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REFLEXÕES SOBRE O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA

PROPOSTA DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR PARA A EDUCAÇÃO


INFANTIL.

Queila Almeida Vasconcelos (UFRGS)


queilalmeida@hotmail.com.
Sariane da Silva Pecoits (UFRGS)
sariane.pecoits@gmail.com
Maria Carmen Silveira Barbosa (UFRGS)
licabarbosa@ufrgs.br

Resumo
A discussão apresentada neste trabalho busca analisar a participação como direito de
aprendizagem, tal como apresentado na proposta da versão preliminar da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) para Educação Infantil no Brasil, documento que subsidiará
as organizações curriculares das escolas para a primeira infância. O suporte teórico
utilizado para a realização das análises está fundamentado nas concepções sobre
participação infantil pautadas nas interlocuções dos Estudos da Criança (Pedagogia da
Infância, Sociologia da Infância, Antropologia da Infância e Psicologia da Infância). As
estratégias metodológicas foram construídas a partir da análise e discussão entre os
conceitos de direitos das crianças, aprendizagem e participação infantil, e as propostas
referentes ao direito de aprendizagem à participação, presente nos cinco campos de
experiência apresentados na BNCC. O objetivo desta discussão foi aprofundar os
significados atribuídos ao direito de participar, considerando as especificidades das
crianças de zero a seis anos de idade. Neste sentido a discussão foi organizada em três
pontos principais: crianças e aprendizagem; a participação na escola infantil –
especificidades da creche e da pré-escola; a participação e os professores. A discussão
realizada indica que a participação infantil na organização do cotidiano da escola, por
ser atravessada pela concepção de direitos, pelo significado atribuído às ações das
crianças e pelas experiências de participação dos adultos, precisa ser amplamente
debatida nos diferentes âmbitos da escola: com os familiares, entre equipe de trabalho
da escola e com as crianças, no sentido de construir com todos o conceito de
participação assumido pela comunidade escolar. Além disso, ao entender-se a
participação como um direito de aprendizagem é preciso ter claros os conceitos acerca
de como se aprende na infância. E, finalmente que o papel dos professores e demais
adultos da escola, na promoção de um cotidiano escolar que viabilize o direito das
crianças a participar, está intrinsecamente ligado à formação continuada em contexto.
Palavras-chave: Participação; Direitos; Aprendizagem; Educação Infantil.
Iniciando a conversa: o direito de participação e as crianças
A sociedade contemporânea é marcada por inúmeras discussões sobre direitos:
humanos, das mulheres, dos animais, do meio ambiente, etc. É fato que essas discussões
têm contribuído para a qualidade de vida em nosso mundo, porém há ainda muito o que
ser feito para que tais direitos se efetivem. Quando falamos sobre direitos das crianças
essa é uma pauta há pouco tempo presente na agenda pública, visto que a infância é uma
categoria geracional que esteve sempre vinculada aos direitos das famílias ou mesmo
das mulheres. Acreditamos que garantir direitos àqueles que estão chegando agora no
mundo é fundamental para a constituição de uma sociedade mais igualitária e
democrática.

Além disso, com base no atual momento político vivenciado pela sociedade
brasileira em que muitos direitos que incidem diretamente na vida das crianças vem
sendo revogados, como o fechamento de creches universitárias em São Paulo (USP), a
retirada do acompanhamento dos professores aos alunos em horários de almoço e lanche
nas escolas municipais de Porto Alegre, o parcelamento de salário dos professores em
diversos estados, entre outras situações, é de suma importância que a discussão sobre os
direitos das crianças se faça cada vez mais presente nos espaços de luta a favor da
infância.

