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PSICANALISE E EDUCAÇÃO NA OBRA DE FREUD: CONFLITO ENTRE A


LIBERAÇÃO DAS PULSOES E AS EXIGENCIAS DA CULTURA

Regina Helena de Freitas Campos


Faculdade de Educação da UFMG
2007

A preocupação em deduzir da psicanálise princípios que orientassem


a educação das crianças está presente na obra de Freud e dos primeiros
psicanalistas vienenses desde o início do século XX, a partir da publicação dos
Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, e das discussões da Sociedade
Psicanalítica de Viena. Nessa época, os trabalhos de Freud já continham
descobertas que chamavam especialmente a atenção para os acontecimentos
da infância na determinação da estrutura psíquica do adulto e, por conseguinte,
para a importância da educação na formação da personalidade. Dentre estas
descobertas, cumpre lembrar principalmente a função dos traumas infantis na
etiologia das neuroses e a revelação do funcionamento da sexualidade infantil.
Para o próprio Freud e os primeiros psicanalistas parecia natural que, se os
traumas infantis tinham um papel fundamental na determinação de problemas
psíquicos futuros, então certas intervenções na infância e mudanças na
maneira de se educar as crianças poderiam contribuir para a prevenção das
neuroses. Este raciocínio deu origem ao movimento da higiene mental, e à
busca por uma pedagogia de base psicanalítica na Europa Central. Por volta
de 1905,

Freud e seu círculo de pioneiros estavam fascinados com o potencial


de melhoria implícito em uma nova educação inspirada na
psicanálise, que o próprio Freud chamava "a educação principesca
baseada na linha psicanalítica."1

1
Cohen, S.(1979). "In the Name of the Prevention of Neurosis: the Search for a Psychoanalytic
Pedagogy in Europe 1905-1938", p. 185, tradução nossa.
2

Este movimento ganhou força principalmente durante as décadas de


1920 e 1930, a partir do trabalho do grupo de analistas que se dedicaram em
especial à psicanálise infantil.
Em relação à possibilidade de deduzir da psicanálise princípios para a
educação de crianças, observam-se, ao longo da obra de Freud, duas
vertentes contraditórias. De um lado, o autor enfatiza o potencial liberador da
psicanálise, convidando à tolerância e à indulgência para com a tendências
pulsionais arcaicas e inconscientes que devem ser liberadas e compreendidas.
Por outro, Freud lembra repetidas vezes a contradição entre certas exigências
da ordem social civilizada e as necessidades da vida pulsional. Neste caso,
acredita que o recalcamento ou a repressão de certos impulsos inconscientes
seriam uma das condições para a própria existência da civilização tal como a
conhecemos. A vertente liberadora, anti-repressiva, encontra-se com mais
freqüência na primeira fase da obra de Freud, anterior à Primeira Grande
Guerra, enquanto que a ênfase maior na necessidade da sublimação das
pulsões mais agressivas é característica da fase de maturidade, posterior a
1920.2
Neste capítulo, examinaremos a evolução dessas duas vertentes das
idéias de Freud a respeito da educação e da possibilidade de uma pedagogia
psicanalítica no contexto da sociedade conservadora da Viena do início do
século, e dos movimentos sociais que abalaram a Europa Central entre 1910 e
1940.

2
Cohen, 1979, p. 185-6.
3

Da crítica à cultura conservadora às propostas educativas de liberação


das pulsões

Já em 1908, em Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervosa


Moderna,3 o problema da contradição entre as tendências sexuais "naturais" e
as exigências culturais é explorado por Freud. Após reconhecer, na moderna
sociedade ocidental, a existência de uma dupla moral sexual, que impulsionaria
"seus membros a ocultar a verdade, a pintar as coisas com falsas cores, a
enganar-se a si mesmos e a enganar aos demais", 4 o autor comenta a relação
entre as exigências culturais e a difusão de doenças nervosas apontada por W.
Erb, Binswanger e von Kraff-Ebing. Para Freud, o fenômeno apontado por
aqueles autores, e por eles atribuído a transformações na sociedade
ocasionadas por mudanças no modo de vida urbano-industrial, seria com
melhor razão atribuído à própria existência de uma dupla moral sexual, ou
melhor, à contradição entre esta moral cultural e as disposições constitucionais
dos indivíduos. Reconhece que

nossa civilização repousa totalmente sobre a coerção das pulsões.


Cada indivíduo renuncia a uma parte de seus atributos, a uma parcela
de seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas
ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o
acervo cultural comum de bens materiais e ideais. Além das exigências
da vida, foram sem dúvida os sentimentos familiares derivados do
erotismo que levaram o homem a fazer essa renúncia, que tem
progressivamente aumentado com a evolução da civilização.5

3
Todas as citações de Freud constantes deste capítulo foram retiradas de Freud, S. (1973).
Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva, trad. direta do alemão por Luis L. Ballesteros y
Torres. A tradução para o português é nossa, após consulta à tradução brasileira contida na
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1976.
4
Freud., S. La Moral Sexual "Cultural" y Ia Nerviosidad Moderna. (1908). In Obras Completas,
vol. I, op. cit., p. 1249.
5
Freud, S. Moral Sexual., op. cit., p. 1252.
4

O argumento que então desenvolve o autor, já esboçado no texto


citado, é o de que as exigências culturais não seriam apenas externas ao
indivíduo, mas derivadas de conflitos internos entre as tendências pulsionais e
os sentimentos em relação à família. A resolução destes conflitos se daria na
forma de um deslocamento das pulsões sexuais primitivas para finalidades
socialmente valorizadas, através do mecanismo da sublimação. Isto seria
possível devido ao fato de que a pulsão sexual no homem não teria por objetivo
apenas a reprodução, mas o prazer. No curso da evolução individual, parte da
energia derivada das pulsões sexuais se dirige efetivamente à reprodução,
enquanto outra parte, aquela derivada de pulsões sexuais não dirigidas
diretamente à reprodução, pode ser sublimada. Assim, Freud distingue três
organizações culturais possíveis: aquela em que a atividade da pulsão sexual
se dirige livremente a objetivos que ultrapassam o objetivo de reprodução;
aquela em que a pulsão sexual é reprimida salvo nos casos em que tem por
objetivo preciso a reprodução; e, finalmente, aquela em que só a reprodução
legítima, isto é, dentro dos padrões vigentes de organização familiar, é
considerada e permitida como finalidade sexual.
Na cultura européia de sua época, Freud localizava o primado do
terceiro padrão de moralidade sexual. Este padrão, por sua vez, quando
imposto a todos os membros da sociedade, seria fonte de conflitos para os
indivíduos cuja constituição a ele não se adaptasse com facilidade. A propósito,
o autor observa que

uma das mais óbvias injustiças sociais é que os padrões de civilização


exigem de todas os indivíduos uma idêntica conduta sexual, a qual,
fácil de observar para aqueles cuja constituição o permite, impõe a
outros os mais graves sacrifícios psíquicos. É claro, contudo, que esta
injustiça fica eludida, na maior parte dos casos, pela transgressão aos
preceitos morais6.

