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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

Faculdade de Educação
Disciplina de Fundamentos Psicológicos da Educação

Ensaio Acadêmico

O espaço das histórias na experiência da infância: um resgate urgente


frente aos excessos digitais

Aline Maciel

Pelotas, 2023
O espaço das histórias na experiência da infância: um resgate urgente
frente aos excessos digitais

Aline Maciel
Graduanda, Teatro, UFPel
aline.maciel@ufpel.edu.br

Estudos sobre a infância e a criança têm ocupado diferentes disciplinas


por se tratar de assunto amplo e instigante. Seja através da história, da
medicina, da psicologia, da geografia, da sociologia ou da educação,
estatísticas e discursos são voltados a eles constantemente. Alguns procuram
explicar o lugar da criança na sociedade, outros analisam os impactos que
determinados comportamentos podem ter em sua saúde física ou mental,
outros ainda apresentam aspectos da infância através de números.
Gurski (2012) nos apresenta uma reflexão acerca do tratamento
dispensado às crianças de acordo com suas classes sociais e como isto
impacta na experiência da infância. Para introduzir o ponto focal de sua
reflexão, a autora traça um panorama histórico nos mostra as diferenças no
entendimento do conceito de ser criança ao longo dos tempos. Também
relaciona as políticas públicas brasileiras voltadas à infância, destacando o
caráter assistencialista e segmentado da maioria.
Um destaque em seu texto é a análise do filme documental A invenção
da Infância, de Liliana Sulzbach. No documentário, a diretora aponta a infância
inventada na Modernidade como

a idade de ouro de cada indivíduo. Fase em que a vida será perfeita,


protegida e tranqüila, antes de ser tomada pelas exigências do
trabalho. Época ideal de nossas vidas, em que ser criança é não ter
qualquer outro compromisso que vá além do gozo puro e simples de
sua inocência. (SULZBACH, 2000)

No entanto, contrapondo este conceito, seu filme apresenta depoimentos


e imagens de crianças privadas de experienciar a infância em sua plenitude,
impedidas por conta de compromissos que as aproximam da vida adulta:
enquanto parte delas vivem em São Paulo e estão envolvidas com cursos,
aulas de línguas, esportes, piscina e clubes, outra parte está ocupada
trabalhando após o horário escolar em pedreiras ou fazendas de sisal no sertão
baiano.
Ainda que em um primeiro momento nos pareça que as primeiras são
privilegiadas, pois estão participando de atividades aparentemente ligadas ao
lazer e ao ócio, enquanto as segundas são exploradas em atividades laborais
inconsistentes com sua idade, a autora analisa que

O curta-metragem [...] mostra o quanto, na sociedade brasileira,


apesar de a legislação ser bem clara quanto ao significado da infância
e aos seus respectivos direitos, nem sempre os pequenos ganham a
possibilidade de viver a infância, seja pela exclusão social e pela
exploração do trabalho infantil, seja pela exposição às rotinas, aos
valores e às práticas do mundo adulto. A narrativa mostra as intensas
diferenças entre as crianças de extratos sociais e de regiões diversas
no país, demonstrando que às crianças da elite, excessivamente
atarefadas, também é roubado o direito de brincar de modo livre,
ficando elas, assim como as crianças trabalhadoras, sem tempo para
sorver os benefícios dessa etapa da vida. Nesse sentido, tanto as
crianças de elite quanto as da periferia parecem carecer de certa
experiência de infância, ou seja, a valiosa chance de, ao brincar, ter a
possibilidade de emprestar múltiplos sentidos ao real de suas
vidas.(GURSKI, 2012, p. 72)

Outro ponto pertinente trazido pela documentarista, porém ignorado pela


autora, foi que, para além de seus compromissos cotidianos adultizadores, as
crianças, independente de suas condições socioeconômicas, tinham mais um
dispositivo que as distanciavam da experiência da infância e as igualavam aos
adultos: a televisão. A exposição das crianças a conteúdos televisivos
originalmente destinados a adultos, como novelas e jornais, parecia comum há
pouco mais de 20 anos atrás, assim como hoje é comum uma exposição ainda
maior a conteúdos distribuídos através da Internet. A televisão foi substituída
por smartphones e são eles que passaram a ocupar o tempo ocioso das
crianças de hoje.
Fato é, que o Grupo de Trabalho Saúde na Era Digital da Sociedade
Brasileira de Pediatria (2019) concluiu o que já estamos percebendo ao
observar famílias com crianças ou circular pelas ruas da cidade:

Crianças em idades cada vez mais precoces têm tido acesso aos
equipamentos de telefones celulares e smartphones, notebooks além
dos computadores que são usados pelos pais, irmãos ou família, em
casa, nas creches, em escolas ou mesmo em quaisquer outros
lugares como restaurantes, ônibus, carros sempre com o objetivo de
fazer com que a “criança fique quietinha”. Isto é denominado de
distração passiva, resultado da pressão pelo consumismo dos
joguinhos e vídeos nas telas, e publicidade das indústrias de
entretenimento, o que é muito diferente do brincar ativamente, um
direito universal e temporal de todas as crianças e adolescentes, em
fase do desenvolvimento cerebral e mental. (SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2019, p.03)

