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O MÍNIMO SOBRE ECONOMIA

Rodrigo Constantino
1ª edição — junho de 2022 — CEDET
Copyright © Rodrigo Constantino 2022
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Editor:
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Thamires Hiviz

Copydesk:
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Diagramação & capa:


Zé Luiz Gozzo Sobrinho

Revisão de provas:
Flávia Theodoro
Tomaz Lemos
Zé Carlos Moura

Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
Constantino, Rodrigo.
O mínimo sobre Economia / Rodrigo Constantino
Campinas, SP: O Mínimo, 2022.
ISBN: 978-65-997705-2-4
1. Economia.
I. Autor II. Título.
CDD— 330
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Economia — 330

www.ominimoeditora.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma,
seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do
editor.
Sumário
APRESENTAÇÃO

PRINCÍPIOS DA ECONOMIA DE MERCADO

ECONOMIA MONETÁRIA

O PAPEL DO GOVERNO NAS DISFUNÇÕES ECONÔMICAS

A VERDADEIRA ESCOLHA

NOTAS DE RODAPÉ
APRESENTAÇÃO
O objetivo deste pequeno livro é que, ao final da leitura, até mesmo as pessoas sem formação em Economia tenham
adquirido uma noção bastante razoável do funcionamento da economia e dos mercados, e entendam por que o livre
mercado é o mecanismo mais eficiente, em contraponto ao intervencionismo, ao capitalismo de Estado, ao socialismo,
ao keynesianismo, a todos esses modelos que delegam a uma entidade central — o Estado — o poder de “locomotiva
do progresso”.

Espero ter deixado claro, nas páginas que seguem, que os liberais não são contra o aumento do Estado por
“implicância”, “fetiche”, “dogma” ou “ideologia”. Entendemos que retirar recursos escassos da iniciativa privada e
passá-los para as mãos do governo para que políticos e burocratas decidam onde alocá-los não costuma render bons
frutos. O Estado não é uma entidade onisciente, conduzida por burocratas clarividentes e altruístas, que pode ser a
“locomotiva do progresso” ou o “justiceiro social” de uma nação.

Ao se absorver o conhecimento apresentado aqui, fica claro por que um mercado mais livre é sempre melhor do que
aquele submetido a políticas intervencionistas, a uma situação em que o Estado é o grande empresário, o grande
tomador de decisões.

O grande problema econômico é, sem dúvida, onde alocar os recursos


escassos.

Se estivéssemos falando de recursos infinitos, plenamente abundantes, não haveria sentido na discussão econômica. A
ciência econômica surge justamente para responder aos problemas decorrentes da escassez. Este é um ponto importante,
porque há muitos marxistas que ignoram essa “aula inaugural” da faculdade de Economia. A partir do momento em que
se decide ignorar a escassez de recursos, todo sonho é autorizado.

No primeiro capítulo, abordamos o mercado, procurando compreender os conceitos básicos que integram a essência
de seu funcionamento. Embora seja comumente retratado como uma entidade responsável por todos os males do
mundo, veremos que é apenas um palco de interação voluntária entre indivíduos imperfeitos, que seguem seus próprios
interesses, que estão mais preocupados em atender às próprias demandas e às de suas famílias do que em promover o
bem comum, mas cujas interações relacionam-se de formas muito complexas para resultar numa situação de bem-estar
geral ampliado, com acesso fácil a fascinantes bens e serviços — como se recebesse a ação de uma “mão invisível”,
para usar a metáfora de Adam Smith, ou manifestasse uma espécie de “ordem espontânea”, no dizer de Hayek.

Em seguida, abordamos a intervenção do Estado. Se, por um lado, entendemos um pouco melhor como o mercado
funciona e por que ele é o verdadeiro responsável por esse “milagre econômico”, por outro vemos como a intervenção
estatal acaba produzindo resultados ineficientes ao criar monopólios, mesmo considerando o argumento de “monopólio
natural”. Explicamos como os oligopólios e cartéis são produtos do intervencionismo e não do livre mercado, ao
contrário do que dizem os “especialistas” e articulistas. Também abordamos a concorrência desleal, a assimetria de
informação, a competição entre grandes e pequenos, ou entre países desenvolvidos e emergentes.

