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Ao “Deus Mercado”, um “Direito Laico” – Por Luciano Scheer e Alfredo Copetti Neto

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 Por Luciano Scheer e Alfredo Copetti Neto – 18/07/2015

http://emporiododireito.com.br/ao-deus-mercado-um-direito-laico-por-luciano-scheer-e-alfredo-
copetti-neto/

“Esses tecnocratas de quinta categoria… são uns ignorantes! Não sabem nada de nada (“un
carago de nada!”) e ganham uns salários imensos! E, em cada crise que eles desatam,
acabam aumentando suas fortunas! Porque são recompensados por essas façanhas que
consistem em arruinar o mundo! Esse é um mundo ao contrário: que recompensa os seus
arruinadores ao invés de castigá-los. Não tem nenhum preso, entre os banqueiros que
promoveram, provocaram essa crise no planeta inteiro. Nenhum preso! E, por outro lado,
há milhares de presos por terem consumido maconha! Ou por terem roubado uma galinha!
Milhares de presos! É o mundo do avesso! Um mundo de merda! Mas não é o único mundo
possível. E cada vez que eu me junto a essas concentrações lindíssimas com os jovens,
penso: Há um outro mundo que nos espera.” 

Eduardo Galeano

Falar sobre a realidade do Capitalismo não é, necessariamente, estabelecer falácias ou críticas


por ideologias opostas. O sistema econômico vigente em quase todo o planeta baseia-se na
acumulação de capital (por poucos grupos/pessoas) e, de tempos em tempos, por conta disto,
vive crises catastróficas, falências de nações, bancos, empresas, guerras, etc. Há a
personificação do risco [1]. O que ocorrera em 1929 ou em 2008? O que está havendo com os
países membros da União Europeia? O que está ocorrendo com a Grécia? São perguntas às
quais podemos encontrar várias respostas. Dentre elas optamos pela síntese posta por
Thomas Piketty, no livro A economia da desigualdade. Segundo o autor francês, a questão
econômica vem pautada pela ideia da desigualdade e da  redistribuição, cujo conflito ocorre por
conta de duas posições tradicionalmente opostas: por um lado, a visão liberal conservadora, 
que assume a concepção segundo a qual as forças do mercado e a iniciativa individual
alcançarão, gradativamente, uma melhora efetiva na renda e na condição de vida dos mais
necessitados; por outro, a visão social progressista, que entende que a esfera pública deve agir
em contraste, se necessário, com as forças do mercado a fim de romper com o lucro
direcionado exclusivamente aos detentores do capital. Assim, ele afirma que a discrepância
das duas posições em relação à forma de ação da esfera pública no que tange à redistribuição
não ocorrem por conta de serem construídas em cima de princípios antagônicos de justiça
social, cuja ideia aparece por conta do Princípio Maximin (maximização das oportunidades e
condições mínimas de vida). Na verdade, para Piketty, o verdadeiro conflito ocorre com relação
“à maneira mais eficaz de melhorar realmente as condições de vida dos mais pobres e à
extensão dos direitos que podem ser concedidos a todos do que em relação aos princípios
abstratos de justiça social [2].” A oposição está, portanto, nos instrumentos e nos tipos de
redistribuição.

Não obstante a análise criteriosa de Piketty, contemporaneamente, parece que aquele dito
“Deus Mercado”, da mão invisível, que tudo resolve, dotado de um suposto “espírito santo”, não
deu conta das nuances institucionais da vida cotidiana. Sua pretensa onipotência,
paradoxalmente, desencadeou, a partir de 2008, com a crise do subprime nos EUA, uma
avalanche catastrófica de problemas fiscais-financeiros em todo o mundo. O caso grego que o
diga. Na Grécia, hoje, a dívida pública estourou. Ao contrário do que se imagina, invertendo-se
a celebre frase de Höderlin – ali onde nasce o que salva, nasce também o perigo –, a
anunciada “ajuda” da União Europeia fez com que a dívida grega, que em 2009 era de 110%
do PIB,  passasse para 185% do PIB em 2014. [3]  Mais do que isso: a Tróika (composta pela
Comissão Européia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional)
expressamente anunciou: a Grécia deve morrer para pagar a sua dívida.

