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Freud e Reich: duas matrizes

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É com alegria que comemoramos os cem anos da publicação de A interpretação dos sonhos, de Freud,
considerado por muitos o marco fundador da psicanálise. É com igual alegria que recebo o convite da
revista Com Ciência para escrever um artigo sobre Reich e sua relação com Freud e a psicanálise.

O convite alegra-me, sobretudo, por tratar-se de uma relação, embora bastante fecunda, muito pouco
explorada pelos historiadores da psicanálise. Não obstante tenha sido um dos mais eminentes
representantes da terceira geração de analistas, Reich é um autor praticamente ignorado pelo movimento
psicanalítico. Basta olharmos as principais biografias de Freud. É verdade que a comunidade reichiana,
devido à sua ainda fraca produção acadêmica, tem grande parcela de responsabilidade pela marginalidade
de Reich. Isso, porém, não isenta o movimento psicanalítico da parte que lhe cabe. Uma coisa é discordar
das opiniões de Reich quanto à sua teoria da genitalidade, sua psicossomática ou ainda a tentativa de
conciliar Marx e Freud. Outra coisa é ignorar os 14 anos de importantes contribuições à psicanálise,
sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento da técnica analítica. Aí, já é um caso de erro histórico.
Falar da relação entre Reich e Freud (e a psicanálise) é, portanto, abordar um campo pouco explorado,
marcado por polêmicas e pela ambigüidade, um misto de admiração e respeito, com frustrações e
desavenças, aliás, bem ao estilo de Freud. Foi assim com alguns de seus principais seguidores que, ao
longo dos anos, tornaram-se desafetos, passaram de aliados a inimigos, de eleitos a excluídos.

São muitos os temas que colocaram Reich em rota de colisão com Freud, aliás, desde sua adesão à
psicanálise, quando retoma a teoria da libido, já um tanto abandonada, e busca investigá-la enquanto
energia biológica concreta, passível mesmo de ser mensurada. Esse é o primeiro passo de muitos na
direção de uma terapêutica que visa conciliar o quantitativo da medicina com o qualitativo da psicologia e
que coloca a realização genital no centro das preocupações clínicas. Fora do campo clínico, porém, não
dissociado dele, há toda a controvérsia envolvendo a militância política de Reich e sua filiação ao partido
comunista, considerado por muitos o grande ponto de atrito entre ele e seu mestre.

Poderíamos aqui abordar cada um desses temas, e seus eventuais desdobramentos, que perpassam tanto o
debate clínico quanto o político, construindo, por assim dizer, o progressivo afastamento de Reich da
psicanálise. Meu objetivo, porém, é dar um passo atrás e focar o que considero estar na origem dessas
diferenças. Refiro-me a elementos presentes nas matrizes filosóficas desses dois autores, em especial a de
Reich, bem menos explorada.

Com o objetivo de dar suporte teórico à psicanálise, Freud, além dos trabalhos propriamente clínicos,
elabora uma teoria da cultura que apresenta dois momentos cruciais. O primeiro aparece em Totem e tabu
e na idéia nele exposta de que a cultura funda-se na culpa resultante do assassinato do pai primitivo e na
conseqüente instauração dos dois tabus a ele associados, a saber, a submissão à autoridade do pai e a
proibição do incesto. Desse modo, a cultura nasceria da interiorização da repressão, sendo esta necessária
para domar as pulsões eróticas que, caso contrário, conduziriam à mera satisfação egoísta dos indivíduos.
Nesse momento, Freud concebia as pulsões eróticas, além de força vital, também como força desruptiva,
passível de repressão para converter-se de força anti-social para força pró-social (isso posteriormente
muda com a adoção da idéia de pulsão de morte).

Em outras palavras, não haveria cultura sem repressão. Édipo, enquanto "atualização" desse feito
fundante, seria um estruturante universal.