O segundo capítulo introduz alguns aspectos técnicos sobre a moeda e o crédito; particularmente importantes são os
esclarecimentos sobre a origem do dinheiro, um tema que considero fascinante. Embora o dinheiro seja onipresente em
nossas vidas, poucas pessoas se dedicam a conhecer e estudar suas raízes. Mais adiante, analisamos os bancos e sua
origem como armazéns de valores e o sistema de reservas fracionárias. Procuramos evitar o excesso de “economiquês”,
do jargão técnico que poderia tornar essa exposição um pouco mais enfadonha, para atender à forte demanda por
explicações de Economia em uma linguagem mais palatável para leigos, ao mesmo tempo que abordamos questões que,
muitas vezes, passam ao largo nas faculdades de Economia.

O próximo assunto desse capítulo é a taxa de juros, o custo do capital, algo que, presumivelmente, será relevante num
sistema capitalista, mas que, curiosamente, mesmo nas economias mais capitalistas, é decidida nos encontros de uma
cúpula de sábios clarividentes do banco central e do governo. Ora, que raio de sistema capitalista é esse onde o custo de
capital não é decidido pelo mercado, mas pelo governo? Esta é uma provocação importante que nunca se vê nos debates
econômicos do Brasil e do mundo.

Veremos também como a expansão interbancária cria moeda, atuando como cúmplice do governo no processo
inflacionário por meio de uma poupança artificial, sem lastro em produção. Esclarecemos também como os ciclos
econômicos, isto é, a oscilação brusca entre booms e busts — uma fase de euforia seguida por uma fase de ressaca —
resultam da ação do governo.

O terceiro capítulo ocupa-se do papel do governo sobre as disfunções econômicas. Inicialmente, abordamos a
questão dos salários e do emprego, isto é, o mercado de trabalho. Tocamos na polêmica atualíssima da atuação da
tecnologia sobre a geração do desemprego, analisando a ação de grupos reacionários que se dedicam a brecar o que
Schumpeter chamou de “destruição criadora”, isto é, as tensões sociais provocadas pelo livre mercado ao tornar
obsoletos certos produtos enquanto cria valor para a sociedade: maior qualidade de vida, maior conforto material, maior
produtividade.

Também discutimos a teoria marxista da exploração da mais-valia, que define o lucro como uma apropriação
indevida do trabalho alheio e derrubamos a falácia tantas vezes repetida da “curva de Phillips”: a argumentação falsa de
que é preciso um pouco mais de inflação para haver um pouco mais de emprego, ignorando a situação de estagflação
que vivemos hoje no Brasil.

O próximo assunto deste capítulo é a globalização; uma era de especialização entre países em busca de vantagens
comparativas. Entendemos como as trocas no mercado global beneficiam a sociedade ao amplificar o escopo de
mercado local para o mundo inteiro — basta considerar os três bilhões de asiáticos que viviam na miséria socialista e
mergulharam na globalização, especialmente na Índia e na China, países que vivenciaram um fantástico choque de
produtividade. Veremos como a mentalidade mercantilista ainda grassa entre nós, mesmo tendo sido refutada no século
xviii por Adam Smith. “Exportar é bom, importar é ruim”, “a finalidade do comércio exterior é acumular reservas”, “é
preciso proteger os produtores locais da concorrência internacional”: todos nós já cansamos de ler e ouvir esses
pseudoargumentos na imprensa.

O próximo assunto abordado é a tributação, um tema sempre na ordem do dia para todos os brasileiros. Começamos
com um debate filosófico sobre a legitimidade da cobrança de impostos, contrapondo anarcocapitalismo e liberalismo.
Esclarecemos por que o Estado será sempre sinônimo de coerção e, assim, mantê-lo no tamanho mínimo indispensável
parece a solução ideal para todos aqueles que prezam as liberdades individuais e a eficiência da vida econômica e
social. Debatemos os problemas da progressividade tributária, isto é, se punir os ricos ajuda ou não os pobres, e
concluímos que a realidade tende a ser oposta. Também elucidamos a curva de Laffer, que mostra como a elevação da
carga tributária acaba reduzindo a arrecadação.

