®
2 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
ASSIM SE GANHA O BREVÊ EUROPEU DA RESPEITABILIDADE
O modelo Meloni
POR BENOÎT BRÉVILLE*
E
squecidos os tumultos do último
verão, Ursula von der Leyen, pre-
sidente da Comissão Europeia,
ameaçava então os italianos de
represálias caso eles conduzissem ao
poder Giorgia Meloni. Agora, as duas
dirigentes, uma de direita, a outra de
extrema direita, não economizam sor-
risos diante dos fotógrafos, trocam
amabilidades pelas redes sociais e
partem juntas em viagem para a Tuní-
sia. A presidente do Conselho de Mi-
nistros italiano, que era chamada de
“populista”, “iliberal” e “pós-fascista”,
tornou-se em poucos meses uma par-
ceira séria e ponderada.
Giorgia Meloni compreendeu rapida-
mente a receita para operar essa meta-
morfose. Tão logo se instalou no Palácio
Chigi, ela elaborou um orçamento de
austeridade, cortando gastos sociais, e
pôs em surdina suas críticas ao jugo de
Bruxelas – todos itens imperativos para
obter a bênção do plano de recupera-
ção (191 bilhões de euros de agora até
2026). Ela afirmou seu apego à Otan,
exigindo sanções mais drásticas contra
Moscou e armas mais sofisticadas para
Kiev. Em resumo, alinhou-se ao discur-
so dominante. “Não há ninguém mais
militante em prol da Europa e do euro
que Giorgia Meloni”, aplaudiu o ensaís-
ta francês Alain Minc (FigaroVox, 8 jun.
2023). “Hoje em dia, ela defende Kiev
com paixão em todos os seus discur-
sos. Não se ouvem mais suas críticas
à União Europeia ou à Otan. Em pou-
cos meses, ela se desvencilhou de sua
imagem extremista”, exultou o cientista
político liberal Dominique Reynié (Le
Figaro, 11 jun. 2023).
Assim se ganha o brevê europeu da
respeitabilidade. O requerente deve
respeitar dois valores cardinais: a
®
austeridade e o atlantismo. Uma vez
preenchidas essas condições, Giorgia
Meloni pode multiplicar as declara-
ções xenófobas, estigmatizar as pes-
soas LGBT, agitar a fantasia da “grande
substituição” [teoria da conspiração
segundo a qual haveria um plano para
trocar a população branca da Europa
por negros e árabes], restringir o acesso
ao aborto, tentar modificar a Consti-
tuição em um sentido autoritário, co-
locar a mídia nos eixos, aferrolhar as
instituições culturais. E as portas lhe
permanecerão abertas. Em Paris, onde
foi recebida calorosamente no último
20 de junho pelo presidente francês, o
encontro, assegura o Eliseu, “permitiu
criar convergências”.
O modelo Meloni, nacionalista em-
bora também europeísta e atlantista, se
espalha pelo continente desde a agres-
são russa contra a Ucrânia. Reforçada
por seus êxitos eleitorais, a extrema di-
reita já dirige diversos países em coali-
zão com os conservadores – a Itália, a
Suécia, a Finlândia e talvez em breve a
Espanha (ler pág. 24). Tais alianças não
suscitam mais uma emoção especial.
Em 2000, quando ministros de extrema
direita entraram no governo austríaco,
os catorze outros Estados da União Eu-
ropeia suspenderam qualquer contato
bilateral oficial com Viena e restringi-
ram as trocas diplomáticas unicamen-
te aos assuntos técnicos. A presidente
do Parlamento de Estrasburgo, filia-
da ao Partido Popular Europeu (PPE),
chegou a anunciar que não poria os
pés na Áustria enquanto a extrema
direita estivesse no poder. Desde ou-
tubro de 2022, o atual chefe do PPE,
Manfred Weber, se dirigiu cinco vezes a
Roma para cortejar Meloni, uma aliada
de peso no cenário das eleições euro-
peias de 2024. Radicalização da direita
sobre a imigração; direitização da ex-
trema direita nas esferas econômica e
internacional: assim se desenha a face
da nova Europa...
*Benoît Bréville é diretor do Le Monde
Diplomatique.
 JULHO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

O controle da máquina pública

POR SILVIO CACCIA BAVA

E
m fevereiro de 2019, o então mi-
nistro da Fazenda, Paulo Guedes,
convidou um executivo do Banco
Santander, Roberto Campos Neto,
para presidir o Banco Central do Brasil.
Identificado com o bolsonarismo mes-
mo antes das eleições de 2018, Campos
Neto fez sua trajetória profissional no
mercado financeiro, de início no Banco
Bozano e depois no Santander, no qual,
durante doze anos, ocupou a função de
tesoureiro e, posteriormente, de head
de mercados. Sua formação, pela Uni-
versidade da California, é de economis-
ta especializado em finanças. Nunca
antes havia assumido uma função pú-
blica. Já em sua posse como presidente
do BC, declarou que sua atuação seria
em defesa do livre mercado e da inicia-
tiva privada, “com mais Brasil e menos
O valor para o pagamento do serviço
da dívida pública, em 2023, é determi-
nado pela taxa Selic, mantida em
13,75% pela sétima vez consecutiva, na
última reunião do Copom. Como pode
ser observado por quem se interessar, a
título de combater uma suposta eleva-
ção da inflação (que está descendente),
a ata da última reunião do Copom, que
mantém essa taxa absurda, é um con-
junto de generalidades que não pode
justificar coisa alguma.2
Aliás, a questão não se resume ao
serviço da dívida, mas envolve a pró-
pria dívida e sua composição. Toda
iniciativa de auditar a dívida pública
– o que poderia revelar grandes ilega-
lidades, desvios e seus beneficiários –
tem sido bloqueada há décadas por
esses mesmos poderes que se apossa-
os juros sejam de 13,75%, o que gera um
ganho líquido de 8,75% para quem tiver
os títulos da dívida pública. É um dreno
financeiro que paralisa o país, como
nos ensina Ladislau Dowbor.4 Isso não
tem paralelo no mundo.
Na Índia, com uma inflação de 8,7%,
os juros estão em 6,5%. Na zona do eu-
ro, onde a inflação está em torno de
8%-9%, os juros estão em 3%. Nos Esta-
dos Unidos, a inflação está em 5%, e os
juros, em 5,25%. Na China, a inflação
ronda os 3%, e a taxa de juros está em
3,5%. Não há como justificar a Selic
nesse patamar. Ela é uma trava contra
o desenvolvimento, a industrialização,
o combate à desigualdade, o consumo
das famílias, a maior competitividade
da economia brasileira.
A política de juros do Banco Central
ciais, tem o propósito de desviar esses
recursos arrecadados pelos impostos
para o pagamento do serviço da dívida
pública. Não importa se para isso retira
recursos da merenda escolar ou das
equipes de saúde.
Ainda que essa emenda esteja sendo
hoje negociada, o teto para os gastos
sociais continua uma imposição do
mercado. Para boa parte dos parlamen-
tares eleitos no atual mandato, conti-
nua valendo que “os gastos com as polí-
ticas sociais não cabem no orçamento
da nação”, bordão que sustentou a
aprovação do teto dos gastos sociais.
Na busca por realizar o maior lucro
imediato para o setor financeiro, essa
institucionalidade não mede conse-
quências. As leis, a bancada de parla-
mentares no Congresso, o próprio Ban-

®
Brasília”, e defendeu a autonomia do ram do controle das instituições que promove a espoliação financeira da co Central, agora com sua autonomia e
Banco Central.1 definem a política monetária e a polí- grande maioria da população, num sua organização interna que atribui ao
Em fevereiro de 2021, o então presi- tica econômica. Um importante ele- duplo sentido: porque paga, com nos- Copom a definição da taxa Selic – todos
dente Jair Bolsonaro sancionou a Lei mento a considerar é que 82% do au- sos impostos, os juros que remune- são instrumentos controlados para que
Complementar n. 179/2021, votada no mento da dívida pública se dá pela ram a dívida pública; e porque enco- a política econômica continue a garan-
Senado, que estabelece a autonomia do incorporação de juros acumulados. lhe o cobertor de proteção social tir os privilégios e a alta lucratividade
Banco Central. O argumento pela auto- No fim de 2021, a dívida pública era de – recursos destinados à saúde, à edu- do setor financeiro.
nomia do Banco Central é que este não R$ 7,64 trilhões. 3 cação, às políticas de assistência so-
pode atuar na defesa do projeto do go- É fácil compreender por que os gran- cial, entre outros, são retirados e des- 1   w ww.infomoney.com.br/perfil/roberto-cam-
pos-neto/.
verno eleito, mas deve agir indepen- des bancos privados mantêm o contro- viados para o pagamento dos juros da 2   w ww.bcb.gov.br/publicacoes/atascopom.
dentemente, mantendo a liberdade do le do BC e do Copom: seus ganhos de dívida pública. 3   https://auditoriacidada.org.br/divida-triliona-
mercado. Traduzindo para o bom por- bilhões vêm principalmente daí. Recordemos que a Emenda Constitu- ria-do-brasil-maria-lucia-fattorelli.
4   L adislau Dowbor, “O dreno financeiro que pa-
tuguês: manter o controle da economia Para controlar a inflação, que está cional n. 95, aprovada em dezembro de ralisa o país”, Le Monde Diplomatique Brasil,
nas mãos dos principais conglomera- abaixo de 5%, o Copom determina que 2016, que impõe limites aos gastos so- 28 jun. 2023.
dos financeiros do país.
É preciso observar que tudo está con-
forme as leis, e é o Comitê de Política
Monetária (Copom), uma equipe de se-
te funcionários do BC capitaneados por
seu presidente, que determina, entre
outras coisas, a taxa Selic. É muita res-
ponsabilidade para nenhum controle
social, pois aí se define a taxa básica de
juros da economia brasileira, que in-
fluencia as taxas cobradas em emprés-
timos e financiamentos e o ganho das
aplicações financeiras.
Mesmo a composição do Copom
atual merece atenção. Três de seus in-
tegrantes vêm do mercado financeiro,
dois são professores de forte acento
neoliberal e dois são funcionários de
carreira. Só temos presente a defesa
dos interesses dos conglomerados fi-
nanceiros e da doutrina neoliberal.
Nenhum outro setor da sociedade es-
tá aí representado.
É essa institucionalidade que deter-
mina que o governo pague, este ano,
R$ 740 bilhões para os grupos finan-
ceiros que são detentores da dívida
pública, a título de “juros sobre a dívi-
da pública”. A estimativa desse mon-
tante é do ministro da Fazenda, Fer-
nando Haddad.
© Claudius
4 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
ENCRUZILHADAS, REACIONARISMO E REBELDIA
Os direitos indígenas e o atual
momento político no Brasil
O novo momento político no Brasil certamente abre novas possibilidades,
mas ao mesmo tempo continua permeado pelas contradições históricas
e estruturais. Se por um lado o país está saindo de uma noite muito
escura e fria, por outro ainda está longe de amanhecer completamente
POR LUIS VENTURA FERNÁNDEZ*
E
m janeiro de 2023, o Brasil iniciou
um novo ciclo político, que reno-
vou expectativas em boa parte da
sociedade brasileira e despertou
na comunidade internacional uma
perspectiva de retomada das relações,
após um período de noite escura e iso-
lacionismo diplomático. Por sua rele-
vância estratégica, o país era esperado
em foros globais e em discussões cen-
trais sobre a preservação do meio am-
biente, o enfrentamento das mudanças
climáticas ou a necessária recomposi-
ção de forças em um xadrez geopolítico
conturbado e confuso. O “retorno” do
Brasil e o “ineditismo” de certas deci-
sões do novo governo foram algumas
das metáforas cunhadas para mostrar
ao mundo, e também ao público inter-
no do país, que se recuperava o am-
biente democrático depois de anos
convulsos. Contudo, os primeiros me-
ses do novo ciclo já foram suficiente-
mente expressivos para elucidar o ver-
dadeiro tamanho do desafio que o país
vai enfrentar nesta nova jornada.
Nos últimos dez anos, algo se rompeu
no país. Iniciou-se um processo siste-
mático de ataque às instituições da de-
mocracia liberal, com rupturas sensíveis
nos marcos de convivência. As relações
sociais mais próximas – na vizinhança,
nos locais de trabalho e até na própria
família – fragmentaram-se, e a sociedade
perdeu capacidade de diálogo, de escuta
e de afetos. A velocidade e a superficiali-
dade das redes sociais como novo espaço
estratégico de comunicação, informação
e socialização foram instrumentalizadas
para ofuscar a capacidade de discernir
a realidade da falácia, manipulando a
subjetividade coletiva. Essa ruptura das
ligações entre as pessoas e das pessoas
com a realidade constituiu o cenário
imprescindível para a erosão política no
país, o aprofundamento do neoliberalis-
mo no breve governo de Michel Temer e,
finalmente, a chegada ao poder de uma
figura como Jair Bolsonaro, sustentado
pelo agronegócio, os militares e o fun-
damentalismo religioso. Os quatro anos
mais duros da recente história do Brasil.
Na semântica da análise política foi
preciso retomar e ressignificar palavras,
®
Indígenas do Jaraguá interditam rodovia Bandeirantes contra o PL 490, em 05/23
como “golpe”, “genocídio” e “fascismo”,
para conseguir explicar o que estava
acontecendo. Longe da metáfora redu-
cionista e desfocada de uma eventual
polarização entre dois projetos políticos
extremos, adotada pela grande mídia
convencional, estávamos diante de um
processo de desgarro e de necropolítica,
manifestação própria do fascismo, em
cumplicidade com uma nova fase de ex-
pansão do capital sobre os territórios.
O NOVO MOMENTO: DAS
OPORTUNIDADES INÉDITAS
ÀS ENCRUZILHADAS DE SEMPRE
As eleições de outubro de 2022 foram,
com certeza, as mais relevantes desde
a redemocratização do país. Apesar de
todas as travas colocadas pelo governo
anterior, que usou toda a máquina do
Estado para garantir sua permanência,
as eleições aconteceram e resultaram na
derrubada do fascismo das instituições
do governo federal, abrindo-se um novo
momento e um novo espaço, o que ge-
rou muitas expectativas. Entretanto, o
“novo”, neste caso, deve ser entendido
© Rovena Rosa/Agência Brasil
com relação à situação de ruptura ética
do sentido da política e do Estado viven-
ciada nos últimos anos, e à necessidade
de recompor o tecido social rasgado.
Fora disso, o atual momento chega per-
meado ainda de velhas contradições.
Na composição do terceiro governo de
Luiz Inácio Lula da Silva destacaram-se,
desde o primeiro momento, algumas de-
cisões com forte significado simbólico,
mecanismo fundamental para a estética
do poder. Entre essas decisões, o retorno
do Ministério do Desenvolvimento Agrá-
rio, a retomada de pastas fundamentais
como o Ministério do Meio Ambiente e o
Ministério da Saúde, a criação do Minis-
tério da Igualdade Racial e a competên-
cia e determinação do renovado Minis-
tério dos Direitos Humanos.
Do ponto de vista da política indigenis-
ta, destaca-se a criação do Ministério dos
Povos Indígenas (MPI), espaço inédito
dentro do Poder Executivo federal, que
pretendia trazer para si as principais atri-
buições em matéria de garantia de direi-
tos territoriais dos povos indígenas e que
emergiu, inicialmente, como um espaço
importante de articulação e promoção de
direitos. A Funai, agora chamada Funda-
ção Nacional dos Povos Indígenas e sob
presidência indígena, propõe-se a recu-
perar a missão institucional de promover
os direitos desses povos, tomando como
prioridade o direito a seus territórios, mas
recebe como legado uma estrutura suca-
teada e um vasto passivo de demandas.
A Secretaria Especial de Saúde Indí-
gena (Sesai), responsável por coordenar
e executar a política de atenção à saú-
de diferenciada garantida pelo Estado
aos povos indígenas, também iniciou
um novo momento, sob coordenação
de representantes indígenas, após anos
de militarização e desestruturação da
saúde indígena e com permanentes re-
cortes de orçamento. Nesse contexto, o
resultado esperado poderia ser um for-
talecimento da política indigenista nos
próximos anos, garantindo que seja pau-
ta relevante no governo federal. Abriu-se
uma janela de quatro anos em que será
possível avançar significativamente na
garantia dos direitos desses povos.
Essas decisões ampliaram as formas
de participação direta dos povos in-
dígenas nos âmbitos de decisão e, ao
mesmo tempo, modificaram o campo
da relação dos povos indígenas com o
Estado, o que traz oportunidades, mas
também dilemas e desafios que precisa-
rão ser abordados com mais lucidez do
que deslumbramento.
O governo Lula se configura como
um Executivo “de frente ampla”, agluti-
nador de interesses divergentes e com
representação de partidos políticos
tradicionalmente avessos a avanços so-
ciais ou de garantia de direitos territo-
riais. Permanece também no governo
a perspectiva “desenvolvimentista” de
setores importantes do próprio Partido
dos Trabalhadores (PT), assumida his-
toricamente pelo próprio Lula em seus
governos anteriores, o que anuncia a re-
tomada prioritária de grandes projetos
de infraestrutura civil e energética, em
muitos casos em conflito com os direi-
tos fundamentais de povos indígenas e
comunidades tradicionais, ou a intensi-
ficação da chamada “economia verde”.
Se a concentração de todos esses ato-
res políticos diversos e de interesses
contrapostos foi necessária para superar
o fascismo no processo eleitoral, ago-
ra essa diversidade de perspectivas, às
vezes antagônicas, já provoca conflitos
dentro da atuação do governo. E será
nessas encruzilhadas de escolhas diver-
gentes que veremos qual é a verdadeira
equação de forças dentro do Executivo e
qual diretriz marcará, de forma mais de-
terminante, os rumos do novo Executivo.
O caráter de frente ampla do governo
tenderá a buscar consensos sobre as pos-
sibilidades de “conciliação de interesses”
e “mediação de conflitos”. Eis aqui uma
questão fundamental, pois coloca o Es-
tado mais no papel de pretenso “media-
dor” de interesses antagônicos e menos

como garantidor de direitos. Essa lógica
instrumental do Estado favorece, dentro
do governo, as vozes com forte peso po-
lítico, que defendem uma modulação na
garantia dos direitos territoriais dos po-
vos indígenas. O MPI foi desprovido pelo
Congresso Nacional, e sem muita resis-
tência por parte do governo, da atribui-
ção da política de demarcação e proteção
dos territórios indígenas, que retorna ao
Ministério da Justiça. A Funai, entretan-
to, continua com dificuldades estrutu-
rais, sem condições para avançar de for-
ma mais sistemática e ágil nos processos
de demarcação de terras indígenas.
Apesar da defesa das demarcações
que o próprio Lula e alguns ministros
expressaram em diversas ocasiões, du-
rante a campanha e já nas funções de
governo, existem resistências internas
no Executivo com relação aos direitos
territoriais dos povos indígenas e uma
tentativa de encontrar caminhos que sa-
tisfaçam e beneficiem setores historica-
mente contrários aos povos originários,
ligados diretamente aos processos de
expropriação de seus territórios; seto-
res que também foram acomodados na
composição do governo Lula. Porém,
deve ficar claro que os direitos dos povos
indígenas não podem ser negociados
nem dimensionados e que a “mediação
e o diálogo”, quando dados em um am-
biente político que se curva ao capital,
já se demonstraram historicamente fun-
cionais aos interesses das elites.
CONGRESSO NACIONAL:
REDUTO DA EXTREMA DIREITA
Em todo caso, a necessidade urgente de
assegurar a derrota do fascismo no âm-
bito da disputa para a Presidência da Re-
pública dificultou a percepção de que ele
já tinha garantido seu reduto dentro do
Congresso Nacional no primeiro turno
das eleições. Efetivamente, a composi-
ção da Câmara e do Senado resultante
do processo eleitoral de 2022 representa
o Legislativo mais reacionário desde a re-
democratização do país, com clara hos-
tilidade para pautas que dizem respeito
à questão territorial e ambiental. Mais
uma vez, é na dimensão territorial que as
principais contradições históricas e de
poder no país, legado colonial, entram
em conflito, e o Poder Legislativo se tor-
na, nesse sentido, um espaço estrategi-
camente eficaz para dirimir as disputas.
A criação da CPI do MST é um claro
exemplo da tática que a direita ruralis-
ta e a extrema direita pretendem aplicar
nestes próximos anos. Com mais força
bruta do que método, a maioria conser-
vadora criou uma Comissão Parlamen-
tar de Inquérito sob seu controle que
pretende criminalizar um movimento
social histórico no Brasil e na América
Latina, expor publicamente o novo go-
verno e, principalmente, consagrar o
poder absoluto da propriedade privada,
acima de qualquer rebeldia histórica e
defesa dos territórios.
A reforma agrária é um dos passivos
que os anteriores governos de Lula e de
Dilma decidiram não abordar, nem se-
quer nos tempos em que gozaram de
maior apoio e legitimidade social. O que
está em jogo continua sendo o conflito
estrutural de territorialidades que o pro-
cesso colonial consolidou e que concen-
trou a propriedade da terra nas mãos
do latifúndio, responsável pelo maior
e mais profundo processo de esbulho e
desapropriação das outras perspectivas
territoriais. O latifúndio de raiz histórica
tem hoje sua maior expressão no avanço
do agronegócio, apresentado falsamente
como o motor da economia brasileira,
com seus recordes de safra e de expor-
tação, mas na realidade responsável por
parte importante da violência no cam-
po e da reprodução contemporânea da
condição subalterna do Brasil na econo-
mia mundial como fornecedor de bens
primários. O Estado, em sua incapacida-
de de superar uma concepção estreita,
limitada ao binômio privado-público,
persiste na criminalização dos sujeitos
históricos que reivindicam a possibilida-
®
de e o direito de construir parâmetros de
uso coletivo e sustentável dos territórios.
O que está em jogo con-
tinua sendo o conflito
estrutural de territoria-
lidades que o processo
colonial consolidou
O MARCO TEMPORAL:
ENCRUZILHADA DECISIVA
O golpe maior veio no dia 30 de maio,
data em que o plenário da Câmara dos
Deputados apreciou e aprovou o Proje-
to de Lei (PL) n. 490/2007, que veio a ser
conhecido como Projeto do marco tem-
poral. Segundo essa interpretação cons-
titucional fraudulenta, só seriam assegu-
rados direitos territoriais aos povos indí-
genas se estes conseguissem demonstrar
que já se encontravam na posse deles na
data da promulgação da Constituição
Federal (5 de outubro de 1988) ou que
nessa data estavam em litígio e disputa
comprovada pelo território – período
em que, cabe ressaltar, os povos indí-
genas eram tutelados pelo Estado e não
tinham autonomia para reivindicar ju-
dicialmente seus direitos. Na contramão
da Constituição, que já tinha declarado a
nulidade e extinção de todo e qualquer
título pretendido sobre terras indígenas,
o marco temporal significaria inviabili-
zar a demarcação desses territórios, com
a legalização e a legitimação de todo o
processo violento de desapropriação ter-
ritorial anterior a outubro de 1988.
Desde que foi apresentado, em 2007, o
PL 490 passou por diversas reconfigura-
ções dentro do Congresso. Foi reunindo,
com o tempo, a maior parte das amea-
ças contra os direitos territoriais dos
povos indígenas que estavam dispersas
JULHO 2023
em diversas iniciativas legislativas. O PL
490 prevê a possibilidade de exploração
dos territórios indígenas por terceiros,
em clara afronta ao usufruto exclusivo
dessas terras pelos povos originários,
consolidado na Constituição Federal de
1988. Pretende também alterar o proces-
so de demarcação de terras indígenas,
além de abrir caminho para o assédio
aos povos em situação de isolamento
voluntário.1 E, nos últimos anos, o PL
490 inseriu a defesa da tese inconstitu-
cional do marco temporal.
A aprovação do PL 490 pelo plenário
da Câmara dos Deputados não encerra
as discussões dentro do Poder Legislati-
vo, pois o projeto ainda deverá ser apre-
ciado pelo Senado Federal, agora sob o
número PL 2.903. Mas revelou a natureza
reacionária da maioria atual na Câmara
e a fragilidade, e até apoio e consenti-
mento, de parte da base governista.2
É fundamental compreender que a
aprovação pela Câmara do PL 490 foi
uma reação à decisão da presidenta
do Supremo Tribunal Federal (STF),
ministra Rosa Weber, de retomar, em
7 de junho, o julgamento do Recurso
Extraordinário n. 1.017.365, conhecido
amplamente como o julgamento do
marco temporal.
É precisamente no âmbito do STF que
se decidirá de modo definitivo sobre a
inconstitucionalidade dessa tese. Os po-
vos indígenas e seus aliados aguardam a
conclusão ainda em setembro de 2023
desse fundamental julgamento, que dis-
põe do instituto jurídico de repercussão
geral,3 com a expectativa de que o STF
confirme o caráter originário dos direi-
tos territoriais dos povos indígenas e
afaste, de vez, a tese do marco temporal.
Dos três votos proferidos até o mo-
mento nesse julgamento, dois ministros
defenderam a inconstitucionalidade
do marco temporal, e tudo aponta que,
muito provavelmente, essa será a de-
cisão majoritária do colegiado do STF.
Entretanto, o próprio Supremo dispõe-
-se a abrir, dentro desse julgamento e
com objetivo de agradar a todos os in-
teresses em jogo, discussões relativas à
ampliação da indenização econômica
àqueles que reivindicam títulos particu-
lares dentro das terras indígenas – pauta
muito bem acolhida dentro do Congres-
so e do próprio governo federal, mas que
abre novas afrontas ao texto constitucio-
nal e cria as condições para engessar, de
novo, a efetiva posse dos territórios por
parte dos povos, eventualmente condi-
cionada agora à efetivação de indeniza-
ções econômicas que, na prática, esta-
riam fora das possibilidades orçamentá-
rias do governo.
Em definitivo, mesmo afastando a
tese do marco temporal por evidente
inconstitucionalidade, corre-se o risco
de que o Estado caminhe para um novo
“consenso” instrumental, revestido de
uma pretensa conciliação de interesses
estruturalmente antagônicos.
Le Monde Diplomatique Brasil 5
A PERSPECTIVA ÉTICA
DA LUTA DOS POVOS
Como tentamos demonstrar aqui, o
novo momento político no Brasil certa-
mente abre novas possibilidades, mas
ao mesmo tempo continua permeado
pelas contradições históricas e estrutu-
rais. Se por um lado o país está saindo
de uma noite muito escura e fria, por
outro ainda está longe de amanhecer
completamente. Contudo, se a atual
conjuntura permanece atravessada pe-
las contradições legadas pelo processo
colonial, também permanece intacta a
lógica histórica de resistência de povos
e comunidades tradicionais.
A perspectiva ética da luta dos povos
indígenas e comunidades tradicionais
passa pelo momento atual de participa-
ção direta nos espaços de governo; ao
mesmo tempo, vai muito mais além des-
sa condição histórica atual. A audácia
política, plural e profunda, desses su-
jeitos coletivos sempre se caracterizou
pela capacidade de ampliar seu campo
de alianças e construir as resistências a
partir dos territórios e de seus vínculos
de pertença. Trata-se de uma perspec-
tiva transgressora e contra-hegemônica
porque, com base em suas próprias for-
mas culturais e visões de mundo, conti-
nuam pleiteando ao Estado e ao modo
de produção capitalista o sentido de
existência, o significado do território e o
valor inegociável da diversidade.
Será nessa certeza de um horizonte-
-outro, no respeito profundo à vida e aos
territórios dos povos indígenas e comu-
nidades tradicionais, que o Brasil preci-
sa resolver as encruzilhadas de hoje.
*Luis Ventura Fernández é missionário do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
1   S egundo dados do Cimi, existem registros de
pelo menos 117 grupos indígenas em situação
de isolamento voluntário no país, dos quais
apenas 28 são reconhecidos pelo Estado.
2   No dia 26 de maio, a urgência para aprecia-
ção do PL 490 foi aprovada por 324 votos
a 131. Republicanos, PSDB, PSC, Patriota,
Avante e Novo deram todos os seus votos a
favor da proposta, acompanhados por 80%
dos parlamentares do PL, PSD, União Bra-
sil, PP, MDB e Podemos que participaram
da votação. Apesar da posição contrária
de PT, PCdoB, PV, Psol e Rede, cinco dos
nove partidos com cargos de primeiro esca-
lão no governo deram um total de 120 votos
a favor do projeto anti-indígena: PSB, PDT,
PSD, MDB e União Brasil. Essa correlação
de forças manteve-se na votação de mérito,
em 30 de maio, quando o PL 490 foi apro-
vado na Câmara por 283 votos a 155. Mais
informações em: cimi.org.br/maioria-camara-
-votacao-pl-490.
3   O STF atribuiu “repercussão geral” a um pro-
cesso em que o estado de Santa Catarina rei-
vindica um espaço do território tradicional do
povo Xokleng, na TI Ibirama-Laklaño. Isso sig-
nifica que o que for definido nesse processo
deverá servir de forma automática para todos
os outros processos em que direitos territoriais
dos povos indígenas estejam litigados na justi-
ça. Dessa forma, a decisão do STF estabele-
cerá a interpretação acerca do direito consti-
tucional dos povos indígenas à terra: se é um
direito originário ou se deve ser acolhida a tese
do marco temporal.
6 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

ATAQUE ÀS FORÇAS SOCIAIS

Quem são os verdadeiros

invasores de terra do Brasil?
A bancada ruralista parece continuar presa a uma opção pela violência para tratar de profundas
chagas sociais e ambientais. As CPIs do MST e das ONGs são uma continuidade desses mesmos
personagens que deveriam ter sido responsabilizados pelos crimes que cometeram e, ao mesmo
tempo, servem como uma tentativa de desviar o foco e apagar vestígios desses delitos

POR AYALA FERREIRA E PATRICK MARIANO*

E
m discurso na cúpula organizada
pelo governo francês, reunindo
vários chefes de Estado e de go-
verno, com o objetivo de reforçar
os mecanismos de apoio aos países do
Sul para combater a pobreza e lutar
contra as mudanças climáticas, o presi-
dente Lula cobrou duramente a res-
O relatório da Comissão Pastoral da
Terra, apresentado no fim de 2022 a res-
peito da violência no campo, constatou
um aumento de 150% em relação a 2021
no número de assassinatos no campo,
sendo o maior registro desde 2016. As
mortes guardam relação direta com o
avanço selvagem do capital sobre a na-
ponto de inflexão após as eleições de
2022. O retorno de Lula à Presidência
fez a pauta ambiental voltar às preocu-
pações do governo brasileiro e é hoje
seu carro-chefe no exterior, junto com
o combate à pobreza e à fome.
NOME AOS BOIS
duzidos com cuidados éticos mínimos,
por razões tanto de saúde como sociais.
Entretanto, nada disso causa cons-
trangimento ou desacelera o ímpeto da
bancada ruralista no Congresso Nacio-
nal. Esta parece continuar presa a uma
opção pela violência para tratar de pro-
fundas chagas sociais e ambientais. A

ponsabilidade dos países mais ricos
nesse tema e prometeu zerar o desma-
tamento no país até 2030.
A crise ambiental no Brasil foi agrava-
da pelos últimos governos, que não ape-
nas liberaram o avanço do capitalismo
sobre os recursos naturais sem nenhum
freio – principalmente nas terras indíge-
nas e áreas protegidas –, mas também es-
timularam essa exploração, sucateando
órgãos públicos e perseguindo quadros
da administração pública que cumpriam
com o dever de ofício. Essa avassaladora
pilhagem nos diversos biomas do país
repercutiu em todo o planeta e acendeu
a luz vermelha de pesquisadores e repre-
sentantes de governos preocupados com
a situação do Brasil.
Importante dizer que a crise ambien-
tal trouxe uma devastação igualmente
trágica para os direitos das populações
dessas regiões, bem como para seus cor-
pos. A dimensão social da crise ambien-
tal é seu reflexo direto e nefasto.
®
tureza (terra e água) e sobre áreas de
pequenos agricultores, ribeirinhos, qui-
lombolas, sem-terra, posseiros e indíge-
nas. Entre os causadores dessa violência
estão empresários, fazendeiros, gover-
no, grileiros, madeireiros, mineradoras,
garimpeiros, muitas vezes por meio da
contratação de jagunços.
O relatório do CPT, publicado perio-
dicamente há mais de trinta anos, é um
triste retrato da violência contra traba-
lhadores e trabalhadoras e expõe a for-
ma predatória como a ganância do ca-
pital e de seus agentes atua nos sertões
brasileiros. Isso ficou ainda mais evi-
dente com a crise ambiental dramática
causada deliberadamente pelo último
governo ao incentivar e ser protagonis-
ta de sua configuração e pela trágica si-
tuação do povo Yanomami, igualmente
incentivada por agentes do Estado. Toda
essa situação chocou o mundo.
O discurso do presidente brasilei-
ro em terras francesas representa esse
No entanto, essas forças econômicas
que se fortaleceram com a “passada
da boiada” dos últimos tempos até as
eleições do ano passado não apenas
continuam na ativa, mas também são
predominantes no Congresso Nacional.
E, embora tenham perdido a oportuni-
dade de pilhar ainda mais os bens da
natureza, têm voz e voto e controlam
parte significativa dos meios de comu-
nicação, assim como são atuantes nas
redes sociais.
Esse dramático quadro social no cam-
po deveria exigir da chamada bancada
ruralista do Congresso Nacional e dos
líderes de entidades representativas
desses setores um reposicionamento
drástico, ainda mais sob um governo
que busca refazer a imagem negativa do
país no exterior e aumentar a entrada de
produtos brasileiros nas prateleiras dos
mercados de todo o mundo. Aliás, é níti-
da, também, uma busca desse mercado
pela comercialização de produtos pro-
CPI do MST na Câmara dos Deputados
e a CPI das ONGs no Senado Federal
são uma continuidade delitiva desses
mesmos personagens que deveriam
ter sido responsabilizados pelos crimes
que cometeram nos últimos anos e, ao
mesmo tempo, servem como uma ten-
tativa de desviar o foco e apagar vestí-
gios desses mesmos delitos.
A CPI do MST retirou qualquer dúvida
que ainda pudesse existir a respeito da
isenção e imparcialidade com que tais
órgãos do Parlamento deveriam ser re-
vestidos. Não apenas a discrepante des-
proporcionalidade entre seus integran-
tes – a maioria composta da chamada
bancada da bala e de ruralistas –, mas
também a análise dos requerimentos
apresentados desde sua aprovação e
das entrevistas concedidas por seu re-
lator e presidente, tudo indica a conti-
nuidade da pauta do bolsonarismo, que
resultou na tentativa de golpe do dia 8
de janeiro deste ano.
 JULHO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 7

© Lula Marques/Agência Brasil

O relator da Comissão, ex-ministro do
Meio Ambiente no último governo, mal
esperou a primeira sessão e já se dirigiu
à imprensa para dizer que as investiga-
ções podem chegar ao atual líder das
pesquisas para a prefeitura de São Paulo,
Guilherme Boulos – por sinal, persona-
gem contra quem gostaria de disputar
o pleito no próximo ano. Ele evidencia,
desse modo, interesse meramente de
promoção eleitoral e de reposiciona-
mento de sua imagem profundamente
desgastada por investigações policiais
e por uma gestão desastrosa à frente do
Ministério do Meio Ambiente.
Foi, aliás, desse mesmo relator a pro-
posta de realizar diligências-relâmpago
com aviso de poucas horas, como se
fossem operações policiais, com inva-
são de residências e uma série de abu-
sos, desvirtuando-se mais uma vez os
propósitos regimentalmente estabele-
cidos para essas comissões.
Ganha mais força essa relação de con-
tinuidade entre a pauta bolsonarista de
destruição dos poderes constituídos e
o uso das comissões parlamentares de

inquérito para dar continuidade a seus
propósitos quando se lê que o presiden-
te do colegiado da Câmara se tornou,
ele próprio, investigado.
Por ordem de ministro do STF foi de-
terminado que a Polícia Federal investi-
gue o deputado federal que preside os
trabalhos da CPI, por suspeitas de in-
centivo a atos antidemocráticos no Rio
Grande do Sul e em Brasília. Presidente
que, aliás, tem tido a prática de cortar o
microfone de parlamentares mulheres
quando fazem uso regimental da pala-
vra. Foi assim que tentou calar a depu-
tada Sâmia Bomfim (Psol-SP).
E é com essa mesma violência de gê-
nero que parlamentares do PL vêm ten-
tando silenciar seis deputadas do PT e
do Psol, pedindo a cassação delas, ale-
gando quebra de decoro, por protesta-
rem contra a aprovação do marco tem-
poral de terras indígenas (PL 490/07) no
Plenário da Câmara, no fim de maio.
Enquanto tentam intimidar as parla-
mentares, pelo menos sete dos dezeno-
ve nomes de políticos envolvidos com
ruralistas que detêm propriedades em
sobreposição a territórios indígenas são
do PL. Segundo denúncia do relatório do
De Olho nos Ruralistas, esses deputados
e senadores que representam os interes-
ses de ruralistas receberam pelo menos
R$ 3,64 milhões em doações de campa-
nha eleitoral. Ao todo são 57 doações
oriundas de fazendeiros e sócios de em-
presas que integram o levantamento dos
1.692 imóveis rurais incidentes em terras
indígenas (TIs). Dessa forma, o mesmo
relatório apresenta quem são os verda-
deiros invasores de terra no Brasil, que
somam ruralistas que estão no centro do
poder político do país e possuem 96 mil
hectares de fazendas sobrepostas a TIs.
Outra matéria recentemente publica-
da pelo jornal O Globo revelou que sete
®
Luciano Zucco ao lado de Ricardo Salles durante CPI do MST: extrema direita segue mobilizada quando o assunto é o agro
membros da Comissão Parlamentar de
Inquérito que investiga o MST recebe-
ram contribuições para a campanha de
acusados de delitos ambientais e agrá-
rios, que vão de desmatamento ilegal a
contrabando de ouro. Nos debates ini-
ciais da comissão, o que se viu foi uma
tentativa de caracterizar as ações de
ocupação de terra como crime, matéria
já por diversas vezes analisada pelos tri-
bunais superiores e de justiça, com am-
pla vantagem para a configuração como
legítima no Estado de direito democráti-
co e pleno exercício de cidadania.
CRIMINALIZAÇÃO DOS
MOVIMENTOS SOCIAIS
Desse modo, a instalação de comissões
parlamentares de inquérito para investi-
gar movimentos sociais legítimos repre-
senta um grave ataque às forças sociais e
uma tentativa de criminalizar a luta so-
cial. Mas vai além. Acuados pelas ações
golpistas do dia 8 de janeiro, os parla-
mentares ligados ao bolsonarismo viram
nessas comissões uma forma de disputar
o espaço das investigações dos órgãos
públicos sobre a frustrada tentativa de
golpe de Estado, tumultuar o processo
de reconstrução do país e fortalecimen-
to dos órgãos de fiscalização e controle,
e gerar conteúdo para suas redes sociais.
Os movimentos sociais terão de en-
frentar mais essa tentativa de sufocar
sua atuação e contar com a solidarieda-
de e a mobilização da sociedade como
antídotos a essa perseguição. Denun-
ciar os crimes ambientais e contra a
sociedade praticados por esses setores
bolsonaristas que comandam os tra-
balhos da CPI é tarefa central de seus
militantes. A desmoralização desses co-
legiados não é tarefa fácil, mas é a úni-
ca alternativa para quem já sofreu por
quarenta anos o frio dos barracos de
lona e sentiu na pele as balas dos rura-
listas e seus jagunços.
Os movimentos sociais do campo es-
tão mais ativos do que nunca. Foram de-
cisivos para a eleição do presidente Lula
e representam o que a sociedade tem de
mais forte e pulsante de atuação política
e cobrança efetiva das promessas trazi-
das pela Constituição de 1988.
Foi por meio da força desses movi-
mentos populares que, ao apreciar as
mudanças feitas pelo Congresso na es-
trutura da Esplanada dos Ministérios
em junho, o presidente Lula decidiu de-
volver atribuições às pastas de Marina
Silva, do Ministério do Meio Ambiente
(MMA), e Sônia Guajajara, do Ministério
dos Povos Indígenas (MPI). Dessa for-
ma, o MMA retomou o controle sobre a
Política Nacional de Recursos Hídricos,
e o MPI, sobre a coordenação do sanea-
mento e construção de edificações em
terras indígenas. O veto não reverteu na
íntegra o esvaziamento dos ministérios,
já que o MMA segue sem o Cadastro
Ambiental Rural (CAR), e o MPI, sem a
prerrogativa de demarcação dos territó-
rios indígenas – exemplos de que existe
muito por que lutar neste país.
A legitimidade da atuação dos movi-
mentos sociais em países como o Brasil
é resultante da democracia e do quadro
de extrema injustiça social que infeliz-
mente ainda atravessa as relações de
produção e a própria sociabilidade. Re-
sistir é a condição de existir para milha-
res de homens e mulheres que reivindi-
cam políticas públicas. Ocupar é, ainda
e infelizmente, a única forma de ter voz
na sociedade. Portanto, não é uma Co-
missão Parlamentar de Inquérito ou cas-
sações improvidas que vão calar a voz e
apagar a existência de quem há séculos
resiste neste país.
Oxalá as promessas de Lula em terras
francesas se tornem realidade e, junto
com políticas efetivas de proteção am-
biental, se faça uma reforma agrária a
sério, com estímulo à produção de ali-
mentos saudáveis e melhoria conside-
rável da vida de comunidades tradicio-
nais, trabalhadores e trabalhadoras, não
apenas distribuindo terra, mas também
saber, saúde e cultura, sem o que não se
pode falar em vida plena.
Somos a última geração que pode sal-
vaguardar nossas florestas e temos o de-
ver histórico de proteger as populações
indígenas e seus territórios, bem como
estimular a agricultura camponesa e a
reforma agrária, elementos indissociá-
veis e imprescindíveis para a efetiva pro-
teção do meio ambiente e a construção
de uma vida digna para milhões de bra-
sileiras e brasileiros.
*Ayala Ferreira e membro da direção na-
cional do Setor de Direitos Humanos do
MST; e Patrick Mariano é doutor em Teo-
ria Geral e Filosofia do Direito pela USP e
integrante da Rede Nacional de Advogados
e Advogadas Populares (Renap).
8 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

CONGRESSO

Os desafios da articulação A DANÇA DAS CADEIRAS

NAS COALIZÕES
A tabela 1 apresenta a taxa de sucesso le-

política de Lula
gislativo dos presidentes e a proporção
de cadeiras que os partidos da coalizão
de governo ocupavam no interior da Câ-
mara dos Deputados entre 1990 e 2023.
Como é possível observar, com exceção
de Jair Bolsonaro (PL),3 os demais pre-
Quais seriam os atuais desafios da articulação política de Lula? O presidente sidentes que optaram por formar coa-
terá o sucesso que espera? Para tentar responder a essas questões, o lizão e, portanto, distribuir o comando
de ministérios entre partidos inseridos
Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) analisa neste artigo alguns no interior do Legislativo conseguiram
dados da coalizão, o sucesso do Executivo e a distribuição de ministérios, alcançar taxas de sucesso na aprovação
além de traçar o cenário da questão das emendas de sua agenda política superiores a 60%.
Diante desse cenário, como podemos
interpretar a falta de apoio e as adversi-
POR JOYCE LUZ, MAIANE BITTENCOURT, JOÃO FERES JR. E JÚLIO CANELLO* dades que o governo vem enfrentando
para aprovar sua agenda de políticas pe-
rante o conjunto de parlamentares?

