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Tudo começa a ficar mais delicado e difícil no texto de Freud. Afinal, quais
seriam as consequências de uma união com o outro se somos porcos-espinhos?
Em última instância, o outro pode ser intolerável na medida mesmo que se
aproxima. De certa maneira os laços sociais estão frequentemente sob o risco de
rejeição e hostilidade. Há algo difícil de suportar quanto à aproximação de um
gozo diferente. Mas ainda não é o pior. A hostilidade também se apresenta em
relação a pessoas queridas, o que implica que pode se inscrever no campo do amor
sob a forma da ambivalência. Temos então, a aversão e a repulsa como traços
quase inseparáveis da nossa condição de seres falantes. O que não quer dizer que
devamos naturalizá-los, muito menos quando ganham expressão social e política
sob a forma de violências de gênero, de classe, racismo, etc. Saber dessa condição
não configura álibi, mas redobra a responsabilidade e a dimensão ética diante das
formas de violência.
O texto de Freud e de Lacan não são, nem podem ser, artifícios para
expectadores privilegiados assistirem espetáculos de violência no coliseu. Vale
dizer que neste mesmo texto de 1921, podemos extrair um valor fundamental para
uma convivência: a solidariedade. O que pode parecer uma referência piegas à
religiosidade, me parece ser muito mais uma indicação ética e política a partir da
leitura de Freud. A solidariedade só nasce da identificação, diz ele. Ou seja, é
preciso um trabalho para levar o outro em conta, para dar a ele um lugar, não
como oferta de um altruísmo bondoso, mas como efeito de um trabalho em
relação à própria economia psíquica(pulsional) de porco espinho.
Inclusive é importante notar que Freud também diz que na massa é possível
tolerar a singularidade do outro, evitando a repulsa. Pode ser que daí possamos
extrair um fio da meada para compreender como os movimentos sociais podem
ser o espaço possível de inscrição de um sujeito no campo do Outro. Entender
como inúmeros jovens constroem seus caminhos para se tornarem negros apenas
em movimentos sociais, apenas no contexto de uma coletividade. Para estes, a
coletividade não é um acidente, é a condição de possibilidade. Afinal, como o
próprio Freud nos mostra, a massa suspende a hostilidade ao operar uma
restrição ao narcisismo. Essa passagem é um convite interessante! Ela não diz
que os movimentos sociais, os movimentos identitários, os movimentos negros,
anti-racistas, por exemplo, estariam restritos ao terreno do narcisismo. Seria
constrangedor alguém aproximar qualquer destes movimentos a uma doutrina
do narcisismo, sobretudo numa cultura racista. Ao contrário, esses movimentos,
podem produzir efeitos de inscrição que viabilizam formas de existência àqueles
que são sistematicamente segregados, como também podem restringir o
narcisismo daquele que agencia a segregação, com a finalidade de manter intacto
seu universal. Dito de outro modo, ao invés de serem movimentos de constituição
de universais, muitos movimentos sociais podem ser formas de furar os
universais naturalizados.
Digo isso porque ser negro não é uma questão de nascimento e cor de pele,
apenas. Diante de uma operação sistemática de precarização, de melancolização
política, tornar-se negro deverá ser uma tarefa a ser empreendida, não
constatada. Contudo, enquanto estivermos sob a prescrição social e política de
uma melancolização, sob formas históricas de violência e hostilidade, não será
nada fácil tornar-se negro, pois implicaria tomar distância desse objeto
censurado, hostilizado, precarizado. Neste caso não se trata de autorizar-se, mas
de tornar-se.
BIBLIOGRAFIA
BUTLER, J. A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Eu. In: Cultura, Sociedade e Religião:
O mal-estar na cultura e outros escritos. Obras incompletas de Sigmund Freud.
Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
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29as Jornadas Clínicas da
Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio e do
Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro
Lógicas coletivas
nos tempos que correm
04 e 05.11.22