Fica assim colocada a necessidade que este arranjo cultural engendra


da existência de uma dupla moral sexual, ao lado da exigência de sacrifícios
psíquicos para aqueles que não se dispõem a transgredir a ordem
6
Freud, S. La Moral Sexual., op. cit., p. 1255.
5

estabelecida. Freud então se pergunta sobre qual seria a relação custo-


benefício entre os danos eventuais que a renúncia à satisfação dos impulsos
primários engendra, e as possíveis vantagens culturais que dela decorrem.
Para responder a esta questão, observa que o deslocamento das energias
derivadas dos impulsos sexuais para finalidades culturais mais elevadas,
através da sublimação, só seria acessível a um número pequeno de indivíduos
de nível intelectual mais sofisticado, caso dos artistas e dos cientistas. Para a
grande maioria dos indivíduos, a escolha estaria entre a submissão às
exigências de abstinência sexual requeridas pelo padrão moral vigente, ou a
transgressão à norma. No primeiro caso, a alternativa seria quase sempre uma
exigência do trabalho psíquico de repressão dos impulsos sexuais primários
que resultaria na elaboração de sintomas neuróticos. No segundo caso,
restaria ao indivíduo enfrentar a rejeição da sociedade.
As vantagens culturais trazidas pelo arranjo moral imposto são, para
Freud, difíceis de serem avaliadas, de mais a mais na medida em que

na imensa maioria dos casos a luta contra a sexualidade esgota as


energias disponíveis do caráter, e isto em uma época em que o jovem
precisa de todas as suas forças para conquistar sua participação e
seu lugar na sociedade.7

Por conseguinte, para o autor os sacrifícios individuais impostos pela


moral sexual civilizada nem mesmo trariam vantagens culturais substantivas.
Esta moral apenas estaria contribuindo para aumentar os problemas psíquicos
entre os indivíduos a ela submetidos, homens e mulheres insatisfeitos e
incapazes de atingir a plena felicidade pessoal, e de atingirem sua plena
capacidade cultural. Neste texto, Freud enuncia as considerações que seriam
futuramente utilizadas por Wilhelm Reich no desenvolvimento de sua teoria
acerca da relação entre cultura e libido.8
A conclusão de que uma educação menos repressiva, que possibilitasse

7
Freud, S. La Moral SexuaL., op. cit., p. 1257.
8
Reich, W. Psicologia de Massa do Fascismo. Porto: Publicações Escorpião, 1974 (1a. ed.
1933); d. também Reich, W. Irrupção da Moral Sexual Repressiva. São Paulo: Martins Fontes,
s/d (Ia. ed. 1932), e Reich, W. Psicopatologia e Sociologia da Vida Sexual. São Paulo: Global,
s/d (1a. ed. 1927).
6

maior autonomia aos indivíduos na busca da satisfação apropriada a suas


tendências íntimas, poderia engendrar cidadãos mais saudáveis do ponto de
vista psíquico, com maior possibilidade de atingir a felicidade pessoal e até
mesmo de serem mais produtivos culturalmente, impõe-se no final do texto.
Freud, no entanto, tem o cuidado de comentar que "não é certamente
atribuição do médico propor reformas sociais”. 9 Exime-se, assim, de deduzir de
suas considerações as conclusões pertinentes à orientação dos educadores,
deixando a outros a tarefa de fazê-lo.
Em mais de uma ocasião, com efeito, nosso autor observa não ter
contribuído de fato na proposição de aplicações da psicanálise à pedagogia. Já
na História do Movimento Psicanalítico, em 1914, comentava que as
descobertas revolucionárias da psicanálise relativas ao papel desempenhado
pelos impulsos sexuais na vida psíquica das crianças logo seriam aproveitadas
pela pedagogia, e atribuía ao pastor suíço Pfister o mérito de haver iniciado a
reflexão sobre a aplicação da psicanálise à educação. 10 Na Autobiografia, de
1924, observa que

Pessoalmente não acrescentei nada à aplicação da psicanálise à


pedagogia; mas era natural que aquelas descobertas analíticas
referentes à vida sexual e ao desenvolvimento anímico das crianças
atraíssem a atenção dos pedagogos e lhes revelassem sob uma nova
perspectiva seu trabalho educativo.11

e volta a elogiar o trabalho de Pfister na Suíça. Cita também as reflexões sobre


o tema feitas por Hug-Hellmuth e Bernfeld, em Viena, e, em nota de 1935, o
trabalho de análise de crianças desenvolvido por Melanie Klein e Anna Freud.12
Quais seriam, afinal, as descobertas da psicanálise que, na opinião de
seu criador, deveriam interessar aos educadores? Certamente Freud se refere
à descoberta da sexualidade infantil, e à importância da evolução dos impulsos
sexuais na infância para a formação do caráter e estruturação da vida afetiva,

9
Freud, S. La Moral SexuaL., op. cit, p. 1261.
10
Freud, S. Historia deI Movimiento Psicoanalítico (1914). In Obras Completas, op. cit, p. 1913.
11
Freud, S. Autobiografia (1925). In Obras Completas, op. cito, p. 2797.
12
Autobiografia, op. cit., p. 2797.
7

intelectual e social do adulto.


