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2 de 18 a 24 de setembro de 2014

editorial

Banco Central independente?


O GOVERNO LULA, por 8 anos, en-
tregou a presidência do Banco Cen-
bol seria um fracasso, estádios e ae-
roportos estariam inacabados, aba-
Tornar o BC lar a inflação, é para adquirir credi-
bilidade para o país voltar a crescer e
co – para manifestar sua simpatia
a candidatura de Marina e afirmar
tral (BC) ao ex-presidente interna-
cional do Bank of Boston, Henrique
lando a imagem do país no mundo. A
imagem ficou abalada, mundialmen-
autônomo é tirar para preservar o emprego”, acredita
a candidata.
que deseja o fim de “governos medí-
ocres e populistas”. Desejo que cres-
Meirelles. Foi além, através de uma
Medida Provisória, equiparou o car-
te, por outro motivo: Brasil 1 x 7 Ale-
manha. Agora, martelam que a infla-
de um governo, Ainda é tempo, de até o final da
campanha eleitoral, Marina mu-
ceu depois que a Receita Federal au-
tuou seu banco a pagar uma dívida
go de Meirelles ao de ministro da Re- ção está descontrolada, em níveis in- democraticamente dar de opinião. Talvez, para que is- de R$ 18 bilhões de reais aos cofres
pública. E os bancos baterem suces- suportáveis. so ocorra, sirva o conselho do ame- públicos.
sivos lucros anuais. A corrupção, “inventada” nos go- eleito, o seu ricano Joseph Stiglitz, ganhador do O professor de economia Rena-
O governo Dilma livrou o BC do vernos de Lula e Dilma, já causou prêmio Nobel de Economia: na crise, to Santos de Souza, da Universida-
banqueiro internacional. Mas sua po- uma metástase no país. Para justifi- poder sobre a “países com bancos centrais menos de Federal de Santa Maria (UFSM/
lítica econômica continuou propor- car esse sofisma, utilizam os próprios independentes, como Brasil, China RS) é contundente: a independência
cionando irracionais e imorais lucros dados do governo sobre os casos de política monetária e Índia, se saíram muito, mas muito do Banco Centra significa o gover-
ao sistema financeiro. investigações e prisões de corrup- melhor do que países com BCs mais no abrir mão de fazer a política eco-
Mesmo assim, os bancos – costu- tos. A impunidade e a conivência dos e cambial, independentes, como a Europa e nos nômica e se tornar, cada vez mais, re-
mazes predadores de rendas – que- governos anteriores, com a corrup- Estados Unidos”. Stiglitz ainda fina- fém do Banco central e o do mercado
rem e exigem mais. Nada aprende- ção, servem de atestado de idoneida- restringindo-o à liza: “Um BC independente é desne- financeiro. E conclui: “eu não tenho
ram com a crise econômica que afeta, de. Tempos do Engavetador Geral da cessário e impossível”. A Neca Setú- dúvidas, nós pagaremos essa opção
desde 2008, as principais economias Republica. política fiscal bal discorda. política com juros altos e recessão,
do planeta que tem nas causas a vo- Mas esse caos criado pela elite, do Tornar o BC autônomo é tirar de redução dos investimentos públicos e
racidade de lucros, fáceis e rápidos, qual o Chico Mendes não faz parte, um governo, democraticamente elei- privados e precarização dos serviços
dos bancos. ao contrário, a combateu e dela foi to, o seu poder sobre a política mo- públicos”.
Através das candidaturas do tuca- vítima, tem objetivos claros: resga- ta em direção contraria à apontada netária e cambial, restringindo-o à Não é difícil imaginar que, ao tor-
no Aécio Neves e, principalmente, da tar, na agenda política, os pilares da pela elite nativa. política fiscal. É a tentativa de redu- nar o Banco Central independente e
de Marina Silva, não hesitaram em malfadada política neoliberal. Não Com ênfase, nesse cenário, ressur- zir um governante a governar ape- ao cortar os gastos públicos na área
resgatar o receituário neoliberal para hesitam em afirmar que o caos exis- giu a proposta da autonomia do BC. nas com os escassos recursos dos im- social, se criará uma nova atmosfera
a economia brasileira. Com apoio de tente se deve aos ganhos (peque- Surgiu na plataforma de governo da postos. A taxa de câmbio que afeta as propícia para privatizar as empresas
uma mídia, quem consegue ser, con- nos!!) salariais, o aumento do con- candidata Marina Silva, em um ar- importações, exportações e as despe- estatais que ainda nos restam.
comitantemente, cafetina e cafetina- sumo, políticas sociais e gastos pú- tigo assinado e publicado pela coor- sas no exterior, e a taxa de juros, fica- Como no governo de FHC, dirão
da, criam o caos no país. Chegaram a blicos. E a receita, aos olhos neoli- denadora de sua campanha, herdei- rá sob a autoridade do “banco autô- que os recursos arrecadados com as
eleger o tomate como o elemento de- berais, é certeira: aumentar o de- ra do banco Itaú, e educadora, Ne- nomo”. Qual é o banqueiro que não privatizações serão gastos em educa-
tonador da sétima economia do pla- semprego para diminuir os salários ca Setúbal. A própria candidata, por sonha com esse poder? ção e saúde. Os cavalos transporta-
neta. Tentaram se apropriar das mo- reais e diminuir o consumo, o que, enquanto, defende com firmeza que Roberto Setubal, irmão da Ne- dos de avião, pertencentes a André
bilizações populares ocorridas em ju- imaginam eles, aumentaria a pou- essa medida é necessária para que o ca, aproveitou as comemorações dos Lara Resende, ex-ministro de FHC e
nho de 2013. Apostaram todas as fi- pança e os investimentos produti- país volte a ter credibilidade. “O Ban- 90 anos do Banco Itaú – data come- atual membro da equipe de Marina,
chas que a Copa Mundial de Fute- vos. A Europa toda, em crise, apos- co Central autônomo é para contro- morativa que pertence ao Uniban- serão gratos.

opinião Ademar Bogo Norma Bates/CC crônica Elaine Tavares

Simon Ernesto
esgrimindo ideias
VERÔNICA É UMA MULHER valente que criou os três filhos sem o há-
bito de tomar leite. Não é neurótica com isso, uma vez que o leite apare-
ce em muitos alimentos. Mas, não precisando tomar, a gurizada não to-
ma. Ela sempre ensinou que o leite da mãe é que é legal, assim como para
quase todas as espécies animais.
Quando ainda vivia no Brasil, e foi o tempo dos dois primeiros irem à
escola, não houve maiores problemas, pois eles levavam merenda e ela
podia preparar o lanche saudável, sem leite. Mas, agora, ela mora no Uru-
guai e, lá, é comum as crianças fazerem até três refeições na escola. Até
aí tudo beleza, isso é bacana demais. Mas, a coisa começou a complicar
quando Anaís foi obrigada a tomar leite. Verônica tentou dialogar com a
direção, mas as professoras alegavam que não podiam dar tratamento di-
ferenciado a uma aluna. Foi um tempo difícil. Havia toda a coisa de ser
diferente, brasileira, chegando na cidade, e ainda isso? Decidiram então
que a guria ia tomar o leite.

Arquitetos do destino
Mas, quem diz que o corpo entende a lógica alheia? A pequena Anaís
começou a ter dores de barriga, enjoos, gripe, toda a sorte de desarran-
jos. Não havia dúvidas de que era o leite. Só então as professoras per-
mitiram que ela levasse seu próprio lanche feito de chás, frutas e coi-
sas saudáveis.
ERNESTO CHE Guevara defendeu
em sua vida revolucionária que o
Opinamos que se Dessa forma, a política deixou as
ruas e se recolheu no interior dos
homem deixa de ser escravo quan-
do se converte em arquiteto do
há velha e nova lares, onde há guerra, na qual os
marqueteiros são os comandantes
Aconteça o que for haveremos de ver
próprio destino, por isso não basta
interpretar a natureza e a realida-
política, elas vêm e os eleitores espectadores que, de
ora em quando, se arrependem de
Simoncito pelos caminhos de nuestra
de, mas é preciso transformá-las. montadas em torcer pela destruição da trinchei- América, esgrimindo seus valores, com a
Supõe-se que ser arquitetos do ra alheia e mudam de lado levan-
destino é antes de tudo tomar nas velhos hábitos e do os números a suicidarem ou- força de um gigante
mãos o poder de decidir sobre os tros números fazendo subir e des-
passos a serem dados. Traçar pla- novos vazios cer as porcentagens nas pesqui-
nos e realizá-los. Construir alter- sas. Todos sabemos que programa
nativas programadas e, acima de eleitoral é como capítulo de nove- Quando chegou a hora de seu terceiro filho ir para a escola, de novo lá
tudo, coordenar a própria razão, la, no dia seguinte ninguém lem- veio o problema. Haveria que tomar leite. Simón Ernesto achou que po-
os sentimentos e os sentidos das bra mais o que passou e o que fica dia enfrentar essa. Mas, tal e qual a irmã, o corpo recusou e Verônica con-
práticas efetuadas pela afirmação é a afeição pelos personagens, por seguiu que ele pudesse levar sua garrafinha de chá de gengibre com cane-
do sujeito coletivo. isto, com uma fantasia na cabeça la. Só que um garoto como Simón, que entende a vida de um jeito diferen-
Por outro lado, não ser arqui- cada cidadão vai às urnas decidir o te, e é um questionador, começou a ficar preocupado com as coisas que a
tetos do próprio destino significa final da disputa. professora dizia na escola. “Ela fala que o leite é bom para a saúde. Mamãe,
continuar vivendo na condição de Opinamos que se há velha e no- tem que falar com ela”, pediu, por certo aflito com o que poderia acontecer
escravos, acorrentados pelos pró- va política, elas vêm montadas em com os colegas que tomam o leite.
prios limites que sufocam e intimi- velhos hábitos e novos vazios. Há Verônica escreveu um texto explicando para a professora as razões de
dam as reações contra os senho- candidatos que entram na disputa por que na casa deles ninguém tomar leite, pedindo que ela entendesse que
res que controlam a força e os sen- televisiva para divulgar ideias e cada um tem o direito de viver a vida segundo seus princípios. Dias depois
timentos dos juízos despolitizados. não lhes dão tempo, por isto dizem foi até a escola para discutir a questão, mas descobriu que a professora se-
É deixar-se levar pelas situações as melhores velhas coisas, mas por quer tinha lido o bilhete. Pelo contrário. Ainda estava contrariada com as
conjunturais como se isto fosse a terem se afastado das ruas, os per- coisas que Simón começou a fazer.
história possível de ser feita. sonagens não ganham a admi- E o quê faz o Simoncito? Militância contra o uso do leite na alimentação.
Ser arquitetos do destino é tor- ração do público; no entanto, há Todos os dias, na hora da merenda, ele reúne os colegas e explica que o lei-
nar-se consciente das responsa- aqueles com mais tempo, mas sem te, ao ser tomado, fica podre na barriga e acaba fazendo mal à saúde. Os
bilidades históricas e provocar o ideias, que dizem tudo do mesmo; outros ficam no espanto. Aquele corpinho miúdo já aprendeu a discursar e
surgimento de oportunidades pa- pintam o mundo com outras cores defender suas ideias.
ra que se possa agarrá-las e de- Os processos eleitorais das últi- e inovam o vazio. Verônica se debate entre o orgulho e a preocupação. É bom ver o filho
senvolvê-las como tarefas perma- mas décadas da história do Brasil, Como já não podemos viver sem protegendo os colegas, explicando que há outras maneiras de comer. Mas
nentes. Para que as oportunida- além de terem se despregado do novelas e sem eleições, elas são, também é difícil percebê-lo no meio da contradição. A mãe e a professora,
des apareçam, como a água escon- conjunto dos princípios contes- no capitalismo, o suspiro da alma duas mulheres importantes, divergindo tão radicalmente nos conceitos de
dida no subsolo, é preciso cavar a tatórios e de classe, sufocaram as dos dominados, há de se retomar alimentação. Pensou que isso pode ser confuso para ele.
terra e descobrir o veio que espera demais táticas e inibiram a reação as ações que convertam os corpos Bobagem, o garoto já tomou posição e mostrou que sabe muito bem to-
pela descoberta de quem tem sede. popular contra o poder do Esta- escravizados em sujeitos do desti- mar suas decisões. Mesmo confrontado com a autoridade da escola, não se
Portanto, para deixar de ser escra- do e do capital. Seguiram o cami- no, com o propósito de forjar em si furtou a pregar as ideias nas quais crê. Talvez por carregar o nome de dois
vos é necessário reconhecer-se en- nho oposto da formulação coleti- o projeto popular, no qual o poder grandes revolucionários (Simón e Ernesto) tenha tomado deles também
quanto tal, querer deixar de sê-lo e va. Mais ainda, a política da tática pertence à coletividade e nele não a fibra. Talvez porque reconheça a força de sua mãe, as escolhas do pai. O
inventar meios para implementar eleitoral impôs uma rotina con- haverá enganos, pois as palavras e certo é que esse garotinho já disse a que veio no mundo. Aconteça o que
esse querer. Os meios ou as táticas formista que tirou dos trabalha- as ações são expressões da mesma for haveremos de ver Simoncito pelos caminhos de nuestra América, esgri-
fazem parte da capacidade criativa dores o desejo de serem arquite- linguagem. mindo seus valores, com a força de um gigante. Por hoje é o leite...
que os sujeitos conscientemente e tos do próprio destino e passaram E amanhã, heim, Simón?
em luta desenvolvem nas conjun- a sonhar com a cabeça de seus re- Ademar Bogo é filósofo, escritor e
turas adversas. presentantes. agricultor. Elaine Tavares é jornalista.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG),
Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),
Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper
(Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff,
Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Marina Tavares Ferreira • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •
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de 18 a 24 de setembro de 2014 3
instantâneo Paulo Kliass

Potencial
do pré-sal
Pedro Nathan

A POLARIZAÇÃO DO DEBATE eleitoral tem contribuído


para que alguns temas relevantes passem a ser tratados sem
a devida seriedade entre os candidatos. À medida que as es-
tratégias das disputas passam a ser definidas pelos especia-
listas em marquetagem, o conteúdo político se perde e as
sutilezas das diferentes posições deixam de ficar claras pe-
rante o eleitorado.
Isso tem ocorrido com assuntos essenciais, a exemplo da
independência do Banco Central (BC), da política relativa
à taxa de juros oficial, da manutenção de metas de infla-
ção, da tendência à sobrevalorização cambial e outros. As-
sim tem candidat@ que promete trazer a inflação para 3%
ao ano, baixar a taxa de juros e ainda oferecer a autonomia
radicalizada do BC. Parece uma maravilha, não? Mas trata-
-se de uma impossibilidade, apesar de operar como um can-
to de sereia a todos que se sentem descontentes com os ru-
mos da atual política econômica conservadora.
Afinal, a inflação não cai apenas porque o governo decide
que a meta anual seja diminuída de 4,5% para 3%. Ou en-
tão a sedutora proposta de independência do BC, que ser-
ve apenas para ocultar a transferência de poder efetivo de
aspectos nucleares da política econômica para os represen-
tantes diretos do financismo.
Nesse vai-e-vem de posicionamentos, emerge a questão
do pré-sal. Marina iniciou fazendo ponderações a respei-
to da utilização dessa reserva estratégica de riqueza natural
que pode se transformar em riqueza econômica. Ao que tu-
do indica, mirou corretamente na necessidade de superar-
mos a matriz energética derivada de petróleo e substituir-
mos por outras de fonte energética dita “limpa”, como a hi-
drelétrica, a eólica, a solar, a maré e outras.
No entanto, a candidata do PSB/Rede carregou na mão
Igor Fuser contra o uso do próprio pré-sal, dando a entender que abri-
ria mão de sua exploração. E nesse escorregão, Dilma aca-
bou entrando pesado, acusando a adversária de ser contra