Em 2022, o Cetic.br/NIC.br com o apoio da Organização das Nações


Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), do Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), da Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (CEPAL) e de pesquisadores vinculados a
universidades brasileiras e estrangeiras, realizou a pesquisa TIC KIDS ONLINE
– Brasil (2022).
Utilizando uma amostra representativa de 2604 famílias com entrevistas
de crianças e adolescentes brasileiros entre 9 e 17 anos, demonstrou que 92%
delas acessaram a internet há menos de três meses e dessas, 96%
acessaram todos os dias ou quase todos os dias.
A mesma pesquisa nos informa que na faixa etária de 09 a 10 anos, são
85% conectados e 46% deles realizaram o primeiro acesso à Internet com
menos de 6 anos. Paralelamente, 33% das crianças desta idade dizem sentir
que a internet não tem o que ele quer ou precisa.
Considerando que, na atualidade,

As mídias preenchem vários vácuos, temporal ou existencial, desde


não ter o que fazer, distrair, falta de apego, abandono afetivo ou
mesmo pais ocupados, estressados ou cansados demais para dar
atenção aos seus filhos, ou por que eles nem mesmo desgrudam de
seus próprios celulares. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA,
2019, p.04)

Suponho que o que crianças de 09 e 10 anos estariam querendo ou


precisando e não estaria disponível na Internet seja a experiência de infância
que abordamos anteriormente a partir da citação de Gurski (2012), ou seja, a
possibilidade de experienciar o brincar, de dar sentido a esta etapa de sua vida
através da vivência criativa e subjetiva que a brincadeira traz em si.
Concordando que a experiência da infância necessita da brincadeira
ativa e do jogo, queremos trazer também as histórias como parte fundamental
desta experiência, por entender que a demasiada oferta de mídias digitais
impõe um silenciamento às histórias e mais do que nunca faz com que a
experiência de contar e ouvir histórias se torne cada vez mais rara.
Tal exposição a um ambiente imersivo que dispõe de inúmeros estímulos
visuais voláteis de forma coordenada, como as redes sociais, impediria os
adultos de desenvolver a capacidade de compartilhar suas experiências
através das narrativas e as crianças de absorvê-las e futuramente
compartilhá-las?
Preocupação semelhante tinha o filósofo alemão Walter Benjamin,
quando em 1936 quando escreveu o artigo “O narrador”. Neste clássico texto, o
autor, impactado pelos avanços tecnológicos da época e pelo empobrecimento
da capacidade de vivenciar e comunicar experiências após a Primeira Guerra
apontava a informação como uma ameaça às narrativas, pois esta é relativa ao
instante e tem um fim em si mesma.

A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive


nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda
de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela
não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo
ainda é capaz de se desenvolver. (BENJAMIN, 1994, p. 204)

O que são as redes sociais hoje em dia, senão um amontoado de


informações, catalogadas por interesses restritos de acordo com algoritmos
pré-determinados? Sem dúvida, a Internet nos trouxe novas formas de contar
histórias, porém, qual herança elas deixam?
O desenvolvimento da oralidade do homem primitivo permitiu a
transmissão de experiências através da fala e com isso o aparecimento da
figura do contador de histórias. Este, também desempenhando um papel de
líder político-religioso, era o responsável por armazenar, difundir e perpetuar o
conhecimento e os valores adquiridos por sua comunidade ao longo do tempo.
Através das histórias narradas oferecia aos mais jovens os elementos
necessários para a percepção e compreensão da realidade de seu grupo.
Segundo Somers (2011) contar e ouvir histórias nos permite organizar
experiências em uma série de memórias que nos darão noções de quem
somos, além de conseguirmos prever o futuro e organizar nossas ações.
Vivenciando experiências através das histórias contadas por outros, também
formamos a base de nossa aprendizagem e educação formal. São essas
experiências que, selecionadas por nossa memória, traduzirão nossa
identidade e darão corpo à nossa história pessoal.
O caráter ritualístico, mágico e pedagógico dos momentos de escuta
próprios às narrativas orais exerceram grande fascínio sobre as crianças ao
longo da história humana, veiculando toda forma de percepção de um mundo
onde o elemento maravilhoso tinha o seu lugar.
Embora não se possa ignorar que essas histórias ouvidas na infância
viessem impregnadas de “distorções do imaginário popular” (Bosi, 1994, p.73),
se pode dizer que são elas, de acordo com Benjamin (1994), as primeiras
conselheiras que ensinam a criança a enfrentar o mundo mítico com astúcia.
A tradição oral, na qual se insere o narrador benjaminiano, permite a ele
que retire o que conta de sua experiência e da dos outros e as incorpore às
experiências dos que ouvem.
No entanto,