P
ara entender os mais recentes de-
sencontros entre os poderes Exe-
cutivo e Legislativo brasileiros, é
recomendável, a título de compa-
ração, olhar para os dois mandatos an-
teriores de Luiz Inácio Lula da Silva. Na-
quele contexto, as relações entre os
apoio do Poder Legislativo na aprova-
ção das políticas propostas pelo líder do
Executivo seria, assim, resultado do
equilíbrio da distribuição de pastas mi-
nisteriais para algumas siglas partidá-
rias ideologicamente próximas ao par-
tido do presidente, bem como para
atual governo. Acostumados à prática da
liberação de emendas individuais, cujo
pagamento passou a ser obrigatório des-
de 2015, e à liberação de recursos com
o Orçamento Secreto, os parlamentares
adicionaram outras variáveis ao cálculo
político que um presidente deve fazer se
Ao todo, sem contar os ministros téc-
nicos – aqueles que não são filiados a ne-
nhum partido político –, Lula delegou o
comando de dezesseis ministérios para
outras siglas partidárias que não o PT.
Enquanto partidos com maior represen-
tação no interior da Câmara dos Depu-

®
representantes do Legislativo e os mem- partidos com um número significativo quiser conseguir construir uma maioria tados – como o União Brasil, o MDB e o
bros do Executivo pareciam fluir bem. A de cadeiras no interior do Congresso. de apoio no interior do Congresso. PSD – ganharam o controle de três pas-
maior evidência de tal diagnóstico fo- Entretanto, se no passado a receita de Compreendendo essas circunstân- tas cada, partidos menores e mais próxi-
ram as altas taxas de sucesso1 do Execu- distribuir pastas ministeriais a partidos cias, quais seriam os atuais desafios da mos ideologicamente ao PT – como PDT,
tivo na aprovação de sua agenda legisla- aliados garantia a estabilidade na apro- articulação política de Lula? O presiden- PSB, Psol, PCdoB e Rede – ficaram com
tiva, que atingiu suas melhores marcas vação da agenda de políticas, ela parece te terá o sucesso que espera? Para tentar um ministério, como mostra a tabela 2.
com 82,8% no primeiro mandato (entre não funcionar mais no atual governo de responder a essas questões, o Obser- A expectativa de Lula era de que, jun-
2003 e 2006) e 78,5% no segundo man- Lula. As recentes derrotas do presidente vatório do Legislativo Brasileiro (OLB) tos, todos os partidos que ganharam o
dato (entre 2007 e 2010).2 A receita para no Legislativo, assim como a quase per- analisa neste artigo alguns dados da comando de ministérios garantissem
esse sucesso também carregava uma da da aprovação de medidas provisórias, coalizão, o sucesso do Executivo e a dis- ao menos a maioria simples necessária
interpretação clara e simples: a forma- nos mostraram que o Parlamento brasi- tribuição de ministérios, além de traçar para a aprovação de medidas provisó-
ção de uma coalizão de governo. O leiro quer receber mais do que cargos no o cenário da questão das emendas. rias (MPs) e de projetos de lei ordinária
(PLs) oriundos do Executivo. Contudo,
as 262 cadeiras no Legislativo não se
Tabela 1 Porcentagem de cadeiras da coalizão na Câmara dos transformaram em um apoio sólido e
estável, tal como aconteceu no primeiro
Deputados e sucesso legislativo do presidente (1990-2023) e no segundo mandato de Lula. Logo de
início, mesmo recebendo pastas minis-
Partido do presidente na Câmara Coalizão de governo na Câmara Sucesso do teriais, os integrantes do União Brasil e
Governo do PSD se declararam independentes do
dos Deputados (% de cadeiras) dos Deputados (% de cadeiras) Executivo (%)
governo. Assim, a receita que, no passa-
Collor 5,1% 33,7% 69,9% do, garantiu a Lula a governabilidade co-
meçava a dar os primeiros sinais de que
Franco 0,0% 57,2% 63,6% o segredo do sucesso não se repetiria tão
facilmente no presente.
Cardoso I 14,3% 71,6% 62,7%
OUTROS OBSTÁCULOS DE LULA III
Cardoso II 18,3% 67,8% 78,4%
O segundo obstáculo, e talvez a maior
Lula I 11,1% 59,5% 76,3% fragilidade que o presidente enfrenta,
é quanto ao Centrão e à liderança de
Lula II 14,1% 63,9% 82,8% Arthur Lira (PP-AL). Não é possível es-
quecer aqui o protagonismo que ambos
Dilma I 17,1% 58,0% 78,5% ganharam na última legislatura (entre
2019 e 2022). Esses parlamentares, sob o
Dilma II 12,1% 47,0% 71,6% comando do presidente da Câmara, fo-
ram os responsáveis por garantir o apoio
Temer 12,8% 59,8% 64,1% para a aprovação da agenda política do
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Com
Bolsonaro 10,5% 10,5% 52,1%
o esquema de liberação de verbas para
Lula III* 13,3% 51,1% – os parlamentares, que ficou conhecido
como Orçamento Secreto,4 deputados
Média 11,7% 52,7% 70,0% federais do Centrão acostumaram-se
a canalizar vultosos recursos para seus
Fonte: Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB).
redutos eleitorais, em troca de votos fa-
voráveis aos projetos de lei do Executivo.
 JULHO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 9

Mesmo com o governo de transição e

a decisão do Supremo Tribunal Federal
(STF) de extinguir o Orçamento Secre- Tabela 2 Distribuição de ministérios e apoio na
to no fim do ano passado, os resquícios
ou o vício no comportamento dos par-
Câmara dos Deputados (Lula 2023)
lamentares de esperar receber recursos
em troca de apoio parecem ter perma- Cadeiras na Câmara dos Porcentagem de cadeiras na
Partidos da base Quantidade de ministérios
necido. Com um Poder Executivo que Deputados Câmara dos Deputados
detinha uma agenda legislativa esvazia-
da do ponto de vista substantivo, como PT 10 68 26%
era o caso do governo Bolsonaro, tor- MDB 3 42 16%
nou-se comum e recorrente a liberação
de verbas para a aprovação de políticas PSB 3 14 5%
no interior do Legislativo. O problema, União Brasil 3 59 23%
no entanto, é que o atual governo tem
uma agenda de políticas robusta e não PSD 3 42 16%
conta mais com o Orçamento Secreto Psol 1 12 5%
para ser usado como moeda de troca.
Antes do governo Bolsonaro, as Rede 1 2 1%
emendas orçamentárias do relator-ge- PDT 1 17 6%
ral da LOA funcionavam apenas com
caráter e finalidade de cancelamento PCdoB 1 6 2%
de receitas previamente definidas pelo Sem filiação 11 0 0
Executivo. Em 2020, essas emendas co-
meçaram a ter caráter propositivo, ou Totais 37 262 100%
seja, incluir novas despesas públicas Fonte: Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB).
e projetos na LOA, e a transparência

para saber como funcionava esse rateio
foi retirada do ar – de onde provém o
nome “Orçamento Secreto”. Porém, o
STF julgou inconstitucional a prática e
ordenou que as emendas de relator(a)
do Projeto de Lei Orçamentária Anual
(Ploa) voltassem a ser praticadas ape-
nas para corrigir gastos do governo; e,
diferentemente de antes, o Poder Exe-
cutivo deve seguir obrigatoriamente o
cancelamento das despesas sugeridas
por tais emendas. Como consequência,
o atual governo de Lula tem em mãos
apenas os recursos das emendas indi-
viduais orçamentárias – que são im-
positivas e, portanto, não permitem ao
governo uma margem de distinção e de
recompensas entre os parlamentares.
Nessas circunstâncias, a indepen-
dência de partidos que supostamente
deveriam votar com o governo somada
à avidez dos parlamentares do Centrão
para conseguir recursos culminaram
nas primeiras derrotas e claros proble-
mas na articulação política do governo.
Na votação dos decretos presidenciais
acerca das alterações do Marco do Sa-
neamento, o presidente Lula pôde sentir
na pele os primeiros efeitos da fragilida-
de das negociações entre governo e par-
lamentares. Em uma votação marcada
por 295 votos contrários ao governo e
136 favoráveis, a Presidência sofreu sua
primeira derrota ao ver a retirada dos
dispositivos da lei do saneamento que
permitiam contratos sem licitação por
empresas estatais em regiões metropo-
litanas, aglomerações urbanas ou mi-
crorregiões e estendiam os prazos para a
comprovação de capacidade financeira.
Enquanto partidos da base aliada de
Lula – como PDT, PCdoB, PSB, Psol e
Rede – se comportaram como o espera-
do e votaram majoritariamente a favor
do governo, o MDB, o PSD e o União Bra-
®
sil se posicionaram contrariamente ao
governo,5 mesmo com cargos em minis-
térios. Essa primeira derrota evidenciou
que a oferta de pastas ministeriais não
seria suficiente para garantir o apoio dos
parlamentares do PSD e do União Brasil
ao governo. Os partidos querem mais,
como diretorias e presidências de esta-
tais. O União Brasil parece ter especial
predileção por assumir o comando dos
Correios, por exemplo.
As dificuldades na articulação política
do governo atingiram um ponto crítico
com a votação, de última hora, da Me-
dida Provisória (MP) n. 1.154/2023, res-
ponsável por redefinir a estrutura da ad-
ministração pública e do Poder Executi-
vo. Pelo prazo regimental, a MP tinha até
o dia 1º de junho para ser votada e não
perder a eficácia. Como forma de pres-
sionar o governo para melhorar o diálo-
go e as negociações com o Legislativo, o
presidente da Câmara dos Deputados,
Arthur Lira, estrategicamente postergou
a votação da MP para a madrugada do
dia 1º de junho. Apesar da atitude de Lira
ter sido vista como afrontosa por parte
do Executivo, no interior do Legislativo
ela foi recebida como uma demonstra-
ção de força do presidente da Casa e
como uma atitude necessária para Lula
abrir os olhos para os novos tempos.
Se no passado, em seu primeiro e se-
gundo mandatos, Lula conseguiu apro-
var tranquilamente as medidas provisó-
rias de reorganização do Poder Execu-
tivo, passando bem longe, inclusive, de
perder a eficácia de seus atos, o mesmo
não se repetiu agora. Do ponto de vis-
ta eleitoral, Lira sabia muito bem que a
perda da eficácia da MP da organização
do Poder Executivo não traria maiores
consequências para os parlamentares.
Se assim não fosse, por que outras MPs
– como a MP do Bolsa Família, a MP do
Minha Casa e o próprio projeto do Ar-
cabouço Fiscal (PLP n. 93/2023) – pas-
saram sem grandes dificuldades pela
Câmara? A resposta é simples: Arthur
Lira sabe muito bem onde o Legislati-
vo pode ou não sofrer punições e con-
sequências eleitorais. O timing da ma-
nobra também é calculado: estamos há
mais de um ano das próximas eleições
municipais, momento no qual os par-
lamentares passam, ainda que indire-
tamente, por meio de seus apoios, pelo
crivo do eleitorado.
A perda da vigência da MP da admi-
nistração pública e reorganização do
Poder Executivo implicaria, por sua vez,
uma enorme dor de cabeça para o go-
verno federal, com a paralisação de suas
atividades. E o que talvez antes não fosse
visto como um obstáculo para o líder do
Executivo hoje é. O presidente Lula de
hoje vai precisar aprender a incorporar
em seus cálculos de governabilidade a
presença de um presidente da Câmara
que sabe fazer uso, e muito bem, de suas
atribuições e poderes políticos, fortale-
cidos ao longo do governo Bolsonaro.
No caso da MP que reorganiza os mi-
nistérios, Lula assumiu pessoalmente as
negociações, mostrando um enfraque-
cimento de Rui Costa (PT-BA), ministro
da Casa-Civil, e de Alexandre Padilha
(PT-SP), ministro da Secretaria de Rela-
ções Institucionais, como articuladores
políticos com o Congresso Nacional; e, o
que é mais grave, reforçando a imagem
de falta de uma coalizão sólida de sus-
tentação do governo no Parlamento.
Assumir o governo após a gestão
Bolsonaro trouxe problemas para Lula
inclusive no âmbito da gestão da coali-
zão, entre outras coisas porque, após o
“escândalo” do Orçamento Secreto, sua
atual gestão seria muito mais vigiada do
que em seus dois mandatos anteriores,
seja pela mídia, seja pela sociedade civil.
Conforme percebemos, o Legislativo au-
menta muito o custo transacional dessa
gestão quando percebe estar protegido
de consequências eleitorais danosas às
pretensões de reeleição dos parlamenta-
res. E agora faz isso com maiores prerro-
gativas que outrora. Pelo que vimos até
aqui, para o presidente petista nunca foi
tão difícil governar o Brasil.
*Joyce Luz é pesquisadora do Observató-
rio do Legislativo Brasileiro (OLB), mestra
e doutoranda em Ciências Políticas pela
Universidade de São Paulo (USP); Maiane
Bittencourt é pesquisadora do OLB,
mestra e doutoranda em Ciência Política
pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR); João Feres Júnior é cientista
político, coordenador do OLB e professor
de Ciência Política do Instituto de Estudos
Sociais e Políticos (Iesp-Uerj); e Júlio
Canello é pesquisador do OLB, mestre e
doutor em Ciência Política pelo Iesp-Uerj,
onde também realizou pós-doutorado.
1   A taxa de sucesso foi calculada considerando
todos os projetos apresentados e aprovados
pelo Poder Executivo dentro de um mesmo
mandato de um presidente.
2   Informação disponível em: https://olb.org.br/
monitor/.
3   O ex-presidente Jair Bolsonaro optou por não
distribuir pastas ministeriais com o critério
partidário.
4   O Orçamento Secreto foi um esquema de libe-
ração de emendas orçamentárias do relator-ge-
ral da Lei Orçamentária Anual (LOA) que co-
meçou a operar ainda em 2020. Parlamentares
realizavam indicações de alocação de recursos
e localidades para o presidente da Câmara,
que repassava as informações para o relator-
-geral da LOA. O relator, por meio das emendas
orçamentárias RP9, incluía a liberação dos re-
cursos no interior dos ministérios.
5   O resultado da votação pode ser consultado
em: https://bit.ly/42UyCa7.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
SEIS MESES DE GOVERNO LULA
Entre a normalidade democrática,
a polarização e a mobilização social
A polarização que atravessa o país não é só eleitoral, mas também política e social, opondo dois projetos de sociedade
e visões de mundo distintos: a democracia, representada em 2022 pela frente ampla em torno do presidente Lula; e o
autoritarismo, o campo da extrema direita liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro
POR JOSUÉ MEDEIROS*
O
presidente Lula completou seis
meses de mandato em meio a
um ambiente positivo e de nor-
malidade. Na economia, o petis-
ta colecionou boas notícias nesse pe-
ríodo: o PIB vem crescendo mais do
que o esperado, a inflação está sob
controle e o preço dos alimentos caiu,
os postos de trabalho formais crescem,
a renda do trabalhador também. Tudo
isso, somado ao retorno das políticas
públicas para os mais pobres, vem ge-
rando uma espiral positiva de expecta-
tivas quanto ao crescimento econômi-
co e de aumento da arrecadação do
governo, o que permitirá ainda mais
investimentos em 2024.
Na política, a relação com o Con-
gresso assentou e a poeira baixou. As
previsões de fim do mundo feitas por
analistas da grande mídia diante de um
possível conflito entre o presidente Lula
e o deputado Arthur Lira, presidente da
Câmara dos Deputados, não se confir-
maram. O governo vem aprovando com
tranquilidade todas as matérias de seu
interesse, especialmente o arcabouço
fiscal e a indicação do advogado Cris-
tiano Zanin para o Supremo Tribunal
Federal. Lira baixou a temperatura em
suas queixas públicas e, embora siga
fazendo pressão por cargos e emendas,
não dita a agenda de Lula.
Ainda na política, o país assiste ao
desenrolar da mobilização democrática
contra o golpismo do ex-presidente Jair
Bolsonaro em duas frentes: a Comis-
são Parlamentar de Inquérito (CPI) da
tentativa de golpe de 8 de janeiro 2023,
composta de senadores e deputados
federais; e o julgamento pela inelegibi-
lidade de Bolsonaro no Tribunal Supe-
rior Eleitoral (TSE). Em ambos os casos,
a extrema direita está na defensiva, sem
conseguir mobilizar suas bases para de-
fender Bolsonaro e seu entorno.
A suspensão dos direitos políticos do
capitão por oito anos é dada como cer-
ta, provavelmente com ampla maioria
ou mesmo unanimidade entre os mi-
nistros do TSE. O que se discute como
consequência não é se haverá manifes-
tações maciças em defesa de Bolsonaro,
e sim se ele conseguirá se manter um
bom cabo eleitoral em 2024 e 2026, com
base em uma estratégia de se apresentar
como perseguido e injustiçado pelo “sis-
tema”. Ou seja, tudo dentro da normali-
dade democrática dos ciclos eleitorais.
Já no Parlamento, a CPI tem se de-
monstrado um espaço seguro para Lula,
com a rejeição dos requerimentos da
oposição que buscam implicar integran-
®
tes do atual governo em uma suposta sa-
botagem que teria facilitado ou mesmo
estimulado o quebra-quebra em Bra-
sília. E, em paralelo, vem aprovando os
pedidos de quebra de sigilo telemétrico e
bancário dos membros do entorno bol-
sonarista mais próximos do ex-presiden-
te, sobre os quais pesam fortes indícios
de conspiração golpista e corrupção.
Por fim, é preciso mencionar, neste ba-
lanço dos seis meses do governo, a atua-
ção internacional de Lula, que recoloca o
país em posição de destaque nos debates
globais. A viagem do presidente à Europa
no fim de junho ficou marcada por dois
discursos históricos do petista, ambos
em Paris. No primeiro, falando para 20
mil pessoas, Lula reafirmou o compro-
misso do Brasil com o desmatamento
zero da Amazônia e cobrou os países ri-
cos pela dívida histórica com o planeta a
partir da Revolução Industrial no século
XVIII. No segundo, Lula estava cercado
de chefes de Estado que participavam
da Cúpula sobre o Novo Pacto de Finan-
ciamento Global e criticou duramente
os documentos de fóruns internacionais
que nem sequer mencionam o combate
às desigualdades como uma prioridade.
O líder brasileiro insistiu que enfrentar
as desigualdades de renda, raça e gênero
deve ser tão prioridade quanto combater
a emergência climática.
Pesquisas de popularidade do governo Lula (junho de 2023)
Ipec (1-5 jun.)
37% de ótimo/bom
28% de ruim/péssimo
32% de regular
A NORMALIDADE E A POPULARIDADE
DO PRESIDENTE LULA
Tal normalidade expressa na dimensão
econômica, política e internacional re-
mete aos primeiros mandatos de Lula,
entre 2003 e 2010, especialmente o se-
gundo, quando o presidente conseguiu
resultados consistentes de crescimento
econômico, controle da inflação e das
contas públicas, combate às desigual-
dades e melhorias concretas na vida da
maioria da população brasileira. Não
por acaso, Lula saiu da Presidência com
aprovação recorde de 90% e elegendo
Dilma Rousseff sua sucessora.
Entretanto, a popularidade atual de
Lula segue longe daquele patamar his-
tórico. O conjunto de três pesquisas de
opinião feitas ao longo do mês de ju-
nho mostra que o presidente tem 37%
de aprovação, com rejeição variando
entre 27% e 28%.
Análises otimistas afirmam que seria
questão de tempo para a popularidade de
Lula subir, alavancada pela persistência
de um cenário econômico positivo. Essa
esperança parte do pressuposto de que
o restabelecimento da normalidade de-
mocrática poria fim ao tipo de polariza-
ção que o Brasil vem vivenciando desde
o golpe parlamentar contra a presidenta
Dilma em 2016 e, principalmente, desde
que Bolsonaro se converteu na principal
liderança da direita brasileira em 2018.
Contudo, nada indica que a polariza-
ção vá arrefecer. Isso porque, conforme
afirmamos no projeto de Monitoramen-
to Eleitoral de 2022, feito pelo Observa-
tório Político Eleitoral (Opel) em parceria
com o Le Monde Diplomatique Brasil, a
polarização que atravessa o país não é só
eleitoral, mas também política e social,
DataFolha (12-14 jun.)
37% de ótimo/bom
27% de ruim/péssimo
33% de regular
opondo dois projetos de sociedade e vi-
sões de mundo distintos: a democracia,
representada em 2022 pela frente ampla
em torno do presidente Lula; e o autori-
tarismo, o campo da extrema direita lide-
rada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
O Monitoramento Eleitoral do Opel
demonstrou que tal polarização foi além
das eleições presidenciais, pautando
a disputa em quase todos os governos
estaduais (as exceções foram Pernam-
buco e Rio Grande do Sul – neste caso,
com o atual governador Eduardo Leite
conquistando a vaga no 2º turno contra
a extrema direita por apenas 2 mil vo-
tos a mais que o PT); em quase todas as
disputas para o Senado; no Parlamento
federal e estadual, com as bancadas do
PT e do PL sendo as maiores; e nos eixos
temáticos, com dinâmicas de renovação
democrática – bancada do cocar, candi-
daturas antirracistas, candidaturas fe-
ministas e candidaturas de movimentos
sociais – versus dinâmicas autoritárias,
como a bancada da bala, as dissemina-
ção das fake news e o papel das lideran-
ças evangélicas conservadoras.
É bem verdade que o pleito municipal
de 2024 apresentará um quadro de mui-
ta diversidade, uma vez que as configu-
rações locais organizam a disputa nas
cidades para além das linhas de força
nacional. Ainda assim, será possível ver
a polarização se manifestar em disputas
estratégicas: é o caso da cidade de São
Paulo, onde se dará um verdadeiro tercei-
ro turno da eleição de 2022, com Guilher-
me Boulos, do Psol, representando o pre-
sidente Lula, e o atual prefeito, Ricardo
Nunes, sendo apoiado por Bolsonaro e,
principalmente, pelo governador Tarcísio
de Freitas, do Republicanos, que busca se
Genial/Quaest (15-18 jun.)
37% de ótimo/bom
27% de ruim/péssimo
32% de regular

© Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Presidente Lula, junto ao ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, participa de feira na Praça dos Três Poderes, após anúncio do Plano Safra 2023
credenciar para substituir o ex-presiden-
te caso sua inelegibilidade se confirme.
O mais provável, portanto, é que difi-
cilmente Lula tenha uma rejeição muito
abaixo de um terço do eleitorado. E sua
capacidade de aumentar a aprovação
não dependerá somente das realizações
de governo, mas também estará ligada
ao elemento da mobilização social.
A NORMALIDADE E A
MOBILIZAÇÃO SOCIAL
A mobilização social é um elemento
central para o fortalecimento de qual-
quer arranjo democrático, e no Brasil
não foi diferente. A Constituição de
1988 não teria tantos direitos sem a in-
tensa mobilização popular, com cente-
nas de caravanas de norte a sul do país
que lotaram as galerias do Congresso e
pressionaram os deputados. Tampou-
co é possível pensar nas experiências
de governos progressistas do PT sem
o conjunto de mobilizações dos movi-
mentos sociais que foram se acumu-
lando desde as greves do ABC lideradas
por Lula no fim dos anos 1970, ainda
sob a ditadura militar.
Hoje, contudo, as dinâmicas de mo-
bilização social enfrentam desafios sig-
nificativos na atualidade, e, novamente,
®
o Brasil não é exceção. Há, de partida,
as dinâmicas de individualização recor-
rentes de décadas de neoliberalismo he-
gemônico no mundo; soma-se a isso o
processo de plataformização da política,
com o monopólio que as Big Techs exer-
cem sobre o debate público nas redes
sociais; por fim, mas não menos impor-
tante, destaca-se a emergência global
e nacional de uma extrema direita que
mobiliza suas bases nas redes e nas ruas.
No Brasil, tal mobilização incluiu um
movimento golpista com os acampa-
mentos nos quartéis-generais do Exérci-
to e os ataques de 8 de janeiro de 2023.
Esse quadro de extrema direita nas
ruas vem enfraquecendo no Brasil
como consequência da derrota do gol-
pismo bolsonarista. As redes de finan-
ciamento foram desmobilizadas e os
cabeças do movimento estão sendo in-
vestigados e punidos.
No mesmo sentido, o fato de a frente
democrática brasileira ser liderada pelo
presidente Lula implica uma dinâmi-
ca política que rejeita os valores neo-
liberais e traz para o centro do palco a
luta pela desigualdade e a afirmação do
papel do Estado como indutor do de-
senvolvimento. Esses dois elementos
combinados abrem uma grande oportu-
JULHO 2023
nidade para que a sociedade civil brasi-
leira retome dinâmicas de mobilização
mais ampla, capazes de alterar a cor-
relação de forças, uma vez que tanto o
neoliberalismo quanto a extrema direita
estão em um momento de defensiva na
conjuntura nacional.
Não se trata de propor que os movi-
mentos sociais inventem a roda, e sim
que o campo progressista siga investin-
do em dinâmicas de luta política que ti-
veram efeito extremamente positivo du-
rante a pandemia de Covid-19, quando
os movimentos sociais se organizaram
para distribuir máscaras, álcool gel e co-
mida para o povo das periferias.
Se o estrago da Covid-19 não foi maior
no povo pobre, isso se deu graças à mo-
bilização social diversa e incansável.
Nesse processo, surgiram cozinhas soli-
dárias do Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto (MTST), a união do Movimen-
to dos Pequenos Agricultores (MPA) e do
Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) para levar às cidades
comida saudável, campanhas de arre-
cadação de alimentos e organização
comunitária, como a Tem Gente com
Fome, impulsionada pela Coalizão Ne-
gra por Direitos, e outras levadas a cabo
por sindicatos e ONGS.
Le Monde Diplomatique Brasil 11
Outra política que resultou da mobili-
zação social durante a emergência sani-
tária foi a conquista do Auxílio Emergen-
cial para milhões de pessoas que perde-
ram suas atividades econômicas diante
das necessárias políticas de isolamento
social. O governo genocida de Bolsona-
ro propôs um voucher de R$ 200 a um
número limitado de pessoas e por um
período curto de tempo. Os movimentos
sociais e o ativismo conseguiram pres-
sionar o Congresso a aprovar o auxílio
de R$ 600 para milhões de pessoas, com
resultados positivos no combate às desi-
gualdades entre 2020 e 2022.
É preciso retomar redes e articulações
desse tipo durante o terceiro mandato
do governo Lula. Somente com o enrai-
zamento e a territorialização das forças
democráticas em torno de valores como
a solidariedade e a dignidade seremos
capazes de consolidar a vitória demo-
crática de 2022, instalando um novo tipo
de normalidade, no qual as desigualda-
des de classe, raça e gênero no Brasil se-
jam de fato combatidas.
*Josué Medeiros é cientista político e pro-
fessor da UFRJ. Coordena o Observatório
Político e Eleitoral (Opel) e o Núcleo de Estu-
dos sobre a Democracia Brasileira (Nudeb).
12 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

UMA FIGURA ÉPICA E PATERNALISTA

O gaucho de
todos os argentinos
Personagem do poema fundador de José Hernández, o gaucho Martín
Fierro ocupa um lugar central no imaginário argentino há mais de 150 anos.
Ao mesmo tempo indígena e paternalista, esse “filho da pátria” foi reivindicado
por Perón e é referência constante do papa Francisco. Ainda assim, algumas
vozes críticas, inclusive a de Jorge Luis Borges, se fazem ouvir

POR FABIEN PALEM*

O
s jogadores alemães acabavam
de vencer os argentinos. Diante
da multidão que os recebia em
Berlim, zombaram de seus ad-
versários. Entraram em cena com as
costas encurvadas, cantando em unís-
sono: “Gauchos andam assim, andam
sua divulgação aos analfabetos. Narra
as desventuras de um homem alista-
do à força pelo Exército, mobilizado na
conquista do território argentino. Uma
campanha militar travada contra os in-
dios, como eram então denominadas
as populações originárias. Cansado do
ra tradução integral do poema para o
francês, Paul Verdevoye (1912-2001),
especialista em literatura argentina,
traduziu criollo como “filho da pátria”.
É uma interpretação fiel ao espírito do
autor, que desejava interpelar seus con-
temporâneos sobre o papel a ser de-

os gauchos assim!”. Em seguida, ergue-
ram o corpo com orgulho e retomaram
no mesmo tom: “Alemães andam as-
sim, andam os alemães assim!”. Os es-
pectadores gritaram de alegria e repe-
tiram em coro.1
Era julho de 2014, um dia após a final
da Copa do Mundo da Fifa. Uma onda
de indignação se espalhou por Buenos
Aires. Ao perceberem que zombavam
dos gauchos, muitos torcedores saíram
às ruas para se manifestar e lavar o que
consideravam uma afronta. Assim como
o jornalista peronista Víctor Hugo Mo-
rales, muitos chegaram ao ponto de Go-
dwin na velocidade da luz: os jogadores
alemães são apenas “nazistas sujos!”. No
entanto, quem são esses gauchos cuja
honra estava sendo defendida?
Embora os jogadores alemães pos-
sam ter pensado no termo como si-
nônimo de “argentino”, o gaucho é, na
verdade, uma espécie de cowboy da re-
gião do Rio da Prata, solitário e seminô-
made. Essa figura tradicional da região,
associada ao campo, ao gado, à poesia
cantada, ao álcool e a rixas, deve muito
ao gaucho Martín Fierro, protagonista
do poema fundador de José Hernán-
dez, que celebrou, em 2022, o 150º ani-
versário da primeira edição. Um poema
épico que ainda é atual.
À direita e à esquerda do tabuleiro de
xadrez, tanto nas regiões mais remotas
como no coração da capital, todos os ar-
gentinos reivindicam a figura de Martín
Fierro. Seu nome aparece em discursos
políticos, é alvo de releituras literárias e
cinematográficas, encontra-se associa-
do às mais importantes premiações do
audiovisual no país. Tem até um feriado
nacional, o 6 de Dezembro.
Assim que foi lançado, o poema de
Hernández teve enorme sucesso. Era re-
citado em volta do fogo, o que permitiu
®
tratamento recebido de seus superiores
e não convencido da missão patriótica,
Fierro deserta. Abandonado pela famí-
lia, ele decide ir viver entre os indios – no
contexto da época, uma afirmação emi-
nentemente política.
A Argentina, naquele momento, divi-
dia-se entre unitários e federais. De um
lado, a aristocracia de Buenos Aires, de-
sejosa de centralizar o poder político e
impor o livre comércio. Do outro, as eli-
tes das províncias rurais, partidárias do
protecionismo e preocupadas em man-
ter ampla margem de manobra. Para os
unitários, tratava-se de uma luta entre
civilização e barbárie: enquanto Martín
Fierro se tornava a obra de referência
dos federais, a deles teria o título com-
pleto de Facundo o Civilización y bar-
barie en las pampas argentinas [Facun-
do, ou Civilização e barbárie nos pam-
pas argentinos]. Escrito por Domingo
Faustino Sarmiento (que se tornaria
presidente de 1868 a 1874), publicado
em 1845, Facundo começa com uma
frase em francês – “On ne tue point les
idées” [Não se matam as ideias] –, que
afirma a intenção de associar a ideia de
civilização à Europa.
EXPRESSÃO DA ARGENTINIDADE
O discurso dos unitários “é inspirado
no dos europeus em relação às suas co-
lônias”, explica o historiador Ezequiel
Adamovsky. Em Facundo, Sarmiento
se propõe a ler a história argentina por
esse prisma: “A ideia subjacente de que
há dois países em luta. Um, representa-
do pelo urbano, o branco, o europeu, o
letrado; e o outro, encarnado no mundo
rural, criollo, plebeu, não branco”.2
O gaucho é um criollo, pessoa re-
sultante da mestiçagem entre colonos
espanhóis, indígenas e escravizados
trazidos à força da África. Na primei-
sempenhado pelo sertanejo no projeto
civilizatório argentino.
Sete anos após o lançamento da pri-
meira parte, Hernández publicou La
vuelta de Martín Fierro [O retorno de
Martín Fierro]. Nesse poema, mais lon-
go e ambíguo que o primeiro, o caráter
rebelde do gaucho é atenuado. Ele se
reconciliou com o poder. Essa inversão
reflete a evolução política do autor: em
1879, ano da publicação de La vuelta,
o escritor tornou-se deputado nacional
pelo Partido Unitário.
Ao tornar-se dócil, o gaucho passa a
entender-se bem com o povo da cidade.
Os indios, por outro lado, são animaliza-
dos. A Conquista do Deserto, campanha
militar que desencadearia o extermínio
das populações indígenas, foi lançada
em 1878. “Um pouco contra sua von-
tade, Hernández concilia as diferentes
narrativas políticas e supera a dicoto-
mia proposta por Sarmiento, por meio
de um grande fosso ideológico entre
La ida [o primeiro poema] e La vuelta”,
considera Carlos Gamerro, escritor. “En-
tretanto, há um ponto em que os dois
poemas coincidem: na impossibilidade
de integrar os indios.”3
Martín Fierro continuou a se envolver
cada vez mais com o debate partidário.
Em 1904, o jornal anarquista La Protes-
ta criou um suplemento cultural com
o nome do mais famoso dos gauchos.
Os marginalizados de ontem agem
como porta-estandarte de seus homó-
logos do momento. “Martín Fierro é o
símbolo de uma época de nossa vida,
a personificação de nossos costumes,
instituições, crenças, vícios e virtudes.
É o grito de uma classe que luta contra
as camadas superiores da sociedade
que a oprimem, é o protesto contra a
injustiça”, lê-se no Martín Fierro de 3 de
março de 1904.
Quase todos oriundos da “grande imi-
gração” – capítulo da história nacional
que vai de 1860 a 1930, quando cerca de
6 milhões de europeus desembarcaram
em um país que tinha apenas 1,88 mi-
lhão de habitantes em 1870 –, os anar-
quistas do início do século XX demons-
traram um desejo de “crioulizar-se”.
Tornar-se argentino. Processo seme-
lhante afetou todas as comunidades de
imigrantes europeus, que traduziriam
o poema para sua língua, como sinal de
boas intenções para com a sociedade
anfitriã. Para os anarquistas, tornar-se
argentino permitia que eles não caís-
sem mais na lei de residência, que desde
1902 permitia a expulsão de imigrantes
considerados subversivos.
Uma década depois, o escritor conser-
vador e nacionalista Leopoldo Lugones
aproveitou-se de Martín Fierro, ao con-
trário, para torná-lo uma barreira identi-
tária contra as ondas da “grande imigra-
ção” e o que essas populações traziam,
segundo ele, de subversivo: ideias cos-
mopolitas, políticas sociais, anarquis-
mo, feminilidade. Em várias palestras
proferidas em 1913 no Teatro Odeon,
diante da classe dominante, Lugones