8

Da crítica à família autoritária à prevenção da neurose através da


educação

Já nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, de 1905, Freud


comenta que a compreensão do desenvolvimento da criança não pode
prescindir do conhecimento das pulsões sexuais que o direcionam. Para ele,

o que chamamos o "caráter" de um homem é construído em grande


parte com o material de excitações sexuais, e se compõe de pulsões
que foram fixadas desde a infância, de construções alcançadas por
meio da sublimação e daquelas construções destinadas a conter os
impulsos perversos e reconhecidos como inutilizáveis.13

O estudo das perturbações neuróticas em adultos mostrara que o


psiquismo infantil seria determinado, desde o início do processo de
desenvolvimento, pela busca do prazer sexual, na acepção ampliada do
conceito de sexualidade proposta pela psicanálise. Este prazer estaria
relacionado a excitações em determinadas áreas do corpo, e o processo de
desenvolvimento seria justamente o processo através do qual a criança
venceria progressivamente as fixações sexuais primitivas para atingir a
maturidade sexual durante a adolescência. Esta evolução dos impulsos sexuais
seria acompanhada de reações psíquicas associadas à escolha de objetos de
afeto, demonstrando uma riqueza extrema na vida anímica infantil, riqueza esta
até então insuspeitada.
A evolução dos impulsos sexuais infantis, intensa até os cinco ou seis
anos de idade, conheceria então um período de latência entre os sete e os dez
anos de idade, durante o qual seriam definidas "as condições da evolução do
homem em direção à civilização, mas também de sua predisposição à
neurose.14

13
Freud, S. Tres Ensayos para una Teoría Sexual (1905). In Obras Completas, op. cit, Tomo
11, p. 1235.
14
Freud, S. Tres Ensayos..., op. cit., p. 1231-2.
9

Ao longo dos Três Ensaios, a questão do papel que deve ser atribuído
à constituição inata ou à educação na determinação da orientação dos
impulsos sexuais infantis é examinada. Para Freud,

a constituição definitiva da vida sexual é, antes de tudo, o resultado


da constituição inata. Contudo, não se pode negar que nesta
interação de fatores pode também haver lugar para a influência
modificadora dos acontecimentos vividos acidentalmente na infância e
em épocas posteriores a ela.15

Propõe então que se considere que os fatores inatos e os


"acidentais", derivados de experiências vividas na infância, teriam um papel
complementar na determinação da estrutura da personalidade do adulto. Freud
observa que, em teoria, os fatores constitucionais, isto é, inatos, pareciam ter
um papel preponderante. Entretanto, a prática clínica mostrava que os fatores
derivados do ambiente e da educação eram talvez mais importantes que os
primeiros, uma vez que as disposições constitucionais teriam que esperar, para
se revelar inteiramente, o jogo de acasos e acidentes promovido pela
educação. Entre os fatores acidentais mais importantes na determinação da
estrutura da vida psíquica do adulto, Freud via sem sombra de dúvida "os
acontecimentos da primeira infância",16 isto é, aqueles acontecimentos
ocorridos no período anterior à fase de latência. Conclui então pela existência
de uma série disposicional, que seria constituída pelos fatores inatos, e uma
série definitiva, constituída a partir da relação de complementariedade que se
estabeleceria entre os primeiros e os acidentes da educação.
Estas colocações, associadas ao comentário recorrente acerca do
antagonismo existente entre a civilização e o livre desenvolvimento da
sexualidade, abrem o caminho para a proposta de uma pedagogia psicanalítica
de tendência liberadora. A orientação educacional de linha psicanalítica que se
pode ler nas entrelinhas da obra freudiana da primeira década do século XX
enfatiza que a repressão das pulsões sexuais naturais, isto é, inatas, da

15
Ibidem, p. 1235.
16
Freud, S. Tres Ensayos..., op. cit., p. 1235.
10

criança pode ter um papel importante na etiologia das neuroses. Se isto é


verdade, então os educadores poderiam contribuir para diminuir a incidência de
problemas psíquicos se fossem mais tolerantes em relação às manifestações
espontâneas da sexualidade infantil.
Mais que isto, o próprio Freud critica a tendência dos pais e
educadores em esconder das crianças a verdade sobre o funcionamento da
sexualidade humana. No Esclarecimento Sexual da Criança, que contém carta
aberta dirigida ao Dr. M. Furst respondendo a solicitação de orientação sobre
como agir em relação à curiosidade infantil em matéria sexual, Freud observa
que

à exceção do poder de reprodução, a criança parece perfeitamente


capacitada para a vida erótica muito antes da puberdade, e pode-se
afirmar que, ao se lhe ocultar sistematicamente o sexual, só se
consegue privá-la da capacidade de dominar intelectualmente aquelas
funções para as quais já está psiquicamente preparada e fisicamente
apta.17

Assim, a prática de esconder das crianças, pelo maior tempo possível,


as informações sobre a vida sexual e a origem dos bebês seria, segundo
Freud, equivocada. Ele observa que a curiosidade natural da criança leva a
que, desde muito cedo, ela elabore teorias sobre a sexualidade. Se as
informações que demanda sem culpa dos pais e educadores lhe são negadas,
é provável que fique prejudicada sua capacidade para o pensamento
independente:

Se o propósito do educador é impedir na criança o pensamento


autônomo, sacrificando sua independência intelectual ao desejo de que
seja o que se costuma chamar "uma criança ajuizada", o melhor
caminho é, certamente, o segredo no terreno sexual e a intimidação
por meio da religião.18

17
Freud, S. La Ilustración Sexual deI Nino (Carta Abierta aI Doctor M. Furst), (1907). In Obras
Completas, op. cit., Tomo 11, p. 1245.
18
Freud, S. La Ilustración..., op. cit., p. 1247.
11

A ironia desta passagem não deixa dúvida quanto à convicção do


autor acerca das conseqüências reais que uma educação mal conduzida
poderia acarretar na formação da criança. Aí se pode ler também a idéia de
que educadores esclarecidos procurariam desde logo satisfazer a curiosidade
infantil, contribuindo assim não só para um crescimento saudável do ponto de
vista afetivo, mas também do ponto de vista da formação do caráter e da
capacidade intelectual. Observa-se aqui um teórico sem medo de orientar os
educadores com sugestões práticas. Neste texto, o autor afirma preferir que a
tarefa de esclarecer as crianças seja assumida pela escola, uma vez que:

A maior parte das respostas à pergunta "como dizê-lo a meu filho?" me


dá uma impressão tão lamentável que chego a preferir que os pais não
se ocupassem do esclarecimento sexual infantil.19

A seguir, todo um programa de educação sexual para as escolas


primárias é apresentado. A sugestão é que a escola inicie a educação sexual
ao estudar o fenômeno da reprodução no mundo animal, observando que o
homem faz parte da categoria dos animais superiores. Assim, a curiosidade da
criança iria sendo satisfeita aos poucos. As características especificamente
humanas da sexualidade, bem como sua significação social, seriam objeto de
ensino ao final do curso primário. Já durante a adolescência seria conveniente,
segundo Freud, colocar a criança - já consciente das manifestações somáticas
da sexualidade - a par das obrigações morais associadas ao exercício de suas
pulsões. Na sua opinião:

Este esclarecimento gradual, sem interrupções e por iniciativa da


própria escola primária, parece-me o único adaptado ao
desenvolvimento da criança e que consegue evitar todo o perigo
possível.20

