Você está na página 1de 4

Eca e o direito de brincar.

Várias pesquisas têm demonstrado que brincar reúne todas as condições


necessárias para que o desenvolvimento infantil se processe de maneira
harmoniosa. A oferta permanente de desafios e interações facilita a formação de
vínculos positivos com os adultos, que irão influenciar sua vida futura.

A legislação brasileira reconhece explicitamente o direito de brincar, tanto na


Constituição Federal (1988), artigo 227, quanto no Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA (1990), artigos 4º e 16, mas ainda não oferece as condições
para que esse direito seja exercido plenamente por todas as crianças. Outros
direitos e princípios do ECA guardam direta relação com o brincar, dentre os
quais destacamos, direito ao lazer (art. 4º), direito à liberdade e à participação
(art. 16), peculiar condição de pessoa em desenvolvimento (art. 71).

A importância do brincar já foi reconhecida, também, em diversos documentos


legais internacionais e nacionais, dos quais destacamos a Convenção dos
Direitos da Criança – CDC, no Art. 31. No Brasil existem várias organizações
que defendem o direito de brincar, entre elas a IPA Brasil, que compõe a Rede
Nacional Primeira Infância ao lado de outras congêneres.

Mudanças profundas nos ambientes urbanos em que as crianças estão


crescendo estão tendo um impacto importante sobre a sua oportunidade de
brincar. A população urbana está aumentando, assim como a presença da
violência em todas as suas formas: em casa, nas escolas, nos meios de
comunicação e nas ruas que, ao lado da comercialização das oportunidades
para brincar, influenciam negativamente as formas de envolvimento das crianças
em recreação, bem como nas atividades culturais e artísticas. Além disso, o
papel crescente das comunicações eletrônicas e as crescentes demandas
educacionais estão afetando de forma significativa o direito de brincar,
principalmente na primeira infância.

As crianças que vivem em situações vulneráveis ficam muito mais expostas às


situações de risco que as impedem de participar e de desfrutar dos direitos
contidos no artigo 31 do ECA como: direito ao brincar, ao lazer, ao descanso, à
cultura, às artes e à convivência com seus pares, participando ativamente da
vida comunitária do seu entorno. Para muitas crianças, o trabalho infantil, o
trabalho doméstico ou as excessivas demandas educacionais servem para
reduzir o tempo disponível para o gozo desses direitos.

Apesar de constituírem um avanço, as atividades lúdicas, do brincar livre, do


brincar pelo prazer de brincar, ainda não merecem a devida importância por parte
dos diferentes atores que compõem o cenário social: gestores públicos,
educadores, líderes comunitários, pais e familiares. Por diferentes razões o
tempo gasto com o lazer e o brincar ainda são considerados por muitos setores
da nossa sociedade, como tempo perdido e as pessoas que dele fazem uso,
como pouco produtivas, superficiais, quando não, irresponsáveis. Para oferecer
as condições adequadas para que o brincar aconteça, as cidades precisam criar
espaços públicos para todos, propiciando a convivência entre diferentes grupos
e idades. Além disso, o empoderamento dos moradores do entorno é
fundamental para que esses espaços não se tornem espaços de disseminação
das mais diversas formas de violência. Devem, então, ser locais cuidados e não,
abandonados. Essa mudança de atitude decorre, sobretudo, da capacitação e
comprometimento das pessoas, para que se apoderem positivamente dos locais
de convívio.

Marilena Flores Martins, do IPA Brasil.

A importância do brincar para o desenvolvimento infantil.


O brincar é essencial para o desenvolvimento pleno da criança, tanto que se
tornou um direito garantido pela Declaração Universal dos Direitos da Criança,
aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1959. Segundo o
documento, “a sociedade e as autoridades públicas se esforçarão para promover
o exercício deste direito”. Em 1988, a Constituição Federal reafirmou esse direito
em seu artigo 227 e, em 1990, ele também apareceu no Estatuto da Criança e
do Adolescente.

“Às vezes, acreditamos que o brincar é algo de um momento específico, de um


lugar específico, mas o brincar deve estar na vida da criança o tempo inteiro, por
ser a linguagem principal e a mais potente para ela se desenvolver plenamente”,
diz Claudia Vidigal, representante da Fundação Bernard van Leer no Brasil,
organização internacional referência em primeira infância.