Na medida em que a comunicação espalhou-se pelo mundo, algumas


histórias tornaram-se dominantes. A disseminação do cristianismo foi
um exemplo precoce e contínuo. Estamos hoje cercados por histórias;
a maioria inspirada comercialmente. Ao redor do mundo, pessoas
subscrevem a história corporativa da Nike, vêm filmes da Disney, ou
expressam pesar pela morte de uma celebridade com quem nunca se
encontraram. (SOMERS, 2011, 177)

Ainda que a família nuclear tenha substituído a vida tribal na maior parte
do mundo, a figura deste narrador se manteve de certa forma preservada, visto
que os responsáveis pela narração de histórias às crianças na primeira
infância, seriam, sobretudo, os parentes mais idosos. São eles que, conforme
Bosi (1994), rompem o tempo-espaço e compartilham experiências de suas
vidas. Seriam eles os narradores que trariam o particular à tona, pois suas
histórias são as histórias dos seus, histórias que ajudam a preservar essa
memória.
Mas os adultos e as crianças de hoje, que serão os idosos de amanhã,
poderão desempenhar este papel perante as futuras gerações? Qual o lugar da
infância e do que a ela é inerente se a uma criança sobrecarregada por tarefas
adultizadoras é oferecida a tela para que ocupe seu tempo de ócio? Que
espaço tem o compartilhamento de experiências geracionais se o tempo de
ócio do adulto sobrecarregado por uma rotina de trabalho exaustiva é dedicado
ao uso da internet?
Fica, portanto, a criança, desvalida de uma completa experiência de
infância. Atrelada a uma máquina, expiada das brincadeiras, ensurdecida de
histórias. Obviamente que os avanços tecnológicos são capturados por elas,
seres flexíveis e adaptáveis. Ainda assim, a segurança simbólica que as
histórias contadas proporcionariam para que enfrentassem o mundo, são
suprimidas pelo uso excessivo de tais tecnologias, ainda que não estejam
conscientes disso, já que

O avanço tecnológico introduz uma grande variedade de histórias e


tal diversidade permite que as crianças se adaptem às suas
estruturas – tais como o RPG online. A internet oferece um mundo
virtual no qual jogadores de remotas partes do mundo adquirem um
forte sentido de comunidade que se espalha por todos os continentes.
Tais condições criam o contexto de diversidade e escolha. (SOMERS,
2011, p. 177)

Porém,

O que é preocupante, entretanto, é a crescente hegemonia de certas


histórias. Onde os interesses comerciais controlam a realização e a
difusão de histórias, os consumidores são encorajados a uma dieta
não saudável de produtos que os encorajam a adotar valores e
comportamento globais alheios à sua cultura. (SOMERS, 2011, p.
177)

Dessa forma, é possível concluir que as histórias estão sendo


sequestradas e disputadas para transformar as crianças em pequenos adultos
sem suporte simbólico e desprovidos de tradição, ou seja, desvinculados do
seu eu verdadeiro. Com isso, sua capacidade de reconhecer o mundo não será
sustentada pela memória dos seus, mas por aqueles que controlam as mídias
digitais.
A experiência de infância que entendo como essencial inclui o espaço
para o brincar, para os momentos de escuta de histórias, para o jogo, ou seja,
para tudo que dá sustentação a um desenvolvimento ancorado na
subjetividade criativa que origina o novo. No entanto, é de suma importância
que haja espaço para que isso seja possível. Espaço de tempo e espaço
mental. Acredito que sem um resgate destes espaços pelos adultos para que
os ofereçam às crianças teremos infâncias cada vez mais encurtadas e
descaracterizadas, desprovidas de experiências e incapazes de servirem como
base para uma sociedade futura sustentável.
REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.


Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São


Paulo: Companhia Letras, 1994.

CENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA


SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO. Pesquisa TIC Kids Online Brasil (2022).
Disponível em: https://cetic.br/pt/pesquisa/kids-online Acesso em: 05 maio
2023

GURSKI, R. O lugar simbólico da criança no Brasil: uma infância roubada?.


Educ. Rev., Belo Horizonte , v. 28, n. 01, p. 61-78, mar. 2012 . Disponível
em
<http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982012000
100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 02 maio 2023.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. Manual de Orientação: #Menos


Telas #Mais Saúde. Disponível em :<
https://www.sbp.com.br/index.php?eID=cw_filedownload&file=718>. Acesso
em: 25 abr. 2023

SOMERS, J. Narrativa, Drama e Estímulo Composto. Urdimento - Revista de


Estudos em Artes Cênicas. Tradução: Beatriz A. V Cabral, Florianópolis, v. 2,
n. 17, p. 175-185, 2011. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573102172
011175. Acesso em: 28 mar. 2023.

SULZBACH, Liliana. A invenção da infância [Documentário]. [S.l.: s.n.], 2000.


26min.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. Vice-Reitoria. Coordenação de


Bibliotecas. Manual de normas UFPel para trabalhos acadêmicos. Pelotas,
2019. Revisão técnica de Aline Herbstrith Batista, Dafne Silva de Freitas e
Patrícia de Borba Pereira. Disponível em:
https://wp.ufpel.edu.br/sisbi/normas-da-ufpel-para-trabalhos-academicos/.
Acesso em: 25 abr. 2023

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