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29as Jornadas Clínicas da

Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio e do


Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro
Lógicas coletivas
nos tempos que correm
04 e 05.11.22
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Psicologia das massas em 2022:


pensando a política, os movimentos sociais e o racismo

Por Cleyton Andrade

P sicologia das massas e análise do Eu é um diálogo de Freud com a psicologia


social de sua época, já em declínio, é verdade. Por isso mesmo guarda
elementos de uma historicidade própria de seu tempo, com as perguntas e
respostas que seus contemporâneos apontavam. Justamente por isso ele não só
mantém o termo psicologia das massas como sinônimo de psicologia social,
como percorre boa parte do texto fazendo comentários e críticas a diversos
autores, principalmente Le Bon e MacDougall. Neste caso, uma das perguntas a
serem formuladas é se este texto ainda mantém seu vigor e vitalidade para
pensarmos questões que nos são contemporâneas, ou se é um mero texto de
interesse acadêmico e epistemológico.

O primeiro ponto a indicar é a orientação dada logo de início por Freud:


não há distinção entre psicologia individual e psicologia social, não por se tratar
de um mesmo objeto, mas por uma posição – no mínimo metodológica – de
compreensão social, a partir de elementos e conceitos que são pertinentes a uma
psicologia individual. Ou seja, uma psicologia das massas que possa ser entendida
à luz de uma teoria advinda da análise do Eu. Não é fazer da experiência analítica
o padrão ouro da psicologia social. Não é fazer uma classificação hierárquica onde
a clínica se mostre superior à experiência social, tal como os pós freudianos
pensavam a superioridade da fase genital em relação às demais. Esse erro
conduziria a pensarmos sempre em defasagem os fenômenos de grupo, que, por
razões obvias jamais atenderiam aos critérios do percurso de uma análise. Não se
trata disso, uma vez que resulta, frequentemente, na afirmação pejorativa de que
o terreno das coletividades, dos movimentos sociais, inclusive identitários, sejam
reduzidos a uma teoria do imaginário. É certo que uma das bases de reflexão da
psicologia das massas é justamente a teoria do narcisismo, sem que seja uma
sobreposição ou equivalência. Em resumo, a teoria advinda da análise do Eu é
instrumento indispensável para a compreensão dos fenômenos de massa.

O cenário oferecido por Freud é de uma confrontação entre fenômenos


sociais e processos narcísicos, e não a afirmação que um se reduz ao outro. Ou
seja, a oposição entre individual e social é relida em termos de uma relação tensa
entre narcisismo e teoria da libido, onde o que está em jogo é a satisfação
pulsional. Vale lembrar que é um texto de 1921, um ano depois de Além do
princípio de prazer. Além disso é preciso reafirmar um caráter eminentemente
social na pulsão.

Para Freud, a organização da massa ocorre quando ela adquire


características de um indivíduo. Se por um lado, um indivíduo pode se diluir na
massa, esta se organiza quando se estrutura ao modo de um sujeito. A massa,
neste caso, não seria um coletivo de sujeitos, mas ela própria, deve ser entendida
como um sujeito. Aquilo que havia ficado em suspensão em cada um, retorna
como condição e predicativos da massa.

O aumento do afeto e inibição do pensamento, como a sugestionabilidade,


eram duas teses relevantes a respeito das massas. Freud acolhe a preponderância
do afeto, fazendo dele uma noção fundamental para qualquer debate que inclua
questões sociais e políticas. Ao mesmo tempo, sem desconsiderar a subordinação
do pensamento ao afeto, destaca que a massa é capaz de produções intelectuais.
Ela é portadora de um saber, seja do saber próprio à língua – como já mostrara
tanto em Psicopatologia cotidiana, quanto na parte inicial de O Infamiliar – ou
nas canções populares, folclore, etc. Há aqui uma boa fonte de investigação para
aqueles que se interrogam pelo debate da psicanálise com as questões coloniais
de descoloniais ou decoloniais, bem como para uma reflexão acerca dos saberes
em jogo nas tradições e epistemologias não européias, como, por exemplo, nas
epistemologias ameríndias, africanas, orientais, etc.