A batalha do Brasil o futuro do Brasil e coisa e tal. Assim, a candidata presiden-


ta termina por exagerar no sentido contrário, criando a falsa
ilusão de que o uso das camadas petrolíferas super profun-
das seria a benção redentora dos tempos por vir.
MAIS ALÉM das particularidades de cada um, os confli- ricos erroneamente chamados de “emergentes”. Se Dil- O fato inequívoco é que o potencial do pré-sal será de
tos políticos do mundo atual têm sua chave explicativa ma Rousseff alcançar a reeleição, o Brasil manterá (e, grande valia para as gerações futuras, caso a sua utilização
no modo como se inserem em um contexto maior, aque- talvez, até aprofundará) seu papel entre os defensores seja bem equacionada. Boa parte dos países que contavam
le que dá a tônica das relações internacionais desde o fim de um mundo “multilateral”, palavra-código para a di- com reservas de petróleo caíram na armadilha que os estu-
da Guerra Fria. Trata-se do empenho dos Estados Unidos luição do poder imperial dos EUA. Na América Latina, diosos chamam de “doença holandesa”. Em analogia ao ca-
em estender sua hegemonia a todo o planeta, eliminando o cenário será mais propício para uma integração regio- so ocorrido com aquele país europeu, existe um sério risco
ou anulando qualquer ator com capacidade para se opor nal voltada para o desenvolvimento econômico e social e do país se acomodar com as benesses geradas por essa ex-
às preferências e interesses do Império, mesmo em esca- para a redução das diferenças, tanto as que separam os ploração proporcionada por um simples legado da nature-
la regional. países uns dos outros quanto as existentes dentro de ca- za. Petróleo ainda é um bem caro e em extinção no mundo
Aí reside a dimensão geopolítica de conflitos tão dife- da um deles. contemporâneo, apesar de ainda estar na base das princi-
rentes quanto a campanha golpista contra o chavismo na Se, ao contrário, a atual presidenta for substituída por pais economias no mundo.
Venezuela, a guerra civil na Síria e a ofensiva liberal-fas- Marina Silva ou Aécio Neves (o que dá na mesma, vis-
cista contra a Rússia (e os russos) na Ucrânia. Aí se si- ta a crescente convergência entre eles), a política exter-
tua, igualmente, a importância do Brics e da Unasul, esses
dois pedregulhos nos sapatos do Tio Sam. Por mais limi-
na “ativa e altiva” desaparecerá. O que virá em seu lugar
já se pode vislumbrar com nitidez: submissão aos inte-
A sanha de querer utilizar
tadas que sejam essas iniciativas, sua simples existência
propicia um espaço mais favorável à construção de “um
resses dos EUA, adesão aos blocos de livre-comércio de
figurino neoliberal, distanciamento dos parceiros latino-
oportunisticamente essa riqueza
mundo onde caibam muitos mundos”, nas palavras do
Subcomandante Marcos.
-americanos que hoje compartilham o mesmo anseio de
integração soberana.
estratégica para fechar as contas de
As eleições brasileiras fazem parte desse embate glo-
bal. Nem o imperialismo estadunidense nem os variados
Em síntese, festa em Wall Street, Tel Aviv e Miami; des-
conforto em Moscou, Ramallah e Caracas. À parte tudo o
curto prazo é um grande equívoco
atores que se antepõem a ele são indiferentes ao futuro que nos diz respeito na esfera doméstica, é também isso o
político do Brasil – um país de destaque entre os perifé- que estará em jogo em outubro próximo.
Assim, as facilidades de curto prazo trazidas pelas recei-
tas da exportação desse bem podem contaminar o ambien-
Silvio Mieli te social, político e econômico, fazendo com que o país dei-
xe de investir na construção de capacidade produtiva real.

Faixa do cidadão
A sociedade entra em clima de letargia, esquecendo-se de
que o petróleo é finito, que outras fontes de energia alterna-
tiva são descobertas a cada momento. Nossa vizinha Vene-
zuela experimentou esse movimento e depende de importa-
ções de manufaturados para assegurar o consumo interno.
É TÃO RARO VER o espaço público ser resgatado pa- na de butique esbravejou: “Onde vou colocar as minhas Foi por isso que o nosso modelo tem a Noruega como re-
ra alguma iniciativa coletiva, que os 70,6 km de ciclovias clientes milionárias?”. Outra manifestação na mesma ferência. A ideia é reconhecer, sim, a importância econômi-
pintadas de vermelho inspiram uma outra virada cultu- toada ficou por conta de conhecida professora de comu- ca das reservas recentemente descobertas. Mas direcionar
ral em São Paulo. nicação e semiótica. A professora Lúcia Santaella postou as receitas derivadas de sua exploração para um fundo es-
“Não sou conduzido. Conduzo!”, diz o brasão da cida- em uma rede que o prefeito de São Paulo está “enchen- tratégico, que vai utilizar os recursos derivados de seu ren-
de. O paulistano fará qualquer coisa para não ficar atrás do as ruas de horrendas faixas vermelhas, provavelmen- dimento apenas para saúde, educação, ciência e tecnologia.
de quem quer que seja, muito menos de uma bicicleta. te encomendadas do diabo em pessoa”. Para ela, o ver- Trata-se de um reconhecimento necessário de que os gran-
Atinge a sua honra e o seu direito de propriedade absolu- melho atinge o nosso sistema nervoso central e, é cla- des beneficiários serão os integrantes das gerações futuras.
ta sobre a via pública. É preciso ultrapassar, custe o que ro, no fundo, tudo não passa “da mais descarada pro- A sanha de querer utilizar oportunisticamente essa ri-
custar, lançando faróis, buzinas e até impropérios pré- paganda vermelha do PT”. “Ou será ele (o prefeito Had- queza estratégica para fechar as contas de curto prazo é um
-gravados e amplificados. Nessas horas baixam no pau- dad) o ingênuo em querer nos fazer crer que vivemos em grande equívoco. Assim como o governo tem se aproveita-
listano três espíritos: o espírito bandeirante; um espírito plena Amsterdam?”, indaga. Rápida no gatilho, a jorna- do de malabarismos da chamada “contabilidade criativa”
de inferioridade (recalcado ao extremo) e o espírito dos lista Marjoerie Rodrigues, que mora em Utrech (Holan- para criar miraculosamente recursos para gerar superávit
pilotos (de fórmula 1) que aqui nasceram. da), respondeu à professora mandando uma série de fo- primário, teme-se que a mesma postura possa ser utilizada
E os excluídos desta guerra de ritmos, forças e pode- tos com ciclovias vermelhas pelo mundo afora. Ela tam- com as imensas divisas que começarão a jorrar para o Fun-
res (como os pedestres e ciclistas)? Desde as mobiliza- bém anexou o vídeo “Como os Holandeses conseguiram do do pré-sal. Afinal, alguns bilhõezinhos de reais a mais
ções dos Provos, com suas bicicletas brancas na Holan- as suas ciclovias” (http://bit.ly/1iIMCZM), que sintetiza aqui e ali não farão muita falta daqui a 50 anos, sendo que
da dos anos de 1960, passando por movimentos funda- as políticas públicas que priorizam a bicicleta por uma temos que pagar um vencimento da dívida pública depois
mentais como Reclaim the Streets e Critical Mass, os questão de necessidade. de amanhã. Ledo engano!
ciclistas não se conformaram em disputar o mesmo es- As ciclofaixas purpúreas causam arrepios ideológicos Esse é o grande risco associado à má utilização do poten-
paço com os automóveis. Foram à luta, politizando o e não semióticos nos paulistanos. Além disso, desconfio cial do pré-sal.
espaço público e esboçando uma nova pedagogia dos que a onda vermelha em SP não é coisa do capeta. Tudo
fluxos urbanos. começou quando os índios se juntaram aos black blocs e Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris
As recentes implantações das faixas exclusivas para ci- pintaram o monumento às bandeiras dessa cor que, de fa- 10 (Nanterre) e integrante da carreira de especialista em políti-
clistas têm revoltado a burguesia paulistana. Uma do- to, atinge o sistema nervosa central! cas públicas e gestão governamental, do governo federal.

fatos em foco
da Redação
Mais de 3,4 mil crianças foram pela Federação Única dos Petroleiros em pública, elaboração e publicação de re-
flagradas trabalhando este ano conjunto com as centrais sindicais CTB, latório final que justifique a escolha do
Desde o início do ano, auditores fiscais CUT, UGT e entidades do movimento candidato que será submetido à saba-
flagraram 3.432 crianças e jovens traba- social como MAB, MST, UNE, UBES, tina do Senado e participação da socie-
lhando em todo o Brasil. O resultado é UEES-RJ, FETEERJ, UEE-RJ, MPA E dade nas sabatinas. Com isso, espera-se
inferior aos 5.382 casos registrados no CNM, FAMERJ, FAFERJ. que o compromisso com os direitos
mesmo período do ano passado, mas, humanos, as perspectivas de gênero e
segundo especialistas, demonstra que o Organizações cobram participação raça sejam critérios estruturantes para
Brasil pode não atingir a meta de erra- e transparência no STF escolha de novos/as ministros/as.
dicar o trabalho infantil até 2020, caso Mais de 50 entidades, movimentos
a iniciativa privada e, principalmente, o sociais e redes enviaram hoje (15) uma Sindicalistas argentinos e brasilei-
Poder Público não intensifiquem os esfor- Carta Aberta à Presidência da Repú- ros discutem intercâmbio
ços nesse sentido. blica, à Secretaria Geral da Presidência A CUT e o Sindicato de Mecânicos e
da República e ao Ministério da Justiça Afins do Transporte Automotor da Ar-
Milhares tomam as ruas do país pa- reivindicando a regulamentação de um gentina (Smata) se reuniram em Buenos
ra defender a Petrobras e o pré-sal procedimento democrático para os pro- Aires, dia 8 de setembro, para debater a
No dia 15 de setembro, mais de 10 cessos de escolha e nomeação de novos/ formação de redes de trabalhadores em
mil trabalhadores, dos mais variados as ministros/as do Supremo Tribunal montadoras presentes nos dois países. O
segmentos lotaram a Praça da Cinelân- Federal (STF). As organizações reque- Smata representa hoje a maioria dos tra-
dia, no centro do Rio de Janeiro para rem a criação de chamadas públicas de balhadores ligados à indústria automobi-
defender o pré-sal, a Petrobras e o Brasil. candidaturas, combinada a etapas de lística argentina, que este ano sofreu uma
O ato foi convocado de forma unitária divulgação das candidaturas, consulta redução de mais de 25%.
6 de 18 a 24 de setembro de 2014 brasil

Em dez anos, política de


combate às DST perde eficácia Reprodução

SAÚDE Historicamente, os
avanços no tratamento da Aids e
DST foram alcançados porque os
órgãos governamentais se abriram
à sociedade civil e construíram
programas de acesso à saúde

Malú Damázio
de São Paulo (SP)
da Rede Brasil Atual

NA ÚLTIMA DÉCADA, as políticas pú-


blicas nacionais de combate e preven-
ção a doenças sexualmente transmis-
síveis (DST), Aids e hepatites virais ti-
veram a eficácia diminuída. A ausência
de campanhas nacionais de prevenção e
informação direcionadas às populações
de risco e o preconceito velado ao tratar
publicamente de sexualidade estão en- vestis, profissionais do sexo e a poliga- “É um governo surdo, porque, nele, os que, desses casos, 656.701 foram regis-
tre as principais críticas feitas por pes- mia, uma vez que a maioria das religiões movimentos sociais falam e não são ou- trados pelo Ministério da Saúde. Dados
quisadores e movimentos sociais com cristãs apresenta posição desfavorável e, vidos. É uma decepção inacreditável do e ações de campanha nacionais estão
atuação na área. em alguns casos, condenatória, com rela- ponto de vista político de gestão e a ad- concentrados no Departamento de DST,
A estagnação nas políticas públicas ção aos relacionamentos homossexuais, ministração tem sido de um autoritaris- Aids e Hepatites Virais do órgão. A pági-
voltadas às DST e ao HIV coloca em xe- como defende Murilo. mo impressionante. A gente pode tentar na do ministério reúne informações so-
que a imagem do Brasil como referên- O coordenador da Pela Vidda SP acre- evitar retrocessos, mas não conseguimos bre sintomas e tratamento de Aids, he-
cia mundial no tratamento de Aids, con- dita que não existam, hoje, campanhas avanços”, afirma. patites B, C e D, e as demais DST – con-
quistada, principalmente, com a inclu- em grande número, direcionadas a ni- Historicamente, os avanços no trata- diloma acuminado (HPV), tricomonía-
são da doença no Sistema Único de Saú- chos específicos de transmissão e contá- mento da Aids e DST no Brasil foram al- se, linfogranuloma venéreo, cancro mo-
de, em 1992. gio de HIV e DST, porque boa parte dos cançados, segundo Maria Amélia, por- le, doença inflamatória pélvica (DIP),
Apesar do aumento de portadores de brasileiros ainda se sente “invadida e que os órgãos governamentais se abri- herpes, clamídia, gonorreia, donovano-
HIV em tratamento com antirretrovi- afrontada por uma propaganda aberta”, ram à sociedade civil e construíram pro- se, sífilis e infeção pelo vírus T-linfotró-
ral no Brasil, que passou de 165 mil, em que fale diretamente sobre práticas sexu- gramas de acesso à saúde em conjunto pico humano (HTLV).
2002, para 353 mil, em 2013, e do inves- ais desses grupos. “A maior parte dessas com as entidades representantes de seg-
timento em testagem rápida de Aids, o pessoas que apresenta resistência é, in- mentos marginalizados.
número de casos de HIV no país cresceu felizmente, a que está mais vulnerável, “Saúde é uma questão política, assim “A maior parte dessas
11% de 2005 a 2013, na contramão do ce- mais sujeita a se contaminar por falta de como a sexualidade. Saúde não é corpo,
nário global, em que os casos de infecção uma informação mais direta e mais cla- é social. Qual corpo está fora da socieda- pessoas que apresenta
apresentaram redução de 28%. Os dados ra”, lamenta. de? O Brasil tem população e território resistência é, infelizmente,
fazem parte de relatório divulgado em Na visão da psicóloga Maria Amélia enormes e existe uma demanda cada vez
julho deste ano pelo UnAids, programa Portugal, pesquisadora da Universida- maior por direitos sociais. É preciso uma a que está mais vulnerável,
conjunto das Nações Unidas (ONU) so- de Federal do Espírito Santo (UFES), a política pública que atinja as pessoas do
bre HIV/Aids, que constatou, ainda, au- situação dos últimos anos com as DST é Oiapoque ao Chuí, já que nós propaga- mais sujeita a se contaminar
mento de 7% de mortes pela doença no resultado da falta de diálogo do governo mos, do ponto de vista nacional e inter- por falta de uma informação
mesmo período. com movimentos sociais que promovem nacional, que saúde é um direito.”
ações de prevenção, acolhimento e orien- Há hoje cerca de 750 mil pessoas por- mais direta e mais clara”
tação dos infectados. tadoras do vírus HIV no Brasil, sendo
“O ser humano tem necessidade Tânia Rêgo/ABr