19
Freud, S. La Ilustración Sexual ..., op. cit., p. 1247.
20
Freud, S. La Ilustración SexuaL., op. cit., p. 1248.
12

Vemos aqui, ainda uma vez, um Freud otimista nas possibilidades de


prevenção de problemas psíquicos futuros oferecidas pela educação. O texto
termina com uma enfática defesa da escola leiga, que segundo o autor teria
melhores condições que a escola confessional de tratar do assunto sem idéias
preconcebidas ou dogmáticas.
13

Liberação dos impulsos e ilustração sexual: a proposta da educação


libertária

Este otimismo em relação às possibilidades preventivas de uma


educação liberal, tolerante em relação à livre expressão dos impulsos
inconscientes, aparece na análise da fobia do pequeno Hans, escrita em 1909.
Ao relatar o caso, Freud observa a contribuição dos pais do pequeno Hans à
solução do caso. Estes, identificados com a teoria psicanalítica, teriam se
proposto educar seu filho "com o mínimo de coerção estritamente necessário
para manter os bons costumes.”21 Em conseqüência desta orientação
educativa, a criança cresce alegre e sincera, na opinião dos pais e do analista.
Também em conseqüência da liberdade com que podia falar de suas angústias
e temores, pensa o autor que se tomou mais fácil ao pequeno Hans, com a
ajuda dos pais, vencer a fobia que o acomete por volta dos cinco anos.
A descrição do caso, marcada por diversas observações que
testemunham compreensão e lealdade por parte de todos os envolvidos - os
pais, o médico e o paciente - evidencia como Freud entende o próprio processo
analítico como modelo educativo. Na sua opinião, a liberdade com que o
pequeno Hans e o pai conversam sobre os sentimentos da criança é que vai
progressivamente permitir que a criança se tome consciente do significado de
seus temores, levando-o assim a vencê-los. Esta liberdade, firmemente
assumida pelos pais da criança, se opõe ao modelo educativo repressor, que
Freud critica duramente. Para ele, a maioria das crianças passa por momentos
de angústia e ambivalência de sentimentos semelhantes àqueles
experimentados pelo pequeno Hans. A educação tradicional, no entanto,
procura dominar as fobias e medos infantis deles derivados "a força de gritos e
ameaças das babás.”22 Esta orientação em nada ajudaria as crianças. Ao
contrário, poderia levá-Ias a reprimir os sentimentos incômodos na infância,
apenas para fazê-los voltar com mais vigor na idade adulta, na forma da
neurose. Desta forma, o autor defende firmemente a idéia de que a forma de se

21
Freud, S. Analisis de Ia Fobia de un Nino de Cinco Anos – Caso "Juanito" (1909). 10
Obras Completas, op. cit., Tomo 11, p.1366.
22
Freud, S. Analisis de Ia Fobia..., op. cit., p. 1437.
14

educar as crianças pode ter um papel decisivo na predisposição a problemas


psíquicos futuros, embora reconhecendo que são ainda em grande parte
desconhecidas as diretrizes que devem nortear a educação voltada para a
prevenção das neuroses:

Que a educação de uma criança possa exercer uma poderosa


influência a favor ou contra a disposição para a neurose é, para dizer o
mínimo, muito provável; mas aquilo que a educação deve visar e quais
devem ser os pontos a serem repelidos são ainda questões muito
problemáticas. Até o momento, a educação só estabeleceu para si a
tarefa de dominar ou, seria mais próprio dizer, suprimir as pulsões. O
resultado não tem sido nada satisfatório. Ninguém se perguntava,
tampouco, a custa de que sacrifícios era conseguida a supressão das
pulsões incômodas.

Apesar destas indefinições, ao autor parece que a psicanálise pode


contribuir para tomar menos penoso, para as crianças, este processo de
recalcamento das "pulsões incômodas", necessário à formação do indivíduo
apto à vida em sociedade e à produção cultural:

Se substituirmos a esta tarefa a de tomar o indivíduo capaz de ser


cultural s socialmente apto à custa de um mínimo de perda de sua
atividade, os esclarecimentos obtidos por meio da psicanálise sobre a
origem dos complexos patógenos e sobre o núcleo de cada neurose
podem reclamar ser considerados pelo educador como indicações
inestimáveis para regular sua conduta em relação à criança.23

A proposta da pedagogia psicanalítica seria, portanto, reprimir o mínimo


possível às manifestações das pulsões inconscientes, ao mesmo tempo em
que se facilitasse à criança compreender a origem de suas angústias,
tornando-a o mais possível consciente. Ao discutir a opinião dos que defendem
a pedagogia tradicional, repressora, opondo-se à proposta da psicanálise na
suposição de que a livre expressão das pulsões e seu acesso à consciência do
23
Freud, S. Analisis de Ia Fobia..., op. cit., p. 1439.
15

sujeito poderiam engendrar no indivíduo atitudes anti-sociais, Freud observa


que, no caso do pequeno Hans,

As únicas conseqüências da análise são precisamente que o pequeno


Hans recobra a saúde, não se assusta mais com os cavalos e trata seu
pai com livre familiaridade, como este mesmo nos comunica, um tanto
divertido. Aquilo que o pai perde em respeito é ganho em confiança.24

Na interpretação do autor, este resultado seria fruto de um processo


de recalcamento das pulsões primitivas obtido por vias diversas daquelas
proporcionadas pela educação tradicional:

É que a psicanálise não destrói o resultado do recalcamento. As


pulsões que antes estavam dominadas e submetidas permanecem
suprimidas, só que este resultado é obtido por outros meios. A análise
substitui a repressão, automática e excessiva, pelo controle moderado
e adequado obtido com a ajuda das mais elevadas instâncias
psíquicas. Em uma palavra: a repressão é substituída por um juízo
condenatório. Isto parece trazer-nos a evidência, longamente
procurada, de que a consciência tem uma função biológica, e que sua
entrada em cena traz uma importante vantagem.25

Em resumo, o processo de educação de base psicanalítica trataria de


obter os mesmos resultados obtidos pela educação tradicional, à custa de
menos sacrifícios para o sujeito e utilizando com sucesso a possibilidade de
vencer as pulsões proporcionada pela existência da consciência individual e
sua capacidade de emitir juízos de valor. Esta possibilidade decorreria,
também, do fato de que o sujeito humano, para Freud, é desde o início um
pequeno pesquisador. Elabora espontaneamente e testa hipóteses sobre si
mesmo e sobre os outros, sobre o funcionamento da sexualidade humana e
sobre a sua relação com sua família. Esta seria uma outra possibilidade aberta
pela existência da própria consciência, possibilidade lembrada também por

