Você está na página 1de 12

Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

BITCOIN COMO SALVAGUARDA AOS


DIREITOS HUMANOS

BITCOIN AS A SAFEGUARD TO HUMANS


RIGTHS

Marcelo Augusto Miyoshi Chagas1


Renaldo Rodrigues Júnior2

RESUMO
Este presente trabalho procura demonstrar a ligação entre o Bitcoin e os Direitos Humanos,
indicando as principais aplicações no âmbito na Constituição Federal do Brasil e dos tratados
internacionais sobre Direitos Humanos. Para tanto, buscou-se introduzir o funcionamento do
Bitcoin e sua tecnologia Blockchain. Após, procurou-se a definir os Direitos Humanos postos
na Carta Magna brasileira, notadamente quanto aqueles dispostos nos tratados
supramencionados. Por fim, estas ideias são relacionadas, buscando apontar os principais
valores que advêm desta nova tecnologia.

Palavras-chave: Bitcoin; criptomoeda; blockchain; Constituição Federal do Brasil; Tratados e


convenções sobre Direitos Humanos.

Abstract: This present work seeks to demonstrate the link between Bitcoin and Human Rights,
indicating the main applications within the scope of the Federal Constitution of Brazil and
international treaties on Human Rights. To do so, we sought to introduce the operation of
Bitcoin and its Blockchain technology. Afterwards, an attempt was made to define the Human
Rights placed in the Brazilian Magna Carta, notably as those provided for in the aforementioned
treaties. Finally, these ideas are related, seeking to point out the main values that come from
this new technology.

Keywords: Bitcoin; cryptocurrency; blockchain; Federal Constitution of Brazil; Human Rights

1
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ribeira – UNIVr.
2
Advogado. Especialista em Direito. Professor do Centro Universitário do Vale do Ribeira – UNIVr.
194
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

Treaties and Conventions.

195
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

INTRODUÇÃO

De acordo com os ensinamentos de Charles Darwin1, as espécies evoluem através de


um processo natural. De forma correspondente, as relações sociais humanas se desenvolvem
com o decorrer do tempo. Diante de tal atributo, o sistema financeiro da humanidade alcançou
a condição moderna, qual seja o Estado como ente organizado e superior no controle da emissão
de moeda. Corroborando tal fato, a Constituição brasileira dispõe: “a competência da União
para emitir moeda será exercida exclusivamente pelo Banco Central”.2
Em um cenário utópico, o Estado cumpriria com seu dever, munido de probidade e
responsabilidade, pois a base econômica é um alicerce de uma sociedade. Mas não é o que
ocorre na prática, conforme expõe Fernando Ulrich:

“A ganância, a desregulamentação do setor financeiro, os excessos dos bancos ou,


simplesmente, o capitalismo, são todos elementos apontados como os causadores da
crise. Mas é justamente o setor financeiro, aquele em que a intervenção dos governos
é mais presente e marcante, seja em países desenvolvidos, seja em países em
desenvolvimento.”3

O caso narrado refere-se a quebra do banco Lehman Brothers, em que a ingerência do


Federal Reserve (Banco Central Americano) ocasionou a grande crise econômica nos Estados
Unidos e no mundo no ano de 2008. Tal episódio é considerado o marco inicial para a criação
do Bitcoin e sua tecnologia Blockchain.
Portanto, este trabalho busca demonstrar a responsabilidade do Estado no trato da
economia, o surgimento do Bitcoin como consequência e a pertinência do tema quando
confrontados com os Direitos Humanos postos na Constituição Federal e na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos.

1. AMBIENTE HISTÓRICO E A CRIAÇÃO DO BITCOIN

O ano é 2008, em que o emblemático caso de falência do banco Lehman Brothers,


considerado “too big to fail”4, parece marcar o resultado de uma série de experimentos
monetários articulados pelos Estados Unidos da América e ser considerado o estouro da bolha.
De acordo com Ulrich:

1
DARWIN, C. A Origem das Espécies. Hemus – Livraria Editora Ltda, São Paulo, SP. 16
2
Art. 164 da Constituição Federal de 1988.
3
ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p. 35.
4
“Muito grande para falhar” se refere a um empreendimento econômico tão imenso que sua ruína causaria o
colapso de um sistema inteiro.