Isso porque as crianças representam o novo no mundo, ao mesmo tempo que


este se apresenta como uma novidade diária para as crianças. A cada dia, a cada
encontro uma descoberta: desejo, prazer, raiva, tristeza, alegria, satisfação, necessidade
e esses inícios, as primeiras vezes das crianças são mediadas pela sociedade e a cultura
e, principalmente, pela presença da figura do adulto, que tem o dever de zelar e proteger
esses seres que ainda não podem por si só defenderem-se daquilo de mal que o mundo
pode lhes causar (ARENDT, 2009). Nesse sentido, diferente de outras minorias que
podem reivindicar seus próprios direitos, as crianças precisam dos adultos para lutarem
suas batalhas, o que coloca os profissionais de educação infantil na linha de frente, visto
que cada vez mais cedo as crianças iniciam seus percursos pela escola e lá permanecem
por longas jornadas diárias (VASCONCELOS, 2015). Porém, apesar das produções
atuais sobre a infância e das legislações brasileiras referentes à educação infantil
apresentarem, cada vez mais, reflexões sobre a escuta das crianças, a prática e o espaço
de participação delas ainda não é efetivo nas escolas. De acordo com Sarmento (2011),
“Nos habituamos durante muito tempo a pensar as crianças como
seres passivos, destinatários da ação dos adultos, sem vontade, sem
opinião, sem voz. A partir de uma determinada altura, o
reconhecimento de que as crianças são atores sociais, ou seja, sujeitos
com capacidade de ação e interpretação do que fazem, levou ao
reconhecimento da necessidade, e mais que a necessidade, do direito,
da criança em participar da vida coletiva.”. (s/p)

No texto preliminar1 da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) afirma-se às


crianças como um dos seis direitos de aprendizagem, o de participar. Mas o que é
participação? De acordo com Bordenave (1992) participar implica fazer parte, ter parte
e tomar parte de algo. O autor afirma ainda que o homem aprende a participar, o que
coloca a escola como um laboratório vivo, um lugar de aprendizagem sobre a arte da
convivência democrática (BORDENAVE, 1992, p.61). Sendo assim, esse é um conceito
que está diretamente ligado às experiências sociais das pessoas desde o nascimento.
Neste caso os adultos das escolas, que precisam garantir o direito de participação das
crianças, possuem em suas próprias histórias de infância, juventude e adultez
experiências de participação que possam fundamentar seu papel na promoção deste
direito às crianças? Considerando a história social da criança já muito discutida por
diversos autores dos campos da história, psicologia, educação, etc., bem como a
juventude das sociedades democráticas é possível que nossas professoras2 não tenham
tido muitas oportunidades de participação na vida social.

Outra questão importante que trataremos a seguir é considerar que ao definir a


participação como um direito de aprendizagem das crianças nas escolas brasileiras é
preciso compreender as formas que elas aprendem. Especialmente, por tratar-se de um
tema tão subjetivo, visto que, podemos considerar por exemplo, que a escolha por não
participar de algo é também uma forma de participação.

Crianças, participação e aprendizagem

1
O texto utilizado para reflexão neste trabalho é a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular,
liberada para consulta pública em julho de 2016.
2
Optamos pela utilização do termo professoras devido à predominância do sexo feminino, nas escolas de
Educação Infantil brasileiras.
Para falar sobre participação e aprendizagem pela ótica da infância é fundamental
destacar a importância da presença do adulto nessa relação. De acordo com Guillot
(2008)

As crianças na família e na sociedade, os alunos na escola trazem o


novo. A transmissão de um patrimônio é indispensável: não para
reproduzi-lo, recitá-lo do mesmo modo, mas para enriquecê-lo,
vivificá-lo, renová-lo. A autoridade do adulto tem vocação para
autorizar a entrada deste poder de novidade e não para confisca-lo de
início para melhor moldar sua “inquietante estranheza” segundo uma
expressão de Freud. A autoridade é, primeiramente, um ato de
confiança: confiança na humanidade, confiança no outro. (p.13)