ergueu o criollo como pilar da Argen-
tina diante dos gringos (estrangeiros)
que desembarcavam em Buenos Aires.
Martín Fierro deve ser para os argenti-
nos o que a Chanson de Rolland é para
os franceses ou o poema El Cid é para os
espanhóis, segundo a analogia feita por
seu contemporâneo, o escritor Ricardo
Rojas. Assim, o gaucho que outrora en-
carnara a resistência à homogeneização
da nação se tornou a personificação de
uma pureza ameaçada pelo estrangeiro.
Os usos e as demandas políticas do
gaucho passaram a abranger todo o es-
pectro ideológico. Em 1939, o governa-
dor da província de Buenos Aires, o na-
cionalista Manuel Fresco, obteve a una-
nimidade dos eleitos locais para instituir
o feriado nacional da tradição, em 10 de
novembro, dia do nascimento de José
Hernández. Sob a presidência de Juan
Domingo Perón, o feriado tornou-se na-
cional com o decreto de 9 de novembro
de 1949, que se referia ao poema como
“a mais alta expressão da argentinidade”.
Em 1993, Carlos Menem estabeleceu o
Dia Nacional do Gaucho em 6 de dezem-
bro. O presidente de todas as privatiza-
ções se autoproclamava um herói criollo.
®
Ambivalente, arguto, Martín Fierro
é ao mesmo tempo uma encruzilhada
ideológica e um ponto de cristalização
de tensões. Sua importância na política
nacional aumentou quando se tornou
o emblema de uma das correntes polí-
ticas mais poderosas e indefiníveis do
país: o peronismo. Em 1944, quando o
peronismo incipiente escreveu um dos
capítulos mais intensos do mito gaucho,
com a instauração do Estatuto del Peón
Rural Argentino (que emancipou os tra-
balhadores agrícolas dos latifundiários),
o general Perón – então secretário do
Trabalho e Planejamento do governo
militar em vigor – invocou essa figura. A
condição de peón, abolida pela ditadura
(1976-1983), foi restabelecida em 2011
por Cristina Fernández de Kirchner, en-
tão presidenta peronista.
“Martín Fierro acompanhou o pero-
nismo desde sua gênese”, confirma o
historiador Matías Emiliano Casas, au-
tor de Como dijo Martín Fierro [Como
disse Martín Fierro] (Prometeo, Buenos
Aires, 2022). “Ao longo do século XX,
assistimos a três níveis de apropria-
ção. Em escala pessoal, Juan Domingo
Perón cita trechos inteiros do poema,
JULHO 2023
© Renato Caetano
inclusive inventando versos. No pla-
no governamental, entre 1946 e 1955,
o peronismo incentivou a organiza-
ção de eventos culturais para divulgar
o texto. Por fim, no mesmo período, o
movimento acompanhou a publica-
ção de dezenas de livros enaltecendo o
imaginário ligado aos gauchos”, explica
ele. Após o golpe que derrubou Perón,
a ditadura tentou, em vão, desperoni-
zar Martín Fierro.
DE JOGADORES AO PAPA FRANCISCO
Perón constrói sua lenda pessoal por
meio da identificação com a mais que-
rida das “crianças do campo”. O livro
de Hernández teria sido um presente
de seu pai em 1913, ano de sua saída da
escola militar, que é também (coinci-
dentemente) o da canonização do gau-
cho por Lugones. Durante a campanha
presidencial de 1946, primeira eleição
que venceu, o candidato Perón encar-
nou os interesses nacionais diante das
ameaças do imperialismo norte-ame-
ricano. Cartazes de “Braden ou Perón”
cobriam as paredes de Buenos Aires,
em referência ao embaixador dos Esta-
dos Unidos.
Le Monde Diplomatique Brasil 13
Seja no governo ou na oposição, o
peronismo continuou a manter o mito
gaucho. Durante a Copa do Mundo de
Futebol, organizada pela ditadura, em
1978, o regime impôs o gauchito, peque-
no gaucho, como mascote da competi-
ção. Contra os militares, os Montoneros,
guerrilheiros peronistas, assumiram o
nome das montoneras, formações mili-
tares das guerras da independência, for-
madas por gauchos. Durante a Copa do
Mundo, os montoneros reivindicavam o
gaucho, em sua versão herói das popu-
lações oprimidas.
Mais recentemente, outro chefe de
Estado nascido na Argentina conferiu
um apelo universal a esse anti-herói do
pampa argentino. Em um discurso de
2015 às Nações Unidas, o papa Fran-
cisco citou a lei primária do poema,
que exorta “os irmãos a permanecer
unidos”. Gerador de uniões e divisões,
o gaucho foi muitas vezes assimilado
ao peronismo. Conhecido pela ferre-
nha oposição a essa corrente política,
o escritor Jorge Luis Borges lamentou,
nos anos 1970, que Facundo não havia
sido consagrado pelos argentinos como
poema nacional: “Erramos quando in-
centivamos a leitura de Martín Fierro,
porque ele leva à barbárie”.4 O debate,
de um século e meio, está longe de aca-
bar entre a elite intelectual. O escritor
Alberto Manguel, diretor da Biblioteca
Nacional durante o mandato do presi-
dente liberal Mauricio Macri, seguiu os
passos de Borges, gerando fortes rea-
ções da oposição peronista, que veio
defender “seu” emblema nacional.
Longe da Biblioteca Nacional, o grito
de protesto dos latifundiários semeia
ainda mais problemas sobre a paterni-
dade política de Martín Fierro. Durante
suas frequentes mobilizações contra
as restrições às exportações impostas
pelo peronismo, esses empresários
agrícolas regularmente se valeram da
mitologia gauchesca. “Se Martín Fierro
é um ícone nacional, é porque ninguém
pode passar ao largo dele”, conclui o
historiador Emiliano Casas. “Nenhum
grupo político, nenhum regime, nem
esquerda nem direita. Nem democracia
nem ditadura. Mais cedo ou mais tarde,
a política encontra o gaucho e precisa
lidar com essa herança.”
*Fabien Palem é jornalista em Buenos
Aires.
1   “2014 World Cup... Germany celebration
victory” [Copa do Mundo de 2014. Alema-
nha comemora vitória]. Disponível em:
www.youtube.com.
2   Ezequiel Adamovsky, El gaucho indómito, de
Martín Fierro a Perón, el emblema imposible
de una nación desgarrada [O gaúcho indo-
mável, de Martín Fierro a Perón, emblema im-
possível de uma nação dilacerada], Siglo XXI,
Buenos Aires, 2019.
3   Carlos Gamerro, Facundo o Martín Fierro. Los
libros que inventaron la Argentina [Facundo ou
Martín Fierro. Os livros que inventaram a Argen-
tina], Sudamericana, Buenos Aires, 2015.
4   Em prólogo do livro de Sarmiento, Emecé Edi-
tores, Buenos Aires, 1944.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
DIANTE DAS TUTELAS RELIGIOSA, ESTATAL E OCIDENTAL
Efervescência feminista no
Oriente Médio e no norte da África
Em maio, a bióloga Rayyanah Barnawi se tornou a primeira saudita a realizar uma missão espacial.
Embora seja um evento notável, isso não representa a condição feminina na região. Para alcançar a
igualdade de gênero, as mulheres não têm nada a esperar de um feminismo de Estado que legitima
os poderes estabelecidos, pois apenas a luta pela democracia e pelo secularismo é libertadora
POR HICHAM ALAOUI*
A
onda de protestos desencadeada
no Irã pela morte da estudante
Mahsa Amini em setembro de
2022 mostra quão central se tor-
nou a questão da emancipação femini-
na no Oriente Médio e no norte da Áfri-
ca.1 Para examiná-la com todo o rigor, é
melhor não confiar nas posições do
Ocidente, que muitas vezes tende a ex-
plorar ou caricaturar o tema das desi-
gualdades de gênero na região, arro-
gando-se o poder de libertar ou de
rejeitar esse “outro” que é a mulher
oriental. Convém ainda não se limitar à
escolha entre duas opções igualmente
enviesadas: atacar as supostas raízes
profundas da opressão das mulheres
no Oriente Médio e no norte da África
ou apresentar esse grupo social como
vítima do colonialismo, em primeiro
lugar, e, em seguida, da aspiração rea-
cionária à autenticidade cultural.2
Compreender a luta das mulheres
nessa parte do mundo requer um ponto
de apoio mais sólido. Trata-se de ques-
tionar os termos ideológicos e políticos
nos quais o objeto social do gênero foi
construído, tanto para o Ocidente quan-
to para os próprios povos do Oriente
Médio e do norte da África. Só assim po-
demos desvendar os pesados legados do
passado, bem como as novas oportuni-
dades para desafiar o patriarcado e fazer
ouvir vozes até aqui marginalizadas.
O LEGADO DO COLONIALISMO
Entre os muitos danos causados pelo
colonialismo europeu na região, pou-
cos tiveram um impacto tão duradouro
quanto o sistema de normas misóginas
imposto às mulheres. No contexto da
época, nenhuma sociedade, colonizado-
ra ou colonizada, era exemplar em ter-
mos de igualdade de gênero. O poder do
patriarcado provém de seu caráter uni-
versal. No entanto, os conceitos de gêne-
ro e de privilégio masculino no Oriente
Médio e no norte da África diferiam
bastante das hierarquias e instituições
predominantes na Europa, que remode-
laram a região a partir do século XIX.
Uma diferença fundamental diz res-
peito às normas informais, em oposi-
ção aos códigos legais. Claro que a vida
social no Oriente Médio e no norte da
África era balizada por textos e opiniões
de juristas islâmicos, mas ela também
oferecia às mulheres uma liberdade con-
siderável em muitas áreas, incluindo a
gestão das finanças, as deliberações le-
gais e a assinatura de contratos. Em mui-
®
tos aspectos, o sistema de gênero consa-
grado na xaria – por exemplo, no que diz
respeito ao papel da mulher na família
e no casal – chamava a atenção por sua
flexibilidade. Ele trazia a marca tanto das
concepções religiosas como das necessi-
dades pragmáticas da sociedade.
O colonialismo europeu transformou
esse sistema por meio de dois movimen-
tos. O primeiro deles foi uma definição
mais rígida das prescrições da xaria, até
então sujeitas a interpretações muito
díspares de acordo com cada comuni-
dade, que foi assim transmutada em um
código uniforme de leis intocáveis. A rí-
gida fronteira estabelecida entre as mu-
lheres e os homens não mahram, isto é,
homens sem laços familiares com elas,
ilustra bem essa transformação: o que
antes era uma linha de conduta mais ou
menos maleável e de conotações religio-
sas passou a constituir uma obrigação
legal imposta sob coação. Em seguida, a
ação colonial garantiu o registro dessas
regras em um conjunto de códigos civis
e penais imposto às sociedades locais
por meio de tribunais, ordens militares
e decisões do poder público.
Sob o efeito da dominação europeia,
a antiga mistura pluralista de normas
religiosas informais transformou-se,
portanto, em um arsenal de imperativos
que não admitiam exceções. Isso refletia
a visão das potências coloniais sobre o
islã e os muçulmanos, considerados re-
trógrados e refratários à civilização, do
que se deduzia que as mulheres neces-
sariamente viviam na opressão e preci-
savam ser resgatadas. Porém, a vontade
imperialista de “civilizar” os muçulma-
nos acabou tendo o efeito oposto, sub-
metendo as sociedades locais a um po-
der autoritário, à violência uniformizada
e à exploração econômica. As mulheres
também foram vítimas disso. Elas foram
menos libertadas do que absorvidas por
um novo aparato legal que expressava a
visão europeia da hierarquia de gênero.
Nada ilustra melhor a reformula-
ção das tradições locais sob o efeito do
controle colonial do que a questão dos
direitos e das identidades das pessoas
homossexuais. Em muitas sociedades
muçulmanas, as concepções de gênero
e sexualidade admitiam de maneira tá-
cita certa ambiguidade das relações hu-
manas e das práticas sexuais proibidas
pelas Escrituras. Os critérios de classi-
ficação adotados pelos legisladores oci-
dentais, porém, traçaram uma rigorosa
linha de demarcação entre “hétero” e
“homo”. A sexualidade foi codificada de
forma a criminalizar qualquer prática
assimilada a um desvio. Isso teve o efei-
to de extirpar as relações homossexuais
de seu terreno tradicional e empurrá-las
para categorias estranhas à cultura do
Oriente Médio e do norte da África.3
Seguiu-se uma série de paradoxos na
forma de conceber o feminismo e os di-
reitos das mulheres no mundo ocidental.
Os administradores coloniais castigavam
as populações muçulmanas pela opres-
são das mulheres, enquanto em seus
próprios países elas não tinham direito
de voto nem acesso a carreiras políticas.
Além disso, na área das transações eco-
nômicas, as mulheres europeias tinham
muito menos autonomia do que as do
Oriente Médio e do norte da África, que
podiam participar do fechamento de
contratos e contribuir para obras de cari-
dade ou acadêmicas por meio da institui-
ção do waqf, a doação de bens islâmica.
Da mesma forma, o movimento de
emancipação feminina ganhou corpo no
Ocidente em meados do século XX, em
um contexto no qual a homossexualida-
de permanecia criminalizada e a hete-
rossexualidade constituía a norma insu-
perável. Quando o mundo ocidental em-
barcou no reconhecimento de pessoas
identificadas como LGBTQIA+, no início
dos anos 2000, ele não abandonou o “dois
pesos, duas medidas”: criticar as socieda-
des muçulmanas por condenarem práti-
cas não heterossexuais, esquecendo to-
talmente sua própria conduta nessa área.
OS DIREITOS DAS
MULHERES DE CIMA
Do ponto de vista do Ocidente, a igual-
dade de gênero nas sociedades muçul-
manas só poderia ser alcançada com a
introdução de suas próprias ideias. Essa
forma de ver decorre da hegemonia que
ele por tanto tempo exerceu sobre as
normas dos quatro cantos do mundo.
Contudo, a injunção a um feminismo de
estilo europeu nunca obteve um resulta-
do convincente. Ela pode ter estimulado
a educação e a mobilização das mulhe-
res burguesas urbanas, mas alimentou o
autoritarismo e promoveu estereótipos
culturais que ignoram as identidades lo-
cais. Colocados em prática por meio da
construção de Estados saídos da guerra,
como o Iraque e o Afeganistão, ou por
governos nacionais usando meios tecno-
cráticos, tais esforços alimentaram uma
resposta local que associa a emancipa-
ção feminina ao imperialismo ocidental.
Esse mecanismo foi repetido ao lon-
go da história moderna. Em primeiro
lugar, em sua forma mais brutal, cabia
aos governos coloniais promulgar leis
repressivas em nome da igualdade de
gênero. Na Ásia Central, por exemplo, a
União Soviética passou a proibir as mu-
lheres de usar véu já na década de 1930.
A França fez a mesma coisa na Argélia
em 1958.4 Embora essa política tivesse
como alvo as elites tradicionais e as au-
toridades religiosas, seu efeito foi prin-
cipalmente alimentar a confusão entre
progresso e colonialismo.
Em segundo lugar, a mesma lógica
funcionava dentro dos regimes autoritá-
rios, sob a inspiração ou a dependência
direta dos aliados do Norte. Essa versão
local de “despotismo esclarecido” tinha o
objetivo de libertar a mulher muçulma-
na sem libertar os cidadãos. Ela insere
a questão dos direitos das mulheres no
quadro de um poder autocrático que
busca usar o conservadorismo secular
como arma contra a oposição religiosa,
de modo a ampliar a base social do regi-
me. O xá do Irã, o antigo rei do Afeganis-
tão Mohammad Zaher Shah (1933-1973),
o ex-presidente da Tunísia Zine al-Abidi-
ne ben Ali (1987-2011) e o atual príncipe

herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed
bin Salman, recorreram todos a essa
estratégia. Ela é sempre uma forma de
conceder direitos limitados às mulheres
para facilitar o sufocamento de qualquer
reivindicação de democratização.5 Con-
ceder às mulheres alguns cargos ministe-
riais, reconhecer seus direitos à educação
e à vida econômica e definir o casamento
como um contrato entre parceiros iguais
é mais uma tática testada e comprovada
do que uma posição de princípio.
Esse feminismo de Estado cabe na
caixa de ferramentas de uma ordem au-
toritária. Ele explora os avanços positi-
vos consentidos às mulheres com vistas
a consolidar o status ou o prestígio do
regime. E limita a influência da religião
por meio de um secularismo impos-
to pelo topo da pirâmide social. É uma
estratégia que vimos em ação durante
a consolidação histórica de regimes de
partido único, como o Baath na Síria e
no Iraque, ou nas repúblicas naciona-
listas árabes. Hoje, ela continua sendo
a argamassa do governo autocrático de
Estados que usam a tradição para con-
trolar estreitamente a interpretação do
islã, como o Marrocos e o Egito.
Uma terceira versão desse mecanis-
mo, que não está entre as mais despre-
zíveis, vem das instituições multilaterais
e das ONGs atuantes no Oriente Médio e
no norte da África, que incansavelmen-
te mobilizam o registro da emancipação
da mulher e da igualdade de gênero.
Da ONU às menores ONGs locais, es-
ses atores apoiam ou criam grupos de
mulheres e incentivam os governos a
melhorar o acesso à educação e ao em-
prego para suas populações femininas.
Como outras formas de importação do
feminismo ocidental, essas campanhas
deixam de lado a democratização para
se concentrar em questões sociais e eco-
nômicas fragmentadas, contornando o
Estado, considerado inválido.
Direito ao aborto
Aborto livre
Aborto proibido
exceto em razões de saúde da mulher
sem exceção ou apenas
para salvar a vida da mulher
Fonte: Center for Reproductive Rights,
« The world’s abortion laws », jul. 2022.
Mulheres ministras
Participação das mulheres nos governos
(10 de janeiro de 2023)
0 Marrocos
5 Kuwait
10
15
20
22
Fonte: « Femmes en politique
33% 2023 », ONU Mulheres.
© Cécile Marin
Taxa de mulheres economicamente ativas
Participação das mulheres em atividade entre
aquelas com idade superior a 15 anos, em 2022
6 Israel
Esse tipo de abordagem também tem
o efeito de perpetuar o “tokenismo”, uma
política do simbólico que tende a apre-
sentar a emancipação limitada de um
estreito segmento da população como
uma onda que carrega toda a sociedade.
Lembramos o entusiasmo com que as
instituições ocidentais receberam a che-
gada de Benazir Bhutto ao poder no Pa-
quistão, na década de 1990, o que teve,
porém, um impacto bastante marginal
na realidade das desigualdades entre
os homens e as mulheres no país. Em
última análise, os direitos das mulheres
continuam limitados a um punhado de
microcosmos institucionais que desmo-
ronam assim que seus patrocinadores
ocidentais voltam para casa. O Afeganis-
tão abandonado ao Talibã em 2021 é um
amargo exemplo disso.
Seja de forma colonial, estatista ou
“humanitária”, a estratégia do feminis-
mo de cima para baixo esbarra sempre
em dois grandes problemas. Um deles
é a consolidação da fortaleza autocráti-
ca, ao reduzir o conceito de direitos das
mulheres a alguns setores do serviço
®
público. Ela não apenas ignora o proble-
ma mais geral das violações dos direitos
humanos e da ausência de liberdades
políticas, mas também autoriza a instru-
mentalização da causa das mulheres por
dirigentes autoritários. Podemos pensar
no exemplo do príncipe Mohammed bin
Salman, que concedeu às mulheres sau-
ditas o direito de dirigir um automóvel,
mas continua atirando ativistas feminis-
tas nas prisões do regime. A mensagem é
clara: os direitos das mulheres na Arábia
Saudita dependem exclusivamente do
poder da monarquia, e não – e princi-
palmente não – das reivindicações ex-
pressas pelas próprias mulheres. O outro
problema é que, ao impor de maneira
seletiva ideias importadas, tal estratégia
desperta a hostilidade das forças con-
servadoras locais, que aproveitam a sor-
Tunísia
Marrocos
Argélia
Líbia
Saara
Ocidental1
Mauritânia
Tunísia
Argélia
Líbia
Saara
Ocidental1
Mauritânia
Tunísia
JULHO 2023
te inesperada para se afirmarem como
guardiãs da autenticidade cultural. Isso
naturalmente reforça as correntes isla-
mistas mais intransigentes, que usam o
pretexto da tradição muçulmana para
se opor a qualquer modificação legal do
estatuto das mulheres.
OS NOVOS HORIZONTES
DO FEMINISMO
Para ter uma chance de se impor, as lutas
feministas no Oriente Médio e no norte da
África fariam bem em não mais se alinhar
às soluções prontas promovidas pelo Oci-
dente, voltando-se para os recursos e as
experiências locais. Não faltam preceden-
tes históricos a esse respeito. Eles podem
ser divididos em três categorias.
A primeira reúne as tentativas de
fundir secularismo e nacionalismo, a
exemplo do kemalismo na Turquia e, em
menor escala, do burguibismo na Tuní-
sia. Inspirada sem ação intrusiva pelo
Ocidente, a estratégia não tem para com
ele nenhuma dívida direta. O objetivo é
transformar completamente a socieda-
de, até seus fundamentos econômicos
e sua estrutura de classes, com vistas
à reconstrução da nação após o fim da
ocupação colonial. Nesse contexto, o
secularismo constitui um projeto deli-
berado de redefinição das atribuições
do Estado, e não uma arma nas mãos de
um poder que monopoliza e instrumen-
taliza a religião para fins autocráticos,
como é o caso hoje do Egito, do Marro-
cos e da Arábia Saudita. Mas, enquanto
o kemalismo almejava nada menos do
que eliminar toda a influência religiosa
das instituições políticas, o burguibismo
aspirava a controlar a religião para co-
locá-la a serviço de um esforço geral de
modernização, sobretudo por meio de
uma ijtihad de Estado (esforço de rein-
terpretação do Alcorão e da xaria).
A emancipação feminina está, por-
tanto, ligada ao secularismo, se consi-
Turquia
Líbano SíriaIraque
Irã
Israel Palestina
Jordânia
Kuwait
Egito Bahrein
Catar
Arábia
Saudita Emirados
Árabes Unidos
Omã
Sudão
Iêmen 500 km
Turquia
Síria
Líbano Iraque
Irã
Israel
Jordânia
Bahrein
Egito Catar
Arábia Emirados
Saudita Árabes Unidos
Omã
Sudão
Iêmen
Turquia
Líbano SíriaIraque
Irã
Le Monde Diplomatique Brasil 15
derarmos que separar a esfera política
da esfera religiosa é a melhor forma de
redefinir os laços sociais, reformar o
quadro jurídico e permitir às mulheres
uma participação plena na vida econô-
mica e na ação política. Tal projeto, con-
tudo, tem o inconveniente de despertar
a hostilidade dos círculos religiosos e
dos segmentos conservadores da socie-
dade. Para as elites tradicionais, como
os ulemás, abandonar suas prerroga-
tivas legais e seu dever moral significa
renunciar a toda uma parcela de sua
influência na prática da fé, no momento
mesmo em que novos atores religiosos,
como os islamistas, acusam o secularis-
mo de degradar a identidade cultural da
sociedade muçulmana. A oposição en-
tre secularismo e religião reflete, então,
uma profunda clivagem política, como
mostram a Turquia e a Tunísia hoje.
A segunda opção é o feminismo isla-
mista.6 Essa corrente de pensamento se
desenvolveu na década de 1970 no âm-
bito da reforma islâmica empreendida
pela Irmandade Muçulmana no Egito,
pelo Refah [Partido da Prosperidade] na
Turquia e pela Revolução Iraniana. Ele é
fruto de uma mudança sociológica, ten-
do os movimentos islamistas se difundi-
do nessa mesma classe burguesa urbana
à qual se dirigia o feminismo ocidental.
Ele também responde ao desejo expres-
so por muitos islamistas de se distanciar
de uma linha fundamentalista radical,
enraizada em uma leitura estreita da
xaria. Não é por acaso que todas as fe-
ministas islamistas mais proeminentes
têm um pai conhecido por seu islamis-
mo “duro”, como Zainab al-Ghazali no
Egito, Faezeh Hachemi Rafsanjani no
Irã, Soumaya Ghannouchi na Tunísia e
Nadia Yassine no Marrocos.
O movimento que elas encarnam se
distingue por uma combinação original
de fé e prática. Ao mesmo tempo que
adere aos atributos visíveis da piedade,
como o véu, a modéstia e a castidade,
ele também defende a integração das
mulheres ao espaço público por meio
da educação e da participação na eco-
nomia e na vida política. A exegese re-
ligiosa dessas feministas opõe-se a uma
leitura literal da fiqh (a jurisprudência
islâmica) e favorece uma interpretação
contextualizada da xaria. Ela é favorável,
por exemplo, a qualquer reforma que
garanta a igualdade das mulheres em
matéria de divórcio e herança.
Entretanto, o feminismo islamista
nunca produziu um movimento estru-
turado. Ele foi e ainda é tolhido pelas
forças conservadoras mais rígidas e pela
tentação do secularismo liberal. Ou cede
à pressão de radicais religiosos, como no
Irã, ou acaba renunciando a suas refe-
rências dogmáticas, como é o caso de
Saida Ounissi, na Tunísia. Incapazes de
reformar o islamismo por dentro e de se
aliar ao secularismo liberal por fora, as
feministas islamistas enfrentam um di-
lema impossível.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

Resta uma terceira e última possibi-
lidade: o feminismo democrático, que
baseia suas reivindicações de igualdade
no conceito de cidadania. Ele se insere
em um movimento mais geral em favor
da democracia, como durante as revoltas
populares da Primavera Árabe em 2011.
Surdo aos debates sobre a autenticidade e
sobre a aplicação da xaria, ele busca esca-
par das dicotomias – islã versus secularis-
mo, autenticidade versus ocidentalização
– que permeiam os discursos públicos so-
bre gênero. É por isso que suas militantes
se recusam a considerar o véu como um
obstáculo à igualdade: cada mulher deve
poder usar o que quiser sem que isso pre-
judique os direitos que lhe são devidos.
As feministas democráticas costu-
mam ser jovens. Elas expressam suas
ideias nas redes sociais e se destacam
das velhas ideologias, nacionalistas ou
religiosas, que estruturaram as eras po-
líticas passadas.7 Seu ativismo não se
articula em termos ideológicos, mas na
convicção de que a igualdade de gêne-
ro Direito
é umaao aborto da vida democráti-
premissa
ca: não é possível dizer-se cidadão sem
Aborto livre
kemalistas e burguibistas têm muita difi-
culdade de ser reproduzidos fora de seu
contexto histórico específico. O feminis-
mo islamista foi marginalizado pela cor-
rente que lhe deu origem. O feminismo
democrático, em compensação, fornece
um vocabulário e uma visão que permi-
tem às militantes não apenas redefinir a
noção de feminilidade, mas também in-
cluir tal noção em sua reivindicação de
democracia para todos.
Embora as revoltas da Primavera Árabe
de 2011 tenham falhado em suas tenta-
tivas de democratizar o Oriente Médio,8
elas abriram novos horizontes para o fe-
minismo democrático. Este sobreviveu
ao movimento nascido na Tunísia, pois
suas militantes ocupavam um espaço
politicamente sensível que não podia ser
desmantelado. No Egito, o marechal Ab-
del Fattah al-Sisi justificou parcialmente
seu golpe contrarrevolucionário de 2013
em nome de mulheres que se sentiram
ameaçadas pelo governo eleito da Irman-
dade Muçulmana. Tendo a proteção das
mulheres servido de álibi para sua desti-
tuição da democracia, o regime não pôde
tornar uma vocação acessível a todas e
a todos, como evidencia a proliferação
de escritos feministas nas redes sociais.
Sua resiliência foi facilitada pela migra-
ção econômica de muitos homens do
mundo árabe, bem como pelo impor-
tante lugar ocupado pelas mulheres na
economia informal. O refluxo do “ren-
tismo” também contribuiu para orientar
as mulheres para o mercado de trabalho,
principalmente nas monarquias do Gol-
fo, que estão em processo de nacionali-
zação de sua força de trabalho.
Essa militância de baixa intensidade
pode não ser tão visível quanto as mu-
danças políticas de larga escala, mas
nem por isso tem menos influência. Li-
gada às transformações sociológicas em
curso nos recantos mais recônditos da
vida privada, ela inevitavelmente acaba-
rá aparecendo na cena política e permite
que os cidadãos possam imaginar seus
direitos fora do campo do autoritarismo,
com a igualdade de gênero resultando
da implicação das forças sociais, e não
de manipulações
Turquia
autocráticas. Acima
de tudo, a articulação entre democra-
No Irã, ocorre o inverso. Vemos mulhe-
res com véu correrem em auxílio a suas
companheiras sem véu, nas manifesta-
ções em que protestam juntas contra a
brutalidade repressiva do regime. Lon-
ge de discutir sobre o uso do véu como
uma escolha pessoal, elas protestam
contra sua imposição a todas as mulhe-
res. Ao contrário do “feminismo de cima
para baixo” promovido na Arábia Saudi-
ta, a luta pela igualdade de gênero no Irã
é travada de baixo para cima.
A revolta provocada pela morte de
Mahsa Amini revelou quanto o Estado
iraniano se tornou prisioneiro de seu
próprio simbolismo. O véu não é tanto
um problema em si, mas um emblema
do conflito entre o regime clerical e uma
vasta porção da sociedade. O que foi ou-
trora um marcador cultural da Revolução
Islâmica se tornou hoje o ponto fraco do
regime. Se as autoridades iranianas abo-
lirem o uso obrigatório do véu, outras
concessões poderão ser necessárias para
conter uma multidão unida. Isso poderia
abrir as portas para mudanças drásticas.
Aqui, como em todo o Oriente Médio e

®
Tunísia Da mes- Síria
adotar uma visão igualitária do mundo. dedicar-se a atacar o feminismo. cia e Líbano
feminismoIraque pode ser decisiva
Irã para norte da África, a campanha pela demo-
Conscientes dos debates que atraves- Marrocos
ma forma, no Irã, a Revolução Islâmica Israel
derrubar a falsaPalestina
oposição entre tradição cracia exige repensar a religião e a se-
Aborto proibido
Argélia Jordânia
sam o feminismo ocidental,
exceto em razões de saúdeelas cuidam
da mulher trouxe consigo a promessa de eleições Líbia e modernidade. Para asKuwait feministas de- cularização no quadro de uma deman-
para não se deixar engolir por eles, pre- democráticas aliada a uma valorização Egito
mocráticas, a liberdadeBahrein
de expressão é da universal por direitos humanos que
sem exceção ou apenas Saara Arábia Catar
ferindopara redefinir essas
salvar a vida discussões em
da mulher das mulheres,
Ocidental 1 consideradas uma base a melhor garantiaSaudita de autenticidade
Emirados cul- transcende ambas as categorias.
sua própria linguagem e em seu próprio social do novo regime. Como pilares da tural, pois é a ela que aspiram Árabestodos
Unidosos
contexto. Elas concebem sua luta como Mauritânia
política eleitoral e dos movimentos so- cidadãos em busca da democracia. Omã *Hicham Alaoui é autor dos livros Security
Sudão
parte deCenter
Fonte: uma forluta mais Rights,
Reproductive ampla pela de- ciais, as mulheres iranianas, portanto, es- Esses processos Iêmen estão remodelando
500 km
Assistance in the Middle East: Challenges…
« The world’s
mocracia e abortion laws »,ajul.instrumentali-
rejeitam 2022. tavam no centro da mobilização popular. a vida política em toda a região. O véu é and the Need for Change [Assistência à se-
zação das mulheres pelos regimes au- Em toda a região, o feminismo demo- cada vez menos um marcador da modés- gurança no Oriente Médio: desafios... e a ne-
Mulheres ministras
tocráticos. Seu destino está, portanto, crático difunde-se pela sociedade ci- tia feminina
Turquia e cada vez mais um campo cessidade de mudança] (obra coletiva, organi-
Participação das mulheres nos governos
intimamente
(10 de janeiro ligado
de 2023)à democratização. vil desde 2011. Ele já está presente nas de batalha política em torno da cidadania. zada com Robert Springborg), Lynne Rienner
Tunísia Síria
redes sociais, na sociedade civil, nos Líbano divisionista
Seu caráter Iraque está gradualmen- Publishers, Boulder (Estados Unidos), 2023;
0 Marrocos Irã
Israel
O FEMINISMO círculos educacionais e nos debates pú-
Argélia
te desaparecendo. Na Tunísia, mulheres e Pacted Democracy in the Middle East. Tuni-
5 Jordânia
DEMOCRÁTICO DE AMANHÃ blicos. Essa mobilização abriu as portas Líbia sem véu desafiam o legado Kuwaitdo burgui- sia and Egypt in Comparative Perspective
10 essas possibilidades, apenas o Bahrein
De todas para novas personalidades da militância Egito ao defender suas irmãs
bismo de véu em
Catar [Democracia pactuada no Oriente Médio. Tu-
Saara
15 democrático pode construir
feminismo feminista,
Ocidental1 inclusive entre as jovens de nome dos direitosArábia humanos.Emirados
Tanto umas nísia e Egito em perspectiva comparativa],
Saudita Árabes Unidos
uma ponte
20 para o futuro. Produtos da origem rural ou desfavorecida. O femi- como as outras se mobilizam contra a Palgrave Macmillan, Londres, 2022.
Mauritânia Omã
ocupação
22 colonial e, depois, da constru- nismo deixou de ser uma ideologia ex- destruição da democracia pós-revolucio-
Sudão 1   L er Mitra Keyvan, “Les Iraniennes allument un
ção nacional Fonte: « Femmesos
pós-colonial, en politique
projetos clusivamente burguesa e urbana para se nária iniciada pelo presidente Kaïs Saïed.
33% 2023 », ONU Mulheres. Iêmen brasier social” [Mulheres iranianas incendeiam a
sociedade], Le Monde Diplomatique, nov. 2022.
2   Ler Sahar Khalifa, “Femmes arabes dans le piège
Taxa de mulheres economicamente ativas des images” [Mulheres árabes na armadilha das
Turquia imagens], Le Monde Diplomatique, ago. 2015.
Participação das mulheres em atividade entre
3   Para uma analogia com a situação na África
aquelas com idade superior a 15 anos, em 2022 Tunísia Líbano SíriaIraque Subsaariana, cf. Kago Komane, “Gay-bashing
Irã
6 Marrocos Israel Palestina in Africa is ‘a colonial import’” [O ataque aos
Argélia Jordânia gays na África é uma “importação colonial”],
12 Kuwait Daily Maverick, 25 jun. 2019.
Líbia
Bahrein
20 Egito Catar 4   Cf. Jean-Pierre Sereni, “Le dévoilement des
Saara femmes musulmanes en Algérie” [A retirada
Ocidental1 Arábia Emirados
35 Saudita Árabes do véu das mulheres muçulmanas na Argélia],
Unidos
50 OrientXXI, 13 set. 2016.
Mauritânia Omã 5   Ler Olfa Lamloum e Luiza Toscane, “Les femmes,
62% Sudão alibi du pouvoir tunisien” [Mulheres, um álibi para
Iêmen
Fonte: Organização Internacional do Trabalho. o poder da Tunísia], Le Monde Diplomatique, jun.
1998; e Florence Beaugé, “Une libération très
calculée pour les Saoudiennes” [Uma libertação
Índice das ilegalidades de gênero em 2021 muito bem calculada para as mulheres sauditas],
Turquia
Medida da desigualdade entre homens e mulheres Le Monde Diplomatique, jun. 2018.
em termos de saúde reprodutiva das mulheres, Síria 6   Cf. Françoise Feugas, “Ces féministes qui réinter-
autonomia e lugar no mercado de trabalho. O índice se Tunísia Líbano prètent l’islam” [As feministas que reinterpretam
Marrocos Iraque Irã
estende de 0 (igualdade) a 1 (desigualdade máxima). Israel o islã], OrientXXI, 5 set. 2014; e Mona Ali Allam,
Jordânia “Ces lectures féministes du Coran” [Leituras femi-
0,040 a 0,100 Argélia Kuwait
Líbia nistas do Alcorão], OrientXXI, 30 out. 2019.
Bahrein
0,150 a 0,310 Egito Catar 7   Ler Akram Belkaïd, “#MeToo secoue le monde
Saara
Ocidental1 Arábia Emirados arabe” [#MeToo sacode o mundo árabe], Le
0,425 a 0,500 Saudita Árabes Unidos Monde Diplomatique, ago. 2021.
8   Ler Hicham Alaoui, “Le triomphe fragile des
0,550 a 0,640 Mauritânia Omã contre-révolutions arabes” [O frágil triunfo das
Fonte: Programa das Nações Sudão contrarrevoluções árabes], Le Monde Diploma-
1. Reivindicado pelo Marrocos e pela Frente Polisário. Iêmen
0,820 Unidas para o Desenvolvimento. O Marrocos administra 80% desse território. tique, set. 2022.
Todas as notas são da redação.
© Cécile Marin