196
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

A queda do Lehman foi certamente um ponto de inflexão na crise. A partir daquele


momento, os bancos centrais passaram a atuar com uma discricionariedade e
arbitrariedade sem precedentes no mundo desenvolvido5.

De maneira sucinta, a atuação do Federal Reserve neste episódio foi determinante, de


modo que as políticas de concessão de créditos, notadamente quanto a transmissão por meio de
reservas fracionárias6, acarretou excessiva oferta monetária. Nesse sentido, a intervenção
orquestrada pelo Estado americano levou ao acaloramento efêmero da economia, o que logo
resultou nas consequências de um sistema artificialmente inflado7.
A consequência final prática para a sociedade é o aumento de preços, causados pela
inflação. Nas palavras de Mises:

“Para evitar levar a culpa pelas conseqüências nefastas da inflação, o governo e seus
seguidores recorrem a um truque semântico. Eles tentam mudar o significado dos
termos. Eles chamam de "inflação" aquilo que é justamente a conseqüência inevitável
da inflação: o aumento dos preços. Eles ficam ansiosos para relegar ao esquecimento
o fato de que esse aumento dos preços é produzido justamente pelo aumento da
quantidade de dinheiro e de substitutos monetários na economia. E eles nunca
mencionam esse aumento8”.

O conceito tradicional de inflação é na verdade a consequência da expansão da base


monetária9. Ou seja, o aumento dos preços de bens e serviços é o sintoma da doença
inflacionária.
Destarte, os atos errôneos praticados pelos Estados refletem no aumento de preços
para a parte mais vulnerável. Aquele que deveria se beneficiar com a entrega de sua
liberdade aoLeviatã10, é o que mais se prejudica.

Ao cidadão comum, resta assistir ao valor do seu dinheiro esvair-se, enquanto


banqueiros centrais testam suas teorias, ora para salvar bancos, ora para
resgatar governos quebrados, mas sempre sob o pretexto da inatingível
estabilidade de preços. Na prática, a única estabilidade que existe é a da perda

5 ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p. 39
6 Aqui, Ulrich explica que o mecanismo das reservas fracionárias consiste na situação em que o banco,
ao receber dinheiro para depósito, mantenha apenas uma pequena parte em reserva e consiga
emprestar o resto a sociedade. p. 37
7 ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p. 38
8 Ver MISES, Ludwig von. A verdade sobre a inflação, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 27 mai. 2008.

Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=101>. Acesso em: 23 ago. 2021.


9 Ato praticado por Bancos Centrais aumentando a oferta de moeda circulante.
10 Referência criada por Thomas Hobbes ao Leviatã bíblico, um ser imenso análogo ao Estado. Em seu

livro Leviatã. Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.

197
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

do poder de compra da moeda, e quanto a esta, a impotência da sociedade é


absoluta.11

Diante desse contexto temporal é que Satoshi Nakamoto, em 31 de outubro de 2008,


publica seu periódico denominado “Bitcoin: a Peer-to Peer Eletronic Cash System12”. Uma
espécie de dinheiro eletrônico dissociado da ideia de um ente central controlador ou emissor,
transferível de pessoa para pessoa (ULRICH, p. 41).
A visão crítica de Nakamoto acerca do atual sistema monetário é patente, de modo que
a transação gênesis13 do Bitcoin contêm referência a uma manchete do jornal The Times14, como
bem explica Ulrich:
A alusão à manchete do jornal britânico The Times daquele dia não é acidental.
É, na verdade, um claro indicativo da visão crítica de Satoshi
sobre o sistema bancário e a desordem financeira reinante. Nesse contexto, o
projeto Bitcoin vinha a ser uma tentativa de resposta à instabilidade financeira
causada por décadas de monopólio estatal da moeda e por um sistema bancário
de reservas fracionárias.15