Finalmente, concentramo-nos nas falhas de governo, em contraponto à visão dos que, aproveitando-se da realidade
das imperfeições do mercado — inevitáveis, por serem o produto das relações entre seres humanos imperfeitos —,
propõem uma solução ainda mais imperfeita: o intervencionismo estatal. Apresentamos algumas das conclusões mais
interessantes da Escola de Virgínia, dedicada ao estudo das falhas de governo, que mostram, individualmente e em
conjunto, que muito do que se chama de “falhas de mercado” são, de fato, “falhas de governo”, sugerindo que a
intervenção estatal não só é um “remédio” pior do que a doença, como a própria causa da enfermidade. Tratamos da
“falácia do nirvana”, a atitude cômoda, porém covarde, dos que habitam as torres de marfim e acionam suas
metralhadoras giratórias contra tudo o que não funcione de forma perfeita — sem jamais definir claramente o que seria
essa perfeição, idealizada de forma subjetiva —, defendendo como solução a sua utopia, que sempre gera resultados
práticos muito piores.

Isso está longe, certamente, de abranger tudo o que a ciência econômica pode abarcar, e de esgotar cada ponto que é
possível aprofundar. Mas creio ter sido capaz, nas páginas que seguem, de informar, tanto ao leigo como ao estudante, o
mínimo a respeito.
PRINCÍPIOS DA ECONOMIA DE MERCADO

A VISÃO CLÁSSICA E NEOCLÁSSICA DA FORMAÇÃO DE PREÇOS


uando entramos num supermercado, vemos produtos para todos os gostos, e com
Q preços para todos os bolsos. Mas...

como se formam os preços? Como o supermercado estipulou esses preços? Na origem


da Economia como ciência1 — por exemplo, no tempo de Adam Smith e David Ricardo,
os chamados economistas clássicos —, acreditava-se que o preço de uma mercadoria
dependia da quantidade de matéria-prima e de trabalho empregado em sua produção. O
custo de produção, portanto, medido de forma objetiva, levaria à definição do preço do
produto no mercado.2 Essa é a origem das teorias clássica e neoclássica e, também, da
marxista. Marx apropriou-se da teoria dos preços como função dos custos de produção
diretamente de David Ricardo. Deste modo, ele extraiu uma série de conclusões a partir
de uma teoria equivocada.

Ora, se os preços são formados a partir do custo de produção, podemos enunciar


algumas perguntas que incomodam os neoclássicos. Por exemplo: se o tempo gasto para
caçar uma demandada lebre for o mesmo empregado na caça de um rato — um animal
em que ninguém vê muita utilidade —, deveríamos cobrar o mesmo preço pela lebre e
pelo rato? Outro caso, reconhecido pelo próprio Marx como limitação à sua teoria: se
Picasso gastou, na pintura de uma tela, o mesmo tipo de esforço, tempo e insumos que um
pintor de paredes, o preço da tela deveria ser o mesmo da pintura de uma parede? Seria
obviamente absurda uma resposta positiva a essa questão.

Ainda outro exemplo para deixar bem claro este ponto. Imagine o custo de produzir
uma fábrica de gelo no Alasca. Será necessário transportar até lá todos os materiais,
construir a fábrica, instalar os equipamentos, contratar pessoal para, no fim das contas,
obter a produção de gelo no Alasca, o que não parece uma decisão mercadológica das
mais inteligentes. Será que o preço que você cobrará no Alasca pelo produto dessa fábrica
será idêntico ao que cobraria pelo mesmo produto no deserto do Saara? Certamente não.

Deste modo, logo de início, devemos perceber que o preço de uma mercadoria não pode
ter um elo tão direto e dependente do custo de produção. Nesse ponto, surge o conceito de
sunk cost,3 fundamental para o empresário. Por exemplo, você pode ter gasto 1 bilhão de
dólares para construir uma fábrica de gelo no Alasca, de um produto que não é
demandado, tal como uma carroça na era do automóvel, ou uma máquina de escrever na
era do computador. Ou seja, o valor total investido na fábrica de gelo não terá tanta
relação assim com o preço que poderá ser cobrado pelo produto final.

