado das coisas
como elas se encontram.
Elencando algumas das objeções feitas ao ensino de sociologia na educação básica (
desde o primário, como defende), Lahire as apresenta em forma de questões e as
responde em seguida, desse modo: à objeção feita de que não é possível ensinar uma
ciência conflituosa, sem consenso de teorias, conceitos e diversidade de métodos,
Lahire responde aferindo o fato de que diversidade de perspectiva é um fenômeno
relativamente normal e saudável no que diz respeito às ciências, e, diferenciando a
sociologia de formulações ideológicas stricto sensu, através de seu caráter metódico, da
sua empiria e embasamento na administração das provas, a diversidade, nesse ponto, é
um fator que depõe mais em favor do que contra a sociologia.
À objeção que postulada, de que natureza do conhecimento sociológico estaria
restrita a intervir apenas em cursos superiores, Lahire responde distinguindo o que seria
a transmissão de uma “cultura universitária” e a aquisição, por adaptação, de certas
ferramentas de aquisição de conhecimento, o que, segundo o autor, se trataria de ensinar
nas escolas.
À última objeção, relacionada a primeira e acrescida de uma outra camada, firmada
na alegação de que o lugar da sociologia, da reflexividade e da reativação de
patrimônios culturais não poderiam se dá na infância, como se o ensino dessas formas
de desnaturalização confundissem a “cabeça” das crianças, despreparadas para elas,
Lahire responde questionando essa concepção, segundo a qual o ensino reflexivo é
desestabilizador na infância, dizendo que não possui base empírica e é potencialmente
etnocêntrica, pois restringe sujeitos desde o início da socialização a conformação com
patrimônios culturais dados sem o menor interesse pelo convívio com a alteridade e a
diversidade. Lahire defende o exercício da reflexividade através do ensino de sociologia
desde a infância, nesse sentido, destaca o papel ativo que os estudantes empregam na
formação de si através do seu contato com múltiplos espaços de socialização, que lhe
conferem um conjunto de disposições distintas.
Para Lahire, portanto, o ensino de sociologia apresenta-se como necessário desde o
ensino primário, como forma de educação para a diversidade. O autor é direto em
destacar a distinção entre o conhecimento transmitido nas universidades e o
conhecimento adaptado ao contexto escolar, reconhecendo a necessidade de uma
aproximação, tradução deste, à realidade e necessidade dos estudantes. A sua proposta
para o ensino de sociologia nas escolas está irremediavelmente atrelada à pesquisa, ou
seja, não é a de uma transmissão de conhecimentos enciclopédicos, mas de uma
familiarização com diferentes formas de investigação, de objetivação do conhecimento.
Em suma, propõe um ensino não restrito a transmissão passiva e vertical de saber,
não como coleção de datas, nomes e conceitos, mas como exercício de pensamento
crítico, levando, de modo reflexivo, aos estudantes, um familiarizar-se com processos
investigativos de desnaturalização da realidade social em seus cotidianos. Lahire propõe
a familiarização dos estudantes com três modos de objetivação da sociologia, são eles:
a) a objetivação etnográfica, possibilitando um exercício de auto reflexão, de narração
da realidade e de contato com a alteridade, de criticidade e desnaturalização da sua
relação com o seu próprio meio, b) a objetivação estatística, propondo que os estudantes
coletem dados, elaboraram questionários sobre gostos, interesses e particularidades mas
relacionáveis ao seu cotidiano, levando a desnaturalização de seus próprios gostos,
ações, valores, c) propõe a entrevista sociologia, afirmando o caráter democratico desta,
uma vez que leva a um contato mais próximo e profundo com a diversidade e a
alteridade .
Contudo, é preciso ressaltar, essas propostas feitas por Lahire não intentam
representar um receituário a ser reproduzido, o que é interessante notar é como todas
essas propostas feitas vão além de proposições de temas específicos, de conceitos, de
autores, de currículo propriamente dito; são mais sobre o “como ensinar ?” do que “o
que ensinar ?”, são potencialmente aplicáveis articuladas a temas e currículos variados.
Desta forma, Lahire vai além da proposta meramente curricular, propondo uma atitude
diante do ensino que estimula uma atitude sociológica na aprendizagem, na qual o
estudante, familiarizando-se com a logica das ciências sociais, sua forma de expor e de
explicar o social através do social, de aferir de forma metódica a realidade, as