1.1 COMO FUNCIONA O BITCOIN

Para transacionar alguma unidade monetária pela rede mundial de computadores se faz
necessário a presença de uma terceira parte, que atua na qualidade de intermediador, como os
tradicionais serviços de bancos ou grandes empresas (Paypal, Visa e Mastercard). Tal mediador
mantém os registros contábeis, conseguindo demonstrar o saldo e o quanto foi movimentado,
retirando a diferença de uma de pessoa para outra de maneira segura. Ocorre que o Bitcoin se
apresenta com a ideia de eliminar tais intermediários, permitindo que a transação seja
confirmada de maneira orgânica, através de seu sistema blockchain16. Este sistema permite que
as transações efetuadas na rede sejam registradas em uma espécie de livro-razão17, contendo o
historial completo de todas as negociações, de modo que as novas transações possam ser
confrontadas com o blockchain para aferir a sua validade.

11
ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p.39.
12
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: a Peer-to-Peer Electronic Cash System, 2008. Disponível em:
<http://article.gmane.org/gmane.comp.encryption.general/12588/>. Acesso em:
13
O Bitcoin, por ser uma moeda totalmente digital, realiza suas transações por meio da rede mundial de
computadores por meio de regras predeterminadas, conforme será melhor aprofundado adiante.
14
Disponível em: <https://en.bitcoin.it/wiki/Genesis_block>. Acesso em: 11/09/2021.
15
ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p.43.
16
Traduzido para o português: blocos em corrente
17
O Livro Razão é um livro contábil que tem a finalidade de demonstrar a movimentação analítica das contas
contábeis escrituradas no Livro Diário de forma individualizada.

198
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

Por se tratar de um arquivo digital, nada impediria (sem haver um intermediário) que
determinado indivíduo pudesse replicar o arquivo e transacionar por várias vezes utilizando a
mesma moeda. É o que se denomina de gasto duplo. Entretanto, tal efeito é solucionado pela
rede do Bitcoin, de forma que as transações são confrontadas quando requisitadas ao blockchain.
A rede que faz a aferição das negociações não é um ente centralizado que decide unilateralmente
quem está ou não correto, mas sim uma verdadeira rede dos próprios usuários que fornecem a
força computacional. Em verdade, a organização criptográfica é totalmente realizada pelo
hardware18, não necessitando de ação humana para verificar e validar as transações (ULRICH,
p 20).
Vale destacar que o Bitcoin é um software19 (programa de computador) de código aberto,
significando que o seu funcionamento é exposto para todos, não podendo ser alterado de
maneira unilateral nem mesmo pelo seu próprio criador.20

1.2 POSSÍVEIS USOS DO BITCOIN

O Bitcoin não serve apenas como moeda digital para realizar transações entre pessoas,
mas também para oferecer resistência diante do jugo do Estado. Mais precisamente no que tange
à liberdade econômica. Veja, o Estado é incapaz de desvalorizar a rede, emitir mais Bitcoins ou
subtrair forçadamente de quem quer que seja.
Governos não podem inflacionar bitcoins. Governos não podem apropriar-se
da rede Bitcoin. Governos tampouco podem corromper ou desvalorizar
bitcoins. E também não podem proibir-nos de enviar bitcoins a um comerciante
no Maranhão ou no Tibete21.

Este uso é a problemática abordada neste presente artigo. A possibilidade do indivíduo


poder se insurgir contra os maculados atos praticados pelo Estado no trato da saúde econômica.
Oferecendo um verdadeiro freio ao ímpeto do Leviatã. Utilizando os próprios direitos e
garantias fundamentais gravados nos tratados sobre Direitos Humanos e na Constituição
Federal brasileira.

2. DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL

18
Conjunto de equipamentos físicos que compõem um computador, juntamente com seus equipamentos
periféricos.
19
Reunião dos procedimentos e/ou instruções que determinam o funcionamento de um computador
https://www.dicio.com.br/software/
20
NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: a Peer-to-Peer Electronic Cash System, 2008. Disponível em:
<http://article.gmane.org/gmane.comp.encryption.general/12588/>. Acesso em: 15. set. 2021.
21
ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p.105.