Ainda outros exemplos: o preço de um diamante não mudará se o encontrarmos já de


forma perfeita na natureza ou se tivermos de submetê-lo a um complexo e custoso
processo de lapidação. De modo análogo, também não faz diferença para você, quando
pede uma pizza por telefone, se ela será transportada de carro ou de velocípede. Ao
telefonar para a pizzaria, você não pergunta como será feita a entrega, mas o preço, e
compara essa informação com as alternativas disponíveis no mercado.

UTILIDADE E PREFERÊNCIAS SUBJETIVAS


Se os preços não surgem do custo de produção, de onde eles vêm? Basicamente, da
combinação: 1. da utilidade e 2. da escassez no mercado do produto que se está ofertando.
A utilidade advém da satisfação subjetiva dos consumidores, uma percepção que marcou
a revolução da Escola Austríaca de Economia, fundada por Karl Menger por volta de
1870. Ele cunhou duas noções fundamentais: a utilidade marginal e as preferências
subjetivas.

Para entender o conceito de utilidade marginal, basta considerar que, se todos


preferissem o vermelho, ninguém consumiria o amarelo ou o azul. Nós sabemos,
intuitivamente, que nossa demanda é diferente da de nosso vizinho. Quando você vai ao
mercado exercer suas preferências, comprar as coisas que você demanda, é evidente que
levará consigo uma escolha subjetiva, que terá muita relação com o preço final possível
de ser cobrado pelo produtor.

Quanto mais gente demandar um produto, mais caro tenderá a ser o seu preço no
mercado. Se todos quiserem consumir um produto que é oferecido por apenas um
produtor, diz-se que esse produtor é monopolista e ele poderá, teoricamente, pedir o preço
que quiser, especialmente se a demanda pelo produto for inelástica, isto é, se o produto
for essencial à sobrevivência. Portanto, as demandas subjetivas, segundo a utilidade que
cada um de nós espera obter da compra de um produto, são fundamentais na
determinação do preço.

Porém, se o produto não for escasso — por exemplo, o ar que respiramos — ele não terá
preço. Ao consumir o ar, não reduzimos a quantidade de ar disponível no “mercado”.
Esse é um conceito básico em Economia: todo o cálculo econômico se baseia na escassez.
Uma crítica que muitos liberais fizeram aos marxistas foi, justamente, a de que eles não
entenderam o conceito de escassez. Se não há escassez, não há sequer por que falarmos
em “Economia”, “cálculo econômico” e “decisão econômica”. Só há necessidade de
Economia com relação a produtos escassos, ou seja, aqueles produtos que, quando
consumidos por uma pessoa, têm reduzida a quantidade disponível para as demais.

O preço será formado, portanto, por duas variáveis distintas:

de um lado, a demanda dos consumidores,


diretamente ligada às suas preferências
subjetivas; de outro, a quantidade ofertada no
mercado, dependente da sua disponibilidade, da
quantidade possível de ser levada ao mercado.

UTILIDADE MARGINAL
O conceito fundamental da revolução marginalista de Karl Menger, fundador da Escola
Austríaca, é o de utilidade marginal. Este é um conceito um pouco mais técnico e difícil
de ser aprendido. A utilidade subjetiva que realmente importa é a utilidade na margem.
Para entender isso, é preciso esclarecer o conceito de utilidade decrescente. Menger
entendeu que, quanto maior a quantidade disponível de um bem, menos as pessoas o
valorizarão “na margem”. Para uma pessoa faminta, um prato de comida terá um valor
“na margem” muito maior do que para outra que já esteja provando o terceiro prato em
um restaurante. Este é um conceito óbvio que tem conseqüências lógicas freqüentemente
ignoradas, inclusive por economistas.

O determinante do preço no mercado, portanto, será a utilidade marginal. Por exemplo,


um agricultor produziu cinco sacas de trigo e tem uma hierarquia de preferências para o
uso dessas cinco sacas: a primeira, para alimentar sua família; a segunda, para investir no
replantio; e assim por diante até a quinta, que serviria para alimentar seu animal de
estimação. Ora, se uma praga destruir uma de suas sacas, o que ele fará? Deixará de
alimentar sua família e investir no replantio, para alimentar seu animal de estimação?
Parece óbvio que não: ele realocará o consumo do conteúdo das sacas restantes segundo
suas preferências. É essa demanda na margem que ele expressará ao trocar seu produto no
mercado: ele trocará seu produto por outros que tenham mais valor para ele do que aquele
que oferece em troca. Logo, o que levamos para a praça do mercado é a utilidade
marginal de cada um de nós, ela sim o fator determinante do preço das mercadorias.