Reich torna-se psicanalista alguns anos após a publicação de Totem e tabu e logo depara-se com um
difícil problema. Clinicamente, aceitava-se a idéia, presente inicialmente em Freud, de que a neurose
resultaria de um conflito entre duas forças antagônicas, um desejo de prazer (pulsão) e o medo de punição
(moral social). Ou seja, aceitava-se a idéia de que a repressão produziria neurose.
Em sua teoria cultural, no entanto, Freud afirmava que a repressão era condição para a cultura e, portanto,
necessária.

Diante desse quadro, Reich vê duas possibilidades: ou Freud estava errado em sua teoria sobre a cultura,
ou não haveria saída para o sofrimento humano, já que a repressão era necessária, embora produzisse
neurose. Estaríamos, nesse caso, condenados à resignação.

O segundo momento crucial da teoria da cultura de Freud é a publicação de Para além do princípio de
prazer, obra na qual reformula sua teoria pulsional e apresenta a idéia de uma pulsão de morte. Freud
remetia o conflito psíquico, até então relacionado ao sentimento de culpa, para um confronto entre
pulsões, Eros e pulsão de morte, tornando-o agora ontológico. Com isso, situava a destrutividade na
própria natureza humana e, ao fazê-lo, inviabilizava, segundo Reich, qualquer possibilidade de uma
cultura positiva.

A forte relação com a natureza, desde os tempos de criança, a sólida formação em ciências naturais, além,
é claro, da aposta numa cultura mais saudável, colocam Reich em desacordo com a teoria cultural de
Freud. Ele não aceita uma concepção negativa para as pulsões, tampouco que a natureza concedesse aos
homens um futuro tão sombrio. Diante do dilema colocado pela própria teoria freudiana, Reich opta pela
primeira possibilidade: Freud estava errado, nem a repressão é condição para a cultura, nem a
destrutividade é um atributo da natureza . Era preciso, no entanto, argumentos que comprovassem isso.

Reich parte para a contestação da teoria cultural de Freud, tendo como alvo suas duas pilastras centrais: a
universalidade do complexo de Édipo e a pulsão de morte.

No primeiro caso, vai buscar no materialismo histórico de Marx e Engels a base teórica necessária para
refutar a concepção estática acerca da família e a moral presentes na visão freudiana, afirmando que tanto
uma como outra transformam-se de acordo com os modos de produção historicamente estabelecidos. A
família patriarcal burguesa não é a versão final e acabada da organização familiar.

Nessa mesma direção, busca nas pesquisas antropológicas de Malinowsky a prova empírica da existência
de culturas não repressivas nas quais desenvolvem-se outros modelos familiares. Com isso, Reich mostra
que o triângulo familiar no qual se dá o complexo edípico não é um estruturante universal, mas tão
somente uma formação própria da sociedade patriarcal-autoritária, passível, portanto, de ser transformada.

No segundo caso, tomando por referência suas experiências clínicas, em especial o trabalho com
masoquistas, Reich procura mostrar que as manifestações, descritas por Freud como primárias e que
pareciam contrariar o princípio de prazer, remontavam à uma forma específica de angústia de orgasmo. O
masoquista não busca o desprazer. Ele apenas não consegue viver o prazer na medida em que a angústia
se interpõe entre a pulsão e seu objetivo, fazendo com que o prazer seja sentido como perigo antecipado.
Não se trata, portanto, de pulsão, mas de uma formação secundária, resultante da ação da cultura
repressiva e, por essa razão, desfiguradas de sua natureza original. Reich tem na natureza o grande
modelo de referência para sua concepção de vida. As forças naturais (por exemplo, as pulsões) trabalham
pela e para a vida, jamais contra ela, sendo, portanto, incompatíveis com a destrutividade que Freud lhes
atribui. E mais, são racionais e sociais, conferindo à vida essas mesmas propriedades. O mal, portanto,
não tem sua origem na natureza, mas em outro campo, o campo da cultura, dos homens-em-relação.
Quando a cultura se opõe à natureza de modo sistemático, acaba por degenerar suas forças,
transformando-as em anti-naturais, portanto, irracionais e anti-sociais, causando, agora sim, destruição e
sofrimento, como no caso do impulso masoquista. Reich recorre à imagem de um rio que, uma vez
obstruído em seu leito normal, transborda em suas margens, destruindo todo o que encontra à sua volta. É
o que ocorre com a civilização racionalista/mecanicista, que assume sua forma mais elaborada na
sociedade capitalista burguesa. Isso, porém, não se restringe ao capitalismo. Toda forma de organização
humana que se constituir contra a natureza desembocará na mesma tragédia humana de sofrimento e
destruição que vivemos sob o signo do capitalismo (crítica que Reich acaba estendendo ao regime
soviético). Podemos, assim, estabelecer um paralelo entre as idéias acima expostas e duas importantes
matrizes filosóficas.