Confiar no outro implica estar disponível para aprender com o outro e para
ensinar aquilo que é preciso para que ele possa emancipar-se. No entanto, os adultos
muitas vezes realizam uma projeção do “si-mesmo” com as crianças ao transmitirem
não apenas um patrimônio cultural, mas uma forma de ser: ser criança, ser aluno, ser
cidadão, uma forma de participar. Algumas dessas projeções são carregadas de
significados que posicionam as crianças como dependentes dos adultos. Sim, as crianças
são dependentes dos adultos. Porém o caráter dessa dependência deve ser pautado na
promoção de uma autonomia e não de uma submissão aos ideais dos adultos. As
crianças não devem depender apenas das expectativas dos adultos em relação ao seu
futuro, pelo contrário, devem cumprir com seu papel na sociedade enquanto grupo
geracional da infância, papel apontado por Guillot (2008) de enriquecer, vivificar e
renovar nossas formas de ser humanos.

Como, porém, transmitir um patrimônio social e cultural às crianças sem


colonizá-las, sem transformá-las em pequenos “futuros” cidadãos? O caminho pode
estar na ética da alteridade, em compreender as crianças pelo que são hoje e por suas
potencialidades de criação e compreensão acerca da coletividade, princípio fundamental
da democracia e para o exercício da cidadania. E para isso, precisamos entender quem é
essa criança que hoje se apresenta em nossas escolas, em nossas vidas. Conhecê-las a
partir das suas ideias, linguagens e significações do mundo e não unicamente através de
nossos julgamentos contaminados por nossas experiências do que foi um dia, ser
criança. É, portanto, na escuta às crianças e no diálogo com elas que poderemos
construir com elas horizontes democráticos.
Neste sentido, Jerome Bruner (1997, 2008) e Barbara Rogoff (2005) nos
apresentam duas significativas contribuições para compreendermos o modo pelos quais
as crianças elaboram suas aprendizagens. Os dois autores, localizam-se nas abordagens
socioculturais, que consideram a mente humana como social e cultural desde o
nascimento, e apresentam ideias com origem na influência das concepções
sociointeracionistas de Vygotsky.
Bruner esclarece sobre o papel da descoberta, e de como este processo de
aprendizagem, imbricado no ato de descobrir, depende das ações da própria criança e do
modo como os adultos organizam as condições e os contextos para que tais ações
possam ocorrer. Para o psicólogo, dar condições para que a criança realize descobertas
nos seus processos de aprendizados, “auxilia a criança a aprender uma variedade de
formas de resolver problemas e transformar a informação para melhor utilização, ou
seja, ajuda a aprender como lidar com a tarefa de aprender.” (2008, p.92). E, ainda nesta
direção, fala sobre a abordagem da aprendizagem como tarefa de descobrimento: ao
invés de aprender sobre algo, se aprende com a descoberta de algo.
Rogoff propõe que “a aprendizagem é um processo de participação variável em
atividades da comunidade; é um processo em que se assumem novos papeis e
responsabilidades” (2005, p.233) apontando para a participação das crianças em
situações cotidianas como oportunidade para obter informação e desenvolver
habilidades importantes para a vida em suas comunidades, ou seja, se aprende à medida
que se participa das práticas sociais e culturais de seus grupos de convívio. A autora,
vincula, desta forma, a ideia de aprender à de participar, conforme entrevista concedida
a Gilles Brougère, ao definir que:

Não se pode participar sem aprender. Em qualquer situação


existem aspectos novos. A aprendizagem é uma maneira de
fazer com aquilo que não encontramos antes, quer se trate de
uma coisa bastante similar àquilo com que já nos confrontamos
ou de algo verdadeiramente diferente. (apud BROUGÈRE,
2012, p.318, grifo do autor).
A respeito da participação como aprendizagem constituída pela/na vida
cotidiana, Brougère (2012) apresenta a ideia de uma participação periférica legítima 3
como uma modalidade de participação na qual os iniciantes ocupam

uma posição periférica que permite ao mesmo tempo descobrir,


aprender, antes de dominar as competências de uma participação
plena, mas também construir uma identidade como membro dessa
comunidade. (BROUGÈRE, 2012, p.309).