24
Freud, S. Analisis de Ia Fobia..., op. cit., p. 1438.
25
Ibidem, p. 1439.
16

Piaget. O conceito de consciência em Piaget, no entanto, é diferente em


importantes aspectos daquele proposto por Freud, principalmente porque, para
Piaget, a consciência é uma atividade de construção permanente, e não
apenas um "órgão de sentidos interno", encarregado de trazer à luz
lembranças e elaborações já presentes no inconsciente. 26 Estas considerações
não invalidam, porém, o fato de que, no caso do pequeno Hans, Freud
claramente opta pela postulação de um sujeito que ativamente busca respostas
para as questões colocadas por suas preocupações e afetos. A conseqüência
da postulação deste modelo, no caso da educação, é que convém dar livre
curso à curiosidade infantil, se se quer minimizar o sofrimento do sujeito e, ao
mesmo tempo, prevenir problemas futuros. Além disso, também neste texto
Freud sugere enfaticamente que informações sobre a vida sexual dos adultos
não devem ser negadas às crianças, e ressente-se de que os pais de Hans não
tivessem sido mais explícitos na satisfação da curiosidade da criança em
relação à origem dos bebês.27 Assim, mais uma vez o tema da educação
sexual das crianças volta a preocupar o autor, repetindo as colocações de
1907.
No período entre 1907 e 1909, estas preocupações em relação à
educação e à informação sobre a sexualidade foram frequentemente discutidas
nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena.28 Nessas reuniões, embora
cuidadoso nas recomendações, Freud insistia na idéia de que a educação
sexual aberta e franca poderia agir como proteção contra as neuroses. Na sua
opinião, a atmosfera de segredo com que eram geralmente tratadas as
questões da sexualidade fazia com que, pelo resto da vida, os indivíduos
tendessem a considerá-las proibidas. Sua proposta era contribuir para apagar
este estigma da sexualidade, de mais a mais porque as proibições e segredos
pareciam impedir até mesmo o desenvolvimento intelectual autônomo das
crianças.

Controle dos impulsos e sublimação: sob o domínio do princípio da

26
Cf. Piaget, Jean (1975). O Nascimento da Inteligência na Criança (Rio de Janeiro: Zahar
Editores); do mesmo autor, A Formação do Símbolo na Criança (Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1975).
27
Freud, S. Análisis de Ia Fobia..., op. cit., p. 1439.
28
Cohen, S. (1979), p. 188
17

realidade

Esta tendência radical, libertária, que se observa na proposta


pedagógica de orientação psicanalítica das primeiras obras de Freud é
contrabalançada, no entanto, por uma tendência a reforçar a necessidade de
adaptar as crianças ao chamado princípio da realidade. Esta última tendência
aparece já nos textos nos quais Freud defende que o próprio tratamento
psicanalítico se constituiria em um processo de reeducação através do qual o
sujeito progressivamente tomaria conscientes seus impulsos primários,
podendo assim melhor dominá-los. É neste sentido que, em 1915, o autor
compara o tratamento analítico a "uma espécie de pós-educação", através da
qual

a vida psíquica do paciente fica modificada de um modo duradouro,


transportada a um grau evolutivo superior e protegida contra toda nova
possibilidade patógena.29

Este ponto de vista está exposto com mais clareza em 1911. Nessa
ocasião, Freud explora a relação entre o princípio do prazer e o princípio da
realidade no equilíbrio do aparelho psíquico. Reconhece que os processos
primários são regidos pelo princípio do prazer. Observa, todavia, que as
dificuldades de realização dos desejos inconscientes através de sonhos ou
outras formas de fantasia fazem com que se imponha ao aparelho psíquico a
necessidade de buscar representar a realidade tal qual é para tentar modificá-
la e, assim, obter a satisfação almejada:

A decepção ante a ausência da satisfação esperada motivou portanto o


abandono desta tentativa de satisfação por meio de alucinações, e
29
Freud, S. Lecciones Introductorias aI Psicoanálisis (1915-1917). In Obras Completas, Tomo
11, op. cit., p. 2404.
18

para substituí-Ia o aparato psíquico teve que decidir-se a representar


as circunstâncias reais do mundo exterior e buscar sua modificação
real. Com isto ficou introduzido um novo princípio da atividade psíquica.
O que se representava na mente não era mais o agradável, mas o real,
mesmo que desagradável. Esta introdução do principio da realidade
trouxe consigo conseqüências importantíssimas.30

É sob a regência do princípio da realidade que o autor coloca então a


emergência das funções da consciência, da atenção, da memória, do
discernimento e do pensamento. O funcionamento destas capacidades é que
tomará possível, a posteriori, a ação que visa a modificação da realidade. O
processo de substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade seria
um processo evolutivo paulatino, que constituiria o próprio processo de
desenvolvimento humano, que passaria progressivamente da satisfação
autoerótica independente à busca da satisfação através da eleição de objeto. A
satisfação autoerótica e ao narcisismo primário corresponderia a pulsão sexual
primária e a função da fantasia, enquanto que à busca de satisfação na relação
objetal corresponderiam as pulsões do ego e as atividades da consciência. A
satisfação substitutiva proporcionada pelas relações objetais seria sempre mais
trabalhosa, requerendo prazos maiores e a capacidade da espera, relevando
pois das funções afetas ao princípio da realidade. Os impulsos inconscientes
primários, no entanto, continuariam sempre a se fazer presentes,
acompanhados da busca da satisfação imediata regida pelo princípio do
prazer. Na opinião do autor,

É este o ponto fraco de nossa organização psíquica, e pode ser


utilizado para submeter de novo ao princípio do prazer processos
mentais já tomados racionais.31