A concepção freudiana de natureza e sua eterna desconfiança do indivíduo enquanto portador de


tendências anti-sociais, coloca Freud muito próximo do pessimismo hobbesiano da guerra de todos contra
todos em que "o homem é o lobo do homem". Freud reproduz o modelo cultura versus natureza,
conferindo à primeira o papel de "corrigir" a segunda em suas características egoístas e perigosas,
garantindo que os interesses racionais (um atributo da cultura) se imponham e assegurem a sociabilidade
humana (mesmo que a partir da idéia de pulsão de morte sempre instável). Por outro lado, parece
inequívoca a identificação de Reich com a vertente romântica de Rousseau, na medida em que toma a
natureza como modelo para a vida e para o social, não somente fazendo o resgate positivo daquilo que lhe
é próprio - como as paixões - como ainda conferindo-lhe características pouco comuns - como
racionalidade e sociabilidade. É exatamente esse romantismo rousseauniano que leva Reich a fazer a
crítica da cultura racionalista - da qual Freud é, para ele, um representante - que condena às paixões como
"vilãs" do mundo social, porque instáveis demais para garantirem a confiança mútua dos homens, e,
portanto, da política. Se o modelo político racionalista desconfia da natureza humana, sempre traiçoeira,
propondo, por isso, sua dominação, Reich procura mostrar que é exatamente essa dominação que institui
a degeneração da natureza humana, transformando-a em seu exato oposto (aquilo que tanto assusta os
racionalistas): o que era racionalidade, torna-se irracionalidade; o que era prazer, torna-se desprazer; o
que era sociabilidade torna-se destrutividade social, crimes e guerras. Reich aposta no modelo natureza e
cultura, afirmando que essas categorias se opõe somente quando a segunda se impõe à primeira. É preciso
uma cultura capaz de dar livre fluxo à natureza humana, única maneira de se edificar uma sociedade
realmente racional (e não racionalista), saudável, justa e livre. Sendo já a própria natureza racional e
social, nada há a temer. É nessa direção que Reich elabora uma teoria da sociabilidade denominada
"democracia natural do trabalho".

Assim, antes de mais nada, são duas grandes matrizes filosóficas, a hobbesiana e a rousseauniana, que
colocam Freud e Reich em campos opostos em tantos temas. Defender a realização das pulsões, apostar
numa sexualidade natural, introduzir o corpo no setting terapêutico e postular uma sociedade mais
saudável e livre, implicava, da parte de Reich, combater a matriz hobbesiana presente na teoria cultural de
Freud e, assim, contrapor-se à uma concepção filosófica racionalista que vê a cultura como uma elevação
moral frente à barbárie da natureza e propõe a dominação das paixões humanas como condição para a
sociabilidade e a política.

É certo que essas duas matrizes revelam diferentes e mesmo divergentes "concepções de mundo", o que,
no limite, diz respeito à maneira como cada autor relaciona-se com a vida e suas experiências.
Simplesmente o modelo reichiano não podia ser concebido por Freud. E vice-versa.

André Valente de Barros Barreto - Cientista social, mestre em ciência política e terapeuta corporal neo-
reichiano. Assessor de ONG's na área de relações de poder. Autor de "A revolução das paixões: os
fundamentos da psicologia política de Wilhelm Reich", ed. Annablume/FAPESP e "Reich: natureza e
liberdade", Col. Logos, ed. Moderna (ambos no prelo).

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