biológica de relações sexuais, mas Notificação


Desde 1986, o país notifica casos de
trabalhar com DST e com sexualidade Aids e sífilis congênita, transmissível de
não é a mesma coisa que trabalhar mãe para filho, e produz boletins epi-
demiológicos anuais, por recomenda-
com câncer da mama, por exemplo” ção da Organização Mundial da Saú-
de (OMS). Além disso, há ainda hepati-
tes virais que, assim como as DST, são
transmitidas por sexo desprotegido e
A veiculação de campanhas informati- transmissão sanguínea por meio de se-
vas – principalmente as direcionadas às ringas e objetos cortantes e que passa-
demais DST – ainda são um campo inex- ram a integrar as estatísticas nacionais
plorado pelo Ministério da Saúde. Hoje, em 1996 (tipos B, C e D).
as propagandas do órgão federal têm co- Entretanto, outras doenças sexual-
mo objetivo a prevenção de todas as do- mente transmissíveis, como gonorreia,
enças sexualmente transmissíveis com clamídia, herpes e tricomoníase não
incentivo ao uso de camisinha. são de notificação obrigatória, nem pos-
“A população só tem acesso a mais in- suem dados e estudos unificados por
formações se ela quiser procurar por is- parte do órgão federal. As informações
so. A gente não vê qualquer tipo de orien- ficam restritas a postos de saúde e nú-
tação na televisão e no rádio, a não ser na cleos de pesquisa em universidades. O
época do Dia Mundial da Aids [1º de de- último mapeamento de DST em popu-
zembro] e no Carnaval, que é quando to- lações específicas, realizado pelo gover-
do mundo se manifesta. Isso, sem falar no federal e disponível no site do minis-
nas campanhas que são vetadas”, argu- tério, é de 2005.
menta o coordenador da ONG Pela Vid- Os boletins epidemiológicos têm a fun-
da SP (Valorização, Integração, Dignida- ção de mapear a doença e, dentre outras
de do Doente de Aids), Murilo Duarte. A coisas, identificar também as principais
entidade desenvolve trabalho de acolhi- áreas de ocorrência, populações atingi-
mento e acompanhamento com pessoas das e número de mortes em todo o ter-
portadoras do vírus HIV em São Paulo. ritório nacional. A partir desses dados,
Tratar de sexualidade abertamente na o governo pode saber quais medidas es-
televisão e no rádio, no entanto, pode ser pecíficas devem ser adotadas para pre-
bastante espinhoso. Na visão do chefe venção e o tratamento da enfermidade
do setor de DST da Universidade Fede- em cada região do país e direcioná-las à
ral Fluminense (DST/UFF), Mauro Le- população de risco. No caso das DST na
al Passos, editor do Jornal Brasileiro de América Latina, os grupos mais afetados
DST, a deficiência de campanhas de pre- são homossexuais, transexuais, profis-
venção e orientação está intrinsecamen- sionais do sexo e usuários de drogas inje-
te relacionada aos costumes morais da táveis, diz o relatório da UnAids.
sociedade. Para ele, a maioria dos bra- Com a notificação dos casos de sífilis
sileiros evita discutir temas-tabu, como congênita, por exemplo, os órgãos pú-
sexualidade, e isso se reflete na postura blicos puderam identificar as populações
dos órgãos governamentais e das empre- mais vulneráveis: mães entre 20 e 29
sas ao realizarem e patrocinarem campa- anos (57,7%), a maioria (25,8%) com es-
nhas publicitárias sobre o assunto. colaridade entre a 5ª e a 8ª série incom-
“O ser humano tem necessidade bio- pleta. De 1998 a junho de 2013, foram
lógica de relações sexuais, mas trabalhar notificados 88 mil casos de sífilis con-
com DST e com sexualidade não é a mes- gênita em menores de 1 ano, sendo que,
ma coisa que trabalhar com câncer da até 2012, a região Sudeste concentrava
mama, por exemplo. Ninguém quer ‘co- a maior parte das ocorrências (45,9%),
lar o nome’. As empresas querem asso- seguida pelo Nordeste (31,4%). Norte
ciar a marca a esportes e em beleza. À se- (8,7%), Sul (7,7%) e Centro-Oeste (6,3%)
xualidade ninguém quer. Você não con- apresentaram números similares.
segue patrocínio nem um artista famoso Esses dados fizeram com que o gover-
que queira fazer campanha contra uma no federal investisse em modelos de tes-
doença venérea. No Outubro Rosa (cam- tagem rápida, distribuídos desde 2011.
panha contra o câncer de mama), até Até o ano passado, foram feitos 2,9 mi-
avião foi pintado de rosa. Você viu algu- lhões de testes rápidos de sífilis congêni-
ma coisa ligada às DST? Alguém vai pin- ta no país, o que aumenta a notificação
tar um avião para dizer ‘esse avião prote- de casos e também o número de pessoas
ge contra a gonorreia?’”, questiona. encaminhadas para tratamento. No en-
tanto, somente 11,5% dos parceiros sexu-
Dogmas ais das mães identificadas com a doença,
A falta de informação sobre as DST es- até junho de 2012, foram tratados. Com
tá diretamente ligada à religiosidade e ao isso, o homem infectado continua a ser
preconceito com relação à população e ao transmissor da sífilis para outras possí-
comportamento de risco, como gays, tra- Campanha de coleta de sangue para exame de HIV veis parceiras sexuais.
brasil de 18 a 24 de setembro de 2014 7

Preconceito e tratamento
O atendimento de DST é um dos pontos criticados por portadores de HIV e movimentos voltados à defesa de direitos humanos
nir como será feito o tratamento de DST apenas portador, mas que não manifes- indústria farmacêutica de produzir e co-
de São Paulo (SP) e alguns optam pelo modelo para desa- ta o vírus, precisa fazer acompanhamen- mercializar cada vez mais medicamentos.
da Rede Brasil Atual fogar serviços especializados, mas o ór- to médico regular para monitoramento. Porém, na visão do coordenador da
gão reforça que o atendimento oferecido A política da OMS, no entanto, defen- Pela Vidda SP, a política representa um
Murilo é portador de HIV há 27 anos nos CRT é fundamental. de que o casal sorodiscordante – em que avanço no tratamento e modo de vida do
e se trata desde 1990 no Centro de Re- O atendimento de DST em esferas lo- uma das pessoas seja portadora do vírus portador de HIV e é positiva. “Quando
ferência e Treinamento em DST/Aids cais é um dos principais pontos critica- HIV e a outra não – tenha acesso aos an- se fala em qualquer tipo de atitude ou de
(CRT) Santa Cruz, na região Centro-Sul dos por portadores de HIV e movimen- tirretrovirais. Nesse caso, além do uso empenho da OMS e dos governos de ten-
de São Paulo. Após quase três décadas tos voltados à defesa de direitos huma- da camisinha, o soropositivo deve tomar tar diminuir o número de contágios de
de sorologia, ele precisa ir ao hospital a nos. Nos CAP, além do contato com di- os medicamentos para evitar transmis- HIV, aumentar a prevenção da popula-
cada três meses para passar por exames versos tipos de patologia, o portador do são do vírus para o parceiro. Controver- ção e tentar desenvolver um sistema em
de rotina, como hemograma completo e vírus e as demais pessoas infectadas po- sa, a recomendação da OMS busca pre- que as pessoas se sintam mais protegi-
a detecção de carga viral. A infectologis- dem passar por situações constrangedo- venir novas infecções e dar maior segu- das, tudo é válido”, argumenta.
ta que o acompanha há 12 anos analisa a ras e se expor a comentários e comporta- rança ao casal sorodiscordante. A im- Murilo avalia que as pessoas não se
ação do antirretroviral no organismo do mentos preconceituosos ao encontrar co- plementação no Brasil ainda é discuti- submeteriam a altas cargas de medica-
paciente, prescreve medicamentos para nhecidos que não saibam da situação. da. Alguns setores de pesquisa em HIV/ mento com fortes efeitos colaterais ape-
o próximo período e ele pode retirá-los “Antes de falar de Aids e HIV, temos Aids, no entanto, discordam da postura nas para fazer sexo sem preservativo. “A
logo em farmácia. que pensar primeiro no pior vírus que de “super prevenção” adotada pelo ór- gente tem que saber o seguinte: os re-
Assim como é feito em São Paulo, na existe, que é o preconceito. Ele mata a gão por acreditarem que o portador de médios têm efeitos colaterais, são super
maioria dos municípios brasileiros o pessoa em vida, como cidadão, destrói HIV, tomando os antirretrovirais, esta- drogas, drogas poderosíssimas. Então, a
atendimento ao portador do vírus HIV e a autoestima e ela se sente rejeitada. Es- rá sujeito a efeitos colaterais muito vio- pergunta é a seguinte: você acha que uma
à pessoa infectada com DST é feito em lo- se é o pior vírus. A maioria das pessoas lentos e desnecessários. pessoa que não tem Aids irá se submeter,
cais especializados, os CRT. A vantagem não quer ser atendida no posto de aten- de certa forma, a tomar esses remédios
dos centros é que as atividades são dire- dimento no bairro em que mora, ou na diariamente, em horários regulares, so-
cionadas somente ao tratamento dessas região do bairro em que mora. Ela cor- “Antes de falar de Aids e HIV, temos frer os efeitos colaterais que eles eventu-
doenças específicas e a pessoa com Aids, re o risco de encontrar um vizinho, um almente causam só pelo simples fato de
por ter a imunidade baixa, não precisa parente, um colega da escola, amigos de
que pensar primeiro no pior vírus que que vai poder transar sem preservativo?
entrar em contato com as demais enfer- rua etc. Como explicar para a pessoa o existe, que é o preconceito” A camisinha é ainda a melhor forma de
midades, como em hospitais e prontos- que ela está fazendo lá?”, explica Murilo. se prevenir”, ressalta.
-socorros, que recebem todo tipo de ur-
gência médica e de patologia infectocon- Prevenção medicamentosa
tagiosa, como tuberculose. Desde o ano passado, a Organização “Além de aumentar os efeitos cola- Serviço
Algumas cidades, porém, realizam o Mundial da Saúde (OMS) passou a re- terais, essa medida também favorece o
Grupo Pela Vidda SP
atendimento das DST nos Centros de comendar a terapia antirretroviral para não uso da camisinha em relações sexu-
Atenção Primária (CAP) e de saúde da qualquer portador do vírus HIV que te- ais. Quando você alimenta a ideia de que Rua General Jardim, 566, Vila Buarque – São Paulo
família, que geralmente recebem público nha quantidade de linfócitos CD4 (célu- não precisa usar preservativo, está au- Atendimento gratuito de segunda-feira à sexta-
da região ou bairro em que estão locali- las de defesa) menor ou igual a 500 cé- mentando também a chance de transmis- -feira, das 14h às 20h
zados. Rio de Janeiro, Porto Alegre, For- lulas/mm3 de sangue contra 350 célu- são de todas as DST. Elas não são trans- Durante as quintas-feiras, das 19h30 às 22h, ocor-
taleza e Curitiba são capitais que ado- las/mm3. Geralmente, somente as pes- mitidas pela mesma forma do HIV? Não re o Chá Positivo – roda de conversa com psicó-
taram esse tipo de política pública. De soas que têm Aids, que caracteriza a defi- são as mesmas práticas?”, critica Maria logos, assistentes sociais e assessoria jurídica que
acordo com o Ministério da Saúde, ca- ciência do sistema imunológico, realizam Amélia. Para a pesquisadora da UFES, a recebe portadores de HIV/Aids e familiares
da município tem autonomia para defi- tratamento com antirretrovirais. Quem é recomendação atende aos interesses da