199
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

Na data de 2 setembro de 1945, terminava a Segunda Guerra Mundial, episódio marcado


pela violência generalizada dos conflitos entre as nações. Contando com milhões de mortos e
cidades desintegradas.
Em consequência de tamanho massacre aos Direitos Humanos, é que os Governos
mundiais perceberam que alguma medida deveria ser tomada para evitar que tal episódio se
repetisse. Então, em 10 de dezembro de 1948 foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos22. Ficando sedimentado em seus trinta
artigos, os Direitos Humanos considerados básicos, inerentes a todos os indivíduos e sem
distinção de nenhum gênero. Em seguida, tais direitos ora estabelecidos seriam ampliados pela
Declaração de Viena em 1993, de modo que os Estados deveriam atuar com maior seriedade
para promover e proteger essas garantias23.
Assim sendo, Castilho nos resume tais direitos “(...) como direitos que pertencem à
pessoa humana, independentemente de leis, estes: vida, liberdade, igualdade e segurança
pessoal. São direitos universais e indivisíveis24”

2.1 CONSTITUIÇÃO CIDADÃ


“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL25”.

Assim é disposto o prefácio da Constituição Federal de 1988. Visivelmente pode-se


entender o cuidado do poder constituinte originário no tratamento dos direitos humanos, não
apenas pelo fato da comunidade internacional pleitear pela cooperação nesse sentido, mas
também pelos recentes episódios de tirania estatal no âmbito interno.
É também chamada de “Constituição Cidadã”, na medida que proporciona extensa
proteção aos direitos humanos, demonstrando ampla disposição em aceitar e ratificar os mais

22
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 15. set. 2021
23
CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 11. 24
CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 11. 25
BRASIL. Constituição (1988) preâmbulo.

200
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

diversos tratados sobre Direitos Humanos. Notadamente para aqueles que haviam sido
veementemente suprimidos pelo Governo militar26.
Esses ideais da nova constituição não se limitam apenas ao preâmbulo, ou ao campo das
ideias. Em verdade o legislador constituinte se esforçou para trazer efetividade a esses valores
humanitários. A título de exemplo, o artigo 4º expressamente dispõe:

“Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações


internacionais pelos seguintes princípios:
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.27”

É indiscutível a proteção ampla e geral que o texto constitucional alude, fazendo


prevalecer os direitos humanos acima de qualquer lei infraconstitucional28, conferindo status
de emenda constitucional para aqueles que venham a ser aprovados seguindo o procedimento
especial constitucional29.

2.1.1 LIMITES DA ATUAÇÃO CONSTITUCIONAL

Em que pese a ampla proteção de direitos humanos ofertada pelo poder constituinte
originário de 1988, a sua aplicação no caso concreto não é absoluta. De acordo com o professor
Gilmar Mendes30, nem mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana (fundamento base
da nossa carta constitucional) é intangível. De modo que tal axioma pode ser restringido em
detrimento de outros bens ou valores constitucionais.
Não obstante, esse freio ao exercício dos direitos fundamentais encontra outro limite,
conhecido como “teoria dos limites dos limites”. Tal teoria defende a existência de um núcleo
básico de proteção, inadmitindo sua supressão. Apesar do Brasil não prever expressamente em

26
CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 89.
27
BRASIL. Constituição (1988) art. 4º.
28
CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 87.
29
BRASIL. Constituição (1988) art. 5º, parágrafo 3º.
30
MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 172.

201
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

sua constituição, o art. 60º, § 4 a, IV 31 corrobora com essa hipótese. Caso contrário, a
inexistência de limitações tornaria os direitos humanos facilmente desprezíveis32.
Nesse sentido, a ideia da criação e do uso da moeda digital pode ser introduzida como
um verdadeiro limite em face da intromissão estatal.