Esse conceito pode apoiar a ideia de pensar na participação das crianças


pequenas, visto que está atrelado à ideia de estágios de participação, não menos ou mais
importantes, mas de acordo com as possibilidades de cada sujeito (Vasconcelos, 2015).
Essa ideia parece estar presente também nos objetivos de aprendizagem da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) que propõe diferentes estratégias para garantir o
direito de participar às crianças desde o berçário.

Buscando articular estas ideias – aprendizagem por descoberta e aprendizagem


por participação – nos deparamos com as seguintes questões: como a escola de
educação infantil vem lidando com esses modos de aprender das crianças? Que
contextos de aprendizagens são favoráveis à descoberta e à participação de crianças de 0
a 6 anos?

A participação na escola infantil – especificidades da creche e da pré-escola

Neste ponto, pretendemos analisar e interpretar as possibilidades de promoção -


ou autorização - da participação das crianças, conforme orientado pela BNCC.
Iniciamos com a definição do direito de aprendizagem a participar, de acordo com o
descrito no documento:

“PARTICIPAR ativamente junto aos adultos e outras crianças, tanto


do planejamento do gestão da escola, como da realização das
atividades da vida cotidiana: da escolha das brincadeiras, dos
materiais e dos ambientes, desenvolvendo linguagens e elaborando
conhecimentos, decidindo e se posicionando.” (BRASIL, 2016, p.62)

3
O conceito de participação periférica legítima é apresentado no livro Aprender pela vida cotidiana, de
Brougère e Ulmann (2012), em um texto de Vicent Berry, em destaque no tópico “Eu li”. Trata-se de um
relato sobre o livro “Situated learning: legitimate peripheral paticipation”, que é resultado de 5 estudos
etnográficos em comunidades diversas (como os confeccionadores de roupas da Libéria, parteiras na
América do Sul ou, ainda, Alcoólicos Anônimos nos Estados Unidos) realizados pelos pesquisadores J.
Lave e E. Wenger na Cambridge University Press, em 1991.
Esta definição abarca diferentes âmbitos que fazem parte da vida cotidiana e
social na escola, pretendendo garantir às crianças que tomem parte da escola, como
sujeitos que tem suas necessidades, interesses e opiniões levados em conta.

No primeiro campo de experiência, nomeado “O eu, o outro, o nós”, o direito de


participar deve ser garantido às crianças ao

PARTICIPAR das situações do cotidiano, tanto daquelas ligadas ao


cuidado de si e do ambiente, como das relativas às atividades
propostas pelo/a professor/a, e de decisões relativas à escola,
aprendendo a respeitar os ritmos, os interesses e os desejos das outras
pessoas. (BRASIL, 2016, p. 68)

Ao considerar as especificidades das diferentes faixas etárias, podemos sugerir


que participar de situações ligadas ao cuidado de si, por exemplo, inclui respeitar o
corpo dos bebês a cada troca de fralda, comunicando a eles nossas ações e interagindo
de forma implicada e legítima durante esse processo e escutando seus gestos,
movimentos e olhares. O mesmo se aplica aos momentos de alimentação, de higiene das
crianças maiores – seja no momento de acompanhar as crianças na rotineira e complexa
tarefa de se alimentar, seja no ato quase involuntário de limpar o nariz. Da mesma
forma, pensar a organização do cotidiano com as crianças como ação participativa
sugere conhecer e respeitar os ritmos dos pequenos, garantindo, por exemplo, tempo
adequado para as refeições, para o deslocamento de um lugar a outro da escola, para
arrumar-se para ir embora, para organizar-se para dormir e depois também ter seu tempo
para acordar respeitado. É também construir com as crianças maiores diálogos sobre
como a organização do cotidiano é percebida por eles e quais das suas necessidades
podem não estar sendo alcançadas. Por outro lado, também é necessário ajuda-los a
compreender que algumas regras são definidas para o bem comum e para isso é preciso
ajustar nossos desejos com os desejos dos outros. Castro (2010) aponta que a habilidade
em participar não se dá em caráter preparatório, pelo contrário, aprende-se a participar,
participando. É no exercício diário e social de negociação, de escuta, de argumentação e
de escolhas que se constrói o conceito e as práticas democráticas.