ELEIÇÕES

“É urgente a reforma política” Alan Marques/ Folhapress


ENTREVISTA dependentizar o Banco Central, aumen-
tar o investimento em saúde e educação,
Para Frei Betto, o Brasil ampliar o sistema de benefícios sociais,
punir rigorosamente os corruptos. Es-
precisa, urgente, de pero ainda que ela se empenhe na refor-
reformas de estruturas. ma agrária, na proteção da Amazônia,
na defesa dos direitos de povos indíge-
Segundo ele, o plebiscito nas e quilombolas.
popular, realizado pelos Uma eventual vitória de Marina
movimentos sociais, Silva pode comprometer os
avanços progressistas em nosso
sinaliza aos futuros continente?
Sim, pois em viagem aos EUA Ma-
governantes um anseio e rina criticou Cuba quanto aos direitos
uma proposta de parcela humanos. Por que se omitiu em rela-
ção ao país que mais viola os direitos
significativa da população humanos na história da humanidade
– os EUA? Marina se cerca de pessoas
que não nutrem a menor simpatia pe-
los governos democráticos populares
Nilton Viana da América Latina.
da Redação
Você recebeu, da embaixadora
CUBA MERECE todas as comendas por Operários trabalham em reforma no Congresso Nacional, em Brasília (DF) de Cuba, a Medalha da
sua solidariedade ao Brasil e aos países Solidariedade. Qual o significado
pobres do mundo, disse Frei Betto, que O Brasil precisa, urgente, de reformas redo. Vide a reação à Política Nacional de dessa homenagem?
acaba de receber a Ordem da Solidarie- de estruturas: agrária, tributária, política Participação Social! Recebi, a 8 de setembro, no consu-
dade, concedida pelo Conselho de Esta- etc. Desde que me entendo por gente es- Os partidos progressistas, como o PT, lado de Cuba, em São Paulo, a Ordem
do de Cuba – entregue dia 8 de setem- sa é uma aspiração nacional. Nos anos de abandonaram o trabalho de base, a con- da Solidariedade, que me foi concedi-
bro pela embaixadora Marielena Ruiz 1960, falava-se em “reformas de base”. O solidação dos núcleos populares, a for- da pelo Conselho de Estado de Cuba e
Capote – no consulado de Cuba, em São Partido dos Trabalhadores (PT) nasceu mação política dos militantes. Hoje se entregue pela embaixadora Marielena
Paulo (SP). sob promessa de se empenhar por elas. sentem obrigados a pagar a jovens de- Ruiz Capote. Junto, uma carta pessoal
Nesta entrevista ao Brasil de Fato, E nada! socupados para segurarem propagan- de Fidel, que li para os presentes, e um
Frei Betto disse preferir Dilma a Mari- Nossa atual estrutura política é viciada da eleitoral nas esquinas. Boaventura de presente de Raúl Castro. Porém, Cuba é
na. Segundo ele, a candidata à presidên- como a roleta de um cassino, que sem- Sousa Santos acaba de expressar sua es- que merece todas as comendas por sua
cia da República, Marina Silva, se cerca pre favorece o dono, ou seja, a oligarquia perança de que Lula se dedique à refun- solidariedade ao Brasil e aos países po-
de pessoas que não nutrem a menor sim- política que insiste em manter o nos- dação do PT. Estou de acordo. bres do mundo, enviando a eles médi-
patia pelos governos democráticos popu- so país no atraso. São muitos os resquí- cos e professores que atuam nas áre-
lares da América Latina. cios da ditadura nessa estrutura, como as mais inóspitas junto às populações
“Em viagem aos EUA Marina criticou a representatividade política. Faz senti- “O PT cometeu o equívoco de não mais carentes.
Cuba quanto aos direitos humanos. Por do São Paulo, com 44 milhões de habi-
mobilizar os movimentos sociais
Agência de Notícias do Acre
que se omitiu em relação ao país que mais tantes, ser representado pelo mesmo nú-
viola os direitos humanos na história da mero de senadores que representam Ro-
humanidade – os EUA?”, questiona. raima, com quase 500 mil habitantes? É para assegurar sua governabilidade,
Para Frei Betto, o Brasil precisa ur- preciso, urgente, proibir o financiamen- e recorrer apenas aos partidos. Daí
gentemente das reformas estruturais, to de candidatos em campanhas por em-
entre elas a reforma política. “Nossa presas e bancos. Enfim, é urgente a re- as alianças espúrias”
atual estrutura política é viciada como a forma política!
roleta de um cassino, que sempre favo-
rece o dono, ou seja, a oligarquia políti- Como você tem visto o atual
ca que insiste em manter o nosso país no cenário eleitoral? Qual a responsabilidade deste
atraso”, afirma. Há um dado muito positivo neste quase 12 anos de governos do PT
atual cenário eleitorial: estão na disputa no atual cenário?
Brasil de Fato – Os movimentos final duas mulheres progressistas, en- O PT cometeu o equívoco de não mo-
sociais realizaram, no começo quanto o candidato da direita despen- bilizar os movimentos sociais para as-
de setembro, um plebiscito ca ladeira abaixo. Porém, temo a eleição segurar sua governabilidade, e recorrer
popular para que se faça uma de Marina, minha amiga, por ela, entre apenas aos partidos. Daí as alianças es-
reforma política. Como você outras posições retrógradas, defender a púrias.
avalia essa iniciativa? autonomia do Banco Central e não abra- A decisão de exterminar o que de me- QUEM É
Frei Betto – Pelo que soube, 1,5 mi- çar a lei contra a homofobia. Prefiro fi- lhor havia no início do governo, o Fome Frei Betto é frade dominicano, jornalista, autor
lhão de pessoas votaram pelo SIM, ou se- car com o conhecido a me arriscar com Zero, estruturado sobre comitês gesto- de mais de 50 livros e um dos expoentes da Teo-
ja, querem urgente uma reforma políti- o desconhecido. res populares, e introduzir o Bolsa Fa- logia da Libertação no Brasil. Lutou abertamente
ca com constituinte exclusiva e soberana. O governo do PT está longe de refle- mília, gerido pelos prefeitos, foi o sina- contra a última ditadura militar no país e obses-
Sei que não é fácil tornar imediata esta tir meus sonhos, como frisei em meus li- lizador de que o governo faria políticas são pela justiça social e pelos direitos humanos.
conquista. Mas política se faz com acú- vros A Mosca Azul e Calendário do Po- sociais compensatórias e não emancipa- É vencedor do prêmio Jabuti de 1982, concedido
mulo de forças. O plebiscito sinaliza aos der (Rocco). Mas vou de Dilma! tórias. Hoje o PT colhe o que plantou... pela Câmara Brasileira do Livro, levou para Cuba
futuros governantes um anseio e uma em meados da década de 1980 a proposta de
proposta de parcela significativa de nos- A sociedade está cada vez mais Ao que tudo indica, a disputa se incluir dentro da sociedade cubana a Metodolo-
sa população. distante dos partidos políticos. dará entre Dilma e Marina. Qual gia da Educação Popular (EP) ou Pedagogia da
Por quê? a sua opinião? Libertação. Durante o governo de Luis Inácio Lula
O país precisa realmente de uma Porque os partidos odeiam o cheiro de Espero que Dilma vença, e que ela le- da Silva, trabalhou no programa Fome Zero.
reforma política? povo, como confessava o general Figuei- ve a efeito o que promete, como não in-
8 de 18 a 24 de setembro de 2014 brasil

Eleições 2014, entre mortos e feridos


OPINIÃO A esquerda está dial e como professor-visitante no Bra- Ajuste fiscal, política monetária restri- “pobre” oriental. O “atrasado” deu passo
sil, foi companheiro de atuação de Pe- tiva, taxas de juros exorbitantes, entre ao “moderno” e o socialismo foi subsu-
entre mortos e feridos. dro Malan e Armínio Fraga, quando le- outros mandamentos versados na car- mido pelo apogeu dos shoppings centers
Necessita recuperar seu cionou na PUC-RJ entre 1978-1981, estes tilha dos feitores financeiros do Norte, símbolos significativos do novo estilo de
últimos dois importantes nomes da polí- abriram uma face aguda de sangria dos vida norte-americano no mundo.
viés coletivo. Recuperar tica econômica brasileira em tempos ne- recursos produzidos pelo Sul e destina- Através da destruição do Muro, o capi-
oliberais. dos ao cumprimento das exigências dos tal introjetou na vida concreta dos traba-
suas raízes, retomar as Na verdade, o “Consenso” significou a emprestadores financeiros, para a ma- lhadores da Alemanha Oriental uma for-
construção de uma nova agenda de atu- nutenção da supremacia hegemônica do ma nova de ser e de estar para o consumo
experiências de educação, ação do Norte sobre o Sul, decorrente capital e do Estado norte-americano no e o esgotamento do trabalho que o sus-
produção e poder popular de uma reunião em Washington reali- plano mundial. tenta. Esta condição de projeção do novo
zada entre os principais capitais finan- São 25 anos de condução da políti- é importante como formadora de consci-
ceiros internacionais, sob o abrigo do ca econômica latino-americana pelos ência do capital sobre o trabalho, em es-
Estado estadunidense. Tal agenda po- principais expoentes do capital finan- pecial nos territórios em que a disputa
Roberta Traspadini lítica passaria a orientar a relação en- ceiro internacional. Nesse sentido, o aberta entre capitalismo e socialismo fo-
tre tomadores de empréstimos do Sul mais importante da disputa eleitoral pe- ram explícitas, como na Alemanha.
AS ELEIÇÕES de 2014 trazem a aparên- e emprestadores do Norte vinculados la Presidência dos países não se referia
cia de uma disputa entre “diferentes”, tanto aos organismos internacionais da apenas ao tema dos partidos, mas tam-
mas tem como essência a continuidade. Organização das Nações Unidas, FMI bém da seleção dos ministros da econo- O socialismo é uma práxis
Os partidos majoritários operam, como e BIRD, quanto dos demais capitais fi- mia que ocupariam os cargos estraté-
sempre, dentro da ordem burguesa, com nanceiros (públicos e privados norte-a- gicos. Por que, ao longo de todos esses transformadora. E como tal,
base em um projeto de desenvolvimento mericanos). anos de governo do PT, Guido Mantega
centrado na dinâmica capitalista. atuou sem sofrer críticas e abalos sobre
necessita de escolas, de trabalho
Por mais que os últimos dez anos de sua condução como ministro da Fazen- de base, de retomada coletiva
um confuso governo de coalizão lidera- São 25 anos de condução da da, que culminassem na sua destituição
do pelo PT apresentem substantivas di-
política econômica latino- do cargo? Foi competente? Para quem dos sonhos comuns
ferenças com relação aos governos ante- trabalhou?
riores, uma política de esquerda não se americana pelos principais
limita a alterar o mero campo das políti- A destruição de um projeto veicu-
cas sociais, dada a necessária superação expoentes do capital lada como “Queda” 2014: entre o que se tem e o que
com base no poder popular. Também faz 25 anos que parte ex- não se quer
O plano eleitoral é insuficiente para ex- financeiro internacional pressiva de nós viveu, através da vei- Em 2014, chega-se a 25 anos de conso-
plicitar a atual correlação de forças entre culação, não sem intencionalidade, nas lidação de duas duras ações – “Consen-
esquerda e direita. É no cenário de con- mídias televisivas, do que ficou conhe- so” de Washington e “Queda” do Muro
formação do desenvolvimento capitalis- cido como a “queda” do Muro de Ber- de Berlim – com implicações muito se-
ta no plano internacional e nacional que lim. Momento em que, segundo os vo- veras na conformação da consciência po-
necessitamos investigar as raízes histó- Com o discurso de “Consenso” tal acor- zeiros da burguesia, o atraso da Alema- lítica da classe trabalhadora, em meio à
ricas responsáveis pela atual crise vivida do entre “caval(h)eiros” do império fi- nha Oriental (comunista) seria absorvi- hegemonia da sociedade do espetáculo
pelas esquerdas. Isto exige ir além das di- nanceiro especulativo americano, trazia do pelo avanço e pela modernidade da do capital.
ferenças de superfície expressas nas ma- a faceta explícita de coerção política so- “vitoriosa e onipotente” sociedade de Para os que viveram o período ante-
rolas da conduta social do atual governo bre recursos e ativos ambientais, territó- consumo representada pela Alemanha rior como lutadores sociais, este momen-
e mergulhar na essência do significado rios e trabalhadores do continente. Sim, Ocidental (capitalista). to expressava a derrota – mas não a mor-
político e econômico da atual disputa es- coerção e não consenso. Alguém tem que te – de um longo processo de luta na ten-
trutural pelo poder. pagar as exorbitantes contas feitas desde tativa de realização de uma sociedade di-
o Norte sobre os empréstimos e compras Estas políticas de enfrentamento e ferente, com socialização dos meios de
feitos desde o Sul. Todo repasse feito pe- produção, tomada do Estado para a ar-
O “Consenso” significou a los capitais e pelos Estados do Sul para o destruição do trabalho pelo capital ticulação de uma transição rumo a uma
construção de uma nova
Norte tem como origem estrutural a su- trazem à esquerda desafios muito sociedade verdadeiramente igualitária.
perexploração do trabalho. Somente o Mas e para os que nasciam neste então,
agenda de atuação do Norte trabalho remunera o capital, ainda quan- duros e de longo prazo ou próximo dele? E para a nova geração?
do sua atual fase de financeirização apa- Quais os efeitos de aprender o socialis-
sobre o Sul, decorrente de reça descolada da produção material da mo, como história contada desde a der-
riqueza capitalista. rota e/ou desde os mecanismos ideológi-
uma reunião em Washington O “Consenso” de Washington marcou a Ao que parece, os meios de comunica- cos propagadores das verdades dos vito-
renovação dos pactos políticos da relação ção não noticiavam, tão somente, a rup- riosos burgueses?
realizada entre os principais envolvendo Norte/Sul em que a depen- tura de um modelo social e econômico. Estas políticas de enfrentamento e des-
dência destes com relação àqueles ficou Ao contrário, explicitavam através des- truição do trabalho pelo capital trazem à
capitais financeiros ainda mais clara. Dependência é sinôni- sa “queda” instituída por um grupo sobre esquerda desafios muito duros e de longo
internacionais, sob o abrigo mo de desenvolvimento desigual e com- outro o fim da ideologia, da história, da prazo. Entendido o termo “esquerda” co-
binado; de conformação de um processo esquerda socialista-comunista. O verme- mo representante de um projeto e de um
do Estado estadunidense de desenvolvimento particular condicio- lho, sinônimo para os representantes do processo que não questiona princípios,
nado à dinâmica geral de funcionamen- capital da violência comunista, foi subs- nem se abre à estruturação de alianças
to capitalista. A atual fase da dependên- tituído pelo verde da sustentabilidade com seu principal inimigo: o capital. Es-
cia revela que o desenvolvimento do Sul discursiva sobre a nova ecologia, a par- ta esquerda, sem chances de disputar e
1989: A esquerda, o “consenso” e a somente ocorre sob controle e tutela dos tir da disseminação das ideias dominan- vencer no plano eleitoral após os acon-
“queda” países capitalistas mais desenvolvidos e tes do capital. tecimentos das duas últimas décadas e
Trabalharemos dois grandes proces- centrais situados no Norte. E dito paga- A capital Berlim virou um canteiro de meia precisa reavaliar sua conduta, refa-
sos efetuados pelo capital contra o tra- mento pelo desenvolvimento recai sobre obras. O Estado alemão financiou a in- zer trilhas e ressignificar em unidade seu
balho no plano internacional com re- o sangue e o suor do trabalho. serção ao consumo dos sujeitos da parte caminhar.
percussões diretas no Brasil: 1) o “Con- Arquivo Pessoal Esta esquerda é digna, mas se encontra
senso” de Washington; 2) a “Queda” do fragilizada, confusa e precisa de tempo e
Muro de Berlim. novas/intensas reflexões para se recom-
por. E não são as drogas do agronegócio,
A consolidação de um “Consenso” da transgenia, dos laboratórios farmo-
do Norte sobre o Sul -químicos, nem das remunerações auto-
Passaram-se 25 anos desde que os Es- máticas dos royalties do petróleo. Ditos
tados Unidos consolidaram um novo pla- venenos deixarão a esquerda ainda mais
no político-econômico para o desenvolvi- débil e enferma.
mento da América Latina caracterizado A esquerda está entre mortos e feri-
como “Consenso” de Washington. Termo dos. Necessita recuperar seu viés co-
criado pelo britânico Williamson, princi- letivo. Recuperar suas raízes, retomar
pal economista deste processo. Em sua as experiências de educação, produção
trajetória política, atuou em organismos e poder popular. Necessita reafirmar e
financeiros multilaterais como o Fundo não negociar seus princípios para, com
Monetário Internacional e o Banco Mun- isto, incitar o desejo de algo diferente,
novo, dentro do histórico processo con-
formado por milhões de lutadores da
A atual fase da classe trabalhadora em todo o mundo.
O socialismo é uma práxis transforma-
dependência revela que dora. E como tal, necessita de escolas,
o desenvolvimento do de trabalho de base, de retomada cole-
tiva dos sonhos comuns. Isto é anterior
Sul somente ocorre sob e superior ao plano eleitoral. Exige tem-
po, dedicação e muito cuidado no culti-
controle e tutela dos vo das novas gerações.
países capitalistas mais Roberta Traspadini é professora da Univer-
desenvolvidos e centrais sidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri (UFVJM) e da Escola Nacional Flores-
situados no Norte A professora da UFVJM, Roberta Traspadini tan Fernandes (ENFF).
brasil de 18 a 24 de setembro de 2014 9