RUMO À JORNADA DE 69 HORAS
A outra face do
milagre coreano
Tecnologia de ponta, hits cantarolados em todos os continentes, séries e filmes
de sucesso mundial: a Coreia do Sul goza de uma imagem particularmente
positiva. Um pouco como se, em muitos domínios, Seul mostrasse o caminho
ao resto do mundo. Descobrir a realidade das condições de vida da população
local convida, na maior parte das vezes, a esperar que não seja esse o caso
POR RENAUD LAMBERT*, ENVIADO ESPECIAL
É
uma figura gasta da mídia tradi-
cional. Um contestador põe em
dúvida as virtudes da democra-
cia liberal ocidental? Basta res-
ponder “Então vai morar na Coreia do
Norte!” para trazer para seu lado os
que riem. A Península da Coreia ofere-
ce ao pensamento dominante um con-
traste eficaz para demonstrar a supe-
rioridade de duas opções: ao Norte, a
ditadura, a fome e o carrinho de mão;
ao Sul, a democracia, a abundância e
os semicondutores. De um lado, o con-
traste da cinzenta monotonia comu-
nista; de outro, um “modelo” a imitar,
como sugere, por exemplo, Louis Gal-
lois, um dos mais ilustres representan-
tes do patronato francês.1 O modelo de
um país tão pobre quanto a Índia nos
anos 1950, mas que desde essa época
se tornou a 12ª potência econômica
mundial e a quem a Bloomberg confe-
riu sete vezes o título de “país mais
inovador” entre 2014 e 2021. 2 Em resu-
mo, não um país, mas um “milagre”.
Existem, no entanto, diversas Coreias
do Sul. Aquela que fascina a mídia pode
se orgulhar de ver exércitos de colegiais
aprendendo línguas fora de qualquer
currículo escolar para se assemelhar a
uma estrela do K-pop, a variedade corea-
na de música hoje conhecida no mundo
inteiro: uma figura esbelta, um carinha
andrógino, renome internacional e um
telefone ultra-avançado na orelha. E
existe a outra Coreia do Sul: um país que
sua população apelidou de “inferno Jo-
seon”, segundo o nome da dinastia que
reinou na península de 1392 a 1910.
SONO
Metrô de Seul, 6h27. Das cinco pessoas
sentadas à nossa esquerda, três dormem
profundamente, o rosto esmagado con-
tra uma das mãos, a cabeça para trás,
imóvel contra a janela, ou então com a
nuca tombada para a frente. Do outro
lado do vagão, os seis passageiros estão
igualmente mergulhados nos braços de
Morfeu. Nenhum choque os incomoda,
nenhuma parada em uma estação os
perturba. Como acontece com a maior
parte dos trabalhadores do país, estão
esgotados. E é pouco provável que isso
se deva a uma louca noite de excessos:
uma pesquisa de 2021 sugeriu que um
morador de Seul em três não tivera rela-
ções sexuais havia mais de um ano.3
Os coreanos trabalham em média
®
1.910 horas por ano, uma das cifras mais
elevadas entre os países da Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimen-
to Econômico (OCDE), cuja média está
estabelecida em 1.716, contra 1.490 para
a França e 1.349 para a Alemanha.4 No
entanto, esse número global atropela a
realidade dos horários praticados pela
maioria, em um país que criou uma pa-
lavra para se referir à morte por esforço
excessivo: gwarosa.
No entanto, ainda se trabalha pouco
demais na Coreia, avalia seu presidente,
o conservador Yoon Seok-yeol, eleito por
um fio de cabelo em 2022. Ele sonha em
estender a semana de trabalho para 69
horas, contra 52 horas semanais no atual
momento. “Os empregados deveriam
trabalhar 120 horas por semana e repou-
sar depois”,5 explicou durante a campa-
nha presidencial. Ora, 120 horas corres-
pondem a 17 horas de trabalho por dia
em uma semana de sete dias, ou a 20 ho-
ras por dia em uma semana de seis.
“As empresas simplesmente não têm
os meios de satisfazer a demanda se os
trabalhadores se recusarem a trabalhar”,
sustenta Kim Ki-moon, presidente da
Federação das Pequenas e Médias Em-
presas da Coreia do Sul.6 De sua parte,
supostamente falando em nome da clas-
se operária, o diário conservador Dong-
-a Ilbo pergunta: “Por que o governo nos
privaria do direito de trabalhar mais?”.7
Só que, na Coreia, um mecanismo
permite à maioria das empresas pagar
um “extra por horas suplementares” in-
dependentemente do tempo de traba-
lho de fato realizado. Os trabalhadores
sabem disso, e o Dong-a Ilbo não pode
ignorá-lo: é bem pouco provável que um
aumento do tempo de trabalho se tradu-
za por um crescimento significativo dos
rendimentos. Quanto às férias, acerca
das quais o governo sugere que pode-
JULHO 2023
riam tornar-se tanto mais longas quanto
mais as semanas forem sobrecarregadas,
poucos acreditam nisso: 60% dos assala-
riados coreanos não utilizam todos os
seus dias de folga, na maior parte dos
casos por medo de perder o emprego.8
Entre as reivindicações do movimento
de trabalhadores coreano, uma é ouvida
com frequência: “Deixem-nos dormir!”.
GOLPE DURO
Park Chang-jin esforça-se para sorrir ao
nos contar sua história. Porém, mais de
oito anos depois dos fatos, fica claro que
a dor permanece viva. Em dezembro
de 2014, ele era chefe dos comissários
de bordo em um voo da Korean Air de
Nova York a Seul. No momento em que
o avião se dirigia para a pista de deco-
lagem, ele ouviu gritos: uma das pas-
sageiras da primeira classe estava cen-
surando uma colega sua. O motivo? As
macadâmias que a funcionária acabara
de lhe servir deveriam ter sido apresen-
tadas em um prato, e não no saquinho
da embalagem original.
Park foi em socorro da comissária de
bordo, explicou que a legislação obrigava
as companhias aéreas a servir os aperiti-
vos embalados antes da decolagem e ten-
tou acalmar a passageira. Esta, porém,
não quis saber de coisa alguma. Revelan-
do que era filha do presidente do conglo-
merado que controla a Korean Air, valeu-
-se de seu status para exigir que Park e a
comissária de bordo se ajoelhassem para
apresentar-lhe desculpas. Eles o fizeram,
mas isso não foi o suficiente. Cho Hyun-
-ah, a passageira, conseguiu que o avião
fizesse meia-volta para que Park fosse
substituído por outro comissário.
Cho recebeu uma pena de prisão de
cinco meses por violação das leis sobre
segurança aérea. Park, por sua vez, foi
objeto de uma campanha de persegui-
ção no seio da empresa. Ao fim de diver-
sos anos, ele acabou por pedir demissão.
“Minha história revela alguma coisa so-
bre a sociedade coreana, sobre o modo
como se comporta a elite econômica
desse país”, conclui Park, no inglês de
comissário de bordo que ele conservou.
Le Monde Diplomatique Brasil 17
“Porque, se meu relato é hoje conhecido
pelo grande público, quantas pessoas
vivem a mesma coisa sem que jamais se
ouça falar sobre isso?”
94,9
É uma manifestação que pode ser vista
um pouco por toda parte. Só que, aqui,
os participantes têm o cuidado de não
ocupar as faixas de pedestre, de modo a
não interromper o fluxo: uma precaução
rara em outros lugares do mundo. A re-
união foi organizada para protestar con-
tra o projeto de ampliação da semana
de trabalho para 69 horas. Foi montado
um tablado, sobre o qual se sucedem os
oradores. À esquerda, um caminhão da
polícia chama a atenção. Por trás da ca-
bine de comando do veículo, um imenso
painel exibe números: 85,9, 81,2, 92,7...
Surpreso, interrogo: o dispositivo mede
os decibéis produzidos pela sonorização.
Aqui, as manifestações são toleradas
apenas até a altura de 95 decibéis, ou
seja, o ronco de um secador de cabelos.
Os contraventores se expõem a penas de
prisão que podem atingir seis meses.
LABIRINTO
Em junho de 2022, uma parte dos su-
bempreiteiros de uma instalação naval
de Daewoo, um dos maiores conglome-
rados coreanos, entrou em greve para
protestar contra um corte de salário de
30% durante a pandemia. Na Coreia,
mais da metade dos trabalhadores é
composta dos chamados “irregulares”.
A categoria abrange os precários, os
“pseudoautoempreendedores”, os sem-
-documentos (particularmente nume-
rosos nos estaleiros) ou ainda as pessoas
submetidas a dispositivos de subcon-
tratação em cascata, todos privados dos
direitos e da proteção social concedidos
pelos grandes grupos. “No entanto, na
maior parte dos casos, eles são treinados
pela grande empresa para a qual traba-
lham”, enfatiza Chong Hye-won, do sin-
dicato da metalurgia (KMWU).
A direção da Daewoo organizou uma
repressão violenta aos grevistas, que
ocuparam o estaleiro. O presidente
Yoon, para quem “as pessoas que fazem
greve são tão perigosas quanto as ogivas
nucleares norte-coreanas”,9 ameaçou
enviar a polícia antimotim para disper-
sar os que protestavam. “Ele se pergun-
tou em voz alta”, recorda Chong: “Será
que essa greve é realmente legal?”
Na Coreia, mil e uma armadilhas li-
mitam o direito de greve. Além da proi-
bição de “entraves aos negócios”, pas-
síveis de prisão, não se está autorizado
a fazer greve contra outro empregador
que não seu próprio: uma disposição
que transforma o mecanismo de tercei-
rização em um escudo que protege os
grandes grupos contra qualquer inter-
rupção do trabalho. Desse modo, “ser
um dirigente sindical implica, em um
momento ou outro, ir para a cadeia”,
resume Yang Kyeung-soo, o presidente
18 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
da Confederação Coreana dos Sindica-
tos (KCTU), ele próprio condenado a
um ano de detenção por ter organizado
uma greve durante a pandemia. Desde
a criação de seu sindicato, em 1995, to-
dos os seus doze predecessores foram
igualmente presos.
Nessas condições, o vice-presidente
do sindicato dos trabalhadores irregu-
lares do estaleiro de Daewoo assumiu
outra forma de protesto: ele soldou uma
gaiola de 1 metro cúbico no fundo do
casco de um petroleiro e se fechou den-
tro dela, inscrevendo-se em uma longa
tradição coreana de sacrifício do corpo
para denunciar a violência patronal.
Como acontece todas as vezes, a em-
presa exerceu pressão sobre os assala-
riados “regulares”, com o objetivo de que
eles não fossem solidários com os pre-
cários, cujas exigências “ameaçariam” a
empresa. O argumento pesou, a ponto
de o Banco Coreano de Desenvolvimen-
to, uma instituição pública, anunciar
de sua parte que exigiria da Daewoo o
reembolso de todas as suas linhas de
crédito se a greve continuasse – o que
equivale a uma sentença de morte.
Os assalariados reivindicavam inicial-
mente a recuperação dos 30% de salário
que haviam perdido. Terminaram por
aceitar um aumento de 4,5% em suas
remunerações, com a promessa de uma
“discussão futura” sobre as cascatas de
terceirização. De sua parte, a empresa
apresentou queixa contra cinco dirigen-
tes sindicais, exigindo que eles reembol-
sem – com seus próprios recursos – as
perdas ligadas a diversos atrasos da pro-
dução: 47 bilhões de wons (R$ 172 mi-
lhões). As pessoas visadas recebem sa-
lário mínimo, quer dizer, uns 2 milhões
de wons (R$ 7,3 mil) por mês... A justiça
ainda deve se pronunciar sobre a ad-
missibilidade da queixa da empresa. “O
mais provável é que nossos camaradas
tenham de pagar”, avalia Chong...
INCOMPREENSÃO
A cada vez, a pergunta surpreende. No
entanto, ela volta regularmente, até mes-
mo na boca de militantes sindicais: “Mas
por que os franceses querem se aposen-
tar mais cedo? Aqui, os trabalhadores
gostariam, ao contrário, de adiar a idade
da aposentadoria. Idealmente, até os 73
anos”. Pensamos de início em um pro-
blema de tradução, antes de compreen-
dermos que o problema não reside nas
palavras, e sim nas instituições. É que a
aposentadoria, tal como foi construída
aqui, difere sensivelmente do projeto
que a maioria dos franceses defende.
Na Coreia do Sul, a idade oficial da
aposentadoria é 60 anos. Contudo, é
preciso esperar até os 65 anos para re-
ceber a pensão paga pelo Estado. Sem
descontos, esta equivale a cerca de 30%
dos últimos salários recebidos. Na maior
parte das vezes, a pensão mergulha na
pobreza aqueles que a recebem. A quase
totalidade dos coreanos tem, portanto,
de trabalhar depois da idade legal de
aposentadoria em empregos tão precá-
rios e mal pagos que a expressão corea-
na que melhor traduz “trabalho de mer-
da” é “trabalho de velho”.
Contudo, se a idade em que as empre-
sas podem se desembaraçar de seus em-
pregados é oficialmente 60 anos, desde
meados da década de 2010 o poder in-
troduziu um dispositivo que complica
ainda mais a vida dos idosos. Tradicio-
nalmente, o modelo hierárquico corea-
no, herdado do confucionismo, prevê
que as remunerações aumentem con-
forme o assalariado fique mais velho. No
entanto, há uns dez anos, o Estado au-
torizou as empresas a reduzir as remu-
nerações dos trabalhadores mais idosos
(em geral, tendo em torno de 56 anos),
sob o pretexto de favorecer o emprego
dos jovens. Assim, os últimos anos de
trabalho – os que contam para o cálculo
da aposentadoria – são caracterizados
por uma queda dos salários, por vezes
amputados de um terço. Enquanto as
pessoas com mais de 65 anos represen-
tam a metade da população pobre,10 a
®
Coreia do Sul exibe uma vertiginosa taxa
de suicídio, de 61,3 em 100 mil entre os
que têm mais de 80 anos.
Diante da prefeitura no bairro de
Seong-buk, em Seul, uma bandeirola foi
erguida no âmbito de uma campanha de
luta contra o suicídio das pessoas ido-
sas sem trabalho, algo particularmente
preocupante entre os homens: “Se você
conhece um homem solitário de mais de
50 anos, avise sua prefeitura”.
DÚVIDA
Kim Sung-han, o conselheiro do presi-
dente Yoon para a segurança nacional
até março de 2023, obteve um doutora-
do em Ciência Política na Universidade
do Texas; seu primeiro assistente para a
segurança nacional, Kim Tae-hyo, tem
doutorado em Ciência Política pela Uni-
versidade de Chicago; seu secretário para
a segurança econômica, Wang Yun-jong,
tem doutorado em Economia por Yale; e
seu ministro da Unificação, Kwon Youn-
g-se, é mestre em Administração Pública
pela Kennedy School de Harvard.
No aeroporto de Seul, os norte-ame-
ricanos que chegam gozam de um cor-
redor de imigração exclusivo. Ao entra-
rem na cidade, eles podem sintonizar
uma rádio norte-americana, The Eagle
[A Águia], da base norte-americana de
Itaewon, situada em pleno coração da
capital. No entanto, a maior parte segue
viagem um pouco mais para o sul. De-
pois de uma hora e meia de automóvel,
eles chegam... à Califórnia, o estado nor-
te-americano que consta no endereço
oficial de Camp Humphreys. Trata-se
da maior base norte-americana fora dos
Estados Unidos, situada na cidade bas-
tante coreana de Pyeongtaek.
Mais de 28 mil soldados vivem aqui.
Essa “cidade dentro da cidade” – dota-
da de diversas escolas, um colégio, uma
universidade, uma imensa piscina com
tobogãs, um cinema, um supermerca-
do, um campo de golfe... – abriga 43 mil
habitantes, contando as famílias dos
soldados e os trabalhadores coreanos.
“A Coreia do Sul despende o equivalen-
te a US$ 1 bilhão por ano para contri-
buir com o funcionamento da base”,
explica-nos Hyun Pilkyung, diretor do
Instituto de Reapropriação das Bases
Militares Norte-Americanas. “Os preços
da eletricidade, da água e do gás usados
pelos militares norte-americanos são
os mais baixos do país. E, quando um
soldado norte-americano comete um
delito, ele se beneficia de uma justiça
específica: a da base.”
Instalação dos Estados Unidos mais
próxima da China, Camp Humphreys
abriga baterias de mísseis Patriot, es-
quadrões de helicópteros Apache, rada-
res superpoderosos... Quando um avião
de reconhecimento U2 decola de uma
segunda base, a um punhado de quilô-
metros ao norte, o estrondo de seus rea-
tores rasga o céu. “A cada vez, as pare-
des tremem por uma distância de vários
quilômetros”, conta-nos Hyun. No en-
tanto, nenhum caminhão da polícia está
presente para medir os decibéis. É que a
base é um trunfo decisivo para o Exérci-
to norte-americano; aliás, sua existência
justifica que os Estados Unidos estejam
vigilantes para não deixar que se acabe o
conflito com a Coreia do Norte, temen-
do que a paz os obrigue a fazer as malas.
Outro vestígio do conflito com o norte:
em caso de conflito armado, o coman-
do do Exército sul-coreano responde ao
chefe do Estado-Maior norte-americano.
Assim, alguns coreanos se interrogam: a
Coreia do Sul é um país com uma base
norte-americana no meio ou uma base
norte-americana com um país ao redor?
LONGE DE GANGNAM
“O milagre coreano, o senhor o tem
diante dos olhos.” Yoon Yong-ju (ne-
nhum laço de parentesco com o presi-
dente do país) acaba de nos receber em
sua casa: um ambiente de 3 metros por
3, no qual se entra por uma porta de
cerca de 1,30 metro de altura. Nenhum
problema para Yoon: ele teve as duas
pernas amputadas. “Tenho a sorte de
viver em uma das habitações mais agra-
dáveis do bairro: disponho de luz e de
uma sala bastante grande.”
Estamos a dois passos da estação fer-
roviária de Seul, um bairro onde os alu-
guéis estão entre os mais altos da capi-
tal. Mas não no aglomerado urbano em
que nos encontramos, uma espécie de
favela onde aterrissaram os que sobra-
ram do prodígio econômico coreano.
De início, temos dificuldade em acre-
ditar, mas Yoon diz a verdade: seu aloja-
mento parece luxuoso em comparação
com aqueles que os proprietários que
moram em Gangnam – um dos bairros
mais caros de Seul – alugam aqui por
190 mil wons (R$ 700), ou seja, um quar-
to da transferência paga pelo Estado
coreano aos mais desfavorecidos: quar-
tos de 1,5 metro e por 2, sem janela, em
edifícios degradados e, na maioria dos
casos, sem aquecimento.
“Eu era condutor de escavadora quan-
do explodiu a crise asiática de 1997”,
conta Yoon Yong-ju. Na época, o FMI
impôs uma severa cura por austerida-
de à Coreia do Sul. De sua parte, as em-
presas aproveitaram a derrocada para
promover demissões, antes de recrutar
novamente os trabalhadores utilizando
contratos precários. “Fui mandado em-
bora de minha empresa. Caí bem rápido
na miséria e no álcool.” Ele é diabético
e seu vício logo conduziu à amputação
dos membros inferiores. “Cheguei a este
bairro pensando que aqui ficaria por al-
guns meses, o tempo de me recuperar...
Faz dezoito anos.”
Umas mil pessoas moram aqui. “To-
dos são semelhantes a mim”, prossegue
Yoon Yong-ju. “Não são marginais: é
gente que trabalhou duro para recupe-
rar o país depois da guerra. Gente que
se sacrificou e que o Estado deixou sem
nada. Nenhum de nós recebe aposenta-
doria, porque ninguém contribuiu por
tempo suficiente.” Atualmente sóbrio,
Yoon dedica-se à pintura, graças ao
apoio de um amigo fotógrafo. De resto,
ele tornou-se presidente da associação
do bairro. “Tentamos manter as trocas,
os contatos entre os moradores, para
que as pessoas conservem a vontade de
viver. Há muita depressão por aqui.”
Durante seu mandato, o presidente
Moon Jae-in aumentou o benefício pago
aos coreanos mais pobres. “Imediata-
mente, os proprietários de nossos aloja-
mentos aumentaram na mesma propor-
ção o aluguel que devíamos lhes pagar.”
ENCONTRO
“Ele na verdade não estava com um ar
muito contente!” A tradutora que há
alguns dias nos acompanha está per-
turbada pela mensagem que acaba de
receber. Alguns minutos mais cedo, Lee
Jae-young, um deputado do partido no
poder, o Partido do Poder do Povo (PPP),
com quem íamos nos encontrar no dia
seguinte, havia escrito para lhe informar
que o ponto de encontro não seria mais
no centro de Seul, mas a uma hora de
transporte dali. De nossa parte, isso era
impossível de organizar, e polidamente
sugerimos uma entrevista por e-mail. A
nova chamada visava manifestar a recu-
sa de Lee Jae-young: ele nos encontraria
na segunda-feira seguinte, às 15h.
Os olhos da tradutora se arregalaram
um pouco mais quando lhe contamos
que esse novo encontro não nos convi-
nha devido a compromissos prioritários.
“Poderia agradecer-lhe calorosamente a
disponibilidade e informá-lo de que vou
vê-lo por ocasião de minha próxima visi-
ta à Coreia?” A jovem atendeu ao pedido,
e logo seu telefone tocou de novo. A con-
versa foi breve: “Detesto ter de lhe dizer

isso, mas Lee Jae-young ligou para o di-
retor-geral do departamento de assuntos
internacionais do PPP para dizer que o
senhor cancelou a entrevista e que talvez
seja mal-intencionado ou hostil para com
o PPP. Foi o diretor-geral quem acabou de
me ligar. Ele disse que o senhor deve en-
viar uma carta em inglês a Lee Jae-young
para lhe apresentar desculpas”.
Em vez de um e-mail de desculpas,
Lee recebeu alguns dias depois um
e-mail agradecendo-lhe seus preciosos
esclarecimentos sobre as relações entre
a mídia e a política na Coreia.
ANTICOMUNISMO
No fim de 1945, a esquerda coreana
começou a construir as bases de um
Estado soberano e democrático. A ca-
pitulação do Japão, que ocupava o país
desde 1910, a deixou em uma posição
de força. O processo de industrializa-
ção empreendido na Coreia por Tóquio
conduziu ao surgimento de uma classe
operária que não dissociava questões
sociais e anti-imperialismo, ao passo
que “os esforços do Japão para associar
qualquer agitação operária a um com-
plô comunista fizeram crescer o prestí-
gio dos comunistas e contribuíram para
dar origem a um movimento de traba-
lhadores particularmente politizado”,
como observou o pesquisador Kevin
Gray.11 Desde 1945, foi montado um
comitê para a preparação da indepen-
dência coreana, com ampla presença de
militantes operários aprisionados pelo
Japão e recém-libertados.
Depois da conferência de Moscou
que, ainda em 1945, organizou a divisão
do país, os Estados Unidos se permiti-
ram uma reação brutal ao sul do parale-
lo 38. O Governo Militar do Exército dos
Estados Unidos na Coreia (USAMGIK),
que passou a controlar o país, dissolveu
as organizações populares, reprimiu as
greves e apelou a ex-colaboradores do
ocupante japonês para tomar as rédeas
do Estado. Desde então, o anticomunis-
mo – forjado por Washington – tornou-
-se “o princípio central de legitimação
ideológica do Estado sul-coreano”, ex-
plica o historiador Jang Jip Choi.12
Entre 1948 e 1949, na ilha de Jeju, a
repressão de um levante popular que as
autoridades norte-americanas (e depois
o ditador Rhee Syngman, que Washing-
ton colocou no poder) acusaram de ser
“comunista” fez mais de 30 mil vítimas
– o equivalente a 10% da população da
ilha. Durante anos, as masmorras do
país regurgitaram antigos “partisans”,
engajados na luta pela libertação na-
cional por ocasião da Guerra da Coreia
(1950-1953). Foram submetidos à tor-
tura para que “renegassem” suas con-
vicções anteriores. “Eu deveria assinar
uma declaração me comprometendo a
estar na primeira linha da luta pela erra-
dicação do comunismo”, conta-nos Ahn
Hak-sop, de 94 anos, dos quais perto de
43 passados na prisão. “Em cada sessão
COREIA DO SUL
População total
• 2022: 51,74 milhões
• 2038 (projeção):
menos de 50 milhões
• 2062 (projeção):
menos de 40 milhões
População ativa: 28 milhões
Taxa de sindicalização
• Global: 14%
• Empresas de mais de
300 trabalhadores: 46,3%
• Empresas de 100 a
299 trabalhadores: 10,4%
de tortura, eu desmaiava. Ao recobrar os
sentidos, a primeira coisa que observa-
va eram minhas mãos: havia tinta nelas?
Teriam tentado colocar minhas digitais
em uma falsa declaração de conversão?
®
Se isso tivesse acontecido, eu teria per-
dido tudo.” Na década de 1980, a dita-
dura estruturou uma rede de campos
de “reeducação” nos quais foram inter-
nadas mais de 40 mil pessoas, em sua
maioria suspeitas de comunismo.
A partir de 1987, a transição para a
democracia transformou os métodos,
não o projeto: “Em minha escola primá-
ria”, relata Seo, um militante de uns 20
anos que prefere guardar o anonimato,
“a gente recebia regularmente repre-
sentantes do governo, dos serviços de
informações, até mesmo pessoas que
haviam escapado da Coreia do Norte.
Todos vinham nos explicar que o co-
munismo era uma ameaça e que devía-
mos fazer de tudo para erradicá-lo”. O
termo Ppalgaengi, literalmente “verme-
lhinho”, permanece um insulto, desig-
nando toda pessoa que rejeita a ordem
socioeconômica em vigor na Coreia do
Sul. Após a virada neoliberal imposta
ao país no turbilhão da crise asiática de
1997, basta defender uma organização
da sociedade que não dependa intei-
ramente do mercado – uma modalida-
de de Estado de bem-estar social, por
exemplo – para merecer a etiqueta, que
pode conduzir à prisão.
As disposições principais da Lei de
Segurança Nacional (LSN) instaura-
da por Rhee em 1948 permanecem
em vigor. Seu artigo 7º pune “qualquer
pessoa que louve, incite a apoiar ou di-
funda as atividades de organizações an-
tigovernamentais”, quer dizer, a Coreia
do Norte e seus apoiadores, sabendo-se
que, aos olhos das autoridades do sul,
denunciar o capitalismo equivale, em
muitos casos, a apoiar Pyongyang. Os
partidos que se declaram comunistas
são proibidos, e o marxismo é tolerado
unicamente nos laboratórios universi-
tários. Em uma ginástica mental que,
JULHO 2023
• Empresas de 30 a
99 trabalhadores: 1,6%
• Empresas de menos de
30 trabalhadores: 0,2%
Mortes ligadas a
acidentes de trabalho
(em 2018, última cifra disponível):
7,65 por 100 mil
Número de suicídios
reconhecidos como ligados
às condições de trabalho (2021): 88
Número de sindicalistas
Confederação Coreana de
Sindicatos (KCTU) presos: 20
nas bancadas de televisão ocidentais,
seria antes associada ao “totalitarismo
norte-coreano” do que ao “milagre sul-
-coreano”, criticar a LSN pode ser consi-
derado uma violação da LSN.
ESPERANÇA
Entre outubro de 2016 e março de 2017,
a população coreana tomou as ruas para
protestar contra um escândalo de cor-
rupção que atingiu a presidente Park
Geun-hye. Maciço, o movimento foi logo
batizado de Revolução das Velas. As ma-
nifestações provocaram a destituição de
Park e em seguida a eleição de Moon Jae-
-in, em 10 de maio de 2017. Proveniente
do Partido Democrata, menos à direita
que a formação conservadora, o homem
encarnou a esperança de um aprofunda-
mento da democracia. Um de seus com-
promissos seduziu as mentes: terminar
com o precariado na função pública.
“Em coreano, existe uma expressão
que poderia ser traduzida como ‘tor-
tura da esperança’”, explica-nos Jin
Youngha, militante sindical da KCTU.
“Equivale a acenar com uma promessa
que se sabe que não será cumprida. Foi
o que se passou.”
Logo após tomar posse, Moon se di-
rigiu ao aeroporto de Incheon, perto de
Seul, para encontrar trabalhadores pre-
cários do setor público e manifestar sua
intenção de cumprir a palavra. “Como
acontece com muita frequência, a maio-
ria das pessoas estava contratada por
empresas terceirizadas, elas próprias li-
gadas ao Estado por meio de contratos de
duração limitada”, explica Jin. “Quando
terminava um contrato com a terceiriza-
da A, o Estado assinava um novo contrato
com a terceirizada B. Os trabalhadores de
A eram demitidos.” Como as indeniza-
ções por demissão começam a partir do
12º mês de trabalho, a maioria dos con-
tratos durava onze meses. “Por ocasião
da visita de Moon, alguns trabalhadores
choraram de alegria”, recorda Jin. “De seu
lado, Moon prometeu ‘enxugar as lágri-
mas’ dos trabalhadores precários.”
Le Monde Diplomatique Brasil 19
Na prática, Moon impôs à “terceiriza-
da B” conservar os assalariados da A; as
condições de trabalho, porém, não mu-
daram. “Os contratos permanecem na
maior parte dos casos com um prazo in-
ferior a doze meses, e a cada renovação
as pessoas são consideradas assalaria-
dos novos: não adquirem direito algum”,
explica-nos Jin. “Moon sem dúvida su-
primiu uma forma de precariedade, mas
quebrou a esperança em uma melhoria
nas condições de trabalho das pessoas.
Isso é um progresso?”
PACIÊNCIA
Eles estão ali. Noite e dia, eles estão
ali. Pode chover, ventar forte ou cair
neve, eles estão ali. A multidão passa,
por vezes incrédula, mas eles estão ali.
Diante da embaixada norte-americana,
militantes do Partido da Democracia
Popular (PDP) se revezam desde 2016
para exigir a partida dos Estados Uni-
dos, “porque, enquanto os norte-ame-
ricanos estiverem aqui, os coreanos
não serão livres”. Quem sabe então a
vida se tornará mais doce no País da
Manhã Serena. Por ora, a Coreia do Sul
está morrendo. Ela apresenta a menor
taxa de natalidade do mundo, com 0,78
filho por mulher.
*Renaud Lambert é jornalista do Le Mon-
de Diplomatique.
1   “ Pour réindustrialiser l’Europe, Louis Gallois
prône le modèle coréen” [Para reindustria-
lizar a Europa, Louis Gallois preconiza o
modelo coreano], Agência France Presse,
Paris, 16 jun. 2021.
2   Jacob Fohtung, “How South Korea became the
‘most innovative country’ in the world” [Como a
Coreia do Sul se tornou o “país mais inovador”
do mundo], 9 nov. 2021. Disponível em: www.
christenseninstitute.org.
3   Yoon Ja-young, “One in three Seoulites have
sexless life: study” [Pesquisa: um em três ha-
bitantes de Seul tem uma vida sem sexo], The
Korea Times, Seul, 6 jul. 2021.
4   “Hours worked” [Horas trabalhadas], OECD
Data. Disponível em: https://data.oecd.org/
emp/hours-worked.htm.
5   Citado por Nam Hyun-woo, “Workweek reform
plan likely to fizzle out” [Plano de reforma da se-
mana de trabalho vai provavelmente fracassar],
The Korea Times, Seul, 25 mar. 2023.
6   J un Ji-hye, “Korea pushes to raise cap on
maximum weekly work hours” [A Coreia em-
purra para elevar o patamar no máximo de
horas de trabalho semanais], The Korea Ti-
mes, 6 mar. 2023.
7   “Workers’ rights to work flexibly” [Direitos dos
trabalhadores de trabalhar com flexibilidade],
Dong-a Ilbo, Seul, 7 mar. 2023.
8   “Return to overwork” [Retorno ao excesso de
trabalho], The Korea Times, 8 mar. 2023.
9   “Labor reform plan” [Plano de reforma do traba-
lho], The Korea Times, 14 dez. 2022.
10  “Korea Labor Policy Agenda 2020” [Agenda da
política de trabalho da Coreia – 2020], Korea
Labor & Society Institute/Friedrich Ebert Stif-
tung, Seul, set. 2020.
11  Kevin Gray, Labour and Development in East
Asia. Social Forces and Passive Revolution
[Trabalho e desenvolvimento no Leste da Ásia.
Forças sociais e revolução passiva], Routledge,
Londres, 2014.
12  Citado por Lee Nam-hee, The Making of Mi-
jung. Democracy and the Politics of Repre-
sentation in South Korea [A feitura de Mijung.
Democracia e a política de representação
na Coreia do Sul], Cornell University Press,
Ithaca, 2009.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

FIANÇA, O PILAR DO SISTEMA JUDICIAL DOS ESTADOS UNIDOS

Liberdade com
fins lucrativos
Com frequência indispensável para evitar uma detenção preventiva, a fiança
representa uma bênção para diversos atores, entre os quais os bail bondsmen,
que se responsabilizam pelo pagamento junto aos tribunais. As seguradoras
especializadas nesse nicho obtêm com isso lucros apetitosos, em um contexto
no qual as pressões se multiplicam para pôr fim a um sistema desigual

POR CHARLOTTE RECOQUILLON*

“E
u lhe concedo a liberdade
sob fiança. O montante fica
estabelecido em US$ 10 mil”,
anuncia o juiz a Jackie Bro-
wn, comissária de bordo detida por ter
transportado clandestinamente di-
nheiro no filme de mesmo nome de
é pouco provável. A segunda, ficar aqui
até seu processo. Isso pode levar um ano,
até mais...” Antes de uma reforma ado-
tada em 2019 no estado de Nova York,
um acusado permanecia prisioneiro em
média 147 dias à espera de seu processo.1
De acordo com o think tank Prison Poli-

Quentin Tarantino (1997). Frequente
nos filmes e séries policiais realizados
nos Estados Unidos, a cena em que um
magistrado de toga preta bate o martelo
e anuncia uma soma por vezes exorbi-
tante impregna as imaginações, a ponto
de as pessoas não perguntarem mais o
que ela dissimula. Ela baliza, no entan-
to, uma etapa-chave do sistema judicial
dos Estados Unidos. Uma etapa que, co-
mo todas as outras, produz pesadas de-
®
cy Initiative, haveria atualmente mais de
420 mil pessoas em detenção temporá-
ria nos Estados Unidos;2 essa população
representa três quartos dos detidos na
Califórnia.3 Caso se levem em conta as
entradas e saídas, mais de 2 milhões de
pessoas estão envolvidas nesse circuito a
cada ano no país.
BONS SAMARITANOS?
Motor do encarceramento em massa, o

i l t ro
sigualdades, mas constitui igualmente, número de pessoas aprisionadas antes
ia F
para alguns, uma fonte de lucros. do julgamento multiplicou por quatro ênc
Em princípio, a fiança visava garantir desde 1980. Ora, esses acusados são
i /Ag

que o acusado comparecesse a seu pro- mais frequentemente condenados que

riW

cesso. Se avaliar que um acusado não aqueles que se apresentam livres ao tri-
©P

apresenta risco algum de fuga ou de re-
incidência, o juiz pode decidir libertá-lo,
sem condições ou impondo uma fiança
cujo montante varia conforme a cate-
goria da infração. Uma vez terminado
o processo, se o acusado se apresentou
a todas as audiências, a lei prevê que
lhe seja restituída a totalidade da soma
paga, independentemente de ele ser
culpado ou inocente. Na prática, porém,
os juízes gozam de grande liberdade. Po-
dem, principalmente, reter uma parcela
para a indenização das vítimas ou para o
financiamento das diligências judiciais.
Assim, numerosos acusados jamais re-
cuperam a totalidade de seu depósito.
Ainda que a oitava emenda da Cons-
tituição determine que o montante das
fianças não deve “ser excessivo”, muitos
não têm como pagá-las. Assim, os mais
desafortunados precisam permanecer na
prisão, independentemente da gravidade
das infrações a eles atribuídas, e pouco
importa a presunção de inocência. E isso
pode durar dias, semanas, até mesmo
meses ou anos. “Há duas opções”, resu-
me o juiz para Jackie Brown. “A primeira,
pagar sua fiança à Corte e ser libertada de
imediato. No entanto, visto o montante,
bunal; eles recebem penas mais longas,
especialmente por ocasião dos procedi-
mentos de se declararem culpados.4 Esse
sistema produz, além disso, numerosas
discriminações. Para infrações compa-
ráveis, são atribuídas aos afro-america-
nos e aos hispânicos fianças respectiva-
mente superiores em 35% e 19% às dos
homens brancos.5 Violência, estigma so-
cial, deterioração da saúde mental, per-
da de emprego ou da guarda de um filho,
até mesmo de um visto de estadia... São
catastróficas as consequências de uma Na falta de benfeitores generosos, os nhias de seguros, como a FairFax Finan-
detenção. Por isso, todos os que podem acusados pobres se voltam para as agên- cial, que pagam a fatura, se necessário.
pagam sua fiança em dinheiro vivo e cias de “fiadores de caução judicial”, os Os serviços dos bondsmen tornaram-
preparam sua defesa em casa. bail bondsmen, à imagem do truculento -se indispensáveis. Segundo o think tank
Os que não dispõem de recursos (quer personagem de Max Cherry em Jackie Prison Policy Initiative, o montante mé-
dizer, quase todos os acusados) encon- Brown. Em troca de uma comissão não dio das fianças infligidas às pessoas em
tram por vezes um bom samaritano. reembolsável, em geral entre 10% e 15% detenção provisória eleva-se a US$ 10
Em 1963, um empresário negro pagou do montante da fiança (quanto mais gra- mil, enquanto a renda média dessa po-
a fiança de US$ 5 mil exigida de Martin ve for a infração atribuída, mais o cliente pulação é de US$ 15 mil ao ano para os
Luther King, encarcerado na prisão de será interessante), os bondsmen se res- homens na faixa dos 23 aos 39 anos, e de
Birmingham por haver conduzido ações ponsabilizam junto aos tribunais, per- US$ 11 mil para as mulheres. É impossí-
não violentas contra a segregação racial. mitindo que os acusados permaneçam vel para eles reunir somas tão vultosas,
Em 2015, os artistas Jay-Z e Beyoncé livres enquanto aguardam o processo. e mesmo conseguir uma fração dessas
contribuíram para a libertação de ma- Esses fiadores só devem desembolsar o quantias leva com frequência as famílias
nifestantes que protestavam contra a valor da fiança em caso de ausência do a se endividarem, a se privarem do neces-
violência policial em Baltimore. Contu- acusado à audiência. Na prática, transfe- sário, a hipotecar seus bens. É, portanto,
do, esses casos são evidentemente raros. rem esse risco a um punhado de compa- um negócio muito apetitoso para as 15

mil agências do país que recolhem a cada
ano US$ 15 bilhões dos mais pobres, em
particular das minorias raciais, visadas
de maneira desproporcional pela polícia
e pela justiça. Em 2017, o montante to-
tal das fianças fixadas pelos tribunais de
Los Angeles – onde os negros e os latinos
representam 83% da população carcerá-
ria – se aproximava de US$ 3,6 bilhões;
nesse mesmo ano, as agências da cidade
haviam faturado US$ 41 milhões em des-
pesas não reembolsáveis.6
Na prática, mesmo que o acusado não
se apresente em seu processo, os bonds-
men raramente pagam os tribunais. Para
começar, os prazos são longos o suficien-
te para que os acusados terminem por
®
comparecer a outra audiência, na maio-
ria das vezes por iniciativa própria ou
porque foram interpelados pela polícia.
Quando os bondsmen são obrigados a re-
correr a um caçador de recompensas ou
a empreender qualquer outra diligência
a fim de obrigar seus clientes a se apre-
sentarem à justiça, eles cobram essas des-
pesas das famílias. Penalidades exorbi-
tantes em caso de atraso no pagamento,
renovação anual automática das custas
caso o processo se prolongue, vigilância
próxima e espionagem de seus clientes,
imposição de toque de recolher, ameaças
de retorno à prisão: nesse mercado muito
pouco regulamentado e extremamente
competitivo, os abusos se multiplicam.
JULHO 2023
Em Nova York, uma denúncia apresen-
tada em 2021 contra a agência Libre to-
mou por base o caso de um estrangeiro
obrigado, durante três anos, a usar uma
tornozeleira eletrônica pela qual eram
cobrados US$ 420 por mês. No total, essa
pessoa gastou US$ 17 mil em despesas,
para uma fiança inicial de US$ 10 mil...
Certas agências não hesitam em recor-
rer à chantagem emocional para tirar o
máximo de dinheiro dos lares mais vul-
neráveis, aproveitando-se da angústia
e da aflição suscitadas pelo encarcera-
mento de um parente. Consideradas
mais estáveis financeiramente e mais
leais para com a própria família, as mães
e as companheiras são particularmente
visadas pela abordagem agressiva das
agências. Sociólogo na Universidade de
Minnesota, Joshua Page trabalhou para
uma dessas empresas durante dezoito
meses.7 Resultado de suas observações?
As mulheres negras e latinas são delibe-
radamente submetidas a tarifas mais ele-
vadas e a condições de pagamento e con-
trapartidas mais estritas que as mulheres
brancas, consideradas mais confiáveis
pelas agências e companhias de seguros.
TENTATIVAS DE REFORMA
Todas essas razões estão levando a refor-
mas pelo país. As autoridades da Filadé-
lfia não praticam mais a libertação sob
fiança para os delitos insignificantes; o
estado de Nova Jersey aboliu as fianças
automáticas; e no de Nova York, no pre-
sente momento, os juízes devem propor
soluções alternativas, como a liberdade
vigiada. Quanto às agências de garantia
judicial com finalidades lucrativas, qua-
tro estados já as proibiram.
O Movement for Black Lives [Movi-
mento pelas Vidas Negras], que agrupa
cerca de cinquenta organizações que
defendem os interesses dos negros nor-
te-americanos, colocou a questão da
fiança no centro de suas reivindicações.
Ele apoia notadamente o projeto The
National Bailout [O Resgate Financeiro
Nacional], que visa coletar recursos para
libertar os acusados mais desfavoreci-
dos pelo sistema (pessoas negras, LGBT,
mulheres...). O dinheiro recuperado no
momento do julgamento é reinvestido
em outra fiança, e assim sucessivamen-
te. A associação Color of Change [Cor
da Mudança] e a União Americana pe-
las Liberdades Civis (Aclu) concentram
seus ataques às companhias de segu-
ros. Depois que os grupos Tokio Marine,
Randall & Quilter e Endeavour Capital
se retiraram do setor em 2020, as duas
associações lançaram uma nova campa-
nha contra o conglomerado canadense
FairFax Financial, a partir de então em
uma situação de quase monopólio e
cujo volume de transações atingiu US$
27 bilhões em 2022.8 Segundo a agência
de classificação de risco AM Best, a taxa
de lucros brutos após o pagamento das
fianças se aproxima de 83%, contra 33%
para os seguros residencial e automobi-
Le Monde Diplomatique Brasil 21
lístico.9 Não é de espantar que a indús-
tria se mobilize – injetando milhões de
dólares em publicidade, ações de lobis-
tas e contribuições às despesas de cam-
panha de candidatos eleitos – contra as
reformas nos tribunais.
No entanto, aquelas já efetivadas nos
quatro cantos do país parecem estar
funcionando em termos de segurança e
de despesas públicas: entre 2015 e 2022,
em Houston, Texas, o número de pes-
soas soltas nas 24 horas subsequentes a
um pequeno delito aumentou em 13%,
mas nem por isso a taxa de reincidência
cresceu – chegou até a decrescer.10 Em
Nova York, uma reforma adotada em
2019 permitiu diminuir em 15% a po-
pulação em detenção preventiva.11 En-
quanto esperam a revogação do sistema,
militantes continuam a coletar recursos
para pagar fianças, notadamente as de
outros militantes presos pela polícia.
Em um contexto de repressão crescen-
te aos movimentos sociais, a tarefa se
anuncia imensa. Em Atlanta, numerosos
opositores ao projeto Cop City – um vas-
to centro de treinamento para a polícia
– foram presos nos últimos meses. Mi-
litantes se mobilizaram para recolher o
dinheiro destinado a pagar suas fianças.
No último dia 31 de maio, também eles
foram presos pela polícia...
*Charlotte Recoquillon é jornalista.
1   P eter Mayer, “Justice, safety and prosperity:
New York’s bail reform success story” [Justiça,
segurança e prosperidade: a história bem-su-
cedida da reforma do sistema de fianças de
Nova York], FWD.us, 27 fev. 2023.
2   Wendy Sawyer e Peter Wagner, “Mass incarce-
ration: the whole pie 2023” [Encarceramento
em massa: a coisa toda, 2023], Prison Policy
Initiative, 14 mar. 2023.
3   “California, the State of incarceration explained”
[Califórnia, o estado do encarceramento expli-
cado], Vera Institute of Justice, mar. 2023.
4   J oshua Page, Victoria Piehowski e Joe Soss,
“A debt of care: commercial bail and the
gendered logic of criminal justice predation”
[Um débito de cuidado: fiança comercial e
a lógica predadora, baseada no gênero, da
justiça criminal], The Russell Sage Founda-
tion Journal of the Social Sciences, Nova
York, fev. 2019.
5   Adureh Onyekwere, “How cash bail works”
[Como funciona a fiança em dinheiro vivo],
Brennan Center for Justice, 10 dez. 2019.
6   “ Million dollar hoods project” [Projeto Um
Milhão de Dólares em Capuzes], sobre os
custos do encarceramento em massa, Uni-
versidade da Califórnia em Los Angeles,
2018. Disponível em: www.bruncheenter.
ucla.edu.
7   Cf. Joshua Page, Victoria Piehowski e Joe Soss,
op. cit., 2019.
8   “Financial results for the year ended Decem-
ber 31, 2022” [Resultados financeiros para o
ano terminado em 31 de dezembro de 2022],
comunicado de imprensa, 16 fev. 2023. Dispo-
nível em: www.fairfax.ca.
9   Alwyn Scott e Suzanne Barlyn, “U.S. bail-bond
insurers spend big to keep defendant paying”
[As companhias de seguros das fianças judi-
ciais dos Estados Unidos gastam muito para
que os acusados continuem pagando], Reu-
ters, 26 mar. 2021.
10  Paul Heaton, “The effect of misdemeanor bail
reform” [O efeito da reforma do sistema de
fianças sobre as contravenções], Quattrone
Center for the Fair Administration of Justice,
16 ago. 2022.
11  Peter Mayer, op. cit.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