internaliza e externaliza em sua forma de agir e refletir sobre si e o mundo. Cabe ainda
pontuar, com isto, o ator não propõe a formação de cientistas sociais desde o ensino
básico, é preservada a distinção entre uma formação universitária em ciências sociais na
universidade e a formação de estudantes no ensino básico, mesmo diante dessa
familiarização com formas mais complexas de compreender as dinâmicas sociais. Em
resumo, o que Lahire advoga para o ensino, é o exercício da pesquisa pelos próprios
estudantes, esta pesquisa oferece uma familiaridade com a forma de enxergar a
realidade inerentemente sociológica, sendo potencialmente positiva para o ensino.
Por último, parece interessante, diante das exposições já feitas, fazer uma reflexão sobre estes
temas naquilo que eles convergem com o pensamento de autores como Wright Mills, Peter
Berger e Paulo Freire. Mills (1975) formulou a ideia de “imaginação sociológica” e em muito
esse conceito é relacionável com a proposta de Lahire, na medida em que Mills não restringe a
necessidade de familiarizar-se com a forma sociológica de pensar apenas a cientistas sociais, a
ideia de Mills, segundo a qual o ensino da sociologia está relacionado a um modo de raciocínio
que busca compreender a relação entre “biografia” (vida individual) e “história” (estruturas
sociais), entre a realidade como ela aparece para os indivíduos e sua mediação com as estruturas
sociais, o que permitiria, por exemplo, ao jovem com o pai desempregado entender os
condicionantes sociais que definem a relação dessa situação de desemprego vivida com as
estruturas sociais, configurando-a enquanto “problema social”. Esse processo de ruptura com o
senso comum , esse processo de “objetivação” do conhecimento (BOURDIEU;
CHAMBOREDON; PASSERON, 2007) de compreensão de um fenômeno particular vivido
individualmente enquanto constituído de um fenômeno geral e social aproxima-se da proposta
de Lahire, na qual o ensino da sociologia empenha-se mais em transmitir uma forma científica
de interpretar o mundo do que conhecimento enciclopédico.
O sociólogo Peter Berger ( BERGER, 1986) em seu livro “Perspectivas sociológicas, uma
visão humanística” segue uma direção aproximada a esses autores, compreendendo, assim como
Lahire e Mills, o ensino da sociologia enquanto uma forma potente de desnaturalização da
realidade cotidiana e pautado em uma perspectiva lançada sobre o mundo, uma perspectiva
sociológica, nesse sentido, ambos caracterizando e apreciando a possibilidade que a sociologia
oferece de desnaturalização do cotidiano e de ligação das vivências entrelaçadas a dinâmicas
sociais mais ampla e complexas, ou seja, seu potencial na forma que prepara para a
reflexividade e interpretação do mundo.
Por último, Freire (1996) aproxima-se da perspectiva de Lahire, de Mills e de Berger na
medida em sua proposta de uma pedagogia da autonomia prioriza o exército da reflexividade
dos estudantes enquanto sujeitos, não mais objetos passivos que recebem e nada oferecem em
sua relação com o saber, mas que se enganariam em formas mais críticas e complexas de
compreender o real, freire também prioriza a necessidade de um ensino contextualizado
histórica e politicamente e comprometido com a interpretação da realidade social, no sentido de
desnaturalização de processos mais amplos que por vezes são invisibilizados, é o teressante
notar como a noção de todos esses autores de fazer a mediação entre a realidade cotidiana l,
vivenciada e naturalizada, e os processos sociais condicionantes da constituição dessa realidade
é aquilo que eles têm mais em comum é que permite, de certa forma, reafirmar, o papel de um
conhecimento científico sobre o social na formação para a diversidade, alteridade ,
reflexividade, autonomia, criticidade e exército político pleno da cidadania.

Referências bibliográfica:

Lahire, B. (2016). Viver e Interpretar o Mundo Social: para que serve o ensino da
Sociologia. Revista De Ciências Sociais, 45(1), 45–61. Recuperado de
http://www.periodicos.ufc.br/revcienso/article/view/2418

BERGER, Peter L. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística; Trad. de


Donaldson M. Garschagen. Petrópolis, Vozes, 1986

BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de


sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. 6. ed. Petrópolis: Vozes Editora, 2007.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:


Paz e Terra, 1996.

MILLS, Wright C. A imaginação sociológica; tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1975.

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