Na discussão do campo de experiência “Corpo, gestos e movimentos”,


encontramos que as crianças devem
PARTICIPAR de diversas atividades de cuidados pessoais e do
contexto social, de brincadeiras, encenações teatrais ou circenses,
danças e músicas; desenvolver práticas corporais e autonomia para
cuidar de si, do outro e do ambiente. (BRASIL, 2016, p.71)

Aqui apontamos para a importante diferença que encontramos entre participar,


por exemplo, de encenações teatrais – onde tudo que resta às crianças é reproduzir
fielmente um programa pensado, coreografado e narrado pelos adultos – e a
possibilidade de viabilizar que as crianças conheçam diferentes formatos de encenações,
seja indo ao teatro, seja assistindo filmagens de peças, e então junto com elas pensar em
roteiros, figurinos, interpretações, que tragam à cena o jeito das crianças enxergarem,
imaginarem e produzirem uma ação teatral a partir do que conhecem e das suas imensas
capacidades criativas. Além disso, é fundamental considerar que crianças bem
pequenas, relacionam-se de outra forma com esse tipo de experiência cultural e que é
preciso considerar suas especificidades e não as expor à situações que podem causar
desconforto, medo, insegurança.

Ainda nesta direção, quando se organiza o tempo para que as crianças possam subir as
escadas da escola com autonomia, possam tentar colocar o sapato no seu pé ou no pé do
colega, são importantes episódios de participação que podem oportunizar às crianças o
sentimento de pertencimento do seu corpo, com suas habilidades e possibilidades reais
ao espaço da escola.

Outra questão que queremos evidenciar é a participação das crianças na relação


com a música e a dança, que algumas vezes acontece separadamente, as crianças são
convidadas a cantarem músicas sentadas em rodas ou até mesmo como orientações de
comando (como a música para guardar brinquedos ou para caminhar em fila pelos
corredores da escola). Estas práticas, além de darem um sentido completamente
diferente de apreciação cultural, formatam os movimentos e modos de deslocar-se das
crianças dentro da escola. O direito de participar de atividades do contexto cultural
parece compreender a ideia de contemplar na escola experiências corporais reais de
envolvimento com a música e com a dança como acontece na vida fora da escola.
Podemos ir ao teatro para assistir sentados à um show de música, mas também vamos a
shows abertos para dançar, pular, e deixar que nosso corpo se conecte com as canções
da forma que lhe for conveniente. Dessa forma também é preciso pensar o contato das
crianças com a música e a dança na escola, valorizando o repertório cultural regional, o
que aproxima a vida das crianças fora da escola com a vida de dentro, tornando esse
lugar mais honesto para esses sujeitos.

“Escuta, fala, pensamento e imaginação” é o campo de experiência que


contempla às crianças o direito de participar de

rodas de conversa, de relatos de experiências, de contação e leitura de


histórias e poesias, de construção de narrativas, da elaboração e
descrição de papéis no faz de conta, da exploração de materiais
impressos, analisando estratégias comunicativas, as variedades
linguísticas e descobrindo diversas formas de organizar o pensamento.
(BRASIL, 2016, p.74)