Se levarmos em conta a indicação freudiana de um saber das massas


constituindo diferentes gramáticas, e diferentes possibilidades de racionalidade,
teremos que nos perguntar pelos efeitos de levar isso à sério. Ignorar tal questão
poderia criar impasses constrangedores, como, por exemplo, ao tentarmos
entender a razão de Lacan fazer uma distinção entre o grego e o chinês para
pensar letra, ou ao falar do sujeito japonês como inanalisável. Não seria prudente
acolher essas questões e ignorar as anteriores. No mínimo seria importante
enfrentá-las.

Quanto à sugestionabilidade, Freud a desloca para mais um conceito


advindo da análise do Eu. No lugar da sugestão, a libido. Portanto, para pensar o
social, o político, o afeto e a libido são noções fundamentais. A questão sobre o
gozo não pode ser deixada de fora ao adentrarmos nesse universo de discussão.

Nesse campo em que predominam o afeto e a libido, Eros é o nome da força


que mantém uma união e está na base de sustentação da massa. São as relações
amorosas que estão em jogo, e a identificação é sua primeira manifestação.
Contudo, nem tudo são flores, afinal o ódio também é elemento unificador. Tanto
um quanto o outro são em rigor, ligações afetivas. Portanto, o ódio também une
a massa.

Tudo começa a ficar mais delicado e difícil no texto de Freud. Afinal, quais
seriam as consequências de uma união com o outro se somos porcos-espinhos?
Em última instância, o outro pode ser intolerável na medida mesmo que se
aproxima. De certa maneira os laços sociais estão frequentemente sob o risco de
rejeição e hostilidade. Há algo difícil de suportar quanto à aproximação de um
gozo diferente. Mas ainda não é o pior. A hostilidade também se apresenta em
relação a pessoas queridas, o que implica que pode se inscrever no campo do amor
sob a forma da ambivalência. Temos então, a aversão e a repulsa como traços
quase inseparáveis da nossa condição de seres falantes. O que não quer dizer que
devamos naturalizá-los, muito menos quando ganham expressão social e política
sob a forma de violências de gênero, de classe, racismo, etc. Saber dessa condição
não configura álibi, mas redobra a responsabilidade e a dimensão ética diante das
formas de violência.

O texto de Freud e de Lacan não são, nem podem ser, artifícios para
expectadores privilegiados assistirem espetáculos de violência no coliseu. Vale
dizer que neste mesmo texto de 1921, podemos extrair um valor fundamental para
uma convivência: a solidariedade. O que pode parecer uma referência piegas à
religiosidade, me parece ser muito mais uma indicação ética e política a partir da
leitura de Freud. A solidariedade só nasce da identificação, diz ele. Ou seja, é
preciso um trabalho para levar o outro em conta, para dar a ele um lugar, não
como oferta de um altruísmo bondoso, mas como efeito de um trabalho em
relação à própria economia psíquica(pulsional) de porco espinho.

Inclusive é importante notar que Freud também diz que na massa é possível
tolerar a singularidade do outro, evitando a repulsa. Pode ser que daí possamos
extrair um fio da meada para compreender como os movimentos sociais podem
ser o espaço possível de inscrição de um sujeito no campo do Outro. Entender
como inúmeros jovens constroem seus caminhos para se tornarem negros apenas
em movimentos sociais, apenas no contexto de uma coletividade. Para estes, a
coletividade não é um acidente, é a condição de possibilidade. Afinal, como o
próprio Freud nos mostra, a massa suspende a hostilidade ao operar uma
restrição ao narcisismo. Essa passagem é um convite interessante! Ela não diz
que os movimentos sociais, os movimentos identitários, os movimentos negros,
anti-racistas, por exemplo, estariam restritos ao terreno do narcisismo. Seria
constrangedor alguém aproximar qualquer destes movimentos a uma doutrina
do narcisismo, sobretudo numa cultura racista. Ao contrário, esses movimentos,
podem produzir efeitos de inscrição que viabilizam formas de existência àqueles
que são sistematicamente segregados, como também podem restringir o
narcisismo daquele que agencia a segregação, com a finalidade de manter intacto
seu universal. Dito de outro modo, ao invés de serem movimentos de constituição
de universais, muitos movimentos sociais podem ser formas de furar os
universais naturalizados.