3. CONEXÃO DO BITCOIN AOS DIREITOS HUMANOS

Conforme o primeiro capítulo deste presente artigo, verifica-se que o Bitcoin possui
valiosa característica, qual seja, a sua não aquiescência aos ditames do Estado. Considera-se
como um instrumento primordial ao indivíduo para a defesa das liberdades individuais. Nas
palavras de Fernando Ulrich:

A moeda digital criada por Satoshi Nakamoto proporciona enormes vantagens


comparativas em relação às demais moedas fiduciárias. Mas Bitcoin não é
apenas uma forma de realizar transações globais com baixo ou nenhum custo.
Bitcoin é, em realidade, uma forma de impedir a tirania monetária. Essa é a
sua verdadeira razão de ser33.

Não apenas no âmbito das relações com entes públicos, mas também na esfera privada.
A privacidade monetária do Bitcoin pode ser utilizada em benefício de indivíduos em situação
de urgência ou coação. Como no exemplo do Cônjuge que necessita fugir de seu par abusivo
sem deixar paradeiros de suas transações.
Pode-se citar, ainda, uma amostra em um caso concreto na Argentina, em que
recentemente a população local utilizou o Bitcoin para se esquivar dos altos índices
inflacionários e de restrições severas ao livre mercado34.
Talvez o caso mais axiomático da intervenção estatal na economia é o da Venezuela. De
acordo com dados do Banco Central da Venezuela, o índice de inflação ao ano chegou ao
patamar de 2.940,8%35, ou aproximadamente 8% ao dia. Diante de tamanho caos econômico

31
“§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV - os direitos e garantias
individuais.”
32
MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 353.
33
Apud MATONIS, Jon. Bitcoin Prevents Monetary Tyranny, Forbes, 4 abr. 2012.
34
ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p.26.
35
INSIDER, Portfolio. Why Does This Country Have The Third Highest Cryptocurrency Usage? Nasdaq, 20
MAI, 2021. Disponível em: https://www.nasdaq.com/articles/why-does-this-country-have- the-third-highest-
cryptocurrency-usage-2021-05-20. Acesso em 31 ago. 2021.

202
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

muitos venezuelanos buscaram refúgio no Bitcoin e outras criptomoedas, conforme mostram


os dados da LocalBitcoins (plataforma de compra e venda de criptoativos)36.
No contexto interno, podemos citar o famigerado Plano Collor. Após tomar posse no
cargo de presidente da República em 1990, anunciou tal plano. A ideia do Governo era conter
os altos níveis de inflação com a aplicação de diversas medidas incisivas. Uma das medidas
elaboradas no plano era o confisco das cadernetas de poupança com o fim de “congelar” a
quantidade de dinheiro circulante e, assim, reduzir a inflação. Observou-se, mais tarde, que tais
medidas seriam fracassadas37.
Esses são apenas alguns de vários exemplos da nefasta atuação dos Governos. Redução
do poder de compra (inflação), regulações sem sentido, confisco e experimentos econômicos
falhos descrevem a atuação moderna do Poder Público.
Assim, podemos conectar o Bitcoin com os Direitos Humanos de maneira nítida,
natural38. Nos casos utilizados como exemplo, as supressões de direitos humanos básicos foram
praticadas por aqueles que, em tese, seriam os garantidores de tais proteções supranacionais.
Veja, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (que foi recepcionada pelo Brasil e diversos
outros países do mundo), dispõe em seus artigos 22 e 30 o seguinte:

“Art. 22 Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à


segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação
internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos
direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao
livre desenvolvimento da sua personalidade.

(...)

Art. 30 Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada


como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de
exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de
quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.”39

Pode-se concluir, moderadamente, diante da aplicação de um dos casos concretos


supramencionados aos preceitos estabelecidos nos tratados sobre direitos humanos, que

36
DI SALVO, Mathew. Why are Venezuelans seeking refuge in crypto-currencies? BBC News, 19 MAR 2019.
Disponível em: https://www.bbc.com/news/business-47553048. Acesso em 31 ago. 2021. 37 CARVALHO,
Carlos. O fracasso do Plano Collor: erros de execução ou de concepção? SP. PUCSP,2003. Disponível em:
<https://anpec.org.br/revista/vol4/v4n2p283_331.pdf>. Acesso em: 11/09/2021. 38 ULRICH, Fernando. Bitcoin:
a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP. 2014, p.96.
39
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 15. set. 2021.