O primeiro ponto que queremos destacar aqui é a roda de conversa, prática


muito comum nas escolas de educação infantil e que na década de 30 já era apresentada
por Freinet como um espaço de participação das crianças na elaboração da imprensa
escolar, no livro da vida e outras técnicas. Considerando-a assim, nos parece incoerente
utilizar esse espaço como um relato de acontecimentos do dia anterior, ou como
momento para chamar a atenção das crianças sobre “comportamentos inadequados”. A
roda de conversa como espaço democrático deve contemplar os interesses de todos os
envolvidos, deve ter tempo para que todos aqueles que desejarem possam se expressar
e, fundamentalmente, deve ser um momento em que ficar calado também é considerado
uma escolha de participação.
Brincar com os amigos e interpretar papeis sem o julgamento ou interferência do
adulto é também uma forma de participação. Interpretamos que ter tempo para elaborar
raciocínios acerca dos materiais que lhes são oferecidos também é. É fundamental
garantir o tempo de repetição das atividades às crianças, visto que suas teorias, como
afirmava Loris Malaguzzi (1999), são provisórias e assim, a cada novidade que o
mundo lhes apresenta, outras relações elas elaboram. Sendo assim, se em um dia as
crianças acreditam que colar um cartaz na sua sala comunicando que os brinquedos do
pátio estão desaparecendo, é preciso que executem essa ideia – mesmo que nos pareça
bastante ineficaz – para que possam, posteriormente, analisar o baixo alcance da
mensagem na instituição e pensar em outra estratégia para que a comunicação se
expanda.
No que se refere aos bebês, acreditamos que, ao estarem em contato com adultos
que conversam com eles, que escutam com atenção seus primeiros balbucios, suas
primeiras palavras e tentativas de comunicação, que conhecem a forma como seu corpo
informa sobre suas necessidades, recebem a mensagem de que são sujeitos respeitados e
parte de igual valor às outras crianças e aos adultos da instituição. Quando os bebês não
são interrompidos em suas ações sem comunicação prévia, quando são acolhidos em
suas relações com o tempo e cuidados necessários para sentirem-se bem, estão
participando de um ambiente onde tem espaço para comunicar, organizar suas emoções
e acomodar seus pensamentos em harmonia.
A escola se faz um lugar comum que clama pelo exercício da democracia, no
sentido reflexivo da palavra: exercitar a arte de conviver com o outro, exercitar a arte de
fazer escolhas que considerem a coletividade, exercitar a criticidade e a complacência.
Desde muito pequenas as crianças podem e devem exercer seus direitos de participação,
segundo Sarmento (2011) “os bebês são capazes de construir processos políticos de
decisão, fazer alianças”, o autor salienta ainda que

“isso tem impacto na vida coletiva dentro da creche. Portanto a


participação é inerente à própria condição do ser humano, pois este é
um ser que age na direção dos outros e que procura que essa ação seja
uma ação entendida e interpretada pelos outros”. (s/p)

É nesta procura por compreensão de suas manifestações que os adultos que


trabalham com crianças pequenas podem estabelecer relações que favoreçam o
exercício democrático dos pequenos desde a primeira infância.

O quarto campo de experiência da BNCC, “Traços, sons, formas e imagens”


sugere que as crianças devem

PARTICIPAR das decisões e ações relativas à organização do


ambiente (tanto no cotidiano como na preparação de eventos
especiais), à definição de temas e à escolha de materiais a serem
usados em atividades lúdicas e teatrais, entrando em contato com
manifestações do patrimônio cultural, artístico e tecnológico,
apropriando-se de diferentes linguagens. (BRASIL, 2016, p. 77)

Pensamos que este é um dos pontos que a escola de educação infantil precisa
ainda dialogar muito em seu cotidiano no que se refere à participação das crianças. É
possível, hoje, no Brasil, visitarmos escolas no Norte e no Sul e encontrarmos em suas
paredes e espaços similaridades que refletem uma cultura adulta de tomada de decisões
sobre que tipo de material, cores, personagens, objetos representam a infância. Parece-
nos difícil conceber que a infância seja assim tão simétrica em um país de tão grandes
dimensões como o nosso. Um espaço organizado com a participação das crianças
garante aos bebês suas necessidades de contato progressivo com o mundo e aos maiores
a valorização da sua identidade com a exposição de suas produções autênticas. Deste
modo
o processo de aprendizagem é concebido em desenvolvimento
interativo entre crianças e o adulto. Os espaços e os tempos educativos
são pensados para permitir a interatividade educativa. As atividades
são concebidas como ocasião das crianças fazerem aprendizagens
significativas (KISHIMOTO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2013, p.
191)