“Somos 11 candidatos à presidência


e não apenas três”, lembra Zé Maria PSTU
ENTREVISTA Candidato Essas obras não fazem sentido. A trans-
posição do São Francisco vai atender as
do PSTU diz que o Brasil grandes empresas que exportam frutas
no Nordeste, o povo vai ficar na mesma
está avançando “na luta situação. Em vez de uma obra que es-
da esquerda socialista” tá custando os tubos, era necessário fa-
zer milhares de pequenas obras de cister-
nas que permitissem ao povo aproveitar
a água da chuva, que é periódica. Se ele
Bruno Pavan conseguir armazenar essa água, ele vai
da Redação ter seu problema resolvido. Temos que
desenvolver através das universidades,
PELA QUARTA VEZ, Zé Maria de Al- da Embrapa e das empresas públicas,
meida é o candidato do PSTU à pre- projetos e atividades econômicas que se-
sidência da República. Em épocas em jam adequadas para aquele tipo de ter-
que todos os tipos de fé parecem tomar ra, de solo, de clima. As grandes hidrelé-
conta das campanhas, Zé professa a tricas no Norte do país têm dois proble-
sua: “Minha fé é na luta dos trabalhas- mas fundamentais: afeta de uma forma
dores e na sua força pra mudar o mun- inaceitável o meio ambiente e estão mui-
do, mais nada”. to longe de onde se consome mais ener-
Zé Maria, que também é presidente gia elétrica no país. Ao invés dessas gran-
nacional do partido, começou sua vida des obras, deveríamos construir cente-
nas greves dos anos de 1970 e 1980; fez nas de pequenas hidrelétricas, causando
parte do Sindicato dos Metalúrgicos de um prejuízo muito menor para a nature-
Santo André; foi membro da CUT e um za, mas produzindo mais energia e mais
dos fundadores do PT – partido em que próxima dos grandes centros consumi-
militou até o início da década de 1990. dores e investir em fontes alternativas.
Por não concordar com os rumos que Para Zé Maria, “a força da esquerda socialista não pode ser medida só pelas eleições”
o PT havia tomado, fundou, em 1994, Sobre direitos humanos, qual a sua
o Partido Socialista dos Trabalhadores O PSTU é a favor de um imposto bilização e de luta pra forçar uma mu- posição sobre aborto, legalização
Unificados (PSTU): “O que você viu em pras grandes fortunas? dança na estrutura econômica no país, das drogas e Polícia Militar?
2002 foi uma conclusão de um processo Não basta aumentar imposto sobre as nós teríamos hoje um Brasil completa- Somos a favor da legalização do aborto.
que começou ainda na década de 1980”. grandes fortunas, é preciso acabar com mente diferente. Mas ele escolheu bus- A mulher tem o direito de exercer a sobe-
Na primeira de uma série de entrevistas as grandes fortunas, porque ninguém a car acordos com o grande empresaria- rania sobre seu corpo. Se por alguma cir-
que o Brasil de Fato fará com os pre- acumulou com seu próprio trabalho. Na do para tentar ganhar as eleições. A cunstância ela ficou grávida e não pode
sidenciáveis do campo da esquerda, Zé medida em que estatizamos as grandes eleição não é o único caminho pra mu- ou não quer manter a gravidez, o Esta-
Maria conta como o PSTU vê o processo empresas e o sistema financeiro, eu re- dar o país. A Rede Globo mostra todos do tem a obrigação de assegurar o direito
democrático no país e afirma que as mu- tiro as grandes fortunas da mão de seus os dias no Jornal Nacional três candi- dela de fazê-lo. É errada a política atual
danças que o partido propõe para o Brasil proprietários. Se você for discutir a es- daturas, a Dilma, a Marina e o Aécio, de combate às drogas baseada na violên-
“são mais simples do que se pensa”. trutura tributária adotada no país, ela mas são 11 candidaturas. É dessa for- cia, na repressão policial, na penalização.
tem que mudar, mas isso é uma medida ma, com financiamento milionário de Ao criminalizar a droga, o Estado dá ao
Brasil de Fato – O que seria transitória, enquanto não houver a abo- um lado e com a utilização da mídia, crime organizado o monopólio do comér-
um regime ideal para ser lição da grande propriedade no país. Os de outro, que o grande empresariado cio dela no país, isso significa um poder
implantado no Brasil, de acordo lucros dos patrões têm que voltar para a constrói o resultado das eleições. econômico imenso ao crime organizado,
com o PSTU hoje? sociedade. que ele usa para corromper a polícia, as
Zé Maria – Defendemos outra forma autoridades. Achamos que tem de legali-
de organização da sociedade, que seja Como você vê a presença de Marina “Não basta aumentar imposto zar as drogas, mas regular a distribuição
igualitária, justa e que não haja violên- Silva nessas eleições? com um monopólio do Estado no forne-
cia contra o povo. Essas são mudanças Não acreditamos que a resposta de um sobre as grandes fortunas; é preciso cimento, com acompanhamento médico
profundas, mas são mais simples do que governo dos trabalhadores venha através e apoio psicológico. É preciso acabar com
se pensa. Temos que suspender o repas- da Marina. Ela se apresenta como o no-
acabar com as grandes fortunas, a PM. Ela é uma criação da ditadura, que
se de recursos públicos para os bancos e vo, que não tem nada a ver com essa ban- porque ninguém a acumulou com o é formada até hoje da mesma forma. Te-
grandes empresas e acabar com a pro- dalheira, mas tem afirmado que quer go- mos que ter uma polícia única, em que os
priedade privada no país. Mais de 40% vernar com todo mundo, com banqueiro, seu próprio trabalho” chefes sejam eleitos pela comunidade e
do orçamento federal vai para os ban- empresário e com os trabalhadores e é que seja controlada por ela também. Ho-
cos. Parar o pagamento dessa dívida in- exatamente isso que o PT fez. Além disso, je, a polícia serve para ser segurança dos
terna e externa. Se tomarmos os dados foi na gestão dela no Ministério do Meio interesses de quem tem, de quem contro-
do Banco Central, do Ministério da Fa- Ambiente que se liberou a floresta Ama- Os governos Dilma e Lula la a sociedade, e agride trabalhador em
zenda e do Tesouro Nacional e somar- zônica para o arrendamento pra madei- promoveram uma aproximação do greve, os jovens que estão protestando
mos tudo que entra no Brasil de recur- reiras estrangeiras e os transgênicos. Por Brasil com os países da América do nas ruas e barbariza a vida do povo po-
sos externos e tudo que sai; a conclu- último, os técnicos que montaram o pro- Sul e isso é motivo de críticas da bre na periferia.
são é que sai mais dinheiro do que en- grama econômico da Marina são todos direita nacional. Por outro lado, são
tra. Se pararmos de pagar essa dívida e, do PSDB. Ela tem grandes empresas do várias as acusações de que o Brasil
em função disso, acontecer uma ruptura seu lado, como a Natura e o Itaú. é imperialista contra seus vizinhos. “Marina se apresenta como o novo, que
e não entrar mais nenhum tostão aqui, Como você vê essa relação? É a
mas também não deixarmos sair, vai so- No final da década de 1990 houve favor da construção do porto de não tem nada a ver com essa bandalheira,
brar mais dinheiro. Veja também os pri- o início de uma ascensão da Mariel, em Cuba, por exemplo?
vilégios das grandes empresas. As mon- esquerda no poder em todos os O Brasil voltou um pouco mais sua di-
mas tem afirmado que quer governar
tadoras de veículos receberam do go- países da América do Sul. Em 1999, plomacia para a América Latina. O pro- com todo mundo, com banqueiro,
verno brasileiro quase R$ 30 bilhões de Hugo Chávez conseguiu apoio blema é: com que interesses? Achamos
subsídios fiscais nos últimos 10 anos. popular para lançar um regime que a aproximação foi em função dos empresário e com os trabalhadores e é
Mandaram pra fora do país mais de 10 de refundação da Venezuela, com interesses dos grupos econômicos que
bilhões de dólares e no primeiro sinal de uma nova Constituição e mudanças controlam a economia do Brasil. O go- exatamente isso que o PT fez”
queda de venda de carro, são 25 mil fun- estruturais. O Lula em 2002 não verno foi um menino de recado, foi um
cionários ameaçados de perder seu em- conseguiu esse apoio e teve que instrumento para ampliar os negócios
prego. Chegam a milhares as demissões firmar pactos com a elite. Qual o das grandes empresas pelo mundo. A
no setor de autopeças. Por último, é pre- motivo dessas diferenças em países Petrobras na Bolívia faz as mesmas coi- Mesmo depois de 12 anos do PT no
ciso que criemos outras instituições pa- tão próximos? sas que as montadoras de veículos fa- poder, a esquerda brasileira não
ra que se governe e haja uma democra- É preciso relativizar o que aconte- zem com o trabalhador brasileiro. So- conseguiu criar uma alternativa
cia efetiva no país. Para nós, o socialis- ceu na Venezuela, Bolívia e Equador. A bre o porto de Mariel, eu não sei qual a real para disputar a eleição e pautar
mo pressupõe também democracia, li- Venezuela vive uma crise social imen- importância desta obra para o povo de assuntos necessários para o país.
berdade e controle por parte dos traba- sa, não há alimentação para o povo. Es- Cuba, eu tenho medo de que este porto Qual o motivo disso?
lhadores. Não defendemos que o gover- sa crise ocorre porque apesar da retóri- seja mais importante para as empresas A força da esquerda socialista não po-
no seja de um partido. Eu tenho muito ca do Chávez e dos atritos que ele tem que querem comercializar com Cuba. de ser medida só pelas eleições, o re-
orgulho do PSTU, mas ele nunca vai re- com o imperialismo, ele não mudou a Eu veria com muito mais bons olhos se o sultado dela se dá de forma muito de-
presentar o conjunto, ele sempre vai re- estrutura econômica do país. Não há governo brasileiro se dispusesse a finan- formada, tanto pelo poder econômico
presentar uma parte e quem tem que uma ruptura com a estrutura capitalis- ciar programas sociais em Cuba, que es- quanto pela interferência da mídia. Ho-
governar o conjunto são instituições que ta de sociedade e de governo. A manu- tá sofrendo sérios problemas. O governo nestamente eu te diria que está avan-
representem o conjunto. tenção da propriedade privada na Ve- de Fidel Castro, ao invés de expandir a çando a força da esquerda socialista no
nezuela é o que faz com que um país ri- revolução para a América Central, man- país naquilo que é fundamental: na lu-
co viva uma situação daquela, o povo teve a revolução em Cuba e deu no que ta dos trabalhadores. Há um processo
“Se pararmos de pagar a está sem acesso a alimentos. Os empre- deu. Hoje, boa parte dos setores eco- de radicalização das greves que passa-
sários controlam a economia do país nômicos de Cuba já são explorados por ram por cima dos sindicatos por todo o
dívida externa e, em função até hoje. No Brasil qual é o problema? multinacionais, por empresas privadas; Brasil. É através da luta que vamos mu-
disso, acontecer uma O Lula precisaria fazer os acordos que isso vai fazer com que o povo de Cuba dar o país. Nós estamos disputando vo-
fez pra governar? Não, eu acho que o volte a ser escravo do grande capital co- tos e quanto mais votos tivermos, mais
ruptura e não entrar mais PT fez uma escolha errada, mas não é mo nós somos. fortalece a nossa luta, mas nós não nos
de agora. Na década de 1980, tínhamos pautamos por esses critérios para defi-
nenhum tostão aqui, mas uma mobilização imensa e o PT era am- Sobre as grandes obras que nir o avanço da esquerda socialista. Nós
também não deixarmos sair, plamente hegemônico no segmento da acontecem no Brasil, transposição tivemos reuniões com o PSOL e firma-
classe trabalhadora que estava em lu- do rio São Francisco e hidrelétricas mos acordos estaduais com eles. No âm-
vai sobrar mais dinheiro” ta. Se naquele momento o partido es- de Belo Monte e Santo Antônio, bito federal, tivemos uma reunião em
colhesse fortalecer o processo de mo- qual a sua opinião? que apresentamos as nossas propostas
Romerito Pontes de colocar as eleições em função da lu-
ta do povo e nos disseram de volta que
O debate econômico nas não poderiam ficar defendendo essas
três principais candidaturas posições radicais demais porque dificul-
está alicerçado sob o tripé ta a disputa do voto. Além disso, o PSOL
macroeconômico e a autonomia pegou R$ 50 mil do grupo Zaffari, que
do Banco Central. Como o PSTU vê é a quinta maior rede de supermerca-
essas questões? dos do país, com mais de 9 mil funcio-
O problema dessa discussão é que ela nários e um faturamento de quase R$
é retórica. O que existe é uma discussão 5 bilhões, para as campanhas da Lucia-
entre dar uma autonomia formal ao Ban- na Genro e do Robertinho no Rio Gran-
co Central, mas a situação atual é o BC de do Sul. Uma coligação nesses moldes
também controlado pelo sistema finan- seria apostar na tragédia que foi o PT.
ceiro. O governo federal não realiza ne- Com o PCB, já foi outra a razão; eles op-
nhuma política que contraria efetiva- taram por lançar uma candidatura por-
mente os interesses dos bancos. Baixa- que é um partido que tem pouca presen-
ram-se os juros no começo do governo ça no movimento social e precisava de
Dilma, já subiu de novo. Se há uma de- representação, o que, na minha opinião,
pendência ou independência formal do é legítimo, eles têm esse direito e eu não
Banco Central é pura figura de retórica. O candidato à presidência da República pelo PSTU, Zé Maria de Almeida vou questionar.
12 de 18 a 24 de setembro de 2014 cultura

Matemática e corpo
CRÔNICA O corpo, a gente joga a toalha:

Kim Manley Ort/CC


o corpo é a base do real. A matemática é
simplesmente o vislumbre da perfeição

Braulio Tavares

SE EXISTE ALGUMA coisa que justifica o surgimento do ser hu-


mano neste planeta é ele ter concebido a matemática, e digo aqui
a matemática no seu sentido mais amplo, que inclui a geometria,
a aritmética, a música, a zorra toda. Não quero dizer que ela seja
mais importante do que tudo, e na verdade acho que está mui-
to longe disso. A coisa mais importante da vida é a felicidade do
corpo, o em-paz do corpo, o na-ponta-dos-cascos do corpo, o
turbinas-a-toda-potência do corpo, a alegria-de-viver do corpo,
o vou-tomar-todas-porque-sou-indestrutível do corpo. O cor-
po, a gente joga a toalha: o corpo é a base do real. A matemática
é simplesmente o vislumbre da perfeição.
A matemática nos sugere o possível mundo Trans-Humano do
futuro, em que todos seremos mente pura, gravada em elétrons
e silício, livres das dores, das carências e da decadência do cor-
po. Não sei o que sente o corpo alheio, mas os prazeres e os acha-
ques do meu me bastam. Tenho dias sempre movimentados. O
corpo ocupa cada um de nós 24 horas por dia. É único e não se
conecta em rede. Talvez por isso nunca consegui ver o arco-
-íris que tantos outros viam, a estrela cadente que tantos apon-
tavam, o fantasma que todo juravam trêmulos que estava ali,
diante de nós. Pobre de mim, que vejo uma cicloide e não vejo
um fantasma.