As conseqüências para a orientação do processo educativo deduzidas


destas considerações são importantes. Em primeiro lugar, o autor lembra que

30
Freud, S. (1911) Los Dos Princípios deI Funcionamiento Mental. In Obras Completas, Tomo
11, op. cit., p. 1638-9.
31
Freud, S. 1.os Dos Princípios...,op. cit., p. 1640.
19

um dos elementos essenciais para engendrar a disposição psíquica à neurose


é precisamente o atraso na educação do instinto sexual em direção a sua
submissão ao princípio da realidade. Somente a substituição do princípio do
prazer pelo princípio da realidade, argumenta, garantiria o controle das pulsões
primárias, ao mesmo tempo em que permitiria a obtenção do prazer através da
sublimação. Assim ficaria assegurada ao ego não só a obtenção da satisfação,
mesmo que adiada, mas também a defesa contra possíveis danos psíquicos.
Para o autor, a doutrina da renúncia - enunciada por diversas religiões - não
seria mais que a tradução desta orientação para efeitos educativos. Em
segundo lugar, e fazendo aqui uma referência explícita aos objetivos de
desenvolvimento da racionalidade propostos pela educação formal, Freud
afirma que o melhor meio para vencer o princípio do prazer seria a dedicação à
atividade científica, "que oferece também prazer intelectual durante o trabalho
e uma vantagem prática final.”32 É neste sentido que Freud observa, em
conclusão, que:

a educação pode ser descrita como um estímulo à vitória sobre o


princípio do prazer, substituindo-o pelo princípio da realidade. Ela
tende, portanto, a buscar colaborar com o desenvolvimento do ego,
oferece como recompensa para conseguir esta finalidade o carinho dos
educadores, e fracassa diante da segurança da criança mimada, que
acredita possuir incondicionalmente esse carinho e não se arriscar a
perdê-lo de modo algum.33

Os princípios da pedagogia psicanalítica estão portanto enunciados:


se por um lado é preciso reconhecer a presença das pulsões sexuais infantis e
aceitá-Ias com uma certa tolerância, é preciso também garantir a substituição
progressiva do princípio do prazer pelo princípio da realidade. Nesta última
citação, a recomendação aos educadores no sentido de que utilizem o próprio
mecanismo da transferência e a possibilidade de gratificação implicada na
oferta de seu carinho como artefato educativo é clara. Por outro lado, fica

32
Freud, S. 1...os Dos Princípios..., op. cit., p. 1641.
33
Ibidem, p. 1641.
20

explícita também a necessidade, já lembrada em outras ocasiões, de garantir a


possibilidade de desenvolvimento das diversas funções associadas ao trabalho
intelectual - sobretudo a função da racionalidade através do processo de
substituição e deslocamento do objeto de satisfação propiciado pela
dominância do princípio da realidade. Esta é, em síntese, a formulação a que
havia chegado nosso autor, no que diz respeito à educação das crianças, por
volta de 1915.
21

Da observação da violência social à descoberta das pulsões de morte

Os conceitos desenvolvidos por Freud no período anterior à Primeira


Guerra Mundial, por nós examinados até agora, sofreram algumas
modificações no período posterior à guerra. Se na obra anterior observa-se
uma tendência libertária, tolerante, derivada possivelmente da observação das
conseqüências psíquicas da moral vitoriana da Europa do início do século, no
período posterior ao conflito mundial os horrores da guerra marcam a obra de
Freud com um tom mais pessimista. A ênfase no papel do ambiente e da
educação na etiologia das neuroses é substituída pela ênfase no papel das
pulsões primárias e suas vicissitudes na estruturação do aparelho mental. A
partir deste ponto de vista, parece cada vez mais a Freud que pouco se poderia
fazer para diminuir a força dos conflitos infantis. A criança é vista como vivendo
em um mundo de frustrações, impelida por desejos difíceis de serem
controlados. O conflito e a ansiedade estão indissoluvelmente ligados ao
processo de desenvolvimento.
Em 1920, em Além do Princípio do Prazer, Freud discute
cuidadosamente a origem da compulsão à repetição de acontecimentos
desagradáveis, encontrada em crianças e em indivíduos neuróticos. Pergunta-
se sobre o que levaria o ser humano a procurar repetir acontecimentos que
provocam desprazer, em clara contradição com a idéia de que é o princípio do
prazer que rege o funcionamento do psiquismo. A resposta a esta questão
provoca a modificação da postulação anterior acerca dos dois princípios do
funcionamento psíquico - o princípio do prazer e o princípio da realidade,
baseados, na hipótese inicial, nas pulsões sexuais e nas de autoconservação.
A compulsão da repetição revelaria, ao contrário, que o funcionamento psíquico
estaria regido pela contradição entre as pulsões de vida - o Eros - e as pulsões
de morte. A teima dos sujeitos em provocar a reprodução indefinida de
situações geradoras de sofrimentos psíquicos seria precisamente a expressão
manifesta da existência da pulsão de morte. Em conseqüência, tomava-se
preciso reconhecer que tanto a tendência ao amor, à ternura, quanto os
impulsos agressivos e o ódio decorreriam de tendências primárias,
22

constitucionais no homem.34
Logo em seguida, em 1923, Freud prossegue as reformulações na
teoria psicanalítica, e propõe a segunda tópica, isto é, reelabora as funções do
inconsciente e do consciente a partir da contradição entre pulsões de vida e de
morte. Nesta etapa de seu trabalho, o autor considera que o aparelho psíquico
se diferencia progressivamente em três instâncias, o id, o ego e o superego. O
id seria o depositário das pulsões primárias. Ao longo do processo evolutivo,
parte do id se diferenciaria em ego:

o ego é uma parte do id modificada pela influência do mundo


exterior(...). O ego se esforça em transmitir por sua vez ao id essa
influência do mundo externo e aspira a substituir o princípio do prazer,
que reina sem restrições dentro do id, pelo princípio da realidade. A
percepção está para o ego assim como a pulsão está para o id. O ego
representa o que poderíamos denominar a razão ou a reflexão, por
oposição ao id, que contém as paixões.35

É interessante observar que o ego é resultante da dinâmica da


contradição que se instaura entre as paixões que emergem do id e o mundo
exterior. Deste complexo movimento emerge também outra diferenciação do
ego, que Freud chama superego. O superego, resultante da resolução do
complexo de Édipo, seria o depositário das funções de autocrítica e de
consciência moral. A necessidade da existência desta instância interna de
controle decorreria da força destrutiva das pulsões primárias. Mais uma vez,
Freud chama a atenção para a existência da contradição amor/ódio, ou
ternura/agressividade, como elemento constitutivo do aparato psíquico, e para
a necessidade de um mecanismo de controle interno das pulsões.
Nesta segunda fase de desenvolvimento da teoria psicanalítica, a
marca do pessimismo em relação às possibilidades de prevenção de distúrbios
psíquicos decorre, por um lado, da descoberta das pulsões de morte, que
engendram a agressividade e destruição. De outro lado, decorre da