“SE PUTIN QUISER VIR, ELE VIRÁ”

A Estônia à beira da guerra metros a sudeste de Tallinn: diante das

câmeras, um soldado de primeira classe
da legião estrangeira francesa demons-
trou a agilidade do tanque de reconhe-
cimento AMX-10 RC, implantado pela
Membro da Otan, a Estônia prevê uma invasão de seu território pelo Exército russo e entrou primeira vez em solo estoniano, exibindo
em acordo para empreender um grande esforço armamentista, mesmo que isso signifique ainda outros dezoito veículos de trans-
porte de tropas do tipo Griffon. Avante a
agravar as dificuldades sociais e econômicas do país. Em um momento de tensão nas toda velocidade, meia-volta rápida, um
relações com Moscou, a minoria de língua russa do país báltico busca discrição quarto de volta à esquerda, e estacionou-
-o ao lado dos demais veículos blindados
apresentados à imprensa. “Estou aqui
POR DAMIEN LEFAUCONNIER*, ENVIADO ESPECIAL para colocar o equipamento em prática,
verificar se resiste bem ao frio”, explicou o
jovem piloto de 21 anos, cujo busto apa-

O
vídeo amador circulou nas redes nia, cerca de 400 milhões de euros desde defesa a cargo da Organização do Trata- recia sobre o cockpit. O objetivo: demons-
sociais e nos veículos de comuni- o início da guerra. É uma das maiores do do Atlântico Norte (Otan). trar quão rapidamente a Otan é capaz de
cação estonianos. No dia 9 de contribuições do mundo em relação à Desde fevereiro de 2022, a Aliança se projetar no caso de um ataque russo.
maio, a cidade russa de Ivango- riqueza nacional, perdendo apenas para Atlântica empenha-se em comunicar o Em 2008, após uma onda de ataques
rod, que faz fronteira com a Estônia, a Letônia e à frente da Lituânia.1 Temen- fortalecimento de seu flanco oriental. cibernéticos contra instituições públicas
comemorava, como todo o resto da do ser atacado, o pequeno território Como no dia 16 de março, em Tapa, uma e privadas estonianas, os membros da
Rússia, o aniversário da vitória sobre a com 1,3 milhão de habitantes coloca sua antiga base soviética localizada 70 quilô- Otan criaram na Estônia – que ingressara
Alemanha nazista, com telão e shows.
Gravado do lado estoniano das mura-
lhas da cidade de Narva, do outro lado
do rio que separa os dois países, o vídeo
mostra um homem de 50 anos agredin-

®
do um manifestante que brandia uma
bandeira ucraniana durante as cele-
brações, visíveis do outro lado do rio.
“Abaixa isso, abaixa isso”, dispara o in-
divíduo em russo, antes de empurrar
violentamente o jovem, que cai nos de-
graus de uma escada.
“A maioria das pessoas que estavam
por ali apoiou meu agressor”, declarou
em entrevistas a vítima, um militan-
te da ONG estoniana Avatud Vabariik
(República Aberta), que trabalha para
a integração de jovens da minoria rus-
sa. Vabariik, também falante de russo,
sofreu apenas alguns hematomas, en-
quanto seu agressor foi condenado à
prisão com direito à condicional. Em
Narva, 90% dos habitantes são da mi-
noria russa, que representa um quarto
da população do país báltico. Em 2022,
segundo a agência oficial de estatísticas
da Estônia, 31,5% dos residentes do país
falavam russo em casa.
O incidente foi acompanhado por
uma iniciativa com consequências mais
preocupantes. No mesmo dia da festa
nacional russa, o museu da cidade, ins-
talado na fortaleza medieval de frente
para a fronteira, pendurou em sua pare-
de um cartaz com a imagem de Vladimir
Putin, acompanhada das seguintes pa-
lavras: “Criminoso de guerra”. O ato pro-
vocou um enfrentamento entre os guar-
das de fronteira dos dois países, com os
russos exigindo, em vão, a retirada do
cartaz pela polícia estoniana.
Ambos os eventos falam da atmosfera
agitada que reina na Estônia desde a in-
vasão da Ucrânia. Em primeiro lugar, no
n
lyn

alto escalão do Estado. A primeira-mi-

rF
to

nistra estoniana, Kaja Kallas, costuma

Vi
©

definir o resultado do conflito em solo

ucraniano como “existencial” para seu
país. A Estônia gasta pouco mais de 1%
de seu PIB em ajuda militar para a Ucrâ-

na organização quatro anos antes – um
centro de defesa cibernética dito de “ex-
celência”. Após a anexação da Crimeia
pela Rússia em 2014, a Otan reforçou sua
“presença avançada”, implantando, pela
primeira vez em 2017, batalhões multi-
nacionais com presença permanente
(mas com rotações) na Bulgária, Hun-
gria, Letônia, Lituânia, Polônia, Romênia
e Eslováquia. E na Estônia. Como os ou-
tros dois países bálticos, ela delega sua
defesa aérea aos aliados. “Quase todo
mês, a Rússia viola nosso espaço aéreo.
Sempre no nível de Vaindloo [ilha a cer-
ca de 20 quilômetros ao norte da costa]”,
acusa Tuulii Duneton, subsecretária de
Defesa, para justificar o apego da Estô-
nia ao guarda-chuva da Otan.
Em 26 de setembro, o conflito na
Ucrânia foi exportado para o Mar Bál-
tico, com a sabotagem dos gasodutos
russos Nord Stream I e II, que até agora
nem as investigações alemãs nem as di-
namarquesas conseguiram esclarecer.2
Desde então, a guarda costeira estonia-
na monitora as embarcações russas que
passam por suas águas territoriais, com
a convicção – embora sem provas – de
“que o Exército russo usa navios civis
para diferentes propósitos”, explica Du-
neton. O embaixador russo na Estônia
ficou incomodado pela vontade, mani-
festada por este país, de introduzir, com
base em uma convenção sobre o mar,
uma “zona contígua” a suas águas ter-
ritoriais, na qual poderia ampliar a ins-
peção de cargas russas – um obstáculo,
segundo ele, à liberdade de navegação. A
adesão da Finlândia, e depois da Suécia,
permitiu à Otan estar presente em am-
bas as margens do golfo onde se localiza
São Petersburgo.
TEMORES MENOS EXPLÍCITOS
A Estônia embarcou no caminho de um
rearmamento vigoroso. O governo du-
plicou seu orçamento militar para 2023
e alocou uma verba inédita de 1,2 bi-
lhão de euros para a compra de disposi-
®
tivos de artilharia. Em dezembro, o país
adquiriu seis sistemas de lançamento
de foguetes norte-americanos do tipo
Himars, por 200 milhões de euros, e,
no início de maio, estava estudando a
compra de um sistema de defesa aérea
do tipo Iris-TSLM, desenvolvido pelo
grupo alemão Diehl Defense, no con-
texto de uma compra compartilhada
com a Letônia.3 Em fevereiro, Hanno
Pevkur, ministro estoniano da Defesa,
anunciou seu desejo de dobrar os efe-
tivos das forças terrestres do país, pas-
sando de 9,5 mil para 20 mil combaten-
tes até o fim de 2024.
Na Estônia, o medo do gigante russo é
aprendido nos bancos das escolas, e os
mais velhos têm lembranças do período
soviético. A jovem república, em toda a
sua história moderna, conheceu apenas
52 anos de independência: em 1710, a
Rússia tomou da Suécia suas margens
bálticas, ficando com elas pelos dois
séculos seguintes. Depois de um breve
período de autonomia (1920-1940), a
União Soviética voltou a anexar a Estô-
nia, após a assinatura do Pacto Germa-
no-Soviético (1939). Expulsas pela Blit-
zkrieg alemã em 1941, as tropas soviéti-
cas retornaram em 1944 e ali ficaram até
20 de agosto de 1991, data da segunda
proclamação da independência.
Entre os estonianos que pudemos
entrevistar, poucos não expressaram al-
guma preocupação com outra invasão
russa. Em um centro comercial de Var-
na, Vitali Kozeratski, de 40 anos, designer
em Tallinn, que nasceu na Ucrânia e tem
um irmão na Rússia, explica que pre-
tende comprar uma arma de fogo para
defender sua família em caso de ataque.
Desde fevereiro, o país proibiu que cida-
dãos de países não membros da União
Europeia ou da Otan possuam esse tipo
de arma, uma decisão que forçou cerca
JULHO 2023
de 1.300 cidadãos de minorias russas a
devolver as que já tinham.4 “Eu e minha
esposa falamos muito sobre isso. Temos
um plano para partir em menos de uma
hora, apenas com coisas de emergência”,
confidencia esse pai de uma menina. “O
país é muito pequeno. Se Putin quiser vir,
ele virá, e a Otan não vai evitar”. O artigo
5º do Tratado do Atlântico Norte prevê,
no entanto, que tal agressão desenca-
dearia a resposta coordenada dos países
da aliança, cujos orçamentos militares
combinados, em 2023, representam de-
zessete vezes o da Rússia (excluindo-se
os Estados Unidos, cinco vezes).5
“Eu e minha esposa
falamos muito sobre
isso. Temos um plano
para partir em menos de
uma hora, apenas com
coisas de emergência”
Entre os falantes de russo, o temor é
menos explícito. Apesar da proibição
da transmissão da mídia oficial russa
na Europa desde março de 2022, muitos
ainda acompanham os canais públicos
russos na internet, e alguns confiam em
Putin. “Por que ele viria para cá?”, diz
uma senhora idosa, que acaba de cruzar
o posto fronteiriço de Narva carregando
duas sacolas de compras de alimentos,
mais baratos em Ivangorod, no lado rus-
so. Os 5% de cidadãos binacionais, por-
tadores de passaporte russo e de passa-
porte “cinza” (documento de identidade
emitido para quem não obteve a nacio-
nalidade estoniana na independência),
podem continuar indo e vindo sem visto
entre os dois países. Sob anonimato, ela
concorda em trocar algumas palavras.
“Sinto uma pressão. Se eu der minha
opinião em um jornal, vão me dizer:
‘Volte para a Rússia’”, afirma ela, em tom
irritado, antes de se virar e ir embora.
Para se defender, a Estônia conta com
uma “linha de defesa civil” formada por
cerca de 30 mil cidadãos comuns, uma
instituição criada poucos dias antes do
início da Guerra da Independência, em
1918, que o bisavô da atual primeira-mi-
nistra ajudou a fundar. Roger Vinni, de
40 anos, dono de um posto de lavagem
de carros, chefia a unidade da cidade
de Narva. “Treinamos uma vez por mês,
com munição real. Temos espingardas
de assalto R20 de calibres 5.56 e 7.62,
pistolas automáticas 9 milímetros”, ex-
plica o pai de família. Desde o início da
guerra na Ucrânia, os efetivos da organi-
zação paramilitar financiada pela Estô-
nia aumentaram cerca de 20%, estima
Vinni, que garante ele mesmo o treina-
mento de suas tropas.
“DAMA DE FERRO”
DOS PAÍSES BÁLTICOS
Poucos dias após o início da invasão
russa à Ucrânia, em 1º de abril de 2022,
Le Monde Diplomatique Brasil 23
os três países bálticos anunciaram em
conjunto o fim das importações de gás
russo – uma decisão espetacular para a
Estônia, que dependia em 90% das en-
tregas da Rússia. A utilização do porto
metaneiro da vizinha Lituânia, inau-
gurado em 2014, foi uma solução al-
ternativa, permitindo o transporte de
gás liquefeito, principalmente de ori-
gem norueguesa e norte-americana,
enquanto se construía com urgência o
primeiro porto metaneiro do país, em
Paldiski. Consequência: o país báltico
registrou, em agosto de 2022, a taxa de
inflação mais elevada da zona do euro,
25%, muito impulsionada pelo aumento
dos preços da energia (235% sobre o gás
natural em um ano, em julho de 2022, e
143% sobre a eletricidade residencial).
Tendo freado em 13,5% em abril, o au-
mento de preços continua significativo
nos setores de alimentos (23,4% em re-
lação ao mesmo mês do ano passado) e
habitação (32,4%).6
A crise social não impediu que o Par-
tido Reformista, ao qual pertence a pri-
meira-ministra, vencesse as eleições
legislativas de 5 de março de 2023. A
guerra na Ucrânia foi inclusive uma
oportunidade para tirar do jogo seu par-
ceiro, o Partido do Centro, suspeito de
falta de lealdade, em alusão a um acordo
de parceria assinado com o partido do
presidente russo em 2007. Em um país já
bastante liberal – há uma alíquota única
não progressiva de imposto de renda (ou
flat tax) de 20% –, Kallas foi apelidada de
“dama de ferro” dos países bálticos, em
referência à ex-primeira-ministra britâ-
nica Margaret Thatcher. Com um déficit
orçamentário que deve chegar perto de
5% no fim do ano, a primeira-minis-
tra comprometeu-se a recolocá-lo, em
2024, dentro do parâmetro de Maas-
tricht (3%). Além dos cortes nos gastos
sociais, seu governo anunciou aumento
do imposto sobre valor agregado, apesar
da inflação que atinge as famílias. Seu
nome já circula na imprensa para suce-
der a Jens Stoltenberg no Secretariado-
-Geral da Otan.7
*Damien Lefauconnier é jornalista.
1   “ Ukraine support tracker” [Monitor do apoio à
Ucrânia], The Kiel Institute for the World Eco-
nomy, atualizado regularmente.
2   Pierre Rimbert, “De l’eau dans le gaz” [Conflito
iminente], Le Monde Diplomatique, maio 2023.
3   Ler Hélène Richard, “En Lettonie, la question
russe sur toutes les langues” [Na Letônia, a
questão russa em todas as línguas], Le Monde
Diplomatique, dez. 2021.
4   Marko Tooming, “Cerca de 1.300 licenças de
armas serão revogadas” (em estoniano), Eesti
Rahvusringhääling (ERR), 22 fev. 2023. Dispo-
nível em: www.err.ee.
5   “SIPRI Military Expenditure Database” [Ban-
co de Dados de Gastos Militares do Sipri],
Stockholm International Peace Research Ins-
titute (Sipri).
6   Banco Central da Estônia, 2023. Disponível
em: https://www.eestipank.ee.
7   Karl De Meyer, “Kaja Kallas, une des voix euro-
péennes les plus fortes en soutien de l’Ukrai-
ne” [Kaja Kallas, uma das vozes europeias
mais fortes no apoio à Ucrânia], Les Échos,
Paris, 2 mar. 2023.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

FRANQUISMO, COLONIALISMO E HOSTILIDADE ÀS AUTONOMIAS REGIONAIS

Do centro ao extremo, o
eterno pêndulo do PP espanhol
Por muito tempo considerada uma exceção na Europa, a Espanha sofre uma influência
eleitoral cada vez maior do Vox, partido de extrema direita fundado em 2013. O surgimento
desse partido, que provavelmente será relevante nas eleições legislativas de 23 de julho,
deve muito às divisões internas e à versátil evolução ideológica da direita pós-franquista

POR MAËLLE MARIETTE*

C
om ar sério em um discurso na
TV, Pedro Sánchez anunciou, em
29 de maio, a convocação de elei-
ções gerais. No poder desde 2018,
o chefe do governo espanhol optou por
antecipar para 23 de julho a realização
de um pleito previsto para o fim do ano.
Seu anúncio-surpresa ocorreu um dia
tos em seis das dez regiões até então go-
vernadas (diretamente ou por meio de
uma coalizão) pelos socialistas. Em
cinco delas, no entanto, a direita vai
precisar garantir o apoio do partido de
extrema direita Vox, pois não conta
com a maioria absoluta. O PP também
conquistou as prefeituras de Valência e
romper “a onda ultraconservadora”, “blo-
quear a extrema direita”. Até o momento,
a estratégia não funcionou melhor na Es-
panha do que na França e na Itália, mas
qual é o fundamento dessa crítica?
As origens do PP remontam ao fran-
quismo, sistema instaurado em 1939
pelo general Francisco Franco e seus
panha na via democrática. Em outubro
de 1976, Manuel Fraga Iribarne (1922-
2012), ex-ministro da Informação e do
Turismo da ditadura, fundou a Alianza
Popular (AP), que dez anos depois se tor-
nou o atual PP. O objetivo da AP era fede-
rar, para fins eleitorais, sete organizações
políticas (lideradas por sete ex-ministros

após a derrota do Partido Socialista
Operário Espanhol (Psoe), do qual é se-
cretário-geral, nas eleições municipais
e regionais. O Partido Popular (PP),
principal organização conservadora da
Espanha, conquistou a maioria dos vo-
®
de Sevilha, respectivamente terceira e
quarta maiores cidades do país.
Desde então, para desacreditar o PP,
presidido por Alberto Núñez Feijóo, a es-
querda repete sem cessar na mídia que é
preciso deter “essa corrente reacionária”,
apoiadores após vencer a sangrenta
guerra civil iniciada em 1936. A maioria
dos dirigentes partidários são filhos ou
netos das elites políticas franquistas, so-
bretudo da franja reformista do Estado
franquista, que defendia colocar a Es-
franquistas, apelidados de “os sete mag-
níficos”) que abarcavam as diferentes
famílias políticas do regime do caudilho:
tecnocratas e democratas-cristãos, fa-
langistas, tradicionalistas nacionalistas e
católicos fortemente ligados à Opus Dei.1

© Violeta Santos Moura/Reuters

Painel do partido da extrema direita Vox, da Espanha, em fachada de construção em Madri. Partido cresce sua presença e pode influenciar eleições no país

“A AP foi criada para integrar o pro-
cesso político que se abriu com o fim
do franquismo, participar da transição
e preencher o vazio político deixado
por Franco”, explica Jorge Verstrynge,
ex-secretário-geral da AP. Por “medo de
serem excluídos do sistema”, seus mem-
bros aceitaram participar do processo
eleitoral constituinte, que culminaria na
atual Constituição, promulgada em 6 de
dezembro de 1978. Porém, “metade dos
deputados da AP recusou-se a aprovar a
Constituição, em grande parte em razão
da autonomia concedida pelo texto às
regiões”, prossegue Verstrynge. As divi-
sões entre as diferentes correntes e o fra-
casso nas eleições gerais de 1982 e 1986,
facilmente vencidas pelo Psoe, levaram
a crises internas. Para superá-las, Fraga
Iribarne propôs novos estatutos, que re-
duziam a democracia e reforçavam a hie-
rarquia dentro do partido. Foi assim que
a AP se transformou no PP e, em 1989,
José María Aznar, jovem e ambicioso pre-
sidente da região autônoma de Castela e
Leão desde 1987, sucedeu a Fraga Iribar-
ne como presidente do partido.
“TANTO URBANO COMO RURAL”
A renovação estava em curso: Aznar ti-
nha, em suas próprias palavras, o ob-
jetivo de construir um grande partido
unificado de direita, que pudesse “fazer
coexistir de maneira confortável ideias
liberais, conservadoras e democratas-
-cristãs”. Com sua jovem equipe, dotou o
partido de estruturas sólidas, encarrega-
das de reforçar sua presença no conjun-
to do território espanhol. A nova lide-
rança queria institucionalizar o partido
e permitir que tivesse avanços eleitorais.
A anunciada “coexistência” mostrou
seus limites: “No Partido Popular não há
correntes. É tudo 220 volts. E sou eu que
controlo a tomada, e quem colocar o
dedo nela vai ser eletrocutado!”,2 decla-
rou Aznar pouco antes do XII Congresso
do Partido, em 1996.
“A direita teve muita dificuldade em
criar um partido forte e capaz de com-
petir com o Psoe”, conta Pablo Simón,
cientista político da Universidade Carlos
III de Madri. “Ficou quase vinte anos na
oposição. Daí veio a construção, sob Az-
nar, de uma estrutura interna muito ver-
tical, hierárquica, centralizada e presi-
dencialista. O último presidente do par-
tido, Alberto Núñez Feijóo [à frente do
PP desde 2022], foi eleito em um proces-
so no qual havia apenas um candidato,
escolhido pela direção do partido. Então
ele foi, de fato, nomeado.” Pablo Carmo-
na, historiador e militante comunitário,
vê nisso não só a expressão da necessi-
dade de superar divergências internas,
mas uma das expressões da persistên-
cia, no partido, de disposições autoritá-
rias. “É uma tradição muito franquista”,
explica. “À medida que se aproximava o
fim da guerra civil, Franco, com seu fa-
moso ‘decreto de unificação’, afirmou,
em uma lógica militar segundo a qual a
hierarquia deve ser respeitada a todo o
custo, que não poderia haver vários po-
deres políticos, mas apenas um. Então
decidiu unificar as diferentes falanges
[organizações políticas fascistas] sob
o mesmo guarda-chuva. Daí vem essa
ideia, tanto dentro da AP como do PP, de
que a direita deve se unir contra o inimi-
go regionalista, contra a esquerda, con-
tra o comunismo, contra a maçonaria
etc.”. E Simón continua: “É a mesma coi-
sa no nível territorial. A direção do par-
tido conseguiu, após negociações por
vezes difíceis, fazer que quase todos os
dirigentes partidários locais e regionais
se alinhassem mais ou menos à direção.
Chega ao ponto de a direção nacional
impor candidatos em escala local”.
Entretanto, um dos grandes proble-
mas da direita na Espanha, segundo o
historiador Julián Casanova, “é que ela
tem dificuldade em se encaixar em uma
tradição política espanhola, ao contrá-
rio de suas semelhantes europeias”.3
A direita britânica pode, por exemplo,
reivindicar um ilustre pensamento con-
servador que não é, ao contrário do
®
franquismo, incompatível com a demo-
cracia, portanto indefensável para a opi-
nião pública. Assim, o PP e, antes dele, a
AP procuraram legitimar o conservado-
rismo espanhol invocando precedentes
históricos politicamente corretos.
A estratégia se impõe desde a transi-
ção democrática, quando a direita pós-
-franquista invocou ideologicamente a
tradição liberal-conservadora advinda
de Cánovas del Castillo, falecido no fim
do século XIX, na tentativa de adotar um
verniz democrático e fazer passar seus
dirigentes “mais por netos de Cánovas
do que por filhos de Franco”,4 escreve
o historiador Carlos Dardé. Outra refe-
rência é a contrarrevolução neoliberal-
-conservadora liderada pela primeira-
-ministra britânica Margaret Thatcher
(1979-1990) e pelo presidente dos Esta-
dos Unidos Ronald Reagan (1981-1989),
na década de 1980. Para o historiador Ja-
vier Tussell, “não surpreende que muitos
dos membros [da jovem geração do PP]
oriundos da direita tradicional – como o
próprio Aznar, falangista em sua primei-
ra juventude – tenham se tornado ultra-
liberais, pois [...] o liberalismo forneceu
uma estrutura teórica moderna contra o
socialismo, podendo, ao mesmo tempo,
ser conectado à direita conservadora”.5
“A ideia era renovar o discurso da di-
reita tradicional com base em uma lógi-
ca neoliberal capaz de destronar os so-
cialistas e ganhar popularidade”, analisa
Carmona. “Tínhamos de superar parte
da herança franquista, cuja política eco-
nômica era fortemente intervencionista,
para nos voltarmos a um conservadoris-
mo mais europeu, um liberalismo mais
doutrinário e posições mais alinhadas
à Otan, atlantistas.” Diversos dirigentes
do PP observavam então com interesse
os sucessos eleitorais da “terceira via” de
Tony Blair, no Reino Unido, e de Gerhard
JULHO 2023
Schröder, na Alemanha – que vestia as
cores do pragmatismo, sendo atlantista
e neoliberal –, e destacavam sua proxi-
midade ideológica com o “centro refor-
mista” de Aznar. Foi então que, após vin-
te anos de oposição, a direita chegou ao
poder, vencendo as eleições gerais de 3
de março de 1996, graças ao eleitorado
clássico das direitas europeias: “Sobres-
saíam os homens, os cidadãos de alta
renda, os conservadores católicos e os
pequenos empresários independentes”,
explica Guillermo Fernández Vázquez,
cientista político e professor da Univer-
sidade Carlos III de Madri, que também
destaca tratar-se de um eleitorado “tan-
to urbano como rural”, mais ou menos
bem distribuído pelo território, exceto
pela Catalunha e o País Basco.
Porém, a direita venceu por pouco
essas eleições. O PP então moderou seu
programa com o objetivo de ampliar seu
futuro eleitorado e, principalmente, a
curto prazo, constituir uma maioria es-
tável na assembleia. Ele apoiou as duas
organizações nacionalistas mais impor-
tantes do país, o partido catalão Conver-
gència i Unió (CiU) e o basco Partido Na-
cionalista Vasco (PNV), com orientações
socioeconômicas semelhantes às do PP,
e que Aznar parecia considerar que, por
sua notabilidade conservadora, não po-
diam representar, então, um perigo real
para a unidade do país.
NÃO SENTIR MAIS VERGONHA
O primeiro governo de Aznar não se
caracterizou pela criatividade, tendo se
baseado nas receitas neoliberais: des-
regulamentação, redução de impos-
tos, privatizações, rigor orçamentário e
prioridade para a entrada na União Mo-
netária Europeia. Ele surpreendeu, con-
tudo, ao marcar certo distanciamento
da Igreja e não voltar mais à questão da
legalização do aborto. Era uma manobra
tática: após obter maioria absoluta no
Congresso nas eleições gerais seguintes,
em 2000, o PP aprovou uma lei reintro-
duzindo a obrigatoriedade do ensino
religioso nas escolas públicas de ensino
fundamental e médio. Aznar então con-
duziu uma política mais alinhada com
as raízes ideológicas de seu partido.
Em meados da década de 1990, o lí-
der político exortou a Espanha a supe-
rar “um complexo histórico”: “O recen-
te passado franquista provocou uma
atitude da esquerda que tende a negar
ou a se envergonhar de nossa história e
de qual era nossa posição no mundo”.6
Sob seus governos, certo revisionismo
histórico tende a surgir entre os con-
servadores.7 Os “novos historiadores”,
tendo como líder o jornalista e escritor
Pío Moa, afirmam a validade do levan-
te franquista diante da “ameaça comu-
nista”. Para eles, somente um governo
militar poderia “restabelecer a ordem”.
O franquismo teria colocado a Espanha
no caminho da prosperidade e da de-
mocracia. No seio de grupos conserva-
Le Monde Diplomatique Brasil 25
dores mais “liberais”, ele também é ba-
nalizado como um fenômeno inevitável
em um período de ameaças totalitárias
na Europa. Sem endossar as afirmações
mais favoráveis ao regime do caudilho,
os governos de Aznar promoveram es-
sas produções ideológicas apoiadas pela
Igreja e pela mídia de direita (incluindo
os jornais mais lidos do país, El Mundo,
ABC e La Razón, bem como as rádios do
grupo Cope, pertencente à Igreja Cató-
lica espanhola). “Moa foi promovido a
ponto de aparecer na televisão pública
no horário nobre”, explica o historiador
Francisco Espinosa Maestre. “Ouvimos
o próprio Aznar dizer que sua leitura de
verão seria um livro de Moa.”8
Aznar também fez grandes esforços
pela produção e divulgação de uma his-
tória revisitada da Espanha, com o fim
de promovê-la e legitimá-la, insistindo
em suas “épocas de ouro”, sobretudo
por meio de obras publicadas por ins-
tituições como a Real Academia de His-
tória (RAH). Em um documento apre-
sentado no XIV Congresso Nacional do
partido em janeiro de 2002, em Madri,
lemos que a Espanha deveria orgulhar-
-se de “sua contribuição para a história
e a cultura universal [e de] seu projeto
histórico ancorado em dois mundos, a
Europa e a América”.9
CONTRA O TRIBALISMO
PROVINCIANO
O desejo do PP de se reconectar à era
de ouro moderna da Espanha conquis-
tadora fez com que ele se aproximasse
do país cuja hegemonia geopolítica foi
reforçada pela queda do Muro de Ber-
lim: os Estados Unidos, com os quais
Franco já havia assinado acordos, em
1953, que permitiram à Espanha romper
o isolamento internacional ao qual seu
regime estava submetido. Na primavera
de 2003, Aznar apoiou os Estados Uni-
dos na invasão do Iraque, contrariando
a opinião pública e outros partidos po-
líticos espanhóis, bem como violando a
Constituição, que exige que o governo
busque a aprovação do Parlamento an-
tes de entrar em guerra. Com isso, Az-
nar também desejava fazer da Espanha
a líder de uma “nova” Europa “forte”,
fundada no atlantismo e no liberalismo
econômico, contra a feroz oposição da
França e da Alemanha à invasão promo-
vida pelos Estados Unidos. A empreitada
viria a fracassar, com o retorno ao poder
do Psoe no ano seguinte. A fotografia ti-
rada durante a Cúpula dos Açores, em
março de 2003, exibindo o primeiro-
-ministro espanhol todo sorridente ao
lado do presidente George W. Bush e do
primeiro-ministro Tony Blair – “algo im-
pensável alguns anos antes”,10 conforme
celebra Ignacio Cosidó, do Grupo de Es-
tudos Estratégicos (Gees) –, ficou sendo
o ápice da política externa do PP de Az-
nar. O atentado islâmico de 11 de março
de 2004 no coração de Madri, três dias
antes das eleições gerais, reverteu a clara
26 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
vantagem do PP na maioria das pesqui-
sas de opinião. A insistência mentirosa
do governo, até a véspera da eleição, de
que o provável responsável seria o grupo
Pátria Basca e Liberdade (ETA), apesar
das crescentes evidências em contrário,
teve o efeito de desacreditá-lo.
O projeto de fortalecimento do sen-
timento nacional levou o PP a rejeitar
de fato qualquer forma de autonomia
regional, ecoando o radical nacionalis-
mo espanhol da direita pós-franquista
na época do processo constituinte. Em
1979, o jovem José María Aznar já escre-
via no diário La Nueva Rioja: “Não deve-
mos esquecer que a grandeza da Espa-
nha também depende de sua unidade”.11
Manuel Milián, um dos fundadores ca-
talães do PP, próximo de Fraga Iribarne
e deputado de Barcelona de 1989 a 2000,
conta: “Quando o PP foi criado, em 1989,
eu insistia na necessidade de regionali-
zação do partido, que teria sua própria
personalidade e sua própria natureza de
acordo com cada região, como uma con-
federação. Mas Aznar nunca quis ouvir
isso. Ele chegou com sua visão ‘castelha-
na’ da Espanha e quis impô-la. Para ele,
a Espanha é absolutamente ‘uma’. Ele
não entende sua diversidade”. Historia-
dor da Fundação de Análise e Estudos
Sociais (Faes) – um think tank neocon-
servador criado em 1989 por Aznar (hoje
seu presidente) –, Fernando García de
Cortázar justifica, por sua vez, a legiti-
midade dessa política “em nome da su-
perioridade moral da nação espanhola
[...] perante o tribalismo provinciano
dos nacionalismos periféricos”.12
Quando, em 2005, o governo socialista
de José Luis Rodríguez Zapatero iniciou
o processo de reforma do estatuto de
autonomia da Catalunha, que deveria
ser aprovado em maio de 2006, o PP e a
grande mídia de direita denunciaram a
“perseguição linguística” contra o cas-
telhano na Catalunha e no País Basco,
convocando um boicote dos produtos
catalães, divulgando a mentira de que
o novo estatuto de autonomia da Cata-
lunha autorizaria a poligamia e a euta-
násia, e exacerbando a polarização da
sociedade espanhola ao afirmar que o
texto “quebra a unidade da Espanha”
e conduz à sua “desintegração” e à sua
“balcanização”. Essa atitude do PP é, se-
gundo Milián, a causa “do hipernaciona-
lismo que hoje observamos nas reivindi-
cações de independência da Catalunha”.
Em 2010, o estatuto de autonomia da
Catalunha foi suspenso pelo Tribunal
Constitucional, após uma solicitação
apresentada pelo PP. “Foi a faísca que
acendeu o rastilho de pólvora”, relata
Milián, “com o fim que conhecemos: a
proclamação unilateral da independên-
cia da Catalunha em outubro de 2017”.
Após um referendo declarado ilegal pelo
Estado espanhol, em uma jornada mar-
cada por violenta repressão policial, a
população da região manifestou-se fa-
vorável à sua independência. Depois
de várias semanas de tensões, mani-
festações, greves e extrema polarização
dividindo a Espanha em dois campos,
o governo de Mariano Rajoy rejeitou
qualquer mediação e acabou aplicando,
pela primeira vez na história do país, o
artigo 155 da Constituição, que permite
colocar sob tutela toda uma região, em
um acesso de autoritarismo que beirou
a deriva autoritária.
Rajoy foi nomeado por Aznar para a
presidência do partido, em 2004. Se-
gundo Lucía Méndez, jornalista do coti-
diano de direita El Mundo, sua legitimi-
dade foi questionada “até que vencesse
as eleições em 2011”, quando o PP que-
brou todos os seus recordes eleitorais
após o estouro da bolha imobiliária de
2008 e da violenta crise econômica daí
derivada, colocando em grandes difi-
culdades o governo socialista de Rodrí-
guez Zapatero. Contudo, “dissensões,
que até então sempre permaneceram
dentro do partido, passaram a se mani-
festar fora dele”, observa Méndez, com
a ala neoconservadora do PP, aznarista,
acusando Rajoy de ser excessivamente
®
moderado em questões sociais como a
defesa dos valores religiosos, o aborto e
o casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Sua política seria caracterizada
pela “desideologização do partido”, nas
palavras de Javier Zarzalejos, diretor
da Faes, para quem o PP derivou en-
tão “para a pura gestão, o bom senso, a
ortodoxia jurídica, os congressos sem
conflitos”.13 No entanto, insiste Méndez,
“o que foi fatal para Rajoy foi a questão
catalã, que levou o Ciudadanos [centro-
-direita] e o Vox [extrema direita] a ca-
pitalizar a insatisfação com o PP e com
sua gestão da crise”. O pesadelo do PP
desde sua criação tornou-se então rea-
lidade: a direita estava fragmentada.
A ascensão meteórica
do Vox permitiu que
ele se impusesse nas
eleições regionais e
municipais de 28 de
maio como a terceira
maior força política
NACIONALISTA E DESCOMPLEXADO
De um lado, o Ciudadanos, fundado em
2006 na Catalunha – que já experimenta
forte crescimento desde 2015 – no mo-
mento da crise de representatividade
política encarnada pelo movimento dos
Indignados. A imagem moderna desse
partido liberal (hoje já quase desapa-
recido do panorama político espanhol)
contrastava com a do PP, manchada
pela acumulação de casos de corrup-
ção. Depois de seis anos à frente do go-
verno, Rajoy foi destituído, em junho de
2018, por uma moção de censura após
sua condenação e a de seu partido – a
primeira na história da democracia es-
panhola – por “corrupção instituciona-
lizada” no Caso Gürtel, que envolveu o
desvio de 43 milhões de euros em favor
do PP. Rajoy foi então sucedido pelo so-
cialista Pedro Sánchez.
De outro lado, assistimos à ascen-
são do partido de extrema direita Vox,
criado em 2013, que ganhou visibilida-
de na época da crise catalã de outubro
de 2017, durante a qual liderou mani-
festações por todo o país em defesa da
nação e realizou a “revolução das va-
randas”, durante a qual bandeiras espa-
nholas eram penduradas nas varandas
dos edifícios em protesto ao referendo.
A ascensão meteórica do Vox permitiu
que ele se impusesse nas eleições regio-
nais e municipais de 28 de maio como
a terceira maior força política do país.
“O PP sempre foi o partido do nacio-
nalismo espanhol, e muitos acharam
a reação de Rajoy ao referendo catalão
muito branda. Acusaram-no de não ter
parado os catalães mais cedo”, explica
o cientista político Fernández Vázquez.
“O Vox é formado por antigos quadros
do PP que criticam Rajoy por represen-
tar uma direita complexada. Eles rei-
vindicam o DNA do partido, aquele do
Aznar de 2002-2003.”
De fato, “essas direitas estão de acordo
em muitas coisas: o liberalismo econô-
mico, a unidade da Espanha e a rejeição
dos nacionalismos basco e catalão. O que
as distingue é o grau de virulência em re-
lação a estes últimos e questões relativas
à sociedade. No caso do Vox, também a
nostalgia mais ou menos assumida por
um passado franquista”, analisa Carmo-
na. Além disso, muitos quadros desses
três partidos passaram pela Faes e pelos
mesmos veículos de mídia: Julio Ariza,
presidente da Intereconomía – uma das
poderosas redes neoconservadoras de
mídia digital que surgiram na virada dos
anos 2000, quando, durante o segundo
mandato de Aznar, a direita se exibia
“sem complexos” – , gaba-se do fato de
que “nesta casa nasceram o Ciudada-
nos e o Vox. Nós os apoiamos nos maus
momentos, especialmente em 2014,
quando perderam as eleições europeias
e quiseram jogar a toalha. Todos lutaram
dentro da Intereconomía. Albert Rive-
ra [presidente do Ciudadanos até 2019]
vinha aqui toda semana”.14 Muitos dos
apresentadores e jornalistas desses veí-
culos de comunicação alimentam hoje
as listas eleitorais e os núcleos ideológi-
cos do PP, do Ciudadanos e do Vox. Esses
veículos difundem o dia todo o discurso
dessa direita “descomplexada”, hoje en-
carnada por Isabel Díaz Ayuso e pelo PP
de Madri, reduto do neoconservadoris-
mo há vinte anos. Super-representada na
mídia, a influência dessa corrente expli-
ca-se, em parte, segundo Fernández Vá-
zquez, pelo fato de “muitos desses meios
de comunicação estarem sediados em
Madri e receberem importantes ajudas
financeiras do governo do PP regional”.
Pablo Casado, nomeado chefe do PP
em 2018, também vem dessa corrente
neoconservadora aznarista. Determi-
nado a “reideologizar” o partido, ele
deixou suas funções em 2022, após
violentos conflitos internos. “E quando
dá errado, o que eles fazem? Voltam ao
movimento do pêndulo e começam de
novo”, diverte-se Simón sobre a esco-
lha de Núñez Feijóo, ex-presidente da
região da Galiza durante treze anos,
para suceder a Casado. Núñez Feijóo
empenha-se em “destacar a gestão
econômica, a seriedade e o fato de
ser ‘presidenciável’”. Nada de falar de
questões sociais ou “morais”, embora,
segundo Simón, seu conservadorismo
seja “mais real do que parece”. O movi-
mento estratégico de reorientação que
o PP está sempre fazendo “é quase ge-
nético, ou vital, para o partido”, conti-
nua Simón, “pois, desde seu nascimen-
to, com a Alianza Popular, ele precisou
livrar-se da imagem de partido fran-
quista”. Alfonso Guerra, líder socialista
histórico, tirou daí sua célebre frase:
“Eles viajam rumo ao centro há anos e
ainda não chegaram lá. De onde estão
vindo para demorar tanto?”.
*Maëlle Mariette é jornalista.
1   L er Jesus Ynfante, “Résurrection de l’Opus Dei
en Espagne” [Ressurreição da Opus Dei na
Espanha], Le Monde Diplomatique, jul. 1996.
2   Juan González Ibañez, “‘El enchufe lo tengo yo
y quien mete el dedo se electrocuta’” [“A toma-
da é minha e posso eletrocutar quem meter o
dedo nela”], El País, Madri, 9 jan. 1996.
3   Ángel Munárriz, “La victoria de ‘los moas’: el
revisionismo alcanza la cúspide de la derecha
española” [A vitória dos “moas”: revisionismo
chega ao topo da direita espanhola], infoLi-
bre, 3 jul. 2021.
4   Miguel Ángel Villena, “La sombra de Cánovas
del Castillo llega hasta los ‘neocons’” [Sombra
de Cánovas del Castillo chega aos neoconser-
vadores], El País, Madri, 2 nov. 2008.
5   Javier Tusell Gómez, El Aznarato. El gobierno
del Partido Popular, 1996-2003 [O reino de
Aznar. O governo do Partido Popular, 1996-
2003], Madri, Aguilar, 2003.
6   José María Aznar, España, la segunda transición
[Espanha, a segunda transição], Madri, Espasa
Calpe, 1995.
7   Ler Pauline Perrenot e Vladimir Slonska-Mal-
vaud, “Le franquisme déchire toujours l’Espag-
ne” [Franquismo ainda dilacera Espanha], Le
Monde Diplomatique, nov. 2019.
8   Francisco Espinosa Maestre, “El revisionismo
en perspectiva: de la FAES a la Academia”
[Revisionismo em perspectiva: da Faes à
Academia], Conversación sobre Historia, 14
set. 2019.
9   Josep Piqué e María San Gil, “El patriotismo
constitucional del siglo XXI” [O patriotismo
constitucional do século XXI], documento apre-
sentado ao XIV Congresso Nacional do PP em
janeiro de 2002 em Madri.
10  Ignacio Cosidó, “España, Europa y Estados
Unidos: el poder militar” [Espanha, Europa e
Estados Unidos: o poder militar], Grupo de
Estudios Estratégicos (Gees), 16 dez. 2003.
(Documento apresentado à Faes em 16 de
dezembro de 2003). Disponível em: www.
gees.org/ articulos /espanha-europa-e-esta-
dos-unidos-poder-militar.
11  Javier Tusell Gómez, op. cit.
12  Ibidem.
13  Jesús Rodríguez, “La derecha se libera de com-
plejos y ya no quiere ser de centro” [Direita li-
berta-se dos complexos e não quer mais ser de
centro], El País, Madri, 14 abr. 2019.
14  Ibidem.