A matemática nos sugere o possível mundo Trans-


Humano do futuro, em que todos seremos mente
pura, gravada em elétrons e silício, livres das dores,
das carências e da decadência do corpo

Quando conseguirmos transformar em gifs animados tudo


que sabemos sobre o espaço e suas dimensões. Quando conse-
guirmos codificar isso numa tecnologia que qualquer raça, por
mais física e quimicamente diferente de nós, consiga reprodu-
zir e utilizar. Quando, enfim, pudermos revelar a uma raça alie-
nígena qualquer o que descobrimos sobre a matemática pura do
Universo, somente então teremos justificado nossa presença na
Terra. Talvez nossa aritmética e nossa geometria (nossos lados
digital e analógico) não sejam perceptíveis por todas as espécies
inteligentes que há. Faz sentido. Mas também faz sentido supor
que exista alguma semelhante à nossa, ou pelo menos capaz de
ver como vemos e raciocinar como raciocinamos, pouco importa
sua aparência anatômica ou sua composição química.
Imagino um mundo distante, um mundo submarino com uma
civilização compartilhada entre cetáceos e cefalópodes, e on-
de um dia cheguem, sabe-se lá como, demonstrações cabais da
existência de que existia, num passado remoto, um raciocínio
abstrato em termos visuais, no terceiro planeta em volta de uma
estrela periférica. Eles olharão aquilo e comentarão: “Vejam só, Quando, enfim, pudermos revelar a uma raça
eram mamíferos antropoides de superfície, respiravam oxigê-
nio, e mesmo assim conheciam o Yamigang do Kambalaôr.” (É alienígena qualquer o que descobrimos sobre a
assim que chamam o “Teorema de Pitágoras” na cultura deles.)
(Texto publicado em sua coluna diária no Jornal da Paraíba – matemática pura do Universo, somente então
Campi­na Grande-PB) teremos justificado nossa presença na Terra
Braulio Tavares é escritor, poeta e compositor
de Campina Grande (PB).

www.malvados.com. br dahmer

PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais: 1.Controle – Movimento que tem protagonizado massivas ocupa-
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
ções de terrenos urbanos na cidade de São Paulo. 2.Está há 12 anos no governo 1
federal – Uma das operadoras de telefonia celular. 3.Partido do presidente boli-
viano Evo Morales – A protestante foi liderada por Martinho Lutero. 4.Reduzidos 2

à condição de escravos. 5.“De (?)” significa “de memória”. 6.Indica antecedência


3
– “Ligado”, em inglês. 7.Oposta a mudanças políticas – As Avós da Praça de Maio
acabam de encontrar mais uma. 8.Em alemão, diz-se “Kino” – Interjeição de dor – 4
Direção. 9.Ápice – Combate – Terreno inculto em que crescem plantas agrestes.
10. Imposto de Renda. 11.Destruição metódica de um grupo étnico ou religioso 5
pela exterminação dos seus indivíduos – Atitude hostil ou discriminatória em
relação a pessoas com características diferentes, notadamente quanto à etnia. 6

Verticais: 1.Carência alimentar – Neste estado, diz-se “trem” e “uai”. 2.Time de 7


futebol de Arapiraca, Alagoas – Agência de espionagem dos EUA. 3.Umas das
divisões do chamado sistema “S” – Em inglês, diz-se “United Nations”. 4.Dá risada 8

– Jovem mais visado pela polícia nas periferias. 5.Parte imortal do ser humano –
9
Sigla do latim post scriptum [o que se escreve num texto depois de ser assinado].
6.Segunda nota musical – Estado (sigla) com menor litoral do Brasil. 7.Reduzir a 10
cinzas. 8.“Seis”, em algarismo romano – Terceira nota musical. 9.Movimento da
esquerda cristã, nascido em 1962, a partir de um congresso em Belo Horizonte 11
– Lição. 11.Nesse lugar – Interromper. 12.A capital deste estado (silga) é Porto
Alegre – Em alemão, diz-se “Straße”. 13.Fernando de Noronha pertence a este es-
tado (sigla) – Frequência de rádio – Da sigla “computador pessoal”, em inglês. 16.ETA. 17.Somar – Tio. 18.Tiã – Favor.
14.Organização católica tradicionalista brasileira fundada em 1960. 15.Canal de nerar. 8.VI – Mi. 9.AP – Aula. 11.Aí – Cortar. 12.RS – Rua. 13.PE – AM – PC. 14.TFP. 15.CNN – Mês.
TV a cabo de notícias dos Estados Unidos – Período de 30 dias. 16.Movimento Verticais: 1.Fome – MG. 2.Asa – CIA. 3.Sesc – ONU. 4.Ri – Negro. 5.Alma – PS. 6.Ré – PI. 7.Inci-
– Racismo.
que lutava pela independência do País Basco. 17.Adicionar – Irmão de pai ou de – On. 7.Conservadora – Neta. 8.Cine – Ai – Rumo. 9.Auge – Luta – Mato. 10. IR. 11.Genocídio
mãe. 18.Amuleto dos negros malês – Serviço gratuito prestado ou recebido. Horizontais: 1.Fiscalização – MTST. 2.PT – Oi. 3.MAS – Reforma. 4.Escravizados. 5.Cor. 6.Pré
américa latina de 18 a 24 de setembro de 2014 13

A Venezuela e a revolução Bolivariana Julio César Mesa/CC

ANÁLISE A experiência
da Venezuela, que lançou
uma lufada de vento
fresco sobre a América
Latina, fraqueja, mas ainda
não está derrotada

Elaine Tavares

JÁ FAZ ALGUM tempo que a Venezuela


saiu da agenda da mídia comercial brasi-
leira e estadunidense. Chávez, que apa-
recia como uma ameaça constante ao
projeto de “democracia” que os Estados
Unidos desenharam para a América La-
tina, morreu, e seu sucessor não tem a
mesma verve ou carisma.
Assim, hoje, quando a Venezuela apa-
rece nos noticiários é apenas para refor-
çar a ideia de que por lá existe uma di-
tadura ou para registrar alguma coisa
ruim na conjuntura, principalmente no
que diz respeito à crise de desabasteci-
mento que acontece atualmente, ao al-
to índice de violência ou a alguns dis-
túrbios gerados por forças de oposição
– que são noticiados como violência por Rua em subúrbio de Caracas, capital e maior cidade da Venezuela
parte do governo.
Sobre isso sempre é bom reafirmar: o zuela um país autossustentável. Ao povo novo, toda a máquina governamental te- mãos. O presidente Maduro carece da
governo da Venezuela não é uma dita- pobre não era oferecida qualquer solu- ve de se voltar para a defesa do processo força monumental que brotava em Chá-
dura. É um governo eleito democratica- ção que não a endêmica miserabilidade. democrático. E isso gera um esforço tre- vez. Ainda assim, ele busca medidas que
mente, bem aos moldes da incensada de- A proposta bolivariana, comandada mendo de todas as forças governamen- diminuam a insegurança com relação à
mocracia burguesa, no voto. É certo que por Hugo Chávez, muda radicalmente tais e populares. economia.
se pode questionar o processo, o presi- a distribuição do dinheiro do petróleo. O governo de Maduro começa em Na última semana, por exemplo, deci-
dente ou o que quer que seja, mas dizer E os dólares que iam descansar no es- meio a toda essa crise, provocada desde diu integrar no Ministério da Alimenta-
que é uma ditadura é agir de má-fé. Se trangeiro começaram a produzir políti- fora, pelos inimigos de sempre, e tam- ção os vice-ministérios de Produção Ali-
assim fosse, poderíamos chamar de di- cas públicas para aqueles que nunca na bém desde de dentro, pelos inimigos mentaria e do Sistema Socialista de Ali-
tadura o governo de Barack Obama, por vida tinham sido sujeitos desse mecanis- locais. Os problemas do país que, com mentação, para que, juntos, encontrem
exemplo, que sequer passa pelo crivo do mo. Nascem as missões, com o propósito Chávez, vinham sendo atacados, se avo- saídas ao desabastecimento. Também
voto direto da população. de, a partir da organização de base, po- lumaram e, com Maduro, passaram a ter decidiu criar uma auditoria para inves-
Quanto ao desabastecimento, corrup- pular, promover saúde, educação, segu- outra condução. Isso fez com que muito tigar as empresas relacionadas com o
ção e violência, esses são problemas re- rança, moradia, acesso ao gás, ao esgoto, do processo bolivariano se esvaísse. sistema de importação e distribuição de
ais que o país vive. É sabido que a Vene- a coisas básicas, que até então não esta- Por isso que, hoje, a realidade venezue- alimentos – esse ainda na mão dos mes-
zuela é um país que se sustenta sob a ren- vam dadas. Sem lugar a dúvidas, isso foi lana se apresenta com matizes mais con- mos velhos sugadores da economia ve-
da do petróleo, sem qualquer lastro na uma revolução. flitivas. Os problemas crônicos ressur- nezuelana; e um escritório especial para
produção. Durante o processo de revolu- gem com mais força. O governo não con- fiscalizar o sistema alimentar como um
ção bolivariana, esse foi o ponto central segue dar respostas a questões como a te- todo, tentando evitar que a comida vire
da luta de Hugo Chávez: fazer com que o Houve os que assumiram o lefonia fixa, por exemplo, extremamente uma mercadoria de luxo, escondida pe-
país passasse também a produzir comi- ineficaz, principalmente no interior do las mãos dos especuladores.  
da, manufaturas, enfim, criasse um par- “chavismo” de última hora, país. O desabastecimento também é uma Ainda no campo da batalha pela distri-
que industrial e agrícola capaz de sus- porque era mais seguro, e realidade concreta. A comida chega a ser buição da comida, o governo criou uma
tentar suas demandas internas. vendida no mercado paralelo e há casos corporação produtora, distribuidora e de
Infelizmente, Chávez não conseguiu hoje mostram as garras e os como os dos pescadores da Ilha Marga- mercado de alimentos para garantir que
criar novas matrizes de desenvolvimen- rita que levam seus barcos carregados de os alimentos cheguem às casas dos ve-
to. Isso ocorreu por alguns erros de con- efeitos de suas verdadeiras peixe e gasolina para alto mar e lá ven- nezuelanos. É claro que essas medidas,
dução, mas fundamentalmente por con- dem os produtos em dólares. Os casos de por si só, não garantem muita coisa, uma
ta do fato de que nos 13 anos em que fi- formações. Os inimigos do corrupção se avolumam, inclusive entre vez que é a correia de corrupção que tem
cou à frente do governo, Chávez preci- processo bolivariano estão os governantes, principalmente nas cida- desviado comida e gerado o desabasteci-
sou enfrentar uma oposição ferrenha, de des pequenas, onde atuam como peque- mento. Mas, o fato de o governo agir em
dentro e de fora, que gerou um golpe de atuando diuturnamente nos tiranos. Tudo isso é verdade. consequência, e rapidamente, mostra à
Estado e muitos outros conflitos difíceis Mas, o que precisa ser levado em conta população que há esperanças.
de resolver. é que o processo bolivariano não acon-
Ao longo do processo, a proposta re- teceu a partir de uma revolução clássica,
volucionária que capitaneava o boliva- Mas, enquanto esse processo de rever- na qual as forças contrárias foram exter- Segundo o economista Nildo
rianismo era a de organização popular. são de prioridades para uso da renda pe- minadas. Não. O processo foi democrá-
Depois de séculos de opressão e invisi- troleira se fazia, também era necessário tico, com as forças inimigas no comba- Ouriques, “antes de Chávez, havia
bilidade, as gentes venezuelanas preci- pensar a produção. Grandes foram os te diário e sistemático, dominando in-
savam de muito trabalho para assumir o debates sobre a economia endógena, que clusive os meios de comunicação. Hou-
desabastecimento e o povo passava fome.
protagonismo de suas vidas, como sujei- se fizesse desde dentro, mudando os há- ve os que assumiram o “chavismo” de úl- Hoje, segue tendo desabastecimento,
tos históricos do que acontecia no país. bitos de um país que sempre importou tima hora, porque era mais seguro, e ho-
Foram anos de construção da organiza- tudo o que consumiu. Era hora de come- je mostram as garras e os efeitos de suas mas o governo age para garantir a
ção comunitária e popular. E isso era ne- çar a produzir, dizia o comandante, mas verdadeiras formações. Os inimigos do
cessário para, depois, entrar em outros isso não era coisa fácil. processo bolivariano estão atuando diu- comida na mesa dos empobrecidos”
campos de mudança, como a transfor- turnamente, fomentando a desinforma-
mação da matriz produtiva. Morte prematura ção, o conflito, o tempo todo, muitas ve-
A morte prematura de Hugo Chávez zes até dentro dos escalões de governo. É
cortou esse processo. Novas batalhas a luta de classe se fazendo dia após dia, É importante lembrar que ondas de
É bom reafirmar: o governo conjunturais precisaram ser travadas. na batalha cotidiana. desabastecimento sempre existiram na
Houve quem quisesse impedir que o vi- O governo tenta atacar os problemas, Venezuela, uma vez que, como já foi di-
da Venezuela não é uma ce eleito, Nicolás Maduro, assumisse. De mas muitas vezes troca os pés pelas to, até Chávez, o país vinha vivendo sob
ditadura. É um governo o domínio da renda petroleira, sem po-
lítica de produção própria e, por con-
Mauricio Muñoz/Presidencia de la República

eleito democraticamente, ta disso, a população mais pobre segue


acreditando no governo e defendendo o
bem aos moldes da processo bolivariano.
Segundo o economista Nildo Ouriques,
incensada democracia “antes de Chávez, havia desabastecimen-
burguesa, no voto. Pode-se to e o povo passava fome. Hoje, segue
tendo desabastecimento, mas o governo
questionar o processo, o age para garantir a comida na mesa dos
empobrecidos. Isso é uma fundamental
presidente ou o que quer que diferença. A população não é burra, sabe
seja, mas dizer que é uma que em outro tipo de governo a fome vol-
ta. Por isso há muito apoio ainda”.
ditadura é agir de má-fé A batalha pela manutenção das con-
quistas da revolução bolivariana segue
aos tropeços na Venezuela. É uma que-
da de braço diária. Diante das impossi-
Transformações bilidades o processo revolucionário arre-
Em meio a tudo isso, o governo preci- feceu. Hoje, trata-se de manter as con-
sou organizar eleições, criou uma Cons- quistas, quando seria necessário avançar
tituinte, discutiu e aprovou uma nova mais. Para Ouriques, que também acre-
Constituição, sofreu e venceu um gol- dita que a revolução mesmo já encerrou
pe e aprofundou a participação popu- seu ciclo, “ainda assim fica a lição his-
lar. São transformações que não se fa- tórica para o povo venezuelano. A luta
zem a toque de caixa. Precisam de dis- de classe avançou enormemente nesses
cussão, participação e mobilização. En- anos. A população aprendeu, participou,
quanto isso acontecia, o governo criou os viveu experiências que não podem mais
“mercados populares”, estabeleceu par- ser escondidas ou esquecidas. Isso é um
cerias com os países vizinhos e foi ten- ganho político inquestionável”.
tando organizar a produção. Essa era, A experiência da Venezuela, que lan-
talvez, a tarefa mais dura. Sair de um es- çou uma lufada de vento fresco sobre
tado de parasitismo completo da renda a América Latina, fraqueja, mas ain-
petroleira e ensinar a população a fazer da não está derrotada. Porque as expe-
coisas que nos parecem muito simples, riências que fazem as pessoas avança-
como cultivar a terra, por exemplo. rem na consciência de classe são indelé-
Mas, é preciso entender a realidade ve- veis, nunca se apagam e sempre podem
nezuelana para compreender o nível de retornar, quando se fizerem necessárias.
dificuldade que isso implica. Os gover- Ainda há muito para andar nessa nossa
nos anteriores, que sempre encheram os “América baixa”. E as gentes da Vene-
bolsos com o dinheiro do petróleo, nun- zuela seguem apontando na direção de
ca se preocuparam com tornar a Vene- O presidente venezuelano, Nicolás Maduro um mundo melhor.
14 de 18 a 24 de setembro de 2014 américa latina