203
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

circunstancialmente o Bitcoin oferece suplemento para tais direitos quando o próprio Estado
deixa de cumpri-los.
O Bitcoin, diferentemente dos governos, é pautado na liberdade, na voluntariedade dos
indivíduos, pois estes fomentam a atividade monetária sem violência aos direitos de
propriedade de quem quer que seja. A natureza precária de ente centralizado da moeda digital,
impõe ao Estado um freio ao seu ímpeto intervencionista40.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou demonstrar a direta ligação do Bitcoin aos Direitos Humanos,
especialmente quando confrontados com os Direitos Humanos.
Para apresentar tal liame, primeiro procurou-se definir brevemente o funcionamento da
referida moeda digital. Sua existência como instrumento inovador no campo da tecnologia,
permitindo a transação de pessoa para pessoa sem necessidade de um terceiro elemento.
Em seguida, ficou demonstrado a ampla preocupação internacional (principalmente
após a Segunda Guerra Mundial) acerca da proteção dos Direitos Humanos. No cenário interno,
esses direitos foram expressamente dispostos na Constituição Federal de 1988, após um período
interno marcado pela repressão, demonstrando a importância de conferir prioridade para aos
direitos básicos da humanidade. Apesar de haver previsão clara conferindo ampla proteção, por
vezes o próprio Estado extrapola o seu poder soberano, suprimindo totalmente garantias básicas,
conforme demonstrado ao longo do artigo.
Por fim, buscou-se evidenciar em casos concretos a referida conexão sem se aprofundar
tecnicamente, apenas uma abstração da aplicabilidade pontual do Bitcoin em face das violações
demasiadas aos indivíduos. Em um cenário em que os governantes tomam medidas drásticas
(como expropriação de poupanças), o Bitcoin surge como uma armadura, protegendo os
indivíduos quando o próprio incumbido de proteger se torna o agressor.
Apesar das referências utilizadas serem de distintas áreas do saber, suas ideias
claramente se interligam, dada a natureza dos institutos (Bitcoin e Direitos Humanos). Não
obstante se tratar de uma tecnologia relativamente nova, sua importância na atualidade é imensa
diante de todo o exposto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

40
Apud HÜLSMANN, Jörg Guido. The Ethics of Money Production. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2008.

204
Revista Direito em Foco – Edição nº 14 – Ano: 2022

Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro


Gráfico, 1988. BRASIL.

CARVALHO, Carlos. O fracasso do Plano Collor: erros de execução ou de concepção? SP.


PUCSP, 2003. Disponível em: < https://anpec.org.br/revista/vol4/v4n2p283_331.pdf>. Acesso
em: 11/09/2021.

CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2011.

DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Hemus – Livraria Editora Ltda, São Paulo, SP.

DI SALVO, Mathew. Why are Venezuelans seeking refuge in crypto-currencies? BBC


News, 19 MAR 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/news/business-47553048. Acesso
em 31 ago. 2021.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.


Coleção Os pensadores, vol. XIV. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da
Silva. São Paulo: Abril cultural, 1974.

INSIDER, Portfolio. Why Does This Country Have The Third Highest Cryptocurrency
Usage? Nasdaq, 20 MAI, 2021. Disponível em: https://www.nasdaq.com/articles/why-does-
this- country-have-the-third-highest-cryptocurrency-usage-2021-05-20. Acesso em 31 ago.
2021.

MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.

MISES, Ludwig von. A verdade sobre a inflação. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 27 mai.
2008. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=101>. Acesso em: 23 ago.
2021.

NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: a Peer-to-Peer Electronic Cash System, 2008. Disponível em:
<http://article.gmane.org/gmane.comp.encryption.general/12588/>. Acesso em: 15. set. 2021.

ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. Instituto Ludwig von Mises Brasil, SP.
2014.

UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível


em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em:
15.set. 2021.

205

Você também pode gostar