Um outro exemplo: os combustíveis, que estão entre os insumos mais básicos para o
funcionamento de toda a economia. Digamos que você tenha uma piscina e deseja
aquecê-la, mas ela é o último item em sua hierarquia de preferências. Você só usará o seu
combustível escasso para essa finalidade caso o preço pago por ele justifique o uso para
essa finalidade, que você mesmo considera um “luxo”. Se o preço do combustível subir
para um patamar acima da utilidade marginal que você atribui a uma piscina aquecida,
você pára de aquecer a piscina e desvia o combustível para uso em suas demandas mais
prioritárias.

O preço final, na economia, será formado pelo encontro da oferta e da demanda: a


demanda, sempre subjetiva e feita na margem; a oferta, sempre dependente da escassez
daquele produto. Esta conclusão basta para pôr em xeque muito da teoria econômica
neoclássica, que lida com modelos econométricos de equilíbrio com base no custo dos
insumos tanto como determinante do preço final quanto como dado objetivo, ignorando a
utilidade marginal e as preferências subjetivas. Também torna-se mais fácil entender uma
série de situações econômicas.

Num exemplo absurdo, mas bastante ilustrativo, podemos considerar um sorvete de


lama. Ele pode ser difícil de produzir, exigir equipamentos sofisticados, um complexo
processo de produção, mas não terá preço, porque seu valor final será nulo: os
consumidores não demandarão um sorvete de lama, pouco importando o quanto custou
sua produção.

Também fica mais fácil entender por que um gol do Neymar vale tantos milhões por
mês, enquanto o trabalho de um médico pode valer muito menos. Será por que o
capitalismo malvado valoriza mais um jogador de futebol do que um médico que salva
vidas? Para começar, devemos entender o que queremos dizer com o verbo “valorizar”.
Como economista, estou considerando apenas o valor monetário, embora eu valorize —
no sentido de “estimar”, de “apreciar subjetivamente”, isto é, trata-se de uma “valorização
moral” — muito mais o trabalho de um médico do que o de um jogador de futebol ou o
de um pagodeiro. Mas a conta bancária de um futebolista goleador será, no fim das
contas, maior do que a do médico, porque um grande número de pessoas avalia que, na
margem, um jogo de futebol com a presença do Neymar tem mais valor do que o trabalho
de um médico entre tantos outros. Afinal, há apenas um Neymar entre outros milhares de
jogadores pernas-de-pau que apenas gostariam de jogar tão bem quanto ele.

O fenômeno dos altos salários dos jogadores de futebol mais famosos é, portanto,
perfeitamente explicável pelo encontro da escassez da oferta com a demanda determinada
por preferências subjetivas. Um jogador como Neymar é um “produto” escasso e
fortemente demandado pelos milhões de consumidores que assistem a seus jogos, vindo
daí a justificativa de seu elevado valor monetário.

Já começamos a derrubar inúmeras falácias esquerdistas somente esclarecendo o


mecanismo de formação de preços.

CUSTO DE OPORTUNIDADE
Jesús Huerta de Soto, da Escola Austríaca, define muito claramente este outro conceito
fundamental, o custo de oportunidade: “São os preços dos itens finais de consumo como
materialização no mercado das avaliações subjetivas que determinam os custos nos quais
se está disposto a incorrer para produzi-los, e não ao contrário, como tão freqüentemente
dão a entender os economistas neoclássicos nos seus modelos”.

Explicando em detalhes: os economistas neoclássicos partem dos custos de produção e