No aniversário do golpe, governo chileno


anuncia revogação da lei de anistia Confecobre
CHILE Medida será O artigo 1º do decreto assinala: “Con-
cede-se anistia a todas as pessoas que,
votada em caráter de na qualidade de autores, cúmplices ou
encobridores, tenham incorrido em fa-
urgência pelo Congresso tos delituosos durante a vigência da si-
e deve entrar em vigor até tuação de Estado de sítio, compreendi-
da entre o dia 11 de setembro de 1973 e
fim de setembro; oposição 10 de março de 1978, sempre que não
estiverem submetidas a um processo ou
critica a proposta condenadas”.
Com o avanço da democracia, os tribu-
nais começaram a investigar os crimes co-
metidos pela ditadura entre 1973 e 1975,
de São Paulo (SP) apesar da Lei de Anistia, por considerá-
-los delitos de lesa-humanidade, que não
O GOVERNO do Chile anunciou no úl- prescrevem. No momento de dar a sen-
timo dia 11 de setembro a revogação do tença, no entanto, se deparavam com a
decreto-lei aprovado durante a ditadu- legislação que tornou impossível no Chi-
ra de Augusto Pinochet [1974-1990] que le que fossem condenados os responsá-
concede anistia aos agentes do regime. A veis pelos abusos cometidos nos primei-
medida será votada em caráter de urgên- ros cinco anos do governo de Pinochet.
cia e poderá entrar em vigor até o final O governo chileno se comprometeu pu-
deste mês, já que o governo tem maioria blicamente nas Nações Unidas a anular o
nas duas casas. decreto-lei de anistia e para isso apresen-
A decisão, que coincidiu com o 41º ani- tou ao Congresso Nacional um projeto de
versário do golpe militar e do assassina- lei nesse sentido.
to do presidente Salvador Allende, foi Homenagem a Salvador Allende em Santiago do Chile O anúncio havia sido feito no dia 8 de
anunciada publicamente pelos minis- julho, depois de ter sido submetido ao es-
tros da Justiça, José Antonio Gómez, e Para a presidente da Agrupação de Fa- não do passado, e custa entender que Ba- crutínio do Comitê de Direitos Humanos
da Presidência, Ximena Rincón. miliares de Detidos Desaparecidos, Lo- chelet os transforme em uma priorida- da ONU em Genebra, que vela pelo res-
A revogação do decreto-lei de anistia, rena Pizarro, a importância da nulidade de. Vai reabrir feridas”, afirmou o presi- peito da Convenção Internacional sobre
que exime de responsabilidade quem co- da lei de Anistia “para nós é importante dente da União Democrata Independen- Direitos Civis e Políticos, da qual o Chi-
meteu abusos entre 1973 e 1978, foi uma porque tem a ver com uma luta históri- te (UDI), Ernesto Silva, ao jornal espa- le faz parte.
das promessas eleitorais de Bachelet, ca, para anular qualquer vestígio da dita- nhol El País. A ONU tinha solicitado ao Chile que
que assumiu em março como presiden- dura que tenha tentado permitir a impu- anulasse a Lei de Anistia para que ne-
te do país, um cargo que já havia ocupa- nidade, estabelecer licença para matar”. A Lei de Anistia nhum crime contra a humanidade ficas-
do no período de 2006-2010. A oposição criticou a medida, sugerin- Por causa da prisão em Londres do di- se impune e para que não houvesse espa-
Segundo explicou à CNN Chile um dos do que a decisão tomada agora tem como tador Augusto Pinochet, em novembro ço para a interpretação.
autores do projeto, o senador Guido Gi- objetivo desviar a atenção das explosões de 1998, os juízes chilenos decidiram não O subsecretário de Relações Exteriores
rardi, a medida tem alcance retroativo, o que ocorreram recentemente no país. aplicar a Lei de Anistia, que viola a legis- do país, Edgardo Riveros, explicou ao co-
que permitirá abrir processos que a Jus- “O governo deveria preocupar-se com o lação internacional. No entanto, os fami- mitê da ONU à época que a Lei de Anis-
tiça considerava extintos e julgar os que terrorismo e o desemprego. Os chilenos liares das vítimas consideram sua mera tia não era aplicada, apesar de estar ain-
se beneficiaram da lei. querem pensar nos assuntos do futuro, existência como uma afronta. da vigente. (Opera Mundi)

CUBA

A pedido da OMS, Cuba enviará médicos


a Serra Leoa para combater ebola
Jean-Louis Mosser/EC/ECHO
EPIDEMIA Diretora geral da entidade fermeiras, todos com mais de 15 anos
de profissão e experiência em situações
disse que se trata do “mais importante” de desastres naturais e epidemiológicos.
envio de especialistas à região; Eles serão enviados a Serra Leoa na pri-
meira semana de outubro e permanece-
profissionais chegam em outubro rão ali por seis meses, como informou o
ministro da Saúde cubano, Roberto Mo-
rales Ojeda.
de São Paulo (SP) Combate à epidemia
A epidemia de ebola já provocou mais
A ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde de 2.400 mortes em países da África Oci-
(OMS) anunciou no último dia 12 que o dental, 509 delas em Serra Leoa, desde
governo cubano enviará 165 profissio- a aparição do vírus no começo do ano,
nais de saúde para lutar contra o ebo- de acordo com dados da OMS. Mais de
la na África Ocidental, incluindo médi- 4.700 pessoas estão infectadas.
cos, enfermeiras, epidemiologistas e es- A organização estima que ainda faltem
pecialistas em controle de infecções. 500 médicos e enfermeiros estrangei-
“Por sua longa história de solidarieda- ros e cerca de mil profissionais dos paí-
de, Cuba foi um dos países aos quais a ses afetados para atuar no combate à epi-
OMS e o secretário-geral da ONU, Ban demia. Também são necessários recur-
Ki-Moon, pedimos apoio para enfren- Voluntários carregam corpo de vítima do ebola em Serra Leoa sos materais e centros de tratamento nos
tar este surto”, disse a diretora-geral da países atingidos.
OMS, Margaret Chan, em declarações à “Se vamos à guerra contra o ebola, pre- recursos humanos é “extremamente ge- A China, por sua vez, anunciou que en-
agência cubana Prensa Latina. cisamos de recursos para lutar”, disse nerosa” da parte do governo cubano e se- viará um pacote de ajuda humanitária no
Este grupo incluirá também especialis- Chan após o anúncio da colaboração de rá muito valiosa para conter “o pior surto valor de US$ 32,5 milhões para os países
tas em terapia intensiva e agentes de mo- Cuba, que classificou como o envio “mais de ebola vivido até agora”. afetados e a organizações internacionais
bilização social. “Isto fará diferença em importante” de especialistas para a re- A brigada de 165 colaboradores de saú- que ajudam no combate ao vírus. (Ope-
Serra Leoa”, sustentou Chan. gião. Segundo ela, esta contribuição em de, formada por 62 médicos e 103 en- ra Mundi)

INTERNACIONAL

Irã rejeita pedido dos Estados Unidos


para lutar contra o Estado Islâmico
ORIENTE MÉDIO para cooperar na luta contra o grupo “Os Estados Unidos, por mediação do tes da ação que permitiu que o Exérci-
Estado Islâmico (EI), que controla par- embaixador no Iraque, solicitou [nossa] to iraquiano e as milícias xiitas treina-
Governo iraniano não foi te dos territórios da Síria e do Iraque. O cooperação contra o EI. Neguei porque das pelo Irã conseguissem retomar a ci-
grupo gerou comoção mundial após di- [os estadunidenses] têm as mãos man- dade que estava sitiada há 75 dias.
convidado para a cúpula vulgar vídeos em que três ocidentais são chadas neste assunto”, disse Khamenei,
em Paris, na qual 30 países decapitados, dois cidadãos dos EUA e referindo-se à aliança dos EUA com a
um britânico. Arábia Saudita e outros países que o Irã A proposta iraniana é que, para fazer
se comprometeram a As declarações do líder iraniano en- considera responsáveis pela propagação
frente ao grupo, é preciso “reforçar
cerram, assim, as especulações sobre do grupo jihadista.
ajudar o Iraque a derrotar uma possível cooperação do país com Khamenei também declarou que
os governos iraquiano e sírio”; por
Washington. O secretário de Estado “quem freou o EI no Iraque não foram
o grupo jihadista estadunidense, John Kerry, telefonou os EUA, mas o Exército e as forças po- isso, se nega a aceitar um possível
pessoalmente para o ministro de Rela- pulares iraquianas”, em referência à
ções Exteriores iraniano, Javad Zarif, ruptura do cerco de Amerli. A proposta bombardeio à Síria
que também recusou a proposta, como iraniana é que, para fazer frente ao gru-
de São Paulo (SP) informou Khamenei. po, é preciso “reforçar os governos ira-
quiano e sírio”; por isso, se nega a acei-
“OS ESTADOS UNIDOS buscam um Excluído da reunião tar um possível bombardeio à Síria. O porta-voz do Departamento de Es-
pretexto para fazer no Iraque e na Sí- O governo iraniano não foi convida- De acordo com o jornal espanhol El tado dos EUA, no entanto, confirmou
ria o que fizeram com o Paquistão. [Po- do para participar da cúpula internacio- País, a ação Amerli fortaleceu a tese de que diplomatas conversaram com o Irã
der] bombardear onde querem sem au- nal realizada no último dia 15 em Paris, que haveria algum tipo de entendimen- sobre a ameaça do EI, mas indicou que
torização.” Com essa justificativa, o líder na qual 30 países se comprometeram a to entre o Irã e os Estados Unidos. Is- não seria realizada nenhuma coorde-
supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, ajudar o Iraque na luta contra o Esta- so porque a aviação dos Estados Unidos nação militar entre as nações. (Opera
rechaçou o pedido dos Estados Unidos do Islâmico. bombardeou as posições do EI horas an- Mundi)
internacional de 18 a 24 de setembro de 2014 15
Jordi Payà/CC

Escócia e Catalunha: rumo à independência Na Catalunha, milhares foram às ruas pelo direito de consultar a população

ANÁLISE Em ambos os casos, vale destacar o incentivo à democracia direta, mas um resultado deverá ter pouca influência no outro

lhano nunca foi totalmente assimilado ço pelo imigrante que busca integrar-se mitir a consulta, decisão respaldada tam-
Raphael Tsavkko Garcia pela população catalã, cuja maioria ab- – e estes são buscados a integrar-se –, bém pelos tribunais.
de Bilbao (País Basco) soluta emprega o catalão como língua que busca compreender o que se passa. Apesar dos discursos de que tais parti-
veicular e o ensina nas escolas, pese São movimentos nacionalistas, base- dos respeitam a democracia, não são ca-
EM 18 DE SETEMBRO, milhões de es- históricas tentativas de suprimi-lo, em ados em identidades culturais e étnicas pazes de aceitar que a população exerça
coceses irão às urnas votar em um re- especial durante a ditadura de Franco. que, ao mesmo tempo, são abertos ao di- livremente seu direito ao voto, ou seja,
ferendo pela independência do país do O “catalanismo” sempre foi um senti- ferente e ao que vem de fora aproveitan- trata-se de uma democracia apenas em
Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlan- mento muito forte, mas a crise que aba- do uma sinergia entre os diferentes. Pode relação ao que o governo permite.
da do Norte. Pelas pesquisas divulga- lou a Europa e que ainda permanece co- parecer contraditório, mas faz todo sen- Para além das diferenças e semelhan-
das até o momento, é impossível saber mo uma nuvem negra no horizonte aca- tido, pois parte da força destes movimen- ças básicas, fica a questão sobre qual efei-
qual será o resultado, mas há a certeza bou por empurrar ainda mais os catalães tos hoje vêm exatamente da maior parti- to terá a consulta escocesa sobre o eleito-
de que a mera existência de tal referen- em direção à rota da independência. cipação social e horizontal que converge rado catalão e, mais além, se o governo
do é um marco. em um sentimento de identidade local. catalão – Generalitat – capitaneado por
Caso semelhante de grande repercus- Semelhanças O direito de decidir é parte do proces- Artur Mas, irá levar adiante uma consul-
são, o da separação do Quebec do Cana- Há semelhanças entre as situações ca- so democrático, é horizontal, é agrega- ta baseada no princípio da desobediência
dá, acabou com a vitória dos unionistas talã e escocesa no que tange a questões dor, ao passo que busca corrigir erros civil – opção apoiada por forças de es-
por pequena margem nos anos de 1990 e econômicas e sociais. Recortes de benefí- históricos e imposições horizontais vin- querda nacionalista.
desde então o nacionalismo “quebequen- cios sociais e o excesso de imposto pago das de longe. Quanto mais proibição,
se” encontra-se em banho-maria. por estas duas nações, respectivamente, maior se torna o movimento e mais in- Consequências
A Escócia de William Wallace, famo- a Londres e a Madri fizeram crescer um clusivo também. A intenção de catalães A vitória do “sim” na Escócia poderia
so guerreiro pela liberdade de seu povo sentimento de injustiça que, aliado a ou- e escoceses é buscar um caminho pró- ter junto à população catalã o mesmo
nos séculos 13 e 14 e retratado no grande tras formas de opressão cultural e mes- prio, mas não excludente. efeito que jogar gasolina no fogo, mas
sucesso do cinema Coração Valente, de mo aliado a uma história larga de confli- ao mesmo tempo poderia tornar ainda
Mel Gibson, em 1995, nunca aceitou to- tos e conquista, acabaram por impulsio- mais intransigentes as lideranças espa-
talmente os acordos e arranjos reais que nar o sentimento nacionalista. São movimentos nholas em seu rechaço ao exercício de-
acabaram por uni-la definitivamente ao Em ambos os casos há também seme- mocrático.
resto do Reino Unido (na concepção es- lhante o terrorismo praticado por ban- nacionalistas, baseados Ao contrário da Escócia, onde o “não”
cocesa, unidos à Inglaterra, real “cabe- cos e grandes empresários que ameaçam em identidades culturais é o favorito, a ampla maioria social ca-
ça” deste emaranhado de nações). Che- mudar as sedes de suas empresas pa- talã apoia a independência. Uma virada
gou o momento de medir forças e buscar ra Londres e Madri na tentativa de usar e étnicas que, ao mesmo do “sim” na Escócia, baseado no princí-
um novo caminho. a pressão econômica para manipular e pio democrático, acenderia a luz verme-
pressionar a vontade popular. tempo, são abertos ao lha na Espanha, demonstrando que a op-
O fenômeno político do Podemos, par- ção por impedir o processo democrático
Seguros da vitória do “não”, lideranças tido de esquerda nascido dos movimen- diferente e ao que vem de estaria “correta”.
inglesas impuseram um referendo com tos de rua, dos chamados Indignados e fora aproveitando uma Por outro lado, uma vitória do “não” na
das mobilizações contra as políticas de Escócia teria pouco efeito tanto na Cata-
apenas duas alternativas, “sim” e “não”. austeridade durante o auge da crise eco- sinergia entre os diferentes lunha quanto na Espanha, dado que difi-
nômica ajuda a explicar um pouco o que cilmente o insucesso de um processo em
Nas últimas semanas, porém, se viu se passa com Escócia e Catalunha na que desde o começo o “não” liderava fa-
questão da representação. ria com que população catalã ou governo
um crescimento vertiginoso do “sim” Tanto o Podemos quanto diversos mo- Diferenças espanhol mudasse de posição.
vimentos pelo mundo, como os Occupy Porém, Catalunha e Escócia sustentam
iniciados nos EUA, a Primavera Árabe e diferenças significativas. A principal de-
Referendo mesmo os protestos de Junho de 2013 no las sendo o modelo de decisão. O refe- Porém, Catalunha e Escócia
Alex Salmond, primeiro-ministro da Brasil demonstram uma guinada geral rendo escocês é legal, irá acontecer com
Escócia e principal líder do Scottish Na- para um modelo mais participativo da e o apoio de Londres e seu resultado será sustentam diferenças
cional Party (SNP), batalhou para conse- na política, por uma democracia (mais) respeitado (acredita-se). No caso catalão,
guir um acordo com Londres e pelo refe- direta e por menos poder nas mãos de uma consulta seria ilegal, feita na base da
significativas. O referendo
rendo em marcha. políticos distantes. desobediência civil e seu resultado difi- escocês é legal, irá acontecer
Na visão dos ingleses, uma separação Escócia e Catalunha têm o interesse de cilmente seria respeitado pela Espanha,
parecia improvável. Salmond propôs um aproximar o centro de poder de seu povo, trazendo incertezas inúmeras. com o apoio de Londres e
referendo com três questões: “Sim”, pela aproximar o centro de decisões traçando Se por um lado é fato que a principal
independência; “Não”, pela manutenção linhas étnicas e culturais e acentuando razão para que o referendo aconteça na seu resultado será respeitado
da união; e uma terceira opção em que diferenças ao ponto de declarar que “os Escócia seja ou tenha sido a certeza in-
buscava “mais autonomia”. outros” não “nos” entendem como “nós” glesa de que o “não” venceria (e não em (acredita-se). No caso
Seguros da vitória do “não”, lideranças nos entendemos. si um respeito pela democracia), por ou- catalão, uma consulta seria
inglesas impuseram um referendo com tro o referendo sairá e a democracia foi
apenas duas alternativas, “sim” e “não”. “Nacionalismos” respeitada – a decisão final cabe à popu- ilegal, feita na base da
Nas últimas semanas, porém, se viu um É curioso notar, porém, que este sen- lação escocesa.
crescimento vertiginoso do “sim”, que timento nacionalista destas nações (e Já na Catalunha, partidos “espanholis- desobediência civil
em ao menos uma pesquisa chegou a ul- aqui inclui também o forte nacionalis- tas” como o PP catalão, setores do PSC
trapassar o “não” e pôr em perigo a união mo basco) não tem nada de xenófobo ou (PSOE catalão) e Ciutadans apoiam a de-
da Escócia com o resto do reino. excludente. Pelo contrário. São movi- cisão de Mariano Rajoy, primeiro-minis-
Foi o momento de novas negociações e mentos que, em geral, têm grande apre- tro espanhol, do PP, de se recusar a per- O fato de um referendo ser legal e ou-
tentativas de convencer líderes escoceses tro (no caso, uma consulta) ser ilegal
de que, vejam, só, mais autonomia pode- acaba por, na prática, diminuir os efei-
Stuart Crawford/CC