UMA FICÇÃO ITALIANA NO MEIO DOS ANOS DE CHUMBO
Duas mortes de Aldo Moro
Que caminho pode seguir a ficção quando se trata de abordar o sequestro
e a morte, pelas Brigadas Vermelhas, de um dos mais ilustres políticos da
Itália do pós-guerra? Há cerca de vinte anos, o cineasta Marco Bellocchio
optou por uma narrativa mais próxima do sequestro. Com o cinema, a
realidade é restituída pelo que ela é: uma sucessão de ilusões e loucuras
POR EUGENIO RENZI*
O
que têm em comum o cineasta
Marco Bellocchio e o político Al-
do Moro? Moro foi um dos políti-
cos mais influentes do pós-guer-
ra. Bellocchio fez a ponte entre o
neorrealismo e a Nouvelle Vague, in-
ventando um cinema moderno cuja
evolução ele acompanhou através das
mil e uma crises da indústria, reinven-
tando-o e ao mesmo tempo permane-
cendo fiel à sua trindade particular: fa-
mília, religião e doença mental. Moro
era católico; Bellocchio, mais anticleri-
cal. Um era político; o outro participou
de manifestações com os que queriam
derrubar o sistema. Eles pertencem a
duas gerações diferentes, mas, em cer-
to sentido, nasceram com dois anos de
diferença. Moro, dirigente da Demo-
cracia Cristã, nasceu politicamente em
1963, com o Parlamento que ele presi-
dia, o primeiro desde o pós-guerra a fa-
zer a integração dos ministros socialis-
tas – obra-prima política graças à qual
conseguiu romper a unidade da es-
querda, marginalizar a extrema direita
e garantir, para si próprio e para seu
partido, quinze anos de dominação.
Bellocchio nasceu cinematografica-
mente em 1965, com I pugni in tasca [no
Brasil, De punhos cerrados], no qual um
esquisito anti-herói, clone na província
de Piacenza de Smerdiakov, de Irmãos
Karamazov, decide matar a própria
mãe. Os dois enfrentaram os conflitos
de sua própria época: o político, para
atenuá-los; o cineasta, para exaltá-los.
No mesmo país e durante os mesmos
anos, as duas carreiras se desenvolve-
ram, então, paralelamente.
As respectivas carreiras acabaram se
encontrando em 2003, quando Belloc-
chio dirigiu Buongiorno, notte [no Brasil,
Bom dia, noite], ficção sobre o seques-
tro e a morte de Aldo Moro pelas Briga-
das Vermelhas. Na primavera de 1978,
Moro foi sequestrado quando estava a
caminho do Parlamento, onde os par-
lamentares iam debater sobre o voto de
confiança no novo governo, ao qual o
Partido Comunista Italiano, no quadro
do “compromisso histórico”, daria um
apoio externo. Os cinco homens que fa-
ziam sua escolta foram eliminados, e o
primeiro-ministro foi conduzido a um
apartamento na periferia de Roma. Tran-
®
Aldo Moro lecionando em Roma, 1973. Além de docente, era da Democracia Cristã
cado em um cômodo secreto, foi subme-
tido a um processo sumário, em que foi
interrogado pelo chefe dos brigadistas,
Mario Moretti – principalmente sobre o
papel desempenhado pelos serviços se-
cretos na repressão do movimento ope-
rário. O processo desembocou em sua
condenação à morte. Em seguida, hou-
ve uma longa negociação, que terminou
com sua execução. O corpo foi encon-
trado em uma rua no centro de Roma,
abandonado no meio do caminho entre
a sede da Democracia Cristã e a do Par-
tido Comunista Italiano. Poderíamos
dizer que Bom dia, noite encenou o lado
“interno” do sequestro, um “entre quatro
paredes” familiar, concentrando-se nas
confissões da personagem Chiara, ins-
pirada no livro autobiográfico Il prigio-
niero [O prisioneiro], da brigadista Anna
Laura Braghetti, mas retranscrito no uni-
verso intelectual e estético de Bellocchio.
Hoje, cerca de vinte anos depois da es-
treia de Bom dia, noite, Bellocchio reen-
cena o sequestro em uma minissérie de
seis episódios intitulada Esterno notte
[no Brasil, Noite exterior]. Cada episódio
é centrado em um personagem: Moro
antes do sequestro, o ministro do Inte-
rior Francesco Cossiga, o papa Paulo VI,
a brigadista Adriana Faranda, a esposa
de Moro e, enfim, Moro prisioneiro. Fil-
me e série compartilham a palavra “noi-
te” – uma referência a Noite da Repúbli-
ca, título de um programa popular de TV,
de 1989, do jornalista Sergio Zavoli, que
entrou na linguagem corrente –, o que
sugere que Bellocchio não mudou de
opinião sobre o fato de que o assassina-
JULHO 2023
© Wikimedia Commons
to de Aldo Moro constitui uma questão
decisiva. Então, por que voltar a Moro?
Bom dia, noite foi, em seu roteiro, um
filme onírico. Em seu ponto culminante,
as imagens de arquivos da Resistência
italiana, as imagens da televisão e as do
próprio Bellocchio se misturam na men-
te da brigadista Chiara, que chega à se-
guinte conclusão: Moro é um prisionei-
ro político; ora, os prisioneiros políticos
são resistentes; nós, brigadistas, somos
então como os fascistas. Por meio des-
ses estranhos silogismos, Bellocchio deu
uma forma cinematográfica aos delírios
de uma época. Uma parte da esquerda
italiana, por exemplo, reagiu ao assas-
sinato de Moro imaginando o que teria
acontecido se, em vez de executá-lo, as
Brigadas Vermelhas o tivessem liber-
tado. O resultado dessa elaboração co-
letiva do luto foi a confusão do desejo
com a realidade e a criação de um Moro
fictício: um homem que, se tivesse sido
liberto, teria desestabilizado o quadro
político. Uma ironia quando considera-
mos que o Moro real foi – graças a seu
talento de mediador incansável – quem
garantiu a estabilidade do governo.
NÃO HÁ AMANHECER
A força da imaginação, provocada por
Bellocchio no fim de Bom dia, noite, é o
ponto de partida de Noite exterior. Com
uma diferença crucial. Para o término do
filme de 2003, Bellocchio inventou uma
saída poética do drama: Moro, abando-
nado pelos brigadistas em Roma, vagava
sereno no ar puro da manhã. É de uma
maneira diferente, mais sombria, que
Le Monde Diplomatique Brasil 27
Noite exterior reinterpreta a libertação fic-
cional de Moro. Ele acorda em um quarto
de hospital, tratado como um demente,
rodeado por seus ex-camaradas de par-
tido, que se preparam para se tornar seus
novos carcereiros. Em off, sua voz acusa
a Democracia Cristã de ter desejado sua
morte. O caminho, aqui, vai do exterior
para o interior; não há alvorecer.
O cinema italiano muitas vezes pe-
cou por ingenuidade, principalmente
quando encenou o personagem de Aldo
Moro – no filme de Elio Petri, baseado
no romance de Leonardo Sciascia, Todo
modo (1976), ou em Il caso Moro [O caso
Moro] (1986), de Giuseppe Ferrara: um
cinema que se apresenta como o traba-
lho de enquetes feitas para comprovar
os resultados das anteriores, com a pre-
tensão de revelar complôs e restabelecer
a verdade. Por sua vez, Bellocchio sem-
pre considerou que a particularidade do
cinema não está em confirmar a verda-
de, mas muito mais em passar de uma
ilusão para outra ou, em suas próprias
palavras, de uma loucura para outra. É
dessa passagem que ele trata em Noite
exterior. O Aldo Moro apresentado no
primeiro episódio é um personagem
como se costuma encontrar nos filmes
de Bellocchio: um homem integrado ao
sistema social, muito à vontade em seu
papel de notável, mas prisioneiro de
sua imobilidade, incapaz de amar as-
sim como de odiar, contrário a qualquer
verdadeira mudança. É o irmão mais
velho de De punhos cerrados ou o juiz
interpretado por Michel Piccoli em Salto
nel vuoto [Salto no vazio]. Certamente,
Moro se abre para os comunistas, mas,
como ele explica com muita paciên-
cia para o papa, somente para manter
o mesmo governo e a mesma política.
O Moro prisioneiro que se descobre no
último episódio é também um perso-
nagem “bellocchiano”, mas totalmente
diferente do primeiro. É o ator cafajes-
te interpretado por Michele Placido,
também em Salto nel vuoto, ou o pintor
Picciafuoco de L’ora di religione: il sor-
riso di mia madre [no Brasil, A hora da
religião]. Trata-se de um insurgente, um
destruidor, um revoltado. Os dois Moros
são loucos. A loucura do primeiro é a
que Bellocchio identifica com a burgue-
sia, o catolicismo e a família tradicional,
com aqueles que se conformam com
instituições loucas. Em compensação, a
loucura do Moro prisioneiro é criativa e
iconoclasta, do artista que se opõe a essa
sociedade. Noite exterior imagina um
Moro que consegue se desfazer, não po-
liticamente, mas pessoalmente de seu
próprio catolicismo e, enfim, é capaz de
exteriorizar suas emoções reprimidas,
principalmente o ódio que sente de seu
camarada de partido Giulio Andreotti.
Finalmente, ele está livre, ou inteira-
mente prisioneiro de outra loucura.
*Eugenio Renzi é jornalista e crítico de
cinema.
28 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023

“ESCUTAI, POVO DA FRANÇA, O ACIDENTE MEMORÁVEL DE UM CRIME ABOMINÁVEL”

Crimes, canards e canções MELODIAS FAMOSAS

No Segundo Império [1852-1870] surgiu
uma verdadeira imprensa popular, que
fidelizava os leitores por meio do recur-
so intensivo ao fait-divers. Mas ela não
No princípio está o fait-divers, a notícia cotidiana, que pode ser tanto real como inventada, anunciou a morte do canard; pelo con-
mas é quase sempre sangrenta. Na França, do fim do século XV até a Libertação dos trário, forneceu-lhe material, alimentou-
-o com novos crimes a serem cantados.
nazistas, pequenas publicações vendidas por ambulantes descreviam, nos mínimos detalhes, Depois de 1860, os autores dos canards
homicídios, assassinatos e outros casos sórdidos. Havia o texto, que cada um comentava à trocaram os crimes imaginários por ca-
sua maneira, e a complainte, ou lamento, cantada sobre uma melodia conhecida. Eles sos “reais”: Martin Dumollard, o “assassi-
no de criadas”, matou uma dúzia de em-
ofereciam uma catarse coletiva a um público sempre ansioso por esse tipo de história pregadas domésticas em Lyon entre 1855
e 1861; Jean-Baptiste Troppman massa-
crou os oito membros de uma mesma
POR JEAN-FRANÇOIS “MAXOU” HEINTZEN* família em 1869 (o “crime de Pantin”);
Joseph Vacher, o “matador de pastores”,
suspeito de dezenas de assassinatos na

P
ode parecer deslocado, nas colu-
nas de um periódico, celebrar um
veículo de comunicação que só
publica... se tiver algo a dizer.
Sem compromisso com os prazos de fe-
chamento, esse curioso objeto editorial
foi apelidado de “ocasional”, “efêmero”
ou canard. Surgido há seis séculos na
França, ele só desapareceu mesmo de-
que evoluíram para folhas volantes
impressas em ambos os lados, cujas
dimensões chegavam a 61 cm × 84 cm.
Com um título pomposo, impresso em
maiúsculas e, portanto, decifrável até
mesmo por leitores hesitantes, encon-
tramos o “pregão”, um breve resumo do
evento: “DETALHES DE UM CRIME PA-
VOROSO, COMETIDO POR CIÚME, CON-
“Todos, jovens e experientes, / Escutai
a história pungente, / De um execrável
parricídio, / Jamais um igual conhecido,
/ De um filho tão desnaturado, / Que
pela mãe foi esfaqueado. / Pierre Gayot
ele se chamava, / No ofício da seda lida-
va / Juventude, atente ao exemplo, / A
seu crime, a seu sofrimento, / Convém a
seus pais aquiescer, / E então longa vida
década de 1890; o Bando de Bonnot as-
solou a França durante a Belle Époque – e
muitos outros. O sucesso era estrondoso:
em 1870, a Complainte de Troppmann
teve tiragem de 200 mil exemplares, e no
mercado de Berry um cantador vendeu
mais de mil canções intituladas “Le cri-
me de la femme Caillaux!” [O crime da
senhora Caillaux!], em maio de 1914.

pois da Libertação [dos nazistas], após
uma longa e pouco conhecida carreira.
Incluindo, em geral, manchete, ilustra-
ção e narração, ele é estranhamente
complementado por uma forma canta-
da, uma complainte, sobretudo quando
trata de assuntos criminais, desde as
notícias mais sórdidas até os assuntos
políticos não menos célebres. A meio
caminho entre o conto dramático e o
Grand Guignol – o teatro de horror pari-
siense –, essa publicação por muito
tempo fascinou multidões, até ser su-
plantada pelas revistas, com destaque
para a Détective, e principalmente pelo
rádio e pela televisão – basta pensar em
programas franceses como Faites entrer
l’accusé [Tragam o acusado] e Crimes,
Affaires criminelles [Casos criminais].
As primeiras páginas de informação
ocasionais, ou “boletins”, nasceram no
fim do século XV. Elas relatavam guerras
longínquas e acontecimentos excepcio-
nais: celebrações dinásticas, infortúnios
dos tempos, fenômenos meteorológicos
ou paranormais, e a crônica criminal. A
partir do século XVI, o público se apai-
xonou por essas notícias, mesmo que às
vezes elas não passassem de pura inven-
ção – a tal ponto que a palavra canard se
tornou sinônimo de mentira no idioma
francês. Ambulantes vendiam os folhe-
tos pelas ruas das cidades ou nos merca-
dos das províncias, algumas vezes com a
ajuda de grandes telas onde se pintavam
cenas aproximadas da notícia que era
cantada e declamada em voz alta. Depois
os canards eram comentados, expostos,
lidos em voz alta por aqueles que sabiam
ler, nas casas das famílias e em reuniões
noturnas. Mas certamente sua forma
cantada ajudava a memorizar a história.
Inicialmente, eram livretos com im-
pressão às vezes apressada para ga-
rantir a atualidade dos fatos narrados,
®
TRA UMA MULHER POLONESA, pelo viver”.1 O relato de crimes, julgamentos e
assim chamado Bissonnier, que a moeu execuções ocupa um lugar preponderan-
de pancadas e a deixou morta estendida te nas publicações ocasionais. Nos “ca-
no chão, em sua residência, na Rua des nards sangrentos”, como eram chamados,
Nonandières, n. 10. Seu primeiro inter- era possível encontrar a reprodução da
rogatório, a confissão do crime etc.”. Se- acusação, do veredicto e das últimas pa-
gue-se então a história, mais ou menos lavras do criminoso. Mas, com muita fre-
longa, acompanhada de uma ilustração quência, até a segunda metade do século
em xilogravura, a qual oferece uma vi- XIX, crimes horríveis eram pura e sim-
são bastante aproximativa do aconte- plesmente inventados, ou criados com
cimento, já que os impressores reutili- base em um fait-divers banal. O “terrível
zavam as matrizes gravadas de que dis- assassinato, cometido [em 1833] na Rua
punham. O ocasional se completa com Traversine, contra dois indivíduos, um
um texto em rimas a ser cantado, cujo deles perfurado com onze facadas, o ou-
título é “complainte sobre este assunto” tro tendo cortada a artéria do braço direi-
ou “dísticos dramáticos”. Ao combinar to com uma facada”, não causou, de fato,
os registros, solicitando à audiência os nenhuma vítima e, nos jornais, viu-se
olhos e os ouvidos, ele alia a força da “reduzido às proporções exíguas de uma
imagem, a leitura, ainda que precária, briga de bêbados” (La Gazette de France,
e a memorização, facilitada pela versifi- 27 set. 1833). O frenesi editorial ligado aos
cação. Cada um, na medida de suas ca- casos sangrentos alcançou toda a França:
pacidades, aproveita a redundância dos Pierre Delcouderc, executado em 1844
elementos apresentados para entrar na em Périgueux por ter roubado e matado
história e desenvolver sua própria ver- duas pessoas, inspirou quatro longos la-
são, narrada ou cantada. mentos, com um total de 141 dísticos.
© Wikimedia Commons
Destaque da ilustração da capa do jornal francês Les Faits-divers illustrés, de 1908
Após a Primeira Guerra Mundial, o ca-
nard se reduziu ao único elemento que
o diferenciava da imprensa escrita: o la-
mento. Os autores não se preocupavam
mais em apresentar os crimes aos curio-
sos, contentando-se em cantá-los. Isso
durou até a Libertação, quando uma
folha cantando o massacre de Oradou-
r-sur-Glane teve uma tiragem de 475
mil cópias. “Malditos sejam, soldados, a
França não esquecerá / O que foi nesta
terra um dia cometido / Por selvagens,
brutos sanguinários / Sua civilização
não passa de ilusão / Dos povos livres
sempre será lembrado / O crime em
Oradour perpetrado”.2
Cantar supõe um texto que se com-
bina a uma melodia. O texto pode ser
impresso, mas como transmitir a me-
lodia para um público que não sabe ler
partitura? É aqui que entra a potência
do recurso às melodias já difundidas:
reaproveita-se um tema preexisten-
te, conhecido dos ouvintes, ao qual se
atribuem novos versos. Basta o editor
indicar no cabeçalho do texto “Melo-
dia: ‘Le Juif errant’” [O judeu errante],
e qualquer um pode cantar. Em 1817, a
melodia da “Complainte du Maréchal de
Saxe” [Lamento do marechal de Saxe],
cantada no Antigo Regime, foi utilizada
para acomodar os 46 dísticos do “Novo
lamento vindo de Toulouse sobre o cri-
me pavoroso cometido em Rodez contra
a pessoa do desafortunado Fualdès por
Bastide, Jausion e seus cúmplices”: “Es-
cutai, povo da França, / De todo o reino
do Chile, / Também o povo da Rússia /
Do Cabo da Boa Esperança / O aciden-
te memorável / De um crime abominá-
vel”.3 Como essa canção teve grande re-
percussão em todo o país, sua melodia,
“L’air de Fualdès” [Tema de Fualdès],
passou a ser adotada com frequência
pelos autores de canards, até a década

de 1930, como na “Complainte du sextu-
ple assassinat de Moirax” [Lamento do
assassinato sêxtuplo de Moirax] (1933):
“Um júri justo e severo, / Sem a menor
paixão, / Criou a solução / Pedida do
povo austero / Do pulha traçou a sorte /
Condenado assim à morte”.4
Durante o século XIX, a paisagem mu-
sical do interior da França foi se trans-
formando por meio dos cantores ambu-
lantes e das trupes de café-concerto. O
emprego de melodias mais contemporâ-
neas para cantar os lamentos criminais
tornou-se frequente, e o uso de temas
conhecidos evoluiu para a paródia: o as-
sassinato do presidente Sadi Carnot em
1894 foi cantado com o tema de “Fual-
dès” e do “Judeu errante”, mas também
de “Béranger à l’Académie” [Béranger
na Academia], de “La France guerrière”
[França guerreira] e de “L’orpheline de
Paris” [A órfã de Paris]. Entre os sucessos
que serviram de melodia para os lamen-
tos criminais, “La Paimpolaise” [Pessoa
originária de Paimpol] (Théodore Bo-
trel, Eugène Fautrier, 1895) foi o maior
deles, indo do caso Dreyfus aos ataques
do Bando de Bonnot, dos assassinatos
de Landru ao escândalo Stavisky, pas-
sando pelo crime de Albert Soleilland,
culpado do assassinato e estupro de
uma menina de 11 anos: “Eis uma his-
tória abominável / Crime de um horrível
satã, / Pelas mãos de um monstro exe-
crável / De seu nome Albert Soleilland...
/ A maldade atroz / Que nos rouba a voz!
/ Um tremor gelado devora / As almas
assim comovidas / Perante a família que
chora / A infante para sempre perdida!”.5
Em princípio, um lamento é um longo
poema estrófico, sem refrão, frequente-
mente composto de várias dezenas de
dísticos, às vezes mais de cem. A redação
de tal texto obedece a vários códigos. O
primeiro dístico deve atrair o público,
que é assim convocado – “Ouçam to-
dos”, “Venham todos escutar a histó-
ria” – e convencido de que o crime em
questão foi cometido perto de sua casa,
pela menção a vilas vizinhas ao merca-
do onde o canard está sendo vendido.
“Ouçam, pais de família, / De Moulins,
de Montluçon, / De Gannat e de Héris-
son, / De Bourbon e de Fourilles, / O cri-
me de Châtelard, / Cometido por Joua-
nard”.6 A narrativa segue, documentada,
localizada, nominativa – seja em relação
à vítima, seja em relação ao presumido
culpado. Nenhum detalhe é poupado:
a descoberta do crime, seus desdobra-
mentos às vezes imaginados, a prisão e
o julgamento, até a execução.
OLHO POR OLHO
A conclusão revela uma das molas da
escrita de um lamento, normalmente
intitulada “Moral”. Trata-se de tirar uma
lição da notícia, de ampliar seu alcan-
ce. Os principais alvos são os jovens,
intimados a permanecer no caminho
certo, e seus pais, que devem vigiá-los.
“Da preguiça os conselhos / Conduzem
ao cadafalso! / Mas o medo do carrasco
/ Deve afastar os mancebos / Do fácil
rumo do mal / Que conduz ao destino
fatal!”, professa a “Complainte sur l’as-
sassinat de Saint-Geniez” [Lamento
sobre o assassinato de Saint-Geniez]
(1882). Com frequência, a moral tam-
bém assume a forma de um apelo à lei
de talião, e a canção passa a expressar
uma vox populi que carrega o desejo de
uma justiça popular sumária: “A pena
de morte é dura / Todos partilham tal
crença; / Mas digo: ‘Somente alcança /
Aquele que se aventura; / Não se vai à
guilhotina / Se não há carnificina’”.7. O
caráter dramático dessa sentença exi-
gida aos gritos é reforçado pelo hábito
– até o Segundo Império – de redigir
os lamentos em primeira pessoa. Em
sua apresentação da obra coletiva Moi
Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère,
ma sœur et mon frère [Eu, Pierre Riviè-
re, que degolei minha mãe, minha irmã
e meu irmão], Michel Foucault aponta
“esses estranhos poemas [nos quais] o
culpado deveria tomar a palavra para
recordar seu gesto”,8 às vezes interpre-
®
tados no próprio local de sua execu-
ção. “Você me vê no cadafalso, / Perdoe
meu crime, oh!, Senhor. / Jovem, lance
os olhos ao Alto, / Jamais se entregue a
tal horror, / Ou perecerá como sei, / Ai!
Sob a espada da lei”.9
Essas formas arcaicas duraram até
1914. Depois, acabaram os lamentos
sem fim: era preciso se atualizar, fazer
um refrão, limitar-se a três ou qua-
tro dísticos, evitar sobrenomes. Desse
modo, era delicado diferenciar a can-
ção que tratava de um crime autêntico
– apresentada como “história verídica
cantada” – de uma história imaginá-
ria, porém plausível, que revelava uma
miséria social, associada ou não a um
caso sangrento. Desse modo, os lamen-
tos criminais se dissolveram no gênero
da “canção realista”.
Foram coletados na França cerca de
1.300 lamentos, produzidos entre 1870 e
1940, relativos a cerca de 630 crimes.10 A
conclusão de uma média de dois lamen-
tos por crime seria enganosa: cerca de
75% desses casos deram origem a apenas
um texto. Os crimes mais divulgados pela
imprensa também foram os mais tratados
pelos canards. Há quase trinta lamentos
conhecidos sobre o caso Steinheil (1908),
sobre o assassinato de Sadi Carnot (1894)
e dedicados ao crime de Pantin (1869),
e cerca de vinte para cada um dos casos
Landru (1919), Bonnot (1911), Soleilland
(1907), Pranzini (1887) e Violette Nozière
(1933). Das ruas de Paris às vilas por toda
a França, via distribuição postal a canto-
res das províncias, foram vendidas mais
de 40 mil cópias de uma canção sobre
Violette Nozière. Por outro lado, alguns
autores de canções usavam mimeógra-
fos a álcool para imprimir suas folhas:
apenas algumas dezenas de exemplares
eram produzidas por esse método para
cada novo crime na vizinhança.
JULHO 2023
TROCADILHOS DUVIDOSOS
A abundância da produção selvagem de
canards anda de mãos dadas com uma
liberdade de tom que, revelando o es-
tado de espírito da rua, corteja de bom
grado os instintos mais vis, sobretudo
antissemitas, em particular durante o
caso Dreyfus: “Não, Dreyfus impassível
diz / Coronel, você foi logrado / Juro
que não sou o culpado / Trago já minha
cicatriz”.11 Para “Le crime du Palace” [O
crime do Palácio] – o assassinato de Os-
car Dufrenne em 1933 –, a homossexua-
lidade da vítima evocada em palavras
veladas na imprensa foi tema de ima-
gens e trocadilhos duvidosos nos ver-
sos cantados das ruas: “Tudo tão sus-
peitoso / Alguém pode ser preso / Tal-
vez pedindo até / No bistrô um filé. [...]
Assim um marinheiro / Que entra assaz
silente / Mesmo de trás pra frente [...]
Ele sabe de ofício / Bem tapar orifício
[...] Um invertido pois, / Vale é certo por
dois”.12 Muitos crimes são tratados em
tom de piada. Assim Landru, “um gran-
de caluniado”, provoca manifestações
de misoginia sob o disfarce do humor:
“Seu juiz, a coisa vinha / Dessa crise do
marrão / Sem porco busquei galinha / E
achei que ficou bom”.
A efetividade dessa mídia cantada
pode ser avaliada também por sua ca-
pacidade de causar danos. Sem o me-
nor compromisso com a presunção de
inocência, o canard não hesitava em
desacreditar as famílias que mencio-
nava, fossem as dos algozes, fossem as
das vítimas. Uma prova disso é o pobre
Bannier, que, injustamente acusado de
um crime cometido por Joseph Vacher, o
“matador de pastores”, sofreu os efeitos
de um lamento que o apresentava como
culpado. Um advogado também relatou
como uma família comemorou que ele
tivesse evitado o cadafalso para um de
seus membros: “Ah! Senhor, [...] o senhor
nos salvou daquele lamento!”.13
No entreguerras, o lamento foi aos
poucos perdendo o rigor jornalístico
que outrora o caracterizara, vendo sua
clientela diminuir em favor das revis-
tas ilustradas, como a Détective, que
Gaston Gallimard lançou em 1928, na
qual atuavam excelentes escritores. A
Segunda Guerra Mundial marcou seu
fim, e eles desapareceram logo após a
Libertação. Ou quase: alguns originais
continuaram a ser vendidos, dos mer-
cados bretões às ruas de Toulouse, até
os anos 1960. Mas o gosto pelo gênero
pertencia ao passado.
Essa tradição, porém, não é exclusiva-
mente francesa.14 O famoso “Lamento
de Mackie”, de A ópera dos três vinténs,
foi escrito por Bertolt Brecht no mode-
lo de um moritat – versão alemã do la-
mento criminal – ouvido nos mercados
de Augsburg durante sua infância. Nos
países de língua inglesa, o lamento é
chamado murder ballad e, na Espanha,
romance de ciego, porque era vendi-
do por cegos – e chegou até a América
Le Monde Diplomatique Brasil 29
do Sul. Quanto ao nosso canardier, ou
vendedor ambulante de lamentos, ele é
chamado Bänkelsänger do outro lado do
Reno e cantastorie na Itália. A tradição às
vezes tem uma vida mais longa no exte-
rior. Assim, é possível ver na Radio Tele-
visione Italiana (RAI) reportagens sobre
um cantastorie cantando Lucky Luciano
ou algum outro bandido em uma praça
siciliana na década de 1960. No Brasil,
cantores itinerantes ainda hoje vendem
pequenos livretos convidando a cantar
as façanhas dos maiores malfeitores.
Ao sair de uma relação performativa
estrita “artista × público”, a canção tem
a virtude de agregar emoções, o que
ainda se vê em locais de culto e durante
manifestações de rua. Isso se observa
no caso do lamento, que, ao mergulhar
o público no drama, ao mesmo tempo
que dissipa os mistérios de um crime,
revela-se o instrumento de uma catarse
coletiva com uma dramaturgia conven-
cionada: apelo, história, moral. Uma
mídia ampliada, de certa forma, que
faz falta na era do consumo solitário
das notícias do mundo.
*Jean-François “Maxou” Heintzen é
historiador, pesquisador associado do
Centre d’Histoire, Espaces et Cultures
(CHEC) da Universidade de Clermont-Au-
vergne e autor de Chanter le crime. Ca-
nards sanglants & Complaintes tragiques
[Cantar o crime. Canards sangrentos e
complaintes trágicas], Bleu Autour, Saint-
-Pourçain-sur-Sioule, 2022.
1   “ Arrêt du conseil supérieur qui condamne Pier-
re Gayot [...] Complainte sur le même sujet”
[Sentença do Conselho Superior que conde-
na Pierre Gayot [...] Lamento sobre o mesmo
caso], Lyon, 1771.
2   Yves de Saint-Hubert, “L’odieux massacre
d’Oradour-sur-Glane” [O hediondo massacre
de Oradour-sur-Glane], sem lugar, 1944.
3   “Complainte [dite de Fualdès]” [Lamento (dito
de Fualdès)], 1817.
4   “La complainte du sextuple assassinat de Moi-
rax [air: Fualdès]” [Lamento de Moirax que ma-
tou seis [Melodia: Fualdès]], Bordeaux, 1933.
5   Marius Réty, “Pauvre Petite Marthe” [Pobre Mar-
tinha [Melodia: La Paimpolaise]], Paris, 1907.
6   “Complainte du crime de Châtelard” [Lamento
do Crime de Châtelard], Allier, 1891.
7   “L’assassin du 20-100-O” [O Assassino do 20-
100-O], Limoges, 1886.
8   M oi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère,
ma sœur et mon frère… Un cas de parricide
au XIXe siècle [Eu, Pierre Rivière, que degolei
minha mãe, minha irmã e meu irmão. Um caso
de parricídio no século XIX], Gallimard, Paris,
1993 (1. ed. 1973).
9   “Arrêt [...] qui condamne à la peine de mort
la nommée Louise Belin [...] Complainte à ce
sujet” [Sentença [...] que condena a nomeada
Louise Belin à pena de morte [...] Lamento
sobre o assunto], sem local nem data [cerca
de 1820].
10  Cf. banco de dados on-line https://complain-
tes.criminocorpus.org.
11  A. d’Halbert, “L’interrogatoire de Dreyfus [air:
La Paimpolaise]” [O interrogatório de Dreyfus
[Melodia: La Paimpolaise]], Paris, 1899.
12  P. Fiquet, “Les dégâts de la marine” [Os danos
da marinha], Paris, 1933.
13  Le Petit Parisien, 4 set. 1887.
14  Una McIlvenna, Singing the news of death.
Execution ballads in Europe 1500-1900 [Can-
tando o noticiário da morte. Baladas de execu-
ção na Europa 1500-1900], Oxford University
Press, 2022.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
A DIFÍCIL LUTA CONTRA O PLÁSTICO
Um novo tipo de
poluição dos oceanos
O naufrágio de navios comerciais não provoca apenas o derramamento de óleo nas
praias. Com capacidade de carga cada vez maior e mais perigosa, esses desastres são
uma fonte de poluição múltipla, incluindo a causada pelo plástico. No entanto, a adoção
de um tratado sobre a questão segue paralisada, principalmente em razão das manobras
dos países produtores de petróleo e gás
POR MOHAMED LARBI BOUGUERRA*
E
m 20 de maio de 2021, um incên-
dio eclodiu a bordo do navio car-
gueiro MV X-Press Pearl, um por-
ta-contêineres cingalês que se
encontrava a 18 km ao largo de Colom-
bo, a capital do Sri Lanka. Com 186 me-
tros de comprimento e construído em
um estaleiro de Zhoushan, na China, o
navio pertence ao X-Express Feeder de
Cingapura, um dos vinte maiores ope-
radores de carga do mundo. Ele nave-
gava havia apenas quatro meses. O na-
vio pegou fogo por doze dias, até que
suas chamas foram apagadas por bom-
beiros indianos e cingaleses. Em segui-
da, tentou-se rebocá-lo até o porto para
recuperar o que restava da carga, mas
ele afundou em 17 de junho de 2021,
com suas 348 toneladas de óleo com-
bustível e 50 toneladas de diesel. No
fundo do mar, uma bomba tóxica re-
pousa agora em frente à cidade mais
populosa do Sri Lanka.
Como consequência desse naufrágio,
marés negras de um novo tipo come-
çaram a afluir, compostas de produtos
químicos tóxicos e granulados de plás-
tico despejados no mar. Sua combi-
nação provoca reações químicas com
efeitos nocivos de longo prazo em todo
o ecossistema. A causa do problema: o
aumento constante do transporte marí-
timo de mercadorias e o tamanho cada
vez maior dos navios.
O MV X-Press Pearl transportava
187 toneladas de chumbo, cobre e alu-
mínio,1 bem como 1.486 contêineres,
81 dos quais com produtos perigosos
(1.040 toneladas de soda cáustica e 25
toneladas de ácido nítrico). Também se
encontravam a bordo 210 toneladas de
metanol, ureia (um fertilizante), além de
9,7 mil toneladas de resina epóxi e um
contêiner de baterias de lítio. E, por fim,
28 contêineres com 1.680 metros cú-
bicos de granulados de plástico indus-
triais, ou seja, 84 bilhões de microesfe-
ras de 5 mm de diâmetro, chamadas às
vezes de “lágrimas de sereia”.
Uma gigantesca maré desses granu-
lados – a maior já observada no mundo
– inundou a costa do Sri Lanka. Como o
plástico não é biodegradável, o impacto
do evento se estenderá a longo prazo.
“Há uma fase aguda e uma fase crôni-
ca; danos visíveis e invisíveis”, explica
Meththika Vithanage, especialista am-
biental da Universidade de Sri Jayewar-
denepura, em Colombo. As projeções
®
sugerem que a poluição atingirá, além
de toda a costa do Sri Lanka, a Indonésia
e a Malásia, e até mesmo a Somália.2 Os
contêineres carregados a bordo do MV
X-Press Pearl eram destinados à indús-
tria cingalesa de embalagens: fundidos
e moldados, esses granulados de polie-
tileno de baixa densidade (PEBD) assu-
mem a forma de uma série de produtos
comercializados, como garrafas e sacos
feitos de plástico fino (barato, difícil de
coletar e reciclar e comercializado prin-
cipalmente nos países do Sul).3
LONGE DOS PAÍSES RICOS
Durante o incêndio, Colombo respirou
por dez dias milhares de toneladas de
ar fortemente poluído com hidrocar-
bonetos, óxidos de azoto, partículas fi-
nas, dioxinas e metais pesados.4 Como
o desastre coincidiu com o início das
monções, as operações de salvamento
e recuperação dos produtos só come-
çaram em novembro de 2021, sendo
novamente interrompidas no ano se-
guinte durante a estação das chuvas.
Em fevereiro passado, a popa dos des-
troços foi carregada em um navio de
transporte pesado pela Shanghai Sal-
vage Company, um ramo do Ministério
dos Transportes da China.
Na origem da tragédia está um sim-
ples vazamento em um contêiner de
ácido nítrico, um poderoso oxidante
que reage explodindo em contato com
metais e pode inflamar espontanea-
mente combustíveis, papel e madeira.
É utilizado na fabricação de explosivos
e fertilizantes. Embora a tripulação te-
nha detectado o vazamento já em 11
de maio, nenhum porto aceitou ir em
auxílio do MV X-Press Pearl “por falta
de equipamentos especializados” – foi
o caso do porto indiano de Hazira, em
Gujarat, que se recusou a descarregar o
© movimento1989
contêiner defeituoso, e do porto de Ha-
mad, no Catar.
Como listar os danos causados ao
meio ambiente, aos pescadores, à bio-
diversidade, ao turismo e os efeitos de
longo prazo do coquetel químico libera-
do na natureza? Em um país então em
lockdown, atingido por uma inflação re-
corde de 69,8% e abalado por uma crise
política que fez o presidente Gotabaya
Rajapaksa renunciar em julho de 2022
após fugir das manifestações, a avalia-
ção dos danos em vista de uma ação
legal dificilmente contaria com o apoio
estatal. Uma valente sociedade civil,
cientistas e o Exército tentaram limpar
as praias com recursos limitados. A ca-
mada de granulados chegou a 2 metros
em alguns locais: dunas de plástico. Em
25 de maio de 2021, explosões soaram a
bordo do MV X-Press Pearl e contêine-
res começaram a cair no mar. Uma maré
de granulados logo inundou as praias,
como a paradisíaca Sarakkuwa, a pon-
to de “não ser mais possível ver a areia.
Foi realmente assustador!”, diz Muditha
Katuwawala, fundador da organização
ambiental Pearl Protectors.5 A limpeza
dessas praias beirou o suplício de Sísifo:
limpas um dia, eram cobertas novamen-
te no dia seguinte com os granulados
trazidos pelas ondas e pela maré.
Pelo fato de ocorrer longe dos países bordo do MT New Diamond, a 38 milhas
ricos e causar poucas vítimas imedia- do Sri Lanka. O fogo foi controlado, mas
tas, esse tipo de calamidade não chama um marinheiro filipino morreu e 270 mil
a atenção das mídias ocidentais, que toneladas de petróleo bruto kuwaitiano
alimentam com sua indolência “uma destinadas a uma refinaria indiana fo-
cegueira coletiva diante da insusten- ram despejadas no mar.
tabilidade ecológica generalizada”.6 Dado o tamanho faraônico e as pilhas
Extraordinária por sua extensão, a ca- de contêineres cada vez mais altas, o
tástrofe do MV X-Press Pearl não é de menor incidente pode rapidamente se
modo algum isolada. Um mês depois, transformar em um desastre. Em mé-
em 21 de junho de 2021, um acidente dia, um incêndio é relatado duas vezes
ocorreu na sala de máquinas do MSC por mês a bordo de um navio mercante.
Messina, de bandeira liberiana, a cami- Logicamente, os casos de poluição por
nho de Cingapura, com 38 contêineres granulados de plástico tóxicos se multi-
a bordo após ter descarregado 2 mil em plicaram desde o vazamento de 150 to-
Colombo. Navegando a 480 milhas náu- neladas de granulados ocorrido em 2012
ticas da costa do Sri Lanka, a tripulação em Hong Kong. Só em 2020 houve vários
conseguiu apagar o incêndio ao custo da acidentes desse tipo: 743 milhões de gra-
vida de um marinheiro. Em setembro de nulados no Mississípi, uma quantidade
2020, um acidente semelhante ocorreu a desconhecida na costa sul-africana e 13