34
Freud, S. Más Aliá dei Principio dei Placer (1920). In Obras Completas, Tomo 111, op. cit.,
p. 2507-2541.
35
Freud, S. EI "Yo" y el "Ello" (1923). In Obras Completas, Tomo lII op. cit, p. 2708.
23

consciência cada vez maior da complexidade do funcionamento psíquico no


homem. Assim, Freud se distancia do ativismo pedagógico inicial, ao mesmo
tempo em que vê menos possibilidades de prevenção de neuroses, já que as
contradições do psiquismo teriam origens muito mais arcaicas do que ele
mesmo supunha. Em 1926, em Inibição, Sintoma e Angústia, a etiologia das
neuroses é apresentada como decorrendo de três condições inescapáveis da
natureza humana: em primeiro lugar, da condição biológica, expressa no longo
período de dependência vivido pela criança após o nascimento. Para Freud,

Este fator biológico estabelece (...) as primeiras situações perigosas e


cria a necessidade de ser amado, que não abandonará jamais o
homem.36

O segundo fator de risco seria o fator genético, representado pela


interrupção do desenvolvimento da sexualidade no período de latência,
interrupção esta que forçaria o ego infantil a se acostumar a reprimir as
exigências das pulsões sexuais, e a continuar a percebê-las como um perigo
mesmo após a entrada na adolescência. Aqui Freud comenta que

defrontamo-nos (...) com a etiologia mais direta das neuroses e


comprovamos o fato singular de que o primeiro contato com as
exigências da sexualidade sobre o ego atua analogamente ao contato
prematuro com o mundo exterior.37

Por fim, o terceiro fator de risco em relação ao desenvolvimento de


sintomas neuróticos seria o propriamente psicológico, caracterizado por um
defeito de funcionamento do aparato psíquico humano. Este defeito estaria
expresso na diferenciação entre o ego e o id. Enquanto que o ego deve
defender-se dos perigos da realidade exterior, precisa também defender-se de
ameaças internas, provenientes do id. Esta defesa contra impulsos internos só
se poderia fazer à custa da renúncia a partes de si mesmo e da aceitação da

36
Freud, S. Inhibición, Sintoma y Angustia (1926). In Obras Completas, Tomo III, op. cit., p.
2872.
37
Ibidem, p. 2873.
24

formação de sintomas que teriam por função satisfazer de maneira substitutiva


os impulsos primários. As esperanças da prevenção ficam, pois, grandemente
diminuídas diante de dificuldades tão estruturais, determinadas pela própria
constituição da natureza humana em termos biológicos, genéticos e
psicológicos.
25

Contradição entre pulsões primárias e vida em sociedade: a educação


como neutralização da agressividade

No belo ensaio metapsicol6gico da maturidade sobre as relações dos


homens com a cultura, O Mal-Estar na Cultura, a nota pessimista acentua-se
ainda mais. Desta vez, fica definitivamente estabelecida por Freud a afirmação
de uma contradição fundamental entre as pulsões primárias e a vida em
sociedade. Ao colocar novamente a questão da possibilidade de conciliar o
desenvolvimento cultural com a satisfação pulsional, a resposta é negativa.
Nessa época, Freud já não crê que uma maior tolerância para com os impulsos
sexuais poderia harmonizar a vida em sociedade e o desenvolvimento
individual. Com base nas recentes reformulações feitas em sua teoria,
principalmente a partir da postulação da existência da pulsão de morte e da
agressividade estrutural derivada do Édipo, Freud estabelece uma barreira
intransponível entre a cultura e as tendências inconscientes. A vida em
sociedade requer o domínio sobre as pulsões primárias e o desenvolvimento
do superego, isto é, do sentimento de culpa e da moralidade:

o preço pago pelo progresso da cultura reside na perda da felicidade


pelo aumento do sentimento de culpa.38

O argumento do texto é complexo. Não se trata aqui mais de afirmar


que a cultura seria apenas o resultado das limitações impostas à livre
expressão das pulsões derivadas do princípio do prazer por exigência do
princípio da realidade. A partir da postulação da existência da pulsão de morte
e de seu corolário, a agressividade, como tendências primárias do aparelho
pulsional, Freud passa a supor que, conforme observa Renato Mezan, "a
civilização, de modo geral, reprime e sublima tanto as pulsões eróticas quanto
as de morte", sendo que, "mais do que na repressão das primeiras, é na
neutralização das segundas, metamorfoseadas, em agressividade, que

38
Freud, S. EI Malestar en Ia Cultura (1930). In Obras Completas, Tomo lU, op. cit., p. 3060.
26

consiste o essencial do fundamento da cultura."39


Como, na concepção freudiana, seriam neutralizadas as tendências
agressivas no caminho da civilização? Para Freud, a possibilidade da cultura
repousaria na energia liberada das tendências sexuais inibidas em seus
objetivos, tanto em sua vertente amorosa quanto na agressiva. As pulsões
primárias, em seus componentes narcísicos, eróticos e agressivos, teriam que
ser sublimadas e transformadas em atos criativos para que possa existir a
civilização. Este processo, no entanto, seria concomitante ao aumento do
sentimento de culpabilidade, urna vez que toda a energia necessária à inibição
das tendências agressivas seria proveniente do fortalecimento do superego,
fonte permanente de culpabilidade.
A cultura, no entanto, não seria apenas o espaço da inibição, da
coerção "das pulsões primárias, já que ofereceria também possibilidade de
satisfação, mesmo que substitutiva. Todavia, ainda na interpretação de Mezan,

o sacrifício imposto ao homem (...) é para Freud mais poderoso que as


possibilidades de satisfação pulsional oferecidas pela cultura, e isto
não apenas devido às limitações crescentes impostas à sexualidade
(...), mas também e sobretudo por causa da coerção, muito mais
violenta, das tendências agressivas. É por meio do superego e do
sentimento de culpabilidade que se dá esta coerção.40

Nesta tensão permanente, insuperável, entre o indivíduo e a cultura, é


que Freud vê a origem do sentimento de "mal-estar na cultura", e um poderoso
agente na etiologia das neuroses. O mal-estar assim produzido, por outro lado,
é concomitante à própria possibilidade da cultura, tomando assim pouco
provável que a ação esclarecida de educadores pudesse eventualmente
minorar a contradição básica entre a satisfação pulsional plena e a construção
cultural. Por isso, na maturidade Freud é bem menos otimista em relação às
possibilidades de aumentar a felicidade humana proporcionadas pela aplicação
de princípios oriundos da psicanálise à educação.