ria ser garantida. tos – positivos ou negativos – de um so-


É muito tarde para recuar, no entanto. bre o outro.
Em outras palavras, o referendo esco-
Catalunha cês teria a capacidade de traçar um ca-
A Catalunha, por sua vez, busca rea- minho para muitas nações e minorias
lizar uma consulta à população em 9 de europeias, ao mesmo tempo em que
novembro de 2014. Diferentemente da também iria elevar os alertas de gover-
situação escocesa, a Espanha se nega a nos estatais que porventura sintam sua
aceitar que os catalães exerçam este di- unidade ameaçada, mas teria pouco efei-
reito e a recusa tem acirrado os ânimos to prático sobre a vontade catalã e o re-
e explica em parte as previsões de uma chaço espanhol.
vitória esmagadora da opção pela inde-
pendência. Raphael Tsavkko Garcia é jornalista.
Unidos à força desde 1714, a relação Mestre em Comunicação (Cásper Líbero)
da Espanha com a Catalunha sempre e Doutorando em Direitos Humanos
foi tumultuada, conflituosa. O caste- Escoceses dizem “sim” (yes) à independência na cidade de Glasgow (Universidad de Deusto),
16 de 18 a 24 de setembro de 2014 internacional

Por trás dos spots midiáticos de Renzi,


o programa neoliberal de sempre Nato
ITÁLIA Itália estão nos setores que se relacio-
nam com o desenvolvimento industrial
Em maio, para ganhar as que tem muito a ver com a ampliação do
desemprego e com a saída do mercado
eleições e fazer com que do trabalho dos trabalhadores que estão
operários com carteira na faixa etária entre 45 e 60 anos. Ho-
mens e mulheres que estão desempre-
assinada desistissem gados não por serem velhos, mas por-
que seus custos trabalhistas são maio-
de votar no Movimento res dos que os empresários pagam por
um jovem de 20 anos, que trabalha com
5 Estrelas, o Partido contratos flexibilizados ou até no mer-
Democrático, de Matteo cado negro (sem contrato).
Diante disso tudo e com muita razão,
Renzi, inventou uma “cesta Marco Travaglio denunciou que: “As
reformas de Renzi viraram um sonho
básica” de R$ 250. Porém, para os italianos, algo para não entrar
no desespero. E foi com esse sonho que
em julho, os italianos Renzi e os políticos do seu grupo, ago-
descobriram que os ra, pretendem continuar a seduzir seus
eleitores”.
impostos triplicaram A denúncia de Travaglio, infelizmen-
te, tem sentido visto que o governo Ren-
zi não encontrou resistências na socieda-
de, tanto para propor a venda das últi-
Achille Lollo mas empresas públicas quanto para ten-
de Roma (Itália) tar anular o peso político de referendos
populares que impeçam a privatização
LOGO APÓS as férias de verão – que a das empresas públicas de água.
maioria dos italianos passou na própria Não há dúvida que nos próximos “1000
residência por falta de dinheiro –, con- dias de Matteo Renzi” quase todas as em-
cluiu-se o primeiro semestre do governo presas públicas serão vendidas para per-
de Matteo Renzi, que integra uma coali- mitir ao governo fazer caixa, já que, no
zão formada pelo “Partido Democrático” dia 30 de agosto, o primeiro-ministro as-
(PD, ex-PDS e ex-PCI) e três pequenos sinou um decreto que veta ao funciona-
partidos de centro-direita: o “Novo Cen- lismo público aumentos de salários, que
tro-Direita” (NCD), que Angelino Alfano desde 2007 permanecem congelados.
criou em novembro de 2013 após romper Um decreto que foi feito, simplesmente,
com Berlusconi e a ala pós-fascista de por que o Ministro do Tesouro disse que
Forza Itália, os “Populares para a Itália- “os aumentos salariais do funcionalismo
-UDC” e a “Escolha Cívica”, que é a for- inviabilizam as metas e os custos fixados
mação política do ex-primeiro-ministro pelo governo no orçamento de 2015 e as-
Mario Monti. sim por diante”
Nesses primeiros 15 dias de setembro, O primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi Quer dizer, a Itália está a um passo da
o jornal independente Il Fatto Quotidia- bancarrota.
no publicou uma série de artigos que en- didas impostas pela Alemanha e pela trí- em particular o PD e o Força Itália, acei- Um PD neoliberal?
focavam as promessas do primeiro-mi- ade, isto é, o FMI, o Banco Mundial e o taram e estimularam teve consequências Durante a presidência de Pierluigi Ber-
nistro, Matteo Renzi, e as poucas pers- Banco Central Europeu (BCE). trágicas, no sentido que o chamado “as- sani e antes dele de Massimo D’Alema e
pectivas que o governo tinha para, de fa-   senso político popular”, na realidade, de- Walter Veltroni sempre houve uma luta
to, realizar as reformas prometidas. Por Reformas ou privatizações? sapareceu. Hoje, os partidos se movem no seio do PD, em que a parte majoritária
isso, apenas o Jornal do PD, Europa e o É bem verdade que, nos últimos 20 seguindo as regras do marketing elei- do partido pretendia adequar à lógica so-
falimentar L’Unità – que em outros tem- anos, todos os governos, os da direita, toreiro para implementar programas de cial-democrata a nova realidade do país,
pos foi o jornal do PCI criado por Anto- chefiados por Berlusconi, ou da centro- governo que, na realidade, foram defini- enquanto uma acirrada minoria queria
nio Gramsci –, hoje, exaltam o desempe- -esquerda, liderados por Prodi ou D’Ale- dos por diferentes “centros de excelên- fazer o salto para frente cortando o pas-
nho institucional do governo Renzi, jus- ma, nada fizeram em termos inovadores, cias”. Nesses programas o imperativo são sado de esquerda para assumir o neolibe-
tificando em mil maneiras o atraso e a permitindo que as instituições (governo as fórmulas que os políticos devem im- ralismo, tal como fez Tony Blair.
inexistência no Parlamento de verdadei- nacional, governos regionais, juntas pro- plementar para garantir o “controle so- A pressão eleitoral da direita e do pró-
ras propostas de lei para votar as tão fa- vinciais e governos municipais) se trans- cial” permitindo, assim, cada vez mais lu- prio Berlusconi, na realidade, impediram
ladas reformas. formassem em autênticos bancos de en- cro a certos tipos de grupos empresariais que no seio do PD se chegasse a um ver-
saios para negócios ruins ou ilegais, por e a estabilidade financeira para específi- dadeiro debate sobre o futuro do partido.
excesso de asneira ou de corrupção. cas camadas da sociedade. Por isso, a falsa unidade partidária do PD
Não há dúvida que nos Um cenário que, já em 2008, quan- e a degeneração da própria história polí-
do explodiu a crise da bolha financeira, tica geraram no seio do partido uma sé-
próximos “1000 dias de apresentava com muitas evidências to- Renzi, os ministros de seu governo rie de contradições que, em 2012, foram
Matteo Renzi” quase todas das as problemáticas que, hoje, estão em- sabiamente recolhidas por novos grupos
purrando o país cada vez mais em dire- e os membros do novo secretariado políticos que nunca se identificaram com
as empresas públicas serão ção a uma recessão mais tenebrosa.
do PD, bem como os principais a história do antigo PCI ou com a política
E por qual motivo Berlusconi, Prodi da social-democracia.
vendidas para permitir ou D’Alema nada fizeram para impedir dirigentes regionais desse partido Eram os grupos “progressistas” da De-
o crescimento do desemprego? Por qual mocracia Cristã, que, após o desmante-
ao governo fazer caixa, já motivo nada foi feito para estabilizar a si- pertencem a um novo fluxo que não lamento desse partido em 1999, haviam
que, no dia 30 de agosto, o tuação do débito público e em particular
vê nenhum problema em negociar encontrado no PD uma nova “igreja po-
para reduzir os custos da política ou da lítica onde organizar seu futuro político”.
primeiro-ministro assinou máquina estatal? com Berlusconi ou conviver com Renzi, os ministros de seu governo e
A verdade é que, hoje como ontem, é os membros do novo secretariado do PD,
um decreto que veta ao o “poder” que impede e inviabiliza qual- partidos de direita bem como os principais dirigentes regio-
funcionalismo público quer tipo de mudança institucional, so- nais desse partido pertencem a esse no-
bretudo, as reformas que poderiam mo- vo fluxo que não vê nenhum problema
aumentos de salários dificar a dependência que o Estado italia- em negociar com Berlusconi ou conviver
no tem com a tríade FMI. Banco Mundial Nesse sentido, as reformas sociais e com partidos de direita.
e BCE, no âmbito financeiro, com a Ale- econômicas são totalmente desvirtuadas
manha/União Europeia, em termos de e manipuladas. Por exemplo, a reforma
Um contexto que, de repente, se acen- planejamento da economia e com os Es- do ensino universitário (Reforma Gelmi- É necessário dizer que o sucesso de
deu provocando a intervenção de todos tados Unidos/Otan, no que diz respeito ni) não foi feita para incentivar a pesqui-
os meios de informação italianos, logo às questões geoestratégicas. sa nas universidades ou para elevar os Renzi no seio do PD, finalmente, fez
após Renzi, ao participar no programa de Digamos que a Itália, há 20 anos, vive níveis do ensino. Na realidade, essa re- com que o Partido Democrata perdesse
TV Porta a Porta, inventar uma nova fór- em um status quo imperante que impe- forma serviu para transformar as uni-
mula institucional para permanecer no diu ao próprio PD de ser um verdadeiro versidades públicas em “escolões”, reti- todas as ambiguidades e fascinações
cargo sem enfrentar novas eleições, ao partido social-democrata, tornando-se, rando delas os estudantes-trabalhado-
dizer que precisa “de mais 1.000 dias pa- cada vez mais, um partido que renegou res com a redução dos cursos universitá- que D’Alema e Veltroni haviam
ra fazer as reformas”. sua história e seus ideais, para convergir rios de cinco para três anos. Ao mesmo perpetrado para não perder o voto do
Diante desse fato, que é uma conse- com mais rapidez e dinâmica ao centro, tempo era introduzido um seleto proces-
quência das maquinações do lobby ma- isto é, em direção do poder para ser acei- so de “elitização” com os mestrados de tradicional eleitorado de esquerda
çônico o qual Renzi pertence e à arro- tado pelo mercado para governar. especialização, que se tornaram uma ex-
gância das excelências do mercado que É evidente que o processo de transfor- clusividade das faculdades particulares.
monitoram grande parte dos ministros, mação política que os partidos italianos, Porém, os problemas mais graves da
o co-diretor do Il Fatto Quotidiano, Zeroincondott/CC Por isso, muitos italianos, hoje, ques-
Marco Travaglio, escreveu três editorias tionam o PD e o próprio primeiro-minis-
que, na prática, desmascararam a iden- tro querendo saber deles que futuro es-
tidade política do seu governo, demons- tão preparando para a Itália, já que o país
trando que o novo PD de Renzi, na prá- está correndo o risco de ficar “comissa-
tica, teria abandonado os ideais de cen- riado” pela União Europeia e submergi-
tro-esquerda, para se tornar um parti- do por impostos e cortes orçamentários
do de centro, potencialmente voltado a para cumprir com as metas financeiras
contrair alianças com os outros partidos fixadas em Bruxelas.
de centro-direita e da própria direita de Porém, é necessário dizer que o su-
Berlusconi. cesso de Matteo Renzi no seio do PD, fi-
Não tendo o rabo preso, nem com o lo- nalmente, fez com que o Partido Demo-
bby da economia, nem com os “círculos crata perdesse todas as ambiguidades e
das excelências da política” e tampou- as fascinações que Massimo D’Alema e
co com os serviços de inteligência, Mar- Walter Veltroni haviam perpetrado para
co Travaglio, ao participar no programa não perder o voto do tradicional eleitora-
de TV Servizio Pubblico, sem meios ter- do de esquerda e, portanto, não alienar
mos declarou: “Agora acabou o festival a simpatia das novas gerações que acre-
das mentiras do governo Renzi. Depois ditaram na necessidade de transformar o
de tantas palavras, de tantas metas a se- PCI em PDS (Partido Democrata da Es-
rem alcançadas, de tantos programas e querda) e depois em simples Partido De-
propostas, enfim, depois de tanto blá blá mocrata sem perder suas conotações de
blá, nenhuma reforma estrutural foi re- esquerda. Infelizmente, deu tudo errado.
alizada e nenhuma medida séria foi to-
mada para retirar a economia italiana do Achille Lollo é jornalista italiano, corres-
pântano da crise, que é uma crise tipica- pondente do Brasil de Fato na Itália, editor
mente italiana que explodiu devido a me- Manifestação do NOTAV, um dos poucos movimentos de oposição do programa TV “Quadrante Informativo”.

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