Quando pensamos nos eventos especiais da escola, é preciso considerar, por


exemplo, que uma festa de carnaval pode não ser adequada para crianças do berçário,
que ainda estão iniciando suas inserções sociais e que, além disso, engatinhar por entre
muitas pernas ao som de música agitada e alta não acrescenta experiência significativa
na vida dos bebês. Já as crianças maiores, não tem suas experiências de participação
garantidas apenas quando recebem tarefas na organização dos eventos: pintar máscaras,
fazer ninhos, pintar porta-retratos, cartões, isso não é participar. Participar é
compreender o sentido das ações promovidas pela escola, opinar sobre como gostariam
de fazer parte desses processos, é ter o direito a preparar o ambiente da forma que
garanta a elas o sentimento de pertencimento e autoria.
O último campo de experiência apresentado pela BNCC, “Espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações” aponta que as crianças devem

PARTICIPAR de atividades que oportunizem a observação de


contextos diversos, atentando para características do ambiente e das
histórias locais, utilizando ferramentas de conhecimento e
instrumentos de registro, orientação e comunicação, como bússola,
lanterna, lupa, máquina fotográfica, gravador, filmadora, projetor,
computador e celular. (BRASIL, 2016, p.80)

Neste campo de experiência a participação das crianças reflete um contato real


com as situações da vida cotidiana que possam promover a aprendizagem das crianças
sobre o meio em que vivem. Para isso, os autores do texto sugerem a utilização de
ferramentas de conhecimento que na maioria das vezes não são oferecidas nas escolas, se
não em forma de brinquedos. Neste sentido Vasconcelos (2015) defende que é preciso
pensar a vida cotidiana como espaço rico em possibilidade para participar e aprender na
escola de Educação Infantil, especialmente na creche, afinal “a vida cotidiana é também o
encontro com atividades especializadas que atravessam o cotidiano” (BROUGÈRE, 2012,
p.22). Portanto, as crianças precisam contar com máquinas fotográficas que funcionem
para suas incursões investigativas e de tempo para observar as fotografias registradas,
verificar sua qualidade, se servem para aquilo a que estavam se propondo, etc.

Enquanto que atentar para as características do ambiente e da história local pode


significar, desde as turmas de berçário, a disponibilidade para contar aos bebês sobre os
espaços que frequentam, sobre o que acontece em cada um – como a cozinha, a sala do
sono, o banheiro, por exemplo.

A participação das crianças nas mãos das professoras

Para refletir sobre a relação ‘participação e professores’, acreditamos ser preciso


olhar - também - para além da escola: que espaços de participação estão disponíveis na
sociedade? Como nós professoras nos apropriamos destes espaços e exercemos nosso
direito de participar? Em que medida consideramos a participação um direito e não uma
tarefa/obrigação?

Pensar nas formas como participamos ou deixamos de participar como cidadãos


em diferentes esferas, talvez nos coloque na posição de refletir sobre as formas que
possibilitamos e inviabilizamos a participação das crianças na escola infantil. E, nesta
direção, tal reflexão talvez faça com que possamos nos interrogar sobre as relações que
se estabelecem entre adultos e crianças na escola infantil. Sabemos que estas relações se
desenvolvem de muitos modos: em situações informais do cotidiano da escola, estando
ao lado das crianças em suas brincadeiras, dedicando-se a uma conversa com um
pequeno grupo, nos momentos de higiene. No entanto, queremos abordar um aspecto
dessa relação que se dá no âmbito da organização e do planejamento anterior ao
encontro com as crianças. Queremos enfatizar a organização da rotina das instituições e
as escolhas pelos tempos e espaços que atendam às necessidades da infância, pois essa é
uma forma de participar da vida da escola.