Os espaços de brincar, por sua vez, não precisam estar restritos à casa ou à
escola: a cidade toda pode ser brincante. “Se você acompanhar uma criança por
uma hora, você vai ver que ela brinca com tudo que aparece na frente. Nós temos
que lembrar que o espaço público também é um espaço de desenvolvimento, é
um espaço de brincar”, continua Claudia.

Ela ressalta ainda que “as políticas de aberturas e melhoria de espaços para
brincar devem começar pelos locais periféricos, onde há menos oportunidades
de brincar do que nos espaços privilegiados”.

Além do lúdico

Brincar é bem mais do que fazer atividades lúdicas, ainda mais quando
realizadas da maneira a mais livre possível, sem interferência dos adultos. Ana
Claudia Arruda Leite, mestre em Ciências Sociais da Educação e consultora
do Instituto Alana explica que “muitas vezes, em instituições, as brincadeiras são
muito dirigidas e isso acaba comprometendo uma essencialidade do brincar, que
é a liberdade”.

Ana Claudia reforça os benefícios desse livre brincar. “É uma ação que parte da
criança, então traz uma dimensão que é muito importante para o
desenvolvimento humano: a capacidade de definirmos, desde pequenos, nossos
propósitos, aquilo que nos motiva e nos faz caminhar ao longo da vida.”
Ela ressalta que brincar é uma atividade tão importante para a formação da
criança que se encontram brincadeiras semelhantes em países diferentes.

“Quando analisamos as brincadeiras que compõem a cultura da humanidade,


percebemos que muitas se encontram em diferentes lugares do mundo e tempos
históricos, como a brincadeira de cinco pedrinhas, variações de amarelinha,
brincadeira de boneca ou brincadeiras de empurrar um aro com bastão. Elas vão
ganhando outras roupagens”, diz Ana Claudia.

Perdas e resgates

O livre brincar, porém, encontra-se ameaçado por mudanças culturais e de


hábitos decorrentes de um processo de crescimento e urbanização pouco
planejados, e que afetam as crianças, cada vez mais privadas do contato com a
natureza e do convívio comunitário.

“Elas ficam cada vez mais dentro de casa, usando eletrônicos e superprotegidas.
As crianças que não andam descalças na terra e na grama estão sendo privadas
de oportunidades fundamentais para o seu desenvolvimento”, afirma Juliana Di
Thomazo, líder do Programa Primeira Infância em Foco, da Fundação FEAC.

Foi pensando em fortalecer o livre brincar nas comunidades que a FEAC criou o
projeto Caminhos do Brincar. O objetivo é, a partir do engajamento de crianças
e suas famílias, realizar transformações em territórios vulneráveis de Campinas,
tornando-os mais lúdicos e seguros para as crianças. O trabalho é realizado em
rede, unindo organizações locais, o poder público, as crianças e a comunidade.

“A criança se desenvolve nos diversos contextos em que está inserida. Além da


família e da escola, a comunidade onde a criança vive é de fundamental
importância para o seu desenvolvimento. Um território mais amigável, seguro e
lúdico oferece às infâncias oportunidades de interação mais potentes e, dessa
forma, o direito à convivência comunitária é garantido”, explica Juliana.

Se tudo ocorrer como esperado, as crianças de dois territórios de Campinas


ganharão um novo espaço para brincar no primeiro trimestre de 2022. Os bairros
Cidade Satélite Íris e Jardim Novo Flamboyant foram escolhidos para receber,
desde setembro, o projeto-piloto do Caminhos do Brincar.

Nesta primeira fase, as atividades em campo estão voltadas a ocupar os espaços


potenciais do brincar tanto no Satélite Íris quanto no Buraco do Sapo. Nesses
locais, que são identificados junto com a comunidade, é estabelecida uma rotina
de brincadeiras envolvendo crianças e cuidadores, proporcionando a interação
com o lugar, suas realidades ambientais, geográficas e históricas. Dessa forma,
a equipe de campo tem também a oportunidade de conhecer e compreender o
território sob a perspectiva da infância.

A próxima fase do Caminhos do Brincar é o momento de sonhar e engajar as


crianças para atuarem em favor da comunidade em que vivem. Trata-se de
assegurar e desenvolver a participação delas para a promoção de melhorias
para o bairro onde vivem. A partir do primeiro trimestre de 2022, a proposta é
transformar os sonhos das crianças em realidade: um espaço público de cada
território vai ser transformado em um espaço lúdico, com a instalação de
equipamentos de brincar, produzidos pelo parceiro Erê Lab, escritório de
arquitetura especializado em espaços para crianças.

Por Laíza Castanhari

Você também pode gostar