A brasileira Maria Lucia Fattorelli, especialista em dívida pública, participante da comissão


convidada pelo Parlamento grego para auditar a dívida, explica que:

“A Grécia, de 2010 para cá, não recebeu recursos. Ela recebeu papéis. Papéis que vieram de
uma empresa privada, localizada em Luxemburgo, da qual os países europeus são sócios.
Essa empresa foi criada no auge da crise em 2010 para salvar os bancos privados. E faz uma
espécie de reciclagem, tirando esses papéis podres que estavam abarrotando o balanço dos
bancos privados… Papéis desmaterializados, não comercializáveis. É um escândalo! Essa
empresa foi criada no mesmo dia em que foi endereçado o pacote de salvamento para a
Grécia […]”, e como se não bastassem as políticas de austeridade daí suscitadas, “[…] O FMI
[…], vem em socorro dos bancos privados, e o empréstimo ponte que o FMI fez foi para
garantir o pagamento dos juros que incidem sobre esses empréstimos de papel […].”. [4]

A simplicidade desses fatos, descobertos, sem nenhum controle, frente a substancial


repercussão no mundo todo, parece anedota. Como se não bastasse, os acordos bilaterais
(sic.) estabelecidos pela Tróika à Grécia saldar sua dívida são contraditórios e extensos,  
possuem parágrafos de mais de 30 linhas, com sérios problemas linguísticos,
incompreensíveis.

Quem está próximo à concepção democrática do Direito, pergunta-se: onde mesmo entra o


Direito? Se pautarmos nossos argumentos em princípios do direito internacional há claras
possibilidades da Grécia suspender sua dívida de maneira soberana, tendo em vista o contexto
de estado de necessidade no qual se encontra. Há, por exemplo, o artigo 9º do Tratado de
Lisboa, que estabelece, dentre outras questões o Princípio da Igualdade de tratamento entre
todos os cidadãos da União Européia. Ora, nesses termos, mesmo a ideia arcaica estabelecida
pelo pacta sunt servanda há de ser relativizada diante das claras violações dos Direitos
Humanos às quais foram expostos os gregos.

Essa situação nos remete a algumas colocações de Luigi Ferrajoli, feitas na obra La
democrazia atraverso i diritti, recentemente traduzida para o Português [5], quando trata da
crise da democracia constitucional. Para Ferrajoli, face o desenvolvimento de poderes
econômicos e financeiros de caráter global, que são propostos e se estabelecem em um
ambiente sem regras, o princípio político-democrático sucumbe aos interesse privados e
econômicos. Em outras palavras, ocorre a subversão do governo político e democrático da  
economia para o governo econômico e não democrático da política, cujo resultado exacerba a
relativização dos Direitos Fundamentais.

Assim, “Não são mais os Estados, com suas políticas, que controlam os mercados e o mundo
dos negócios, impondo suas regras, limites e vínculos, mas são os mercados financeiros, quer
dizer, alguns milhares de especuladores e algumas agências privadas de rating, que controlam
e governam os Estados.”. (2015, p.149)

A política, subordinada aos poderes econômicos e financeiros, acaba por desvirtuar-se, ao


contrário da sua histórica função de governo, torna-se onipotente  e antidemocrática contra a
própria sociedade, principalmente, no que tange à  (não) satisfação de direitos sociais.

O capital, ora improdutivo, é traduzido para a linguagem do sistema financeiro/especulativo e


se estabelece simétricamente como poder sobre as nações, vislumbrado nos diários
acontecimentos catastróficos e quase inexplicáveis do ponto de vista jurídico-racional.
Entretanto, há a possibilidade de (res)significar o papel do Estado Constitucional de Direito nas
democracias ocidentais, apontado, já a 50 anos, como uma espécie de nunca mais! Nunca
mais à guerras, como foi a Segunda Guerra Mundial; nunca mais aos poderes desregulados,
como foi a expansão nazi-fascista; nunca mais, atualmente, a poderes econômicos
desregulados, caso contrário, e o presente já está demonstrando, teremos um futuro de
violências, desigualdades gritantes e retrocessos autoritários.

Se, por um lado, os poderes econômicos e financeiros acreditam na existência de um “Deus


mercado”, baseado na ficção de leis naturais, portanto negando intervenções e
regulamentações jurídicas; por outro, um constitucionalismo jurídico, estabelecendo as bases
de um Estado de Direito Garantista, que cada vez mais investe na necessidade de um Direito
“Laico”, para todos.

Notas e Referências: 

[1] http://cartamaior.com.br/?/Opiniao/As-duas-crises-mais-importantes-do-capitalismo-nos-
ultimos-cem-anos/19573

[2] PIKETTY, Thomas. A economia da desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015, p.10.

[3] http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/541399-auditoria-da-divida-grega-uma-iniciativa-
urgente-entrevista-especial-com-maria-lucia-fattorelli

[4] https://www.youtube.com/watch?v=YxR5qqzZS-g Maria Lucia Fattorelli esclarece crise na


Grécia – Entrevista para TV Brasil

[5] Ferrajoli, Luigi. A Democracia através dos Direitos: O Constitucionalismo Garantista


como Modelo Teórico e Como Projeto Político; Tradução de Alfredo Copetti Neto e outros. –
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

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