Quero destacar um dos desdobramentos do tema da identificação neste


texto de 1921, tentando colocá-lo diretamente em face de alguns dos pontos que
esta jornada pretende discutir. Ao discutir a identificação, Freud aborda a
melancolia. Nela há a autodepreciação do Eu, uma autocrítica impiedosa,
autocensuras e uma vingança do Eu sobre o objeto. Alguns autores já se valeram
de Freud para pensar a melancolia como um afeto político fundamental. Como
por exemplo Judith Butler. Penso ser possível construir um campo de debate
frutífero onde a melancolia, no contexto da Psicologia das massas e análise do
Eu possa instrumentalizar uma crítica social e política ao racismo.

A melancolia não como uma categoria clínica, mas como um processo


político e institucional. Para isso seria preciso pensar a melancolia ou
melancolização, através da identificação com o objeto degradado, depreciado, me
referindo a minorias sociais, como a população negra ou indígena, por exemplo.
Se concebermos o Outro social como produtor de discursos racistas, numa
sociedade ordenada a partir de um racismo estrutural, teremos não apenas
minorias eventuais ou espontâneas, mas sim construídas e mantidas por estes
discursos. A questão que coloco é sobre o modo com que o racismo estrutural
incide sobre os corpos negros. Bem como sobre os efeitos deles se identificarem
com o objeto perdido e depreciado pelos discursos. Não me refiro a questões
meramente teóricas, mas ao cotidiano das operações materiais de precarização
como uma forma sistemática de melancolização dos corpos. O que resultaria na
compreensão do negro como uma morfologia da inferioridade.

Digo isso porque ser negro não é uma questão de nascimento e cor de pele,
apenas. Diante de uma operação sistemática de precarização, de melancolização
política, tornar-se negro deverá ser uma tarefa a ser empreendida, não
constatada. Contudo, enquanto estivermos sob a prescrição social e política de
uma melancolização, sob formas históricas de violência e hostilidade, não será
nada fácil tornar-se negro, pois implicaria tomar distância desse objeto
censurado, hostilizado, precarizado. Neste caso não se trata de autorizar-se, mas
de tornar-se.

A consciência moral é formada e configurada socialmente. Um objeto depreciado


não o é por natureza, é um produto de uma operação. Neste sentido, o racismo
negro é uma produção branca. Se uma consciência moral é configurada
socialmente, compondo uma certa gramática de relações, podemos entender que
outras gramáticas também configuradas socialmente, são possíveis. Portanto, a
compreensão de que a segregação, a hostilidade, agressividade e intolerância são
estruturais, elas de modo algum são naturais. Se um movimento social permite
em sua coletividade a saída de uma melancolização social e política instituída por
discursos e gramáticas, talvez ele possa, igualmente, em algum momento,
produzir efeitos de um ato analítico, ou melhor, de um ato político, perturbando
a estabilidade narcísica das gramáticas que se pretendem universais. O ato
político do movimento das massas, se houver, será aquele que ao contrário de
formar novos universais, vier para desfazer nossa crença nos universais que não
reconhecemos como tais.

BIBLIOGRAFIA
BUTLER, J. A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017.

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Eu. In: Cultura, Sociedade e Religião:
O mal-estar na cultura e outros escritos. Obras incompletas de Sigmund Freud.
Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

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