A organização da rotina da escola é, geralmente, de responsabilidade única dos


adultos. Sendo assim, está “nas mãos” das professoras, da coordenação, direção, das
cozinheiras, da equipe de limpeza e, também, do horário de trabalho dos familiares das
crianças. Para que essa organização possibilite a participação das crianças que
frequentam as escolas de educação infantil – escolas estas compreendidas como um
espaço conquistado como direito das crianças à socialização, aprendizagem e relação –
torna-se necessário que esses grupos de adultos se organizem em prol de uma rotina
escolar que atenda às necessidades dos pequenos. E é neste sentido que apontamos a
formação em contexto como uma estratégia de reflexão sobre a realidade, a partir dela
mesma, e a tomada de decisões que qualifiquem a escola com os recursos que nela
existem. Cancian e Goelzer (2016) ao discutir sobre as práticas pedagógicas em uma
escola de educação infantil do interior do Rio Grande do Sul apontam para a constante
busca por

Um projeto de educação infantil que tenha o compromisso com a


formação humana, com a ética, com um projeto que é tecido por todos
os sujeitos envolvidos, e que tece uma infância sem rupturas, uma
infância livre e respeitada. (CANCIAN e GOELZER, 2016, p. 176)

As autoras destacam a importância do trabalho conjunto entre os adultos, da


reflexão sobre suas próprias experiências de infância como suporte para compreender os
sentimentos das crianças em determinadas situações, bem como o tempo necessário para
que as mudanças na escola aconteçam com segurança para todos os envolvidos,
transformando o lugar da impossibilidade no lugar de possibilidades.

Conclusão

A discussão realizada neste texto buscou, a partir da análise do direito de aprender a


participar, preconizados na BNCC, compreender a participação infantil na organização
do cotidiano da escola. Entendemos que, por ser atravessada pela concepção de direitos,
pelo significado atribuído às ações das crianças e pelas experiências de participação dos
adultos, tal discussão necessita ser amplamente debatida nos diferentes âmbitos da
escola: com os familiares, entre equipe de trabalho da escola e com as crianças, no
sentido de construir um conceito de participação assumido pela comunidade escolar.

Ao entendermos a participação como um direito de aprendizagem das crianças na


escola infantil, destacamos que é preciso ter claros os conceitos acerca de como se
aprende na infância e a íntima relação entre a aprendizagem e a participação e, também,
que o papel dos professores e demais adultos da escola, na promoção de um cotidiano
escolar que viabilize o direito das crianças a participar, está intrinsecamente ligado à
formação continuada em contexto.
Neste sentido, Barbosa (2016) nos chama atenção para a participação das
professoras em seus processos formativos ao afirmar que

Esta atitude exige participar de um coletivo de reflexão – escola,


sindicato, grupo de estudo e formação – para a construção de ações
sociais coletivas que realmente tenham significado social e também
para cada criança. Um grupo que tenha pontos de vista diversos e
possa analisar a complexidade do tema. [...] Participar da elaboração
de políticas públicas integradas para a infância e militar pela defesa
dos direitos das crianças – de proteção, provisão e participação – na
família, na escola, na vida... (BARBOSA, 2016, p. 135)

Compreendemos, assim, que a formação em contexto – compreendida também


como ação social e política – ao possibilitar a participação e o engajamento das
professoras em seus processos formativos, rompe com a lógica tradicional transmissiva
e promove outra relação com o processo de aprendizagem, vinculada ao envolvimento
com a experiência, à interação e à participação na construção dos seus conhecimentos.
(KISHIMOTO, OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2013). Acreditamos que, no momento que
as professoras experienciam em sua própria formação esta forma de aprender a
participar e participar para aprender, e à medida que compreendem que as crianças –
pelo modo como aprendem sobre si e o mundo – também são capazes de participar
ativamente de seus processos cognitivos, podemos considerar que a participação deixa
de ser uma ‘tarefa’ e efetivamente torna-se um direito na escola da infância.

Referências

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BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Três notas sobre a formação inicial e a docência na
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BORDENAVE, Juan Díaz. O que é participação? São Paulo: Brasiliense, 1992.
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BRUNER, Jerome. Realidade Mental, Mundos Possíveis. Porto Alegre: Artes
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