39
Mezan, R.(1986), p. 502.
40
Mezan (1986), p. 507.
27

Sua recomendação aos educadores, nessa época, será mais


melancólica, embora continue a criticar a falta de sinceridade nas questões
sexuais quando se trata de educar os jovens. A esta crítica, todavia, é agora
acrescentada a de não preparar adequadamente os educandos para os efeitos
das tendências agressivas humanas em sua vida. Assim, em nota ao Mal Estar
na CuItura, Freud comenta que

o fato de que se oculte aos jovens o papel que a sexualidade haverá de


desempenhar em sua vida não é a única censura que podemos fazer à
educação dos dias de hoje. Mais que isto, ela peca por não prepará-los
para as agressões de que estão destinados a ser objeto. Fazendo a
juventude entrar na vida com uma orientação psicológica tão errônea, a
educação se comporta como se enviasse a uma expedição polar um
grupo vestido de roupas de verão e equipado com mapas dos lagos
italianos. Nisto se manifesta um certo abuso dos preceitos éticos, cuja
severidade não sofreria grande prejuízo se a educação dissesse:
"Assim deveriam ser os homens para ser felizes e fazer felizes aos
demais; entretanto, devemos reconhecer que não são assim." Ao
contrário, se deixa crer o jovem que todos os demais cumprem os
preceitos éticos, isto é, que todos são virtuosos, justificando assim a
exigência de que também ele deveria obedecê-los.41

Freud parece assim ter localizado, além da dupla moral sexual de


efeitos tão problemáticos sobre a saúde mental do indivíduo civilizado
denunciada em 1908, uma espécie de duplicidade ética também presente na
sociedade: as exigências éticas mais elevadas seriam impostas aos indivíduos,
sem que os mesmos fossem esclarecidos de que nem todos se adequavam
com precisão aos preceitos tidos como universais. Também neste caso, em
nome da busca da felicidade que atravessa toda a sua obra como uma espécie
de direito fundamental do ser humano, Freud recomenda sinceridade.
Sinceridade quanto ao funcionamento das pulsões eróticas, sinceridade quanto
ao funcionamento das pulsões agressivas, esta parece ser a mensagem de

41
Freud,"S. EI Malestar..., op. eit., p. 3060.
28

Freud aos educadores nos últimos anos de vida, apesar de uma certa
descrença quanto às reais possibilidades de minorar o sofrimento humano
através da ação educativa.
Estas são as palavras explícitas de Freud acerca da educação em sua
obra da maturidade. Contudo, as referências feitas ao longo de sua
argumentação às possibilidades de uma sublimação bem sucedida dos
componentes eróticos, narcísicos e agressivos das pulsões, que poderia ser
alcançada através do trabalho intelectual, também sugerem uma relação entre
a psicanálise e a educação.
29

A sublimação como artefato pedagógico: equilíbrio entre cultura e psiquê

Com efeito, no Mal-Estar na Cultura Freud fornece uma análise


completa do papel da sublimação como mecanismo de defesa contra as
tendências pulsionais primárias através do trabalho intelectual, várias vezes
sugerida ao longo de sua obra. No contexto das satisfações substitutivas que
podem contribuir para minorar a tensão entre pulsões e cultura, o autor coloca
com especial relevo a dedicação à ciência e à arte:

Outra técnica para evitar o sofrimento recorre aos deslocamentos da


libido previstos em nosso aparato psíquico e que conferem grande
flexibilidade a seu funcionamento. O problema consiste em reorientar
as finalidades pulsionais, de maneira tal que suprimam a frustração
com o mundo exterior. A sublimação das pulsões contribui para isto, e
seu resultado será ótimo se se sabe acrescentar o prazer do
trabalho psíquico e intelectual.42

O autor esclarece a seguir que este tipo de satisfação seria encontrado


sobretudo entre artistas, que experimentam em sua criação a realização de
suas fantasias, e cientistas, cujo trabalho de investigação em busca da verdade
seria fonte de um prazer especial. Esta referência ao trabalho de artistas e
cientistas é a seguir ampliada para a consideração da maioria das atividades
humanas, inclusive as dos trabalhadores manuais, pois

a possibilidade de deslocar para o trabalho e para as relações


humanas a ele vinculadas uma parte muito considerável dos
componentes narcísicos, agressivos e mesmo eróticos da libido
confere àquelas atividades um valor que nada deve em importância à
que já têm como condições imprescindíveis para manter e justificar a
existência social.43

42
Freud, S. EI Malestar..., op. cit., p. 3027, g. n.
43
Ibidem, p. 3027, nota n. 1693.
30

Contudo, "o trabalho é menosprezado pelo homem como caminho


para a felicidade," dado que a imensa maioria dos seres só trabalham sob o
império da necessidade.”44 Por este motivo, Freud não vê possibilidade de que
um grande número de indivíduos venha a se beneficiar da satisfação
substitutiva proporcionada pela atividade profissional. Por isso comenta que o
ponto fraco deste método de obter satisfação é que

só é acessível a poucas pessoas, pois pressupõe disposições e


atitudes peculiares que não são precisamente habituais, pelo menos na
medida suficiente.45

Em seguida, acentua a nota pessimista ao comentar que mesmo para


aqueles dotados das habilidades requeridas e capazes de se dedicar de corpo
e alma ao trabalho de criação artística e intelectual, a proteção não é completa,
uma vez que

não são revestidos de uma couraça impenetrável às flechas do destino


e costumam fracassar quando o próprio corpo se converte em fonte de
dor.46

A fonte de prazer em que se pode constituir a atividade humana de


buscar o conhecimento e a criação cultural, seja intelectual ou manual, não é
explorada em suas possíveis conseqüências para a organização da educação
formal. O autor não explora os limites impostos à satisfação no trabalho
presentes em sua própria cultura, mas podemos sem dúvida ler em seu
ceticismo uma referência à observação do status do trabalho humano na
sociedade capitalista de sua época, em relação ao qual as escolhas individuais
eram certamente escassas. A tarefa de buscar as possibilidades educativas
que poderiam ser deduzidas da elaboração teórica referente ao mecanismo da
sublimação é deixada a outros autores.

44
Ibidem.
45
Freud, S. El Malestar..., op. cit., p. 3027.
46
Ibidem, p. 3027.
31

Podemos encerrar esta seção resumindo a posição freudiana no que


se refere às implicações pedagógicas da psicanálise. Na primeira parte de sua
obra, sob o impacto de suas observações críticas em relação à moral vitoriana
e ao autoritarismo na família, Freud revelava um verdadeiro otimismo em
relação às possibilidades de prevenção das neuroses através de uma
educação mais liberal, que enfatizasse a liberdade da criança em viver as
diferentes fases de evolução de seus impulsos libidinais, ao mesmo tempo
informando-a acerca das questões sexuais. Já no período posterior à guerra, a
experiência da violência e da agressividade gratuita conduz a elaboração
freudiana a enfatizar a necessidade de neutralização dos impulsos agressivos,
sobretudo através do mecanismo da sublimação.

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