toneladas no Mar do Norte após uma
tempestade.7 Nesse último caso, quatro
meses depois da perda do contêiner,
setecentas localidades foram afetadas e
apenas 1 tonelada de granulados pôde
ser recuperada.8 Isso lembra – numa es-
cala muito menor, no entanto – a situa-
ção observada na França no início de
2023, na Costa de Jade, de Pornic a Sables
d’Olonne. No entanto, a extensão dos
vazamentos em alto-mar continua sen-
do uma questão controversa, principal-
mente porque a regulamentação inter-
nacional, que não considera o plástico
um material perigoso, não exige que os
armadores declarem os contêineres per-
didos no mar. Entre outubro de 2020 e ja-
neiro de 2021, 3 mil “caixas” foram perdi-
das apenas no Oceano Pacífico. O World
Shipping Council [Conselho Mundial de
®
Navegação] estima uma perda média no
mar de 1.382 contêineres por ano.
Três anos depois, a catástrofe do MV
X-Press Pearl continua sendo a maior
desse tipo registrada nos anais maríti-
mos. Seus efeitos foram multiplicados
pela periculosidade dos produtos quí-
micos, bem como pela quantidade de
granulados de plástico queimados (piro-
plásticos) durante o incêndio, liberando
compostos cancerígenos como benzeno
e hidrocarbonetos poliaromáticos. Mui-
tos cingaleses que viviam da pesca e das
atividades costeiras ficaram sem empre-
go; outros tiveram suas redes e equipa-
mentos danificados por reagentes que
haviam caído do cargueiro. A poluição
química danificou os recifes de coral.
Pouco mais de um mês após o naufrá-
gio, a mortandade de animais marinhos
JULHO 2023
se manifestou nas carcaças espalhadas
pela costa: dezenas de golfinhos, seis
baleias, centenas de peixes-leão e mais
de 250 tartarugas cuja carapaça parecia
queimada ou descolorida. Tartarugas
do mundo inteiro passam pelas costas
do Sri Lanka em algum momento da
vida. Segundo a professora Vithanage,
há cinco vezes mais mortes entre esses
animais do que os cadáveres descober-
tos nas praias. Além disso, milhares de
peixes foram trazidos pelas ondas, com
o estômago e as brânquias cheios de gra-
nulados. Na zona venenosa da lagoa de
Negombo, o mar ficou de um “verde bri-
lhante”: a ureia acelerou o crescimento
das algas, fazendo desaparecer o “imen-
so azul do oceano” cantado pelo poeta
Lautréamont! Essa proliferação conta-
minou e matou os peixes, condenan-
do os pescadores à inatividade. O lodo
concentrado coletado nas praias pelos
voluntários aquecia os recipientes de
coleta, prova de que as reações químicas
estavam em ação. Assim, a poluição ge-
rada pela catástrofe excedeu em muito
os detritos visíveis recolhidos nas praias.
Como impedir a destruição dos lito-
rais e dos ecossistemas por esse tipo de
desastre? O aumento do tráfego maríti-
mo e as misturas complexas de produtos
químicos a bordo desses gigantes dos
mares exigem ações urgentes para evitar
outros MV X-Press Pearl: a Organização
Marítima Internacional (OMI) estima
que mais da metade das mercadorias
que viajam por mar seja potencialmente
prejudicial ao meio ambiente.
UMA AMEAÇA TOTAL
Um primeiro passo seria regulamentar
com mais rigor o transporte marítimo de
produtos químicos tóxicos e perigosos
que, cada vez mais, acabam a bordo ao
lado de hidrocarbonetos, metais e ma-
deira. O coquetel que se forma em caso
de acidente não é recuperado, como o
óleo combustível de uma maré negra:
mais pesado que a água, forma camadas
submarinas e plumas tóxicas móveis.
Porém, o problema também deve ser
abordado na fonte, a fim de enfrentar a
produção desse subproduto da indústria
petrolífera. De 29 de maio a 2 de junho,
delegados de 175 nações se reuniram em
Paris, na sede da Organização das Na-
ções Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco), para tentar conter
a avalanche de 350 milhões de toneladas
de plástico geradas por ano no planeta.
Só em abril passado, a maior produtora
de petróleo do mundo, a Saudi Aramco,
e a TotalEnergies lançaram a construção
de uma fábrica em Al-Jubail (Arábia Sau-
dita) capaz de produzir 1 milhão de to-
neladas de polietileno por ano.9
No entanto, em 2 de março de 2022,
uma resolução “histórica” tinha sido
adotada na quinta sessão da Assembleia
das Nações Unidas para o Meio Ambien-
te, com o objetivo de redigir um tratado
internacional juridicamente restritivo
Le Monde Diplomatique Brasil 31
sobre a poluição plástica, inclusive no
ambiente marinho. Naquela época, es-
perava-se que as negociações fossem
concluídas até o fim de 2024 e um tra-
tado global fosse estabelecido em 2025.
Em Paris, as discussões foram fortemen-
te entravadas pelos países produtores de
petróleo e plástico, que multiplicaram
as táticas para ganhar tempo. Um co-
mitê de negociação intergovernamental
foi finalmente formado para elaborar o
primeiro esboço de um acordo no Quê-
nia, no próximo mês de novembro. Prin-
cipais vítimas da poluição plástica, os
países em desenvolvimento querem que
as nações industrializadas financiem os
meios necessários para a adoção con-
creta de um eventual tratado.
Como mostra a catástrofe do Sri Lanka,
os micro e nanoplásticos representam
uma ameaça ambiental que pode ser
qualificada de total, uma vez que afeta
tanto o ambiente quanto a sociedade, a
economia, a saúde e a cadeia alimentar.
A manutenção do status quo atual leva-
ria quase a triplicar a quantidade de resí-
duos plásticos nos ecossistemas aquáti-
cos até 2040.10 No entanto, como profeti-
zou Marguerite Yourcenar, “nem o vazio
nem o vento limparão mais a praia”.
*Mohamed Larbi Bouguerra é universi-
tário, membro da Academia Tunisiana de
Ciências, Letras e Artes Beit Al-Hikma,
em Cartago.
1   C laudio Bozzi, “Could Sri Lanka’s ship fire have
been avoided? Here’s what we can learn from
the shocking environmental disaster” [O incên-
dio no navio do Sri Lanka poderia ter sido evi-
tado? Aqui está o que podemos aprender com
o chocante desastre ambiental], The Conversa-
tion, 9 jul. 2021.
2   Chalani Rubesinghe et al., “X-Press Pearl, ‘a new
kind of oil spill’” [X-Press Pearl, “um novo tipo de
derramamento de óleo”], International Pollutants
Elimination Network (Ipen), fev. 2022.
3   Somini Sengupta, “Guess what? More plastic
trash” [Adivinha? Mais lixo plástico], The New
York Times, 7 fev. 2023.
4   Hassan Partow et al, “X-Press Pearl Maritime Di-
saster Sri Lanka” [Desastre marítimo do X-Press
Pearl no Sri Lanka.], Relatório da missão consul-
tiva das Nações Unidas sobre o meio ambiente,
jul. 2021. Disponível em: www.unep.org.
5   Katherine Bourzac, “Grappling with the biggest
marine plastic spill in history” [Lidando com o
maior derramamento de plástico marinho da
história], Chemical and Engineering News, 23
jan. 2023. Disponível em: https://cen.acs.org.
6   Ler Agnès Sinaï, “Marée noire et autres ca-
tastrophes impensées” [Maré negra e outras
catástrofes impensadas], Le Monde Diploma-
tique, fev. 2003.
7   Ler Pierre Rimbert, “Plongée dans une soupe
de plastique” [Mergulhada numa sopa plástica],
Manière de Voir, n.178, ago.-set. 2021.
8   Annette Gravier e Gaëlle Haut, “Plastic giants
polluting through the back door: The case for
a regulatory supply chain approach to pellet
pollution” [Gigantes plásticos poluindo pelas
portas dos fundos: o caso de uma abordagem
regulatória da cadeia de suprimentos para a po-
luição por pellets], Rethink Plastic et Surfrider
Foundation Europe, nov. 2020.
9   Mickaël Correia, “Le plastique, c’est fantasti-
que” [O plástico é fantástico], Le Monde Di-
plomatique, fev. 2022.
10 De 9 milhões a 14 milhões de toneladas por ano
em 2016, depois de 23 milhões a 37 milhões de
toneladas por ano até 2040, segundo o Comitê
Intergovernamental de Negociação sobre a Po-
luição Plástica do Programa das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente (www.unep.org).
32 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
TRANSFERÊNCIA DE RENDA, MAS SEM INVESTIMENTO
O Vale do Silício contra
o desenvolvimento
Houve um tempo em que os países do Sul reivindicavam uma “nova ordem
econômica mundial” e contavam com uma industrialização planificada para
lutar contra a pobreza. Hoje, as doações diretas em espécie dos mais ricos
em favor dos necessitados são a alternativa. Longe de questionar as reformas
liberais e suas consequências, essa abordagem reforça o status quo
POR ANTON JÄGER E DANIEL ZAMORA*
Q
uando Chris Hughes, cofundador
do Facebook, deixou a empresa
em 2007, ele esperava consagrar
sua recém-adquirida fortuna a
mudar o mundo. Como muitos outros
antes dele, sua ambição focalizou rapi-
damente a ideia de “colocar fim à po-
breza extrema”.1 Porém, foi só após ter
lido o livro de sucesso de Jeffrey Sachs
sobre o “fim da pobreza” e visitado uma
das aldeias-piloto lançadas pelo econo-
mista no Quênia que Hugues encontrou
a solução milagrosa.2 Depois de ser o
principal ideólogo da terapia de choque
infligida aos países do antigo bloco so-
viético no início dos anos 1990, Sachs
reencarnou como papa da luta contra a
pobreza. “Essa aldeia” – explicou ele em
2005 em uma transmissão da MTV inti-
tulada O diário de Angelina Jolie e do
doutor Sachs na África – “vai pôr fim à
extrema pobreza.” Mas, quando Hu-
gues visitou em pessoa a pequena al-
deia queniana, o sucesso não lhe saltou
aos olhos: a escola sem lápis, sem sabão,
sem papel e com computadores que ja-
mais foram conectados à internet o dei-
xou boquiaberto.
Como o próprio Sachs reconheceria,
sua experiência de US$ 120 milhões me-
lhorou a saúde materna e a produção
agrícola, mas não a nutrição e a edu-
cação; e não teve “impacto perceptível
algum” sobre a pobreza.3 Hugues tirou
conclusões disso: em vez de financiar
projetos, bastava doar diretamente o
dinheiro aos pobres. Eis a “estratégia de-
cididamente liberal e orientada para o
mercado” com que ele contava. O filan-
tropo do Vale do Silício ingressou em se-
guida no conselho de administração da
GiveDirectly, uma ONG que promovia
transferências monetárias com o obje-
tivo de lutar contra a pobreza. Fundada
em 2008 por quatro jovens diplomados
da Universidade Harvard e do Massa-
chusetts Institute of Technology (MIT),
essa pequena start-up especializada no
desenvolvimento e que promove uma
renda básica universal logo atraiu a aten-
ção do Twitter e do Google. Enquanto o
projeto de Sachs afundava na indiferen-
ça, a GiveDirectly estava prestes a enviar
US$ 1.000 a mais de 20 mil beneficiários
selecionados aleatoriamente em 197 al-
deias do Quênia. O dinheiro, transferido
diretamente por telefone celular, seria
distribuído sem contrapartidas.
®
ECONOMIAS PLANIFICADAS NO SUL
Hoje, apenas dez anos após sua criação,
a associação GiveDirectly exibe o cres-
cimento mais rápido do mundo, pas-
sando de um orçamento de US$ 14,5
milhões em 2015 para mais de US$ 300
milhões em 2020, já tendo distribuído
mais de US$ 550 milhões pelo globo. Por
trás desse vertiginoso sucesso, escon-
dem-se as grandes fortunas do Vale do
Silício, de Elon Musk ao rei deposto das
bitcoins, Sam Bankman-Fried, passan-
do pelo fundador do Twitter, Jack Dor-
sey. O empreendimento da GiveDirectly
de digitalização das questões sociais
avança em pé de igualdade com a “mo-
netização” da pobreza. Em vez de ter
de passar por instituições burocráticas
e longas negociações políticas, a partir
de agora o desenvolvimento deveria ser
concebido do mesmo modo como se
compra um par de tênis on-line: sem
intermediários. Com o auxílio de um
celular, todo mundo pode enviar cash a
qualquer lugar do planeta e, assim, uma
criança pode “sair da pobreza”.
O sucesso da GiveDirectly insere-se no
que os economistas do desenvolvimen-
to chamam há vinte anos de “revolução
das transferências monetárias”. Na se-
quência das políticas de ajuste estru-
tural impostas na virada dos anos 1980
pelo FMI e pelo Banco Mundial, vários
países do Sul optaram por um mode-
lo de desenvolvimento baseado em
transferências monetárias de diferentes
formas (em detrimento de políticas de
investimento público). Essa ideia, hoje
banalizada, era marginal há algumas
décadas. Contudo, o programa Progresa,
lançado pelo México em 1997, depois
de dez anos de ortodoxia orçamentária
que fizera quase dobrar a taxa de pobre-
za, mudou progressivamente a situação.
A reforma, concebida principalmente
pelo economista mexicano Santiago
Levy, visava instaurar um conjunto de
transferências diretas, em espécie, em
substituição ao que restava de antigas
políticas de controle de preços, serviços
públicos e subvenções aos produtos de
primeira necessidade. Em 2007, o Pro-
gresa cobria um terço dos lares do país
e se configurava como o maior progra-
ma de luta contra a pobreza do Méxi-
co. A iniciativa serviu de exemplo para
dezenas de países da América Latina e
da África que passaram sob o rolo com-
pressor da liberalização.
A “revolução silenciosa”, assim ba-
tizada por seus promotores Armando
Barrientos e David Hulme,4 decolou
em particular na África Subsaariana.
Contam-se ali mais de cem programas
instalados desde os anos 2000 sob a for-
ma de transferências de renda familiar,
créditos de impostos ou benefícios in-
condicionais. A renda básica universal
seria até objeto de uma proliferação de
experimentos financiados por numero-
sos grupos filantrópicos na Namíbia, no
Quênia e em Uganda. O FMI, o Banco
Mundial e a Organização Internacional
do Trabalho (OIT) apoiam essa estraté-
gia, e em julho de 2020 foi o próprio An-
tónio Guterres, secretário-geral da ONU,
que anunciou “um novo contrato social
para uma nova era”, incluindo nele “a
possibilidade de uma renda universal”.5
A “novidade” do modelo aparece mais
claramente em comparação com aquele
em vigor no decorrer das décadas pre-
cedentes. “As nações pobres”, declarou
o presidente tanzaniano Julius Nyerere
em 1977, “não podem superar sua po-
breza sem industrialização.”6 Essa con-
vicção era então amplamente partilhada
no seio das elites pós-coloniais. A maior
parte dos pensadores atribuía pouca im-
portância à redução da miséria enquan-
to tal. Antes da virada neoliberal em
meados dos anos 1970, “havia um con-
senso sobre o fato de que o desenvol-
vimento consistia em grande parte em
transformar a estrutura produtiva”,7 ex-
plica o economista do desenvolvimento
Ha-joon Chang. As questões da pobreza
sempre se integravam a problemas ma-
croeconômicos e institucionais mais
amplos, ligados à divisão internacional
do trabalho. Para sair da estagnação, os
jovens Estados libertos da colonização
voltavam-se geralmente para teorias de
industrialização planificada. Inspirados
pelos ideais socialistas, seus dirigentes,
tais como Nyerere, Kwame Nkrumah
(Gana) e Jawaharlal Nehru (Índia), con-
cebiam abertamente sua estratégia de
desenvolvimento como uma solução de
contraposição ao liberalismo econômi-
co e ao imperialismo.
“ESTADO TRANSFERIDOR”
Essa abordagem, formalizada notada-
mente pelo economista argentino Raúl
Prebisch no fim dos anos 1940, salien-
tava que o comércio internacional re-
produzia as desigualdades Norte-Sul.
Sem barreiras alfandegárias, controle
de preços e industrialização dirigida
pelo Estado, o Sul não poderia alcançar
as nações desenvolvidas. A partir des-
se momento, a questão da pobreza se
inscreveu no quadro mais geral das de-
sigualdades entre países e da desigual
repartição do trabalho em nível global.
A ênfase colocada sobre as estruturas
que engendram a miséria, e não sobre
o alívio para os miseráveis, se concreti-
zaria com a formulação de uma agenda
visando a uma reformulação total do
comércio internacional. A ata final da
Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento (Unctad)
de 1964 fixou como objetivo “chegar a
uma divisão internacional do trabalho
modificada, mais racional e equitativa,
acompanhada pelos ajustes necessários
na produção e no comércio mundiais”.8
Dez anos depois, o programa conheceu
seu apogeu com a resolução da Assem-
bleia Geral das Nações Unidas para o
estabelecimento, nas palavras do pre-
sidente argelino Houari Boumedienne,
de uma “nova ordem econômica inter-
nacional”. As propostas, algumas pouco
heterogêneas, abrangiam transferências
de tecnologia e um controle intensifica-
do das empresas multinacionais. Não se
tratava de interromper a internacionali-
zação do comércio, e sim de obrigar, por
meio de um quadro jurídico, um desen-
volvimento mais equitativo para o Sul.
Reviravolta nas relações de força
ideológicas, corrupção das elites prove-
nientes da descolonização, mudança no
quadro econômico mundial: todos esses
fatores concorreram, no fim dos anos
1970, para quebrar o ímpeto. A temática
da pobreza se encontrou pouco a pou-
co desligada das considerações sobre as
relações de poder internacionais. Con-
ceituada de maneira individual e como
um patamar abstrato de renda, ela se
impôs paradoxalmente como o desafio
principal de uma forma despolitizada
de desenvolvimento. O Banco Mundial
impulsionou essa virada durante a pre-
sidência de Robert McNamara (1968-
 JULHO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 33

UM FARDO REAL, MAS TALVEZ EXAGERADO

1981), o idealizador da Guerra do Vietnã
que se tornou o tesoureiro dos países em
desenvolvimento, a fim de se esquivar
da reformulação das trocas comerciais
A dívida africana:
contentar-se em estabelecer um pata-
mar abaixo do qual “se supõe que nin-
guém vá cair”, em detrimento das am-
bições mais radicais dos líderes das in-

pedidas por estes últimos. Em seguida,
as principais instituições financeiras
internacionais sustentariam a liberali-
zação econômica, os programas de ajus-
te estruturais, antes de vir a promover,
além disso, as políticas de transferências
monetárias. Como observou o econo-
mista indiano Ajit Singh, conselheiro
econômico de Julius Nyerere, a guerra à
extrema pobreza lançada por esses orga-
nismos tende a “desencorajar o desen-
volvimento industrial”. E, acrescentou
ele, se não “integrar um plano de desen-
volvimento global de industrialização e
de mudança estrutural da economia de
um país”, tem bem poucas possibilida-
des de sair vitoriosa.9
A criação, em 1979, dos empréstimos
de ajuste estrutural acelerou esse movi-
mitos e realidade
dependências pós-coloniais.12 Ao longo
do caminho, nossas próprias definições
de desenvolvimento e desigualdade vi-
ram-se profundamente transformadas,
enquanto o desenvolvimento como
projeto e empreendimento coletivo se Antes de perguntar sobre a necessidade ou não de
dissolvia no oceano das escolhas impes- liquidar a dívida dos países africanos, seria preciso
soais dos consumidores.
considerar sua exata medida em um contexto de
*Anton Jäger e Daniel Zamora são, res- fragilidade dos instrumentos estatísticos e falta de
pectivamente, historiador das ideias políti- transparência de alguns credores bilaterais, como a China.
cas na Universidade Católica de Leuven e
professor de Sociologia na Universidade A harmonização dos números disponíveis em várias fontes
Livre de Bruxelas. diferentes permitiria compreender melhor o problema
1   C hris Hughes, Fair Shot: Rethinking Inequality
and How We Earn [Chance justa: repensando
a desigualdade e como ganhamos], St. Martin’s POR GILBERT GERMAIN*
Press, Nova York, 2018.
2   Jeffrey Sachs, The End of Poverty. How We Can

O
Make it Happen in Our Lifetime [O fim da po-
mento: a partir de então, o Banco Mun- breza. Como podemos fazer isso acontecer em ano de 2020 foi palco de uma in- Nessa comparação, o passivo africano
dial condicionou seus adiantamentos nosso tempo], Allen Lane, Londres, 2005. comum discussão entre o Banco corresponde a menos de 0,4% do total.
3   Jeffrey Sachs, “Lessons from the Millennium Vil-
à realização de reformas específicas. lages Project: A Personal Perspective” [Lições Mundial e o Banco Africano de Visto por esse ângulo, o problema de
Com a crise da dívida com que se de- do Projeto Aldeias do Milênio: uma perspectiva Desenvolvimento (BAD). O pre- superendividamento da região parece

frontaram numerosos países no início
dos anos 1980, esses empréstimos tor-
naram-se instrumentos decisivos para a
virada neoliberal em plano mundial.
Nesse clima a partir de então hostil
aos projetos de desenvolvimento esta-
tais, as transferências monetárias ter-
minam por parecer um complemento
atraente para as reformas que liberali-
zam a economia e o mercado de traba-
lho. Visto que os ajustes impostos enfa-
tizam a pobreza, os governos voltam-se
para a ferramenta fiscal com o objetivo
de facilitar a transição macroeconômi-
ca. Como salientam os economistas Erik
Reinert, Jayati Ghosh e Rainer Kattel, o
triunfo da luta contra a pobreza terá fi-
nalmente colocado o debate em torno
da melhoria das “condições de vida das
pessoas definidas como pobres” em vez
de sobre a transformação das “econo-
mias nas quais elas vivem”.10
Para muitos países do Sul, cada vez
menos capazes de regulamentar o traba-
lho, orientar investimentos ou socializar
recursos, o desenvolvimento de um novo
“Estado transferidor” (transfer state), que
age exclusivamente sobre a distribuição
de rendas, fornece uma alternativa aos
projetos pós-coloniais. Nesse sentido, o
crescimento das transferências mone-
tárias promovidas pelos think thanks e
pelas associações do Vale do Silício não
significa o abandono do neoliberalismo,
mas seu prolongamento. Como ressaltou
o antropólogo James Ferguson, numero-
sos países combinaram a adoção de um
“programa neoliberal de privatização e
mercantilização” com uma “expansão
considerável de programas de distribui-
ção direta de dinheiro cada vez mais dis-
sociados das questões do trabalho”.11
A justiça social, explica o historiador
Samuel Moy, foi “globalizada e minimi-
zada”, como se os dirigentes pudessem
®
pessoal], The Lancet, v.6, n.5, 2018. Disponível
em: https://www.thelancet.com/.
4   Armando Barrientos e David Hulme, “Social
Protection for the Poor and Poorest in Develo-
ping Countries: Reflections on a Quiet Revolu-
tion” [Proteção social para os pobres e os mais
pobres nas regiões em desenvolvimento: refle-
xões sobre uma revolução silenciosa], Brooks
World Poverty Institute Working Paper, Man-
chester, n.30, mar. 2008.
5   António Guterres, “Tackling the Inequality Pan-
demic: A New Social Contract for a New Era”
[Enfrentando a pandemia da desigualdade: um
novo contrato social para uma nova era], 18 jul.
2020. Disponível em: https://www.un.org.
6   Julius K. Nyerere, “The Plea of the Poor: New
Economic Order Needed for the World Commu-
nity” [O apelo dos pobres: uma nova ordem eco-
nômica requerida pela comunidade mundial],
New Directions, Washington, v.4, n.4, 1977.
7   Ha-Joon Chang, “Hamlet without the Prince of
Denmark: How Development Has Disappea-
red from Today’s ‘Development’ Discourse”
[Hamlet sem o príncipe da Dinamarca: como
o desenvolvimento desapareceu do discurso
atual sobre “desenvolvimento”]. In: Shahrukh
Khan e Jens Christiansen (orgs.), Towards New
Developmentalism. Market as Means Rather
than Master [Rumo a um novo desenvolvimen-
tismo. O mercado como meio em vez de se-
nhor], Routledge, Londres, 2010.
8   “Acte de la Conférence des Nations Unies sur
le commerce et le développement I. Acte final
et Rapport” [Ata da Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
Ata final e Relatório], Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento,
Genebra, 1964.
9   Ajit Singh, “The ‘Basic Needs’ Approach to De-
velopment vs the New International Economic
Order: The Significance of Third World Indus-
trialization” [A abordagem das “necessidades
básicas” para o desenvolvimento versus a nova
ordem econômica internacional. O significado
da industrialização do Terceiro Mundo], World
Development, Elsevier, v.7, n.6, jun. 1979.
10  Erik Reinert, Jayati Ghosh e Rainer Kattel, Han-
dbook of Alternative Theories of Economic De-
velopment [Manual de teorias alternativas do
desenvolvimento econômico], Edward Elgar
Publishing, Cheltenham, 2016.
11  James Ferguson, Give a Man a Fish. Reflec-
tions on the New Politics of Distribution [Dê
um peixe ao homem. Reflexões sobre a nova
política de distribuição], Duke University Press,
Durham, 2015.
12  Samuel Moyn, Not Enough. Human Rights in an
Unequal World [Insuficiente. Direitos humanos
em um mundo desigual], Harvard University
Press, Cambridge, 2018.
sidente da instituição de Bretton
Woods, David Malpass, acusava o se-
gundo de pedir empréstimos de manei-
ra inconsequente.1 O acusado refutou,
imediatamente, em um comunicado:
“No que diz respeito aos países descri-
tos como ‘pesadamente endividados’,
nosso banco reconhece e acompanha
de perto a tendência do aumento da dí-
vida. No entanto, não há risco sistêmico
de superendividamento”. Dois anos de-
pois, a polêmica continuou. O diretor
de redação do site Jeune Afrique ques-
tionava se “não se agita demasiada-
mente o espantalho do endividamento.
[...] Na realidade, embora algumas eco-
nomias estejam realmente em desespe-
ro, elas não são majoritárias e o cenário
é bem menos catastrófico do que pare-
ce” (12 maio 2022). No entanto, vários
chefes de Estado africanos estão alar-
mados com a dívida pós-Covid, agrava-
da pelas consequências da guerra na
Ucrânia e pelo aumento das taxas de ju-
ros. O Comitê para a Anulação das Dívi-
das Ilegítimas (CADTM), conhecido
por suas pesquisas aprofundadas sobre
o assunto, acionou mais uma vez o dis-
positivo de alarme ao evocar, em agosto
de 2022, “o insustentável fardo da dívi-
da” do continente.
Na realidade, a que isso corresponde?
De acordo com relatório anual do Ban-
co Mundial, publicado em abril de 2023,
o estoque da dívida pública dos países
da África Subsaariana no fim de 2022
está estimado em US$ 1,14 trilhão – em
2010, era de US$ 354 bilhões –, enquan-
to a escalada de seu peso médio em re-
lação ao PIB foi de 32%, em 2010, para
57% em 2022. Porém, esse mesmo nível
de endividamento também pode ser
relacionado com o montante total dos
títulos mundiais da dívida – públicos e
privados –, que é de US$ 300 trilhões.
secundário e controlável.
O relatório da Conferência das Na-
ções Unidas sobre o Comércio e o De-
senvolvimento (Unctad), publicado em
12 de abril de 2023, confirma que, entre
os 38 países da África Subsaariana ele-
gíveis para os subsídios da Associação
Internacional de Desenvolvimento – um
ramo do Banco Mundial que ajuda os
países mais pobres do planeta –, oito
estão atualmente em situação de su-
perendividamento, número que, desde
2013, não aumentou, e catorze correm
um risco elevado de superendividamen-
to externo, enquanto quinze estavam
nessa situação em 2020. No entanto, a
pandemia de Covid, a depreciação de
divisas africanas em relação ao dólar e
as consequências da guerra na Ucrânia
aumentaram os possíveis riscos de su-
perendividamento.
PAPEL DOS ATORES PRIVADOS
Grande parte do fardo recai nos ombros
de África do Sul, Nigéria, Angola e Mo-
çambique, que totalizam 48% dos débi-
tos pendentes em 2022. No entanto, de
acordo com as previsões do FMI, a dívi-
da da África Subsaariana representaria
55,52% de seu PIB em 2023, enquanto
em 2020 correspondia a 57,06%. Em ra-
zão do aumento da demanda por “ouro
negro”, a mesma proporção não seria
superior a 44,46% no caso dos países ex-
portadores de petróleo, tendo atingido
48,83% três anos depois. Em Angola, na
República do Congo e na Guiné Equato-
rial, a parte da dívida relacionada ao PIB
pode até registrar queda de mais de 10
pontos percentuais.2
No entanto, convém continuar a ter
prudência, pelo menos, por três razões.
Em primeiro lugar, por falta de recursos,
os serviços estatísticos desses países so-
frem para produzir dados confiáveis. Em
34 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
segundo lugar, o trabalho informal – que
muitas vezes representa mais de 70% da
atividade econômica –, em grande me-
dida, escapa dos radares da administra-
ção. Enfim, o PIB é, com regularidade,
objeto de reajustes metodológicos; aliás,
trata-se de uma medida perfeitamente
normal, que o FMI preconiza ser aplica-
da, no mínimo, a cada dez anos. Assim,
em setembro de 2020, o PIB de Togo
deu um salto de 36,5%, a partir do mo-
mento em que foi recalculado, tomando
2008 como ano de referência, e não mais
1993. Em 2018, o do Senegal aumentou
29,4%; o da Nigéria, 30%; enquanto a
riqueza anual da Costa do Marfim “sal-
tava” 38% em março de 2020. Ora, cada
vez que a reavaliação é mais alta, dimi-
nui a proporção entre a dívida e o PIB.
Além disso, nos últimos quinze anos,
o papel cada vez maior dos atores pri-
vados mudou profundamente o equi-
líbrio de forças: eles foram detentores
de US$ 216 bilhões de títulos da dívida
dos países da África Subsaariana no fim
de 2021, dos quais 67% eram constituí-
dos por obrigações e 33% por crédito
bancário (Ecofin, 17 jan. 2023). A redu-
ção das taxas de juros, após a crise de
2008, facilitou o acesso de países com
baixa renda ao mercado financeiro in-
ternacional e, paralelamente, incitou
os investidores a se voltarem para es-
ses Estados obrigados a pagar taxas de
juros mais elevadas quando, no mes-
mo período, elas estavam próximas de
0% em um grande número de econo-
Zâmbia, janeiro de 2023. País da África Subsaariana sofre pressão cambial
mias desenvolvidas. Ao apelarem para
financiamentos privados, os Estados
que pediam empréstimos tentaram
se livrar das condições impostas pelas
instituições financeiras internacionais
no momento em que elas lhes concede-
ram empréstimos, principalmente da
obrigação de se submeterem às regras
de livre comércio e da economia liberal.
Então será preciso a cada cinco ou
dez anos liquidar as dívidas dos países
da África Subsaariana? Essa solução
implica o risco de ver as taxas de juros
decolarem em função da incerteza que
atingiria os credores. Esse fenômeno já
pode ser observado, pois, logo após as
agências de classificação de risco – cujo
preconceito em relação a países do con-
tinente são conhecidos3 – acionarem
o dispositivo de alarme sobre as capa-
cidades dos países da região de pagar
suas dívidas, os investidores aumentam
seu prêmio de risco. “As taxas de juros
mais que dobraram para os países da
África Subsaariana desde o fim de 2021.
Por causa desse aumento [...] nos mer-
cados internacionais, nenhum [deles]
®
ofereceu empréstimo ao exterior desde
o início da guerra na Ucrânia”.4 Por isso,
hoje eles se voltam cada vez mais para os
empréstimos nacionais e regionais.
A questão do endividamento é ainda
mais complexa porque os dados se dife-
rem de uma fonte para outra. No que diz
respeito aos 22 credores que fazem parte
do Clube de Paris, a parte da dívida pú-
blica que eles detêm nos países da África
© IMF Photo/Kim Haughton
Subsaariana com baixo rendimento teria
caído de 15% para 3% entre 2007 e 2016,
de acordo com a agência de notícias
Bloomberg (de 25% para 7%, segundo o
Banco Mundial), enquanto a detida por
outros credores bilaterais teria aumenta-
do de 11% para 18%. Entre estes últimos,
a China é, com frequência, considerada
responsável por uma perigosa progres-
são do endividamento africano. Se le-
varmos em conta o think tank American
Enterprise Institute,5 os empréstimos
concedidos por Pequim à África Subsaa-
riana teriam aumentado para US$ 298
bilhões entre 2005 e 2018. O dado é re-
futado pelo Global Development Policy
Center e pela China Africa Research Ini-
tiative, que avaliam que a China empres-
tou por volta de US$ 150 bilhões aos paí-
ses africanos desde o ano 2000. Porém,
o AidData, um órgão especializado em
pesquisa sobre o desenvolvimento in-
ternacional, considera que, não se sabe
com base em que dados, “cerca de 50%
dos empréstimos concedidos pela Chi-
na aos países em desenvolvimento não
figuram nas estatísticas oficiais da dívi-
da”.6 Por falta de pagamento desde 2020,
a Zâmbia está entre dois incêndios. Prin-
cipal credora, a China convocou todos
os credores, inclusive o FMI e o Banco
Mundial, para uma reestruturação pla-
nejada em conjunto. Contudo, Estados
Unidos e União Europeia se recusaram
a participar por temer legitimar as práti-
cas de Pequim no continente.
A DÍVIDA CHINESA
É UMA ARMADILHA?
As críticas dirigidas à China se inscrevem
em um conflito geopolítico mais amplo.
Assim, o presidente francês, Emmanuel
Macron, declarou, em reunião do G5
formado pelos países da região do Sah-
el, em N’Djamena, no dia 16 de fevereiro
de 2021: “Não adianta nada reestruturar
as dívidas africanas concernentes à Eu-
ropa e aos Estados Unidos se for para
contratar outras junto à China”. Em um
estudo publicado em maio de 2022,7
dois pesquisadores, questionando o que
consideram “o mito da armadilha da dí-
vida chinesa”, afirmam que “os órgãos de
administração norte-americanos adver-
tiram para o fato de Pequim endividar a
África, a fim de nela exercer uma influên-
cia política e forçar os Estados africanos
a ceder ativos estratégicos à China”. E
para terminar: “O que impede os dirigen-
tes africanos de dormir não é a armadi-
lha da dívida chinesa, mas os caprichos
do mercado relativo às obrigações”.
A imprecisão em torno dos montantes
de títulos africanos detidos pela China
obscurece o debate sobre a liquidação
da dívida. O que deve ser anulado con-
cretamente e quem deve apagar a dívi-
da, quando a heterogeneidade dos cre-
dores torna difícil uma abordagem úni-
ca? Não é então de espantar que o FMI e
o Banco Mundial “exijam dos países afri-
canos uma prova de transparência sobre
sua dívida com a China”.8 No entanto,
embora Pequim tenha advertido muitas
vezes, Malpass demandou, em abril de
2021, que o mesmo esforço seja feito por
todos os membros do G20.9
Os países superendividados não têm
necessariamente um estoque de dívidas
elevado. O que importa é sua capacida-
de de reembolso, sabendo que suas ne-
cessidades continuam importantes. Di-
minuir as despesas para liquidação das
dívidas certamente constitui um meio
de ação eficaz, mas com eficácia redu-
zida ao longo do tempo. O superendivi-
damento se passa após o processo e se
reproduzirá de tal maneira que suas cau-
sas continuarão. Para os países que de-
pendem muito da exportação de maté-
rias-primas, o presidente do Banco Afri-
cano de Desenvolvimento preconizou,
em junho de 2021, “um mecanismo afri-
cano de estabilidade, de modo a ajudar
as economias africanas a se protegerem
de choques exógenos”.10 Um caminho a
seguir para tratar, pela raiz, o problema
recorrente da liquidação das dívidas?
Evidentemente, existem muitos ou-
tros: reavaliar o PIB em intervalos regu-
lares de pelo menos dez anos; efetuar
auditorias aprofundadas da dívida in-
terna; fortalecer a produtividade agrí-
cola de modo a reduzir as importações
de alimentos (estimadas em 80% da
soma total da ajuda pública ao desen-
volvimento [APD] na região); mobilizar
mais receitas nacionais, ampliando o
equilíbrio fiscal; combater a corrupção
e a saída de capitais ilícitos avaliada em
US$ 85 bilhões por ano; controlar as
despesas militares anuais, equivalentes
a dezessete anos da APD; e renegociar os
contratos de mineração de acordo com
o interesse concreto dos países... Muito
além das liquidações de dívidas ou para
completá-las, pistas é que não faltam.
*Gilbert Germain é doutor em Ciência
Política e autor de Non à un plan Marshall
pour l’Afrique subsaharienne [Não a um
Plano Marshall para a África Subsaariana],
L’Harmattan, Paris, 2022.
1   A gence Ecofin, Paris, 15 fev. 2020.
2   Banco Mundial, série “Africa’s Pulse” [Pulso
da África], v.26, Washington, DC, out. 2022; e
FMI, “Fonds monétaire international, dettes des
Etats, liste 2023” [Fundo Monetário Internacio-
nal, dívidas dos Estados, lista 2023]. Disponí-
vel em: https://www.imf.org/.
3   Ler “Myopie des agences de notation” [Mio-
pia das agências de classificação de risco].
In: L’Atlas du Monde diplomatique. Mondes
émergents [O atlas do Le Monde Diplomatique.
Mundos emergentes], 2012.
4   Ecofin, 31 maio 2022.
5   Ler, de Viviane Forson, “Chine-Afrique: La dette
decola s’envole, c’est grave, docteur?” [China-
-África: a dívida decola. É grave, doutor?], Le
Point, Paris, 4 jan. 2019.
6   Ecofin, 31 maio 2022.
7   Nicolas Lippolis e Harry Verhoeven, “Politics
by default: China and the global governance of
African debt” [Política por negligência: China e
a governança global da dívida africana], Survi-
val, v.64, n.3, Londres, 2022.
8   Ecofin, 16 out. 2020.
9   Ecofin, 8 abr. 2021.
10  Ecofin, 24 jun. 2021.
 JULHO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 35

MÚSICA

A África inventa seu gospel

Em 2020, de policiais suíços a bombeiros de Nova York, o mundo se filmou dançando ao som da
canção sul-africana “Jerusalema”, hino do isolamento social. Com palavras tiradas do Evangelho,
ela é agora um dos emblemas do sucesso da música de inspiração cristã oriunda da África

POR JEAN-CHRISTOPHE SERVANT*

A
© Anderson’s Signature/Wikimedia Commons
mensagem em iorubá – língua
muito disseminada na África
Ocidental – é cristalina: “Jesu
olugbala ni mo fori fun e” [Eu me
entrego a Jesus, o Salvador]. Conserva-
da nos arquivos da British Library, é o
primeiro registro de música religiosa
interpretada por um africano, em 1922,
em Londres. Seu autor, Josiah Jesse (JJ)
Ransome-Kuti, padre anglicano do
protetorado britânico da Nigéria, des-
cobrira “na música um meio poderoso
de atrair pessoas para a igreja”.1 Morreu

®
oito anos depois, não sem antes ter ge-
rado uma linhagem destinada a marcar
a história intelectual e cultural do con-
tinente. Seu neto, Flea Ransome Kuti (o
“Black President”), pioneiro do afro-
beat, lamentava em “Shuffering and
Shmiling” [Sofrendo e rindo], gravada
em 1977, a cegueira com que seus com-
patriotas abraçavam a religião... Traba-
lho inútil: a África contará com 40%
dos cristãos do planeta em 2060, e sua
música religiosa continua em ascen-
são. É um desdobramento livre do re-
pertório litúrgico, fora das capelas e
dos templos, encarnado primeiramen-
te por intérpretes born again, não raro
mulheres, saídos dos centros de culto
evangélico e pentecostal da África Sub-
saariana. Esses artistas da nova música
cristã africana passaram pela expe-
riência de uma conversão pessoal tida
como um “novo nascimento”, uma das
características da fé evangélica, e se Dena Mwana, da República Democrática do Congo, cantando gospel africano, pela Happy People, em dezembro de 2019
distinguem dos intérpretes de cantos
litúrgicos, não remunerados, que só um lugar preponderante, são o coração e sentir o que é, o que pensa da vida e as pretada pela cantora Nomcedo Zikode.
são ouvidos em recintos sagrados. desse nicho da indústria cultural sub- provações pelas quais passou”, constata Suas primeiras palavras, em zulu, na ba-
As consequências socioeconômicas saariana. Segundo uma pesquisa de Evans Netsdhivhambe, professor de Et- tida de limpopo house (um subgênero de
da epidemia de Covid e a necessida- 2015, 13% da população sul-africana nomusicologia na Universidade de Wit- afro-house) foram tiradas do Livro das
de de conforto espiritual contribuíram gostava de ouvir música gospel, isto é, swatersrand, em Johannesburgo. Revelações (Apocalipse, último livro do
para impor às plataformas de streaming cerca de três vezes mais que a média Filial da empresa soul de Detroit, a Novo Testamento). Depois das apresen-
musical uma nova geração de intérpre- mundial.2 Nesse país, o mercado da Motown Gospel Africa inaugurou em tações locais, a canção, impulsionada
tes: eles pregam em lingala, nuchi ou música gospel nacional prossegue fa- 2021 suas operações no continente por concursos de dança organizados na
pidgin nigeriano a palavra divina e os zendo concorrência ao da música “se- com uma assinatura sul-africana, o co- rede social TikTok, espalhou-se primeiro
valores familiares; seus ritmos se ins- cular” graças a grandes formações, bem ral gospel Joyous Celebration, fundado por Angola, ricocheteou em Portugal e
piram tanto nos novos beats urbanos aceitas para além das fronteiras, como o em 1994.4 Sediado em Abidjã, no espa- se impôs como um dos hits europeus do
subsaarianos – amapiano sul-africano, Soweto Gospel Choir, seus intérpretes- ço da Universal Music Africa, a Motown verão de 2020, antes de voltar ao conti-
afrobeat nigeriano – como nos cânones -pastores como Benjamin Dube e um Gospel Africa se empenha também em nente, em um remix com a estrela nige-
da faith music [música ligada à fé] apre- ecossistema dinâmico à semelhança descobrir novos talentos, na esperança riana Burna Boy. Balanço até agora: mais
ciada por mais de 50 milhões de norte- dos SABC Crown Gospel Awards, que de retomar os sucessos internacionais de 558 milhões de acessos no YouHit.
-americanos: rhythm and blues (R’n’B), celebram todo mês de novembro, na obtidos recentemente por três canções Enquanto isso, nos Estados Unidos,
pop, grande orquestra e violinos. televisão pública, o dinamismo dessa cristãs africanas. Uma delas, “Jerusale- outra música de gospel africano dá o
Zimbábue, Essuatíni (antiga Suazilân- corrente musical. Durante o apartheid, ma”, saiu no fim de 2019, produzida por que falar: “The Way Maker”, da nigeria-
dia) e África do Sul, o viveiro da África o gospel provocou críticas e esperança.3 um membro de uma igreja metodista – na Sinach. Ex-cantora do coral da Christ
Austral, onde os corais constituem le- Hoje, “a maior parte dos sul-africanos o DJ e produtor sul-africano Kgaogelo Embassy, uma igreja evangélica fundada
gião e a música vocal continua a ocupar continua a ver nele um meio de exprimir Moagi, ou melhor, Master KG – e inter- pelo polêmico pastor nigeriano Chris
36 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
Oyakhilome (acusado de desvios sectá-
rios), Sinach lançou sua canção no fim
de 2015 pela Loveworld, o selo da casa.
Quatro anos depois, com uma versão
de Michel W. Smith, um cristão branco
americano, “Way Maker” se tornou a
canção de consolo da pandemia glo-
bal e o primeiro hit de gospel “made in
Naija” [produzido na Nigéria] a ficar em
primeiro lugar na classificação do se-
manário Billboard, a bíblia da indústria
musical norte-americana, na categoria
de canção cristã. Finalmente, terceiro
sinal desse renascimento: o sucesso vi-
ral alcançado por “Comment ne pas te
louer” [Como não te louvar], composta
pelo padre belga espiritanista [membro
da Congregação do Espírito Santo] de
origem camaronesa Aurélien Bollevis
Saniko, tornou-se este ano “um hit cató-
lico aclamado até em Ibiza”.5
Essas três canções, amplamente
apresentadas na Trace Gospel, a cadeia
fundada em 2015 pelo grupo de mídias
Audiovisuel Trace TV, “permitiram des-
bloquear as mentalidades na África fran-
cófona e fazê-las entender que não con-
vinha continuarem isoladas”, observou,
em Abidjã, Curtius Blay, o programador
do canal. “Até há pouco”, prosseguiu,
“éramos muito mais conservadores e
tradicionais que os anglófonos. A músi-
ca religiosa só podia ser ouvida na igre-
ja.” A partir de agora, Blay acredita que
um número crescente de jovens cristãos
francófonos born again seguirá essas no-
vas inspirações, “legitimando seu amor a
Deus e, ao mesmo tempo, sua paixão por
músicas urbanas na comunidade, fora
das celebrações religiosas”. O programa-
dor constata ainda “uma nítida profis-
sionalização do gospel francófono, como
se vê por seus clipes”. O que foi realizado
em 2019 para a música “Souffle” [Sopro],
da congolesa Dena Mwana, não deixa
nada a desejar em comparação às pro-
duções anglófonas. “O que os olhos não
viram, os ouvidos não ouviram. Espírito,
tu o sabes, sim, tu o sabes.”
Essa compositora-intérprete faz parte
do primeiro grupo de artistas francófo-
nos patrocinados pela Motown Gospel
Africa. Foi contratada pelo selo Happy
People depois de se destacar em coros
de igrejas evangélicas congolesas. Fun-
dada há dez anos pelo marido de Dena,
Michel Mutahali, com passagem pelo
desenvolvimento de sistemas de pa-
gamento eletrônico e pelo Canal Plus,
essa estrutura se define em sua página
no LinkedIn como “especializada em
concepção e realização de atividades
de cultura e edificação cristã”. Segundo
Mutahali, “o novo gospel tem dois obje-
tivos: a evangelização e a possibilidade
de o artista viver de seu talento”. Como
se diz nesse meio em Abidjã, trata-se de
“entrar no sistema MP3”, ou seja, lançar
uma música a cada três meses.
Na capital econômica da Costa do
Marfim, Souleymane Kone, ou melhor,
KS Bloom, figura em ascensão do rap
local cristão, canta “para aproximar as
pessoas de Deus”. Ele afirma ter encon-
trado o “Criador de todas as coisas” em
2017. A partir daí, sua ascensão foi fulgu-
rante, calcada no lançamento, em 2021,
de seu álbum Allumez la lumière [Acen-
dam a luz] e sua música “C’est Dieu” [É
Deus]. No último verão, sem despertar o
interesse das mídias generalistas fran-
cesas, ele enchia a sala de espetáculos
Casino de Paris. No fim de abril, era uma
das atrações, juntamente com o rapper
Booba, do 15º Femua da Costa do Mar-
fim (Festival de Músicas Urbanas de
Anumabo), idealizado por Salif Traore, o
líder do grupo Magic System. Na esteira
desse jovem artista de 26 anos, nota-se o
surgimento de dissidentes no cenário da
dança coupé-décalé, muitos dos quais se
juntaram a uma das 4 mil igrejas evan-
gélicas do país após a morte acidental
do DJ Arafat, em agosto de 2019.
Com a chegada da nova geração, esse
gospel revisitado também não escapa às
querelas partidárias e aos confrontos.
“Se não prestarmos bem atenção”, ad-
vertia o rapper cristão congolês El Geor-
®
ge em uma postagem de julho de 2022,
“a música urbana cristã não terá mais
nenhuma substância. Se Deus o chama
realmente para servi-Lo na música ur-
bana, você deve também saber impor
sua particularidade. E a particularidade
pode ser trabalhada”.6
Membro da igreja do Exército de Sal-
vação, o pai do gospel de Zimbábue, o
guitarrista Machanic Manyeruke, de 80
anos, autor de cerca de trinta álbuns,
nunca viu nisso um problema.7 “Trata-
-se apenas de ficar convencido pelo que
se canta”, explicou-nos em 2018. Seus
conselhos aos jovens artistas? “Ter fé em
Deus e agir de maneira respeitável para
evitar o pecado. Hoje, o mundo está
cheio de tentações.” Entre elas, o poder
de ganhar dinheiro louvando a Deus.
*Jean-Christophe Servant é jornalista.
1   P hilip Jenkins, “How Africa is changing faith
around the world” [Como a África está mudan-
do a fé no mundo inteiro], Pew, 5 jul. 2016.
2   Darren Taylor, “In South Africa, gospel music
reigns supreme” [Na África do Sul, a música
gospel reina inconteste], VOA, 8 out. 2015.
3   Composto em 1897 por Enoch Sontonga para o
coral da Escola da Missão Metodista de Johan-
nesburgo, onde ele lecionava, “Nkosi Sikelel’ iA-
frica” [Deus salve a África] foi o cântico do Con-
gresso Nacional Africano (CNA) antes de se
tornar um dos dois hinos da nova África do Sul.
4   Murray Stassen, “Universal Music Africa and
Motown Gospel sign superstar South African
music group Joyous Celebration” [Universal
Music Africa e Motown Gospel assinam com o
grupo musical sul-africano Joyous Celebration],
Music Business Worldwide, 19 mar. 2021.
5   “En Côte d’Ivoire, l’engouement pour le rap ch-
rétien” [Na Costa do Marfim, o entusiasmo pelo
rap cristão], RFI, 30 abr. 2023.
6   “El George agacé par les artistes urbain qui imi-
tent Tayc, Hiro” [El George incomodado pelos
artistas urbanos que imitam Tayc, Hiro], Infos
Urbaines, 19 jul. 2022.
7   Sobre essa figura do Zimbábue, ver “Macha-
nic Manyeruke: the life of Zimbabwe’s gospel
music legend” [Machanic Manyeruke: vida da
lenda da música gospel do Zimbábue], de Ja-
mes Ault. Disponível em: https://jamesault.com.
DESTRUIÇÃO MODERNA
A descivilização
POR FRÉDÉRIC LORDON E SANDRA LUCBERT*
F
az anos que se fala disso. E come-
çou em Dordogne, na região
francesa do Périgord. Uma cor-
respondência entregue, em 2020,
em todas as residências: “A coleta de li-
xo vai acabar em 2021”. Comunicado
inquietante, comunicado engraçado:
no começo, não soubemos agir de for-
ma enérgica. Até o início das aparições.
Uma manhã, a caminho do trabalho,
descobrimos, encostados no cemitério:
contêineres. Quatro ou cinco enormes
caixas cinzentas com tampas verdes,
amarelas e marrons – colocadas à beira
dos túmulos. Lixeiras gigantescas ins-
taladas entre os mortos.
Estão perto dessas inscrições: “A partir
de 2021, vocês deverão colocar seus li-
xos nos Pontos de Coleta Seletiva Volun-
tários”. E, depois, outras missivas para
avisar aos habitantes sobre o bom uso
que será feito, no futuro, de sua vonta-
de. Seu remetente: o SMD3 – Sindicato
Misto Departamental de Lixos de Dor-
dogne. Ele também surgiu do nada (ge-
rencial) e, visivelmente, foi criado para
substituir o serviço público encarregado
anteriormente da coleta e do tratamento
do lixo. Até então, uma taxa financiava o
trabalho diário dos lixeiros. Para atingir
o “controle dos custos e dos lixos”, ela foi
substituída por uma “tarifa de incenti-
vo” – que inclui quatro alterações. Uma
delas: calculada de acordo com o volu-
me de lixo efetivamente depositado. A
segunda: qualquer que seja o volume, a
partir de agora, é limitado a um número
de sacos autorizados por residência. A
terceira: os sacos racionados, totalmen-
te cheios de lixos orgânicos muito dete-
riorados apodrecendo (em Dordogne,
no verão, a temperatura habitual é de 34
ºC graus), doravante serão levados pelos
próprios usuários aos Pontos de Coleta
Seletiva Voluntários. A quarta: a tarifa,
entretanto, será três vezes mais elevada
do que era a da coleta dos lixos.
Viver em companhia prolongada
com seus lixos decompostos, trabalhar
gratuitamente e pagar para fazê-lo: ta-
rifa de incentivo.
Os velhos, as pessoas sem condições
de transportar seus sacos extremamente
pesados por quilômetros? Voluntários.
Agora, faz milhares de anos que se
fala disso. Na realidade, em Dordogne,
encontra-se o Vallée de l’Homme. E ali,
no Vale do Vézère, fica Lascaux – “cape-
la sistina da pré-história”, dizia o abade
Breuil. O Homo sapiens tem 300 mil anos
e vem da África, mas esse vale conservou
realizações raramente tão numerosas e
elaboradas: catorze sítios arqueológi-
cos classificados, 6 milhões de objetos
reunidos no Museu da Pré-História da
comuna de Les Eyzies. Eles datam do
Paleolítico Superior, quando o Homo sa-
piens demonstrou suas particularidades:
complexificação das relações sociais e
densificação do imaginário coletivo –
até para inventar a arte, lembra Georges
Bataille.1 Sapiens... é pela simbolização
da existência que ele se distingue. Parti-
cularmente a da morte, iniciada com o
neandertal, mas que, com ele, encontra
seu ponto mais elevado.
Vallée de l’Homme, onde o sapiens in-
ventou a humanidade. Vallée de l’Hom-
me, onde o economicus, atualmente,
mistura mortos e lixeiras.
Desta vez aqui em Paris, 2020. Outro
lugar de prestígio: a Faculdade de Medi-
cina de Paris-V. Seu presidente, Frédéric
Dardel, e dois funcionários do centro de
doações de corpos foram investigados
por “danos à integridade física de cadá-
veres”. Cadáveres, não importa quais.
Homo sapiens que renunciaram à sim-
bolização funerária para que os Homo
sapiens continuem a existir: doaram
voluntariamente seu corpo à ciência.
Empilhados, desmembrados, decom-
postos, guimba de cigarro nas vísceras,
ratos e vermes pululando, solos imun-
dos, câmaras frias que não funcionam,
muitos deles incinerados, encontra-
dos em malas de carros, vendidos para
crash tests [testes de colisão]. Doações
de corpos tratados como lixos: uma
morte simbólica. Whodunnit? [Quem
matou?]. O Homo economicus. A arma
do crime: o controle dos custos. De 2012
a 2019, as materializações vieram, no
entanto, de diversos lugares: relatório
da medicina do trabalho, auditoria do
escritório KPMG, inspeção do Ministé-
rio da Educação Superior, carta de de-
missão da presidenta do comitê de éti-
ca. A secretária-geral do centro de doa-
ção, em um de seus múltiplos e-mails
de alerta, acabou escrevendo: “Não está
longe da barbárie”.
Seria preciso mais tempo para impe-
dir que Dardel entrasse no gabinete de
Frédérique Vidal, ministra da Educação
Superior e de Pesquisas. Até precisa-
mente o momento em que, com o es-
cândalo incontestável, foi considerado
preferível garantir sua saída – mas dig-
namente: realocado como conselheiro
do presidente do Inserm [Instituto Na-
cional da Saúde e da Pesquisa Médica].
No mundo da racionalidade gerencial,
a barbárie se instrumentaliza – e faz car-
reira. O Homo economicus calcula, e o
simbólico não é incluído em suas colunas
de números. Ele se apropria da universi-
dade e da pesquisa: 25 anos de abandono

dos corpos destinados ao aprendizado
da medicina. O Homo economicus é in-
fame: uma doação não é mais um favor.
Uma doação é um custo – a conservação
dos corpos custa caro. Quanto aos cus-
tos, é preciso controlá-los. Não só o dos
lixos, mas também o dos mortos.
VOCÊS DISSERAM DESCIVILIZAÇÃO?
No mínimo, uma morte no presente.
Porém, mascarada por outras. Em Rei-
ms, após um surto, um psicótico agrediu
com uma faca três assistentes de enfer-
magem. Uma delas morreu. Whodun-
nit? A pergunta parece absurda, uma vez
que a resposta é evidente: é óbvio que
o assassino é quem estava com a faca.
Para o Homo economicus, não é preciso
continuar a procurar mais. Nós o com-
preendemos. Se a pesquisa fosse conti-
nuada, ela poderia terminar mal. É que
as rápidas notícias sangrentas desse tipo
curiosamente se parecem. Todas elas fa-
lam de “um passado psiquiátrico pesa-
© Pascal Rossignol/Reuters
Pilhas de lixo ultrapassam limites de contêiners e prejudicam o espaço urbano, em 17 março de 2023, na França
do”. Mesmo as mídias que dão conta do
que acontece não podem jamais dizê-lo
e passam logo para outra abordagem:
passam a denunciar a “descivilização” e,
depois, dão a palavra aos recivilizadores.
Ora, se continuar a pesquisa, os pró-
prios recivilizadores também têm um
ponto em comum: todos recorreram, ou
recorrem, à utilização das políticas do
Homo economicus, ou as apoiam. Aque-
les que pensam, em primeiro lugar, em
reduzir os impostos dos ricos destroem
metodicamente o serviço público do Es-
tado. Destroem os hospitais. Destroem
os hospitais psiquiátricos. Destroem as
instituições que trabalham com a saúde
mental. Reduzem as vagas para o aten-
dimento, degradam as condições de
acolhimento e de tratamento. Quantos
indivíduos perigosos para si mesmos e
para os outros são abandonados à deri-
va? Na realidade, o Homo economicus só
se interessa por alguns cálculos e negli-
gencia todos os outros.
®
JULHO 2023
Por exemplo: saber o que, de uma
sociedade maltratada, resulta na epi-
demiologia da doença mental, isso não
lhe interessa. Que o sofrimento social
potencializa o sofrimento psíquico in-
dividual para lhe infligir mais adversi-
dade do que uma psique pode susten-
tar, possivelmente até o surto assassino:
isso não lhe interessa. Então, os que têm
surtos se multiplicam, assim como suas
passagens ao ato, por causa de uma lei
social semelhante à que Durkheim ti-
nha estudado a propósito do suicídio. É
muito pior para aqueles que, com a des-
truição das estruturas de atendimento,
foram deixados não se sabe onde, e
muito pior também para aqueles que
cruzam seu caminho.
Um ministro recivilizador da Saúde,
agente metódico da destruição, desco-
briu a maneira de se defender: catracas
eletrônicas e câmeras na entrada dos
hospitais. Seu colega recivilizador das
Finanças aprova: poderemos continuar
Le Monde Diplomatique Brasil 37
a reduzir os impostos (dos ricos). O dire-
tor dos recivilizadores se vangloria – po-
demos denunciar a descivilização. Nós
o chamamos de Homo Œconomicus I,
pois ele é Sua Majestade, a Economia.
Neste momento, surge uma dúvida:
lixeiras-cemitério nos locais da esco-
la de medicina em que se guardam os
cadáveres, passando pelos maus-tra-
tos sociais e institucionais de psiques:
quem desciviliza? Quem, na realidade,
é o descivilizador? Temos um comba-
tente orgulhoso, muito inspirado, mui-
to barulhento, da civilização. Ele não
poderia, então, ser questionado. No
entanto, é exatamente o mesmo que
devasta, que destrói, que garante seu
reino com a violência social do capital,
que a propaga em toda a sociedade – e a
leva ao limite máximo.
Ora, quando ela não é o capricho de
um reles jornalista paranoico de extre-
ma direita, a descivilização é compreen-
dida como a destruição das instituições
que contêm a parte inclinada à violência
inerente aos seres humanos em grupo.
É exatamente a isso que se dedicam os
proclamados recivilizadores – verdadei-
ros descivilizadores reais. Ironia do des-
tino: o diretor dos descivilizadores é o
Homo Œconomicus I.
As escavações mostraram que o sa-
piens se preocupava com seus deficien-
tes – cuidava deles, até mesmo quando
morriam: afinal, um túmulo não juntava
uma criança deficiente com um adulto
que, sem dúvida, estava presente ao seu
lado para acompanhá-la no além? Eis aí
o que é a civilização. É inútil perguntar,
em relação a isso, qual é a posição do
economicus: “os outros” e “doar” não
lhe interessam; sua grande questão é “si
mesmo” e “se apropriar”. O discurso da
descivilização proferido pelos próprios
descivilizadores simplesmente adquire
uma pompa mais sinistra.
Uma assistente de enfermagem mor-
reu com os golpes de um indivíduo ar-
mado, isso é fato. Entretanto, em última
análise, trata-se do sapiens assassinado
pelo economicus. Entre os dois, existem
as ilustrações concretas do economicus:
o Œconomicus I. Suas decisões concre-
tas e seus efeitos concretos: o abandono
do atendimento, os cemitérios cheios de
lixeiras, os corpos profanados.
Desde a atenção aos mais fracos até
o respeito aos mortos, o Homo econo-
micus destrói as mais antigas estruturas
simbólicas, aquelas que, precisamen-
te, tinham simbolizado a entrada da
humanidade na civilização; em outras
palavras, o surgimento da humanidade
como humanidade. Enquanto isso, ele
se considera moderno.
Vocês disseram descivilização?
*Frédéric Lordon é filósofo; e Sandra
Lucbert é autora de obras de literatura.
1   L
 ascaux ou la naissance de l’art [Lascaux ou o
nascimento da arte], L’Atelier Contemporain,
Paris, 2021.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2023
MISCELÂNEA
livros
A CHEGADA DO
CORONEL NO EXÍLIO
Yuri Machado,
InVerso
D ada a guinada militar de nossa vida pública, é
oportuno o lançamento de A chegada do coro-
nel no exílio (InVerso, 2022), de Yuri Machado. O
protagonista do romance, tendo sido um dos bra-
ços da ditadura militar nos porões de tortura, deci-
de se exilar em seu sítio na Região Metropolitana
de São Paulo quando intui ser investigado pela Co-
missão Nacional da Verdade.
O lugar do paranoico autoexílio já se mostra uma
escolha afiada do autor. Se os perseguidos pela
ditadura (os que sobreviveram) tiveram de deixar o
Brasil, o asilo do coronel aposentado se dá por seu
desejo, em sua propriedade e dentro do país que
anistiou os responsáveis pelos crimes de Estado
do século passado.
Disse Toni Morrison que todos os romances são
sobre raça. Aqui o cenário passa mesmo a am-
TECNOLOGIA DO
OPRIMIDO: Desigualdade
e o mundano digital nas
favelas do brasil
David Nemer,
Milfontes
T ecnologia do oprimido: desigualdade e o mun-
dano digital nas favelas do Brasil é o segundo
livro de David Nemer, professor do Departamento
de Estudos de Mídia da Universidade de Virgínia
(Estados Unidos) e pesquisador dedicado a investi-
gar a relação entre tecnologia e sociedade.
O livro resulta de uma pesquisa etnográfica desen-
volvida por Nemer no chamado “Território do Bem”,
em Vitória (ES), oferecendo uma abordagem inova-
dora que não só busca compreender como as tecno-
logias digitais podem ser ao mesmo tempo locais de
opressão e ferramentas de libertação dos oprimidos,
mas também serve para lidar com a possível inter-
venção destinada à conscientização e à criação de
demandas por mudanças. Partindo do conceito de
“opressão” cunhado por Paulo Freire, o autor analisa
os oprimidos como agentes autônomos de transfor-
mação no campo de batalha digital, contrariando os
estudos que os tratam como meros consumidores
de tecnologia. Ao focalizar as pessoas marginali-
zadas como usuárias e produtoras de “tecnologia
mundana”, o livro evidencia como que esses sujeitos
bientar uma das mais persistentes histórias da
branquitude brasileira. Pois o coronel se exilaria
sozinho, obrigado a trabalhar na manutenção do
sítio? Claro que não. O eixo do livro é sua convi-
vência com o caseiro Marcos. “Convivência” é um
eufemismo terrível: para Marcos, o coronel é “seu
Lopes”, fonte de gradativos desmandos, mediados
pela perversa cordialidade brasileira. Para lembrar
o conto “O espelho”, de Machado de Assis, Marcos
é a farda do coronel.
Com azia acompanhamos as ações e ideias tor-
pes do protagonista, ao mesmo tempo que, fora
das páginas, assistimos a herdeiras de generais
quebrando Brasília para salvaguardar seus privilé-
gios de classe e raça. Esse desconforto também é
induzido pela forma do romance, que tensiona cer-
tas convenções realistas, solicitando-nos alguns
reajustes de lentes. Um de seus feitos literários diz
respeito ao narrador. Que lugar social ocupa essa
perspectiva que, tal qual Thomas Pynchon, fixa nos-
sos olhos na escatologia dos homens da lei? Essa
®
voz narrativa se desdobra no livro, mas não convém
adiantar demais o enredo, para não frustrar o inte-
resse da leitura. Convém ler – e refletir sobre essa
obra que, de modo tão particular, dá forma ao revide
autoritário que cinde o Brasil.
[ Patrícia Anette] Doutoranda em Literatura Brasi-
leira pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
que se encontram fora dos centros de poder tecno-
lógicos e sociais conseguem utilizar materiais e co-
nhecimentos decorrentes da tecnociência profissio-
nal para produção sociotécnica em espaços como
os tecnocentros e as lan houses, o que possibilita o
empoderamento dos moradores das favelas, mesmo
diante da existência de uma “tecnologia do opres-
sor”, e revela ainda uma “tecnologia da esperança”.
Em síntese, ao relacionar a experiência digital com
os processos de exclusão e opressão historicamen-
te constituídos na realidade do país, a obra expõe
as diferentes formas de dominação que atuam so-
bre a vida dos moradores de favelas apresentando
uma perspectiva interseccional que enfatiza o modo
como tais opressões assumem novos contornos na
interação com essas tecnologias emergentes.
[ Ana Clara Elesbão, Pablo Ornelas Rosa e Augus-
to Jobim do Amaral] Respectivamente, pesquisa-
dora em plataformas digitais, mestre e doutoranda
em Ciências Criminais pela PUC-RS; professor da
UVV; e professor da PUC-RS.
internet
NOVAS NARRATIVAS DA WEB
Sites e projetos que merecem seu tempo
CRIMES DE BOLSONARO
O Dossiê Bolsonaro é um levantamento iné-
dito que lista, categoriza e tipifica as diversas
falas, ações e condutas potencialmente cri-
minosas do principal líder da extrema direita
brasileira, Jair Messias Bolsonaro. Feito pelo
Projeto Capivara, um coletivo independente
dedicado a investigar os crimes da extrema
direita no Brasil e mobilizar a população por
Justiça, foi produzido para ser um registro
sólido e duradouro da trajetória política de
Bolsonaro, com informações verificáveis a
respeito de suas atitudes e discursos em
temas fundamentais para a população e a
democracia brasileiras.
www.dossiebolsonaro.com
“SUPORTARIA MAIS
UM POUQUINHO? ”
Tatiana Dias, editora do Intercept, é uma
das responsáveis pela reportagem que re-
velou a conduta da justiça para tentar in-
duzir uma menina de 11 anos grávida após
estupro a desistir do aborto legal. O traba-
lho foi indicado recentemente ao mais im-
portante prêmio do jornalismo ibero-ame-
ricano. “Um trabalho difícil e doloroso, mas
necessário, que teve impactos imediatos na
vida daquela criança, expôs uma conduta
profundamente questionável de duas agen-
tes públicas e, até hoje – um ano depois –,
está gerando ataques contra a liberdade de
imprensa e nossos direitos reprodutivos.”
Feito em parceria com o Portal Catarinas, é
um dos trabalhos de maior impacto da his-
tória do Intercept Brasil.
bit.ly/catarinas-premio
PALAVRA E RESISTÊNCIA
Ome, Pütchi, Poraû é um projeto inovador de
jornalismo colaborativo e intercultural, uma
série que retrata a diversidade e os conhe-
cimentos indígenas de povos como Wayuu,
Gunadule e Tikuna, que habitam regiões da
selva amazônica e atravessam fronteiras
entre Colômbia, Venezuela, Panamá, Brasil
e Peru. Com 24 mulheres indígenas como
protagonistas, o projeto destaca sua relação
profunda com a terra, sua espiritualidade e
sua identidade ancestral, revelando histórias
poderosas que ultrapassam barreiras cultu-
rais e geográficas. Produzido em espanhol
pelo site independente Agenda Propia.
bit.ly/palabra-resistencia
[ Andre Deak ] Diretor do Liquid Media
Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
pela ECA-USP e doutorando em Design
na FAU-USP.
 JULHO 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 39

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LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa
Que capa linda, emocionante. O único líder Ano 15 – Número 192 – Julho 2023
relevante mundial realmente empenhado www.diplomatique.org.br
em fomentar a paz por meio de um bloco
neutro de países é no mínimo louvável.
Fábio Henrique Nunes, via Instagram DIRETORIA
02 Assim se ganha o brevê europeu da respeitabilidade
O modelo Meloni
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Silvio Caccia Bava
Votei no Lula, mas essa capa tá exagerada ou, na Diretores
melhor das hipóteses, desatualizada, tendo em Por Benoît Bréville Anna Luiza Salles Souto, Jorge Romano, Maria Eliza-
beth Grimberg e Rubens Naves e Vera da Silva Telles
vista os últimos pronunciamentos dele sobre
temas internacionais sensíveis. Faz parecer 03 Editorial
O controle da máquina pública Editor
que o Lula é a luz do mundo, e não é o caso. Por Silvio Caccia Bava Luís Brasilino
Airton Bruno, via Instagram Editora-web

Que alegria voltar a ver uma capa do Diplomatique

04 Capa
Os direitos indígenas e o atual
Bianca Pyl

civilizada e não trevosa como foi a dos últimos anos... momento político no Brasil Editor de Arte
Cesar Habert Paciornik
Agnaldo Silva, via Twitter Por Luis Ventura Fernández
Estágio em Jornalismo
Política externa em busca de um norte. Quem são os verdadeiros Carolina Azevedo e Eduardo Lima
E de um sul também invasores de terra do Brasil?
Estágio em Design
Felizmente meu Norte será sempre o Sul. Por Ayala Ferreira e Patrick Mariano Helen Saori
Felipe Domingues, via Instagram
Os desafios da articulação política de Lula Planejamento estratégico
Por Joyce Luz, Maiane Bittencourt, Numa Sales de Paiva
“Ambiguidades”? Então na opinião do articulista
é uma ótima ideia bancar a briga da Ucrânia? O João Feres Jr. e Júlio Canello Revisão
Lara Milani e Maitê Ribeiro
que o Brasil tem a ganhar entrando numa guerra Entre a normalidade democrática,
a milhares de quilômetros? Já o que Brasil tem a a polarização e a mobilização social Gestão Administrativa e Financeira
ganhar numa relação com seu vizinho regional Lúcia Benito da Silva Ricco
Por Josué Medeiros
que tem simplesmente a maior reserva de Tradutores desta edição
petróleo do mundo, além de dividir centenas de
quilômetros de fronteira em plena Amazônia, é
12 Uma figura épica e paternalista
O gaucho de todos os argentinos
Carolina M. de Paula, Celina Olga, Frank de Oliveira,
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
bastante claro, não? Ambiguidades... Faz-me rir. Por Fabien Palem

Reynaldo Carvalho, via Instagram
O que há dos protestos de 2013 no Brasil de 2023?
Eu não acho que 2013 seja diferente de 2023.
A diferença era que parecia um movimento
democrático. Hoje, sabendo de todos os truques,
começa a ficar claro que MBL, black blocs, lava-
jatistas eram tudo farinha do mesmo saco. Os
black blocs podem muito bem ser militares. E o
MBL precisa ser investigado pelos recursos.
Marcelo Ferraro, via Instagram
®
Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
14 Diante das tutelas religiosa, estatal e ocidental
Efervescência feminista no Oriente
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Médio e no norte da África Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
Por Hicham Alaoui José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
17 Rumo à jornada de 69 horas
A outra face do milagre coreano
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
e Vera da Silva Telles.
Por Renaud Lambert, enviado especial
Assessoria Jurídica
20 Fiança, o pilar do sistema
judicial dos Estados Unidos
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

Escritório Comercial Brasília

É o Lula que está unindo os países da América
Latina novamente, é o Lula que está cobrando
os acordos sobre baixo carbono saírem do
papel, é o Lula que está empenhado e que reúne
outros países para tratar a paz na Ucrânia, ele
está sendo bem representado por essa capa.
@artyunhas, via Instagram
Liberdade com fins lucrativos Marketing 10: José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Por Charlotte Recoquillon Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
jh@marketing10.com.br
22 “Se Putin quiser vir, ele virá”
A Estônia à beira da guerra
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria
Por Damien Lefauconnier, enviado especial com o Instituto Pólis.
24 Franquismo, colonialismo e hostilidade
às autonomias regionais
Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Tel.: 55 11 2174-2005
Do centro ao extremo, o eterno diplomatique@diplomatique.org.br
pêndulo do PP espanhol www.diplomatique.org.br

O DIPLÔ AGORA TEM UMA NEWSLETTER Por Maëlle Mariette Assinaturas: Lúcia Benito da Silva Ricco
assinaturas@diplomatique.org.br

Inscreva-se na 27 Uma ficção italiana no meio dos anos de chumbo

As duas mortes de Aldo Moro
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Déjà-vu usando Por Eugenio Renzi ESKENAZI Indústria Gráfica, CNPJ 61.069.100/0001-69
Av. Miguel Frias e Vasconcelos, 1023
o QR CODE ao lado
28 “Escutai, povo da França, o acidente
memorável de um crime abominável”
Jaguaré, São Paulo - SP,
CEP 05345-000
Crimes, canards e canções
Por Jean-François “Maxou” Heintzen*

30 A difícil luta contra o plástico

Um novo tipo de poluição dos oceanos
Por Mohamed Larbi Bouguerra LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)

32 Transferência de renda, mas sem investimento

O Vale do Silício contra o desenvolvimento
Fundador
Hubert Beuve-Méry
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil : Por Anton Jäger e Daniel Zamora Presidente, Diretor da Publicação
envie suas críticas e sugestões para Benoit Bréville
diplomatique@diplomatique.org.br 33 Um fardo real, mas talvez exagerado
A dívida africana: mitos e realidade Redator-Chefe
As cartas são publicadas por ordem Akram Belkaïd
Por Gilbert Germain
de recebimento e, se necessário, Diretora de Relações e das Edições Internacionais
resumidas para a publicação. 35 Música
A África inventa seu gospel
Anne-Cécile Robert

Por Jean-Christophe Servant Le Monde diplomatique

Os artigos assinados refletem o ponto de 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France

36 Destruição moderna secretariat@monde-diplomatique.fr

vista de seus autores. E não, necessariamen- www.monde-diplomatique.fr
te, a opinião da coordenação do periódico. A descivilização
Por Frédéric Lordon e Sandra Lucbert Em novembro de 2021, o Le Monde Diplomatique contava
com 31 edições internacionais em 22 línguas:

Capa: © Cris Vector

38 Miscelânea 24 edições impressas e 7 eletrônicas.
ISSN: 1981-7525
 tu da ntes , pesq ui sa do res e jo rnalistas, o
Es

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