dos seus preços objetivos para determinar o preço final do produto. A Escola Austríaca
faz o caminho contrário: ela avaliará primeiro o preço final do produto, considerando a
demanda subjetiva e a escassez relativa para, aí sim, definir os custos de produção. Ela
tomará como um dado objetivo o preço de mercado e assumirá o sacrifício necessário
para adquirir o produto como custo de oportunidade, isto é, aquilo que você deixará de
comprar ou usar ao efetuar aquela compra, para consumir outros produtos escassos na
economia. Ludwig von Mises, talvez o principal membro da Escola Austríaca, resumiu o
conceito de forma ainda mais interessante no seu clássico Ação humana: “Os custos são
iguais ao valor vinculado à satisfação que se deve sacrificar para alcançar a meta visada”.
Ou seja, o custo é um fenômeno de avaliação pessoal, não algo independente dos agentes
do mercado, não um dado objetivo da natureza. Cada um de nós avalia o nosso custo de
aquisição de um produto de acordo com o que estamos deixando de consumir para tê-lo.
O seu custo de oportunidade ao ler este livro é igual ao que você poderia fazer com o
dinheiro e o tempo que você gastará para comprá-lo e lê-lo até o fim. O custo de um
produto é inteiramente relacionado à oportunidade de usar os mesmos recursos que
seriam utilizados para adquiri-lo na aquisição de outros produtos escassos, conforme a
sua hierarquia de preferências subjetivas.

Esse conceito é muito importante, porque também derruba inúmeras falácias


esquerdistas. Por exemplo, muitas pessoas defenderão a existência de uma estatal se ela
der lucro. Mesmo sendo mais difícil defender uma estatal deficitária, alguns ainda o
farão, sob argumentos como “importância estratégica”, ou de que se trata de um “símbolo
nacional”. De todo modo, parece mais fácil defender a manutenção de uma estatal
lucrativa. Porém, é preciso considerar o que dizia Frédéric Bastiat: “Aquilo que se vê”, ou
seja, as coisas mais aparentes, imediatas, e “aquilo que não se vê”, isto é, o efeito
secundário ao longo do tempo. Ou seja, consideremos uma estatal que dê lucro: ela
consegue vender o produto no mercado a um preço superior ao que ela paga por todos os
insumos. Mas isso não basta para considerá-la um sucesso, porque a pergunta mais
relevante é: “O que poderia estar sendo feito na economia de mercado com esse recurso
escasso desviado para investimento naquela estatal?”.

Um exemplo prático é o bndes, que oferece empréstimos subsidiados para alguns


poucos empresários — os “amigos do rei”. Ele cobra juros de 4% ao ano, abaixo da
inflação. As torcidas inteiras do Flamengo e do Corinthians querem empréstimos nessas
condições. Os defensores desse modelo — que é um ótimo modelo de transferência do
dinheiro dos pobres e dos trabalhadores para os ricos — alegarão que esses empréstimos
“geram empregos” nas obras da Odebrecht em Angola e Cuba. Ora, não basta olhar
somente para “aquilo que se vê”, isto é, os empregos gerados pelas obras que foram
objetos dos empréstimos, mas o custo de oportunidade da concessão desses empréstimos.

Ou seja, como esses recursos escassos, que o governo retira das pessoas para repassar à
Odebrecht, estariam sendo usados na economia de mercado, isto é, livremente, pelos
indivíduos que tiveram de fornecer aqueles recursos sob a forma de impostos
governamentais.

A FUNÇÃO DO PREÇO NA ECONOMIA


Hayek, mais um grande expoente da Escola Austríaca, prêmio Nobel de Economia,
escreveu um artigo, cuja leitura recomendo enfaticamente, sobre a informação na
sociedade.4 Nesse artigo, ele explica a formação do preço enfatizando que a informação
disponível na sociedade é sempre dispersa, difusa, pulverizada. Cada um de nós detém
apenas um pequeno bit, uma ínfima parcela da informação disponível: os conhecimentos
específicos e as preferências subjetivas. Nós levamos conosco ao mercado essa pequena
parcela de informação que possuímos. O ponto-chave é entender que ninguém, nem
mesmo o mais inteligente entre nós, conseguirá concentrar em si mesmo nada além de
uma mínima parte do conhecimento disponível na sociedade.

Nenhum de nós é onisciente; ninguém tem capacidade de entender a demanda subjetiva


de cada um dos membros da sociedade, embora alguns esquerdistas tenham a pretensão
de saber melhor do que todos aquilo que todos desejam — um absurdo que percebemos
até mesmo intuitivamente. Você sabe melhor do que ninguém que alimentos prefere
comer, que filmes prefere assistir, que livros prefere ler.

Numa sociedade com conhecimento pulverizado,

a função do preço é levar informação


relevante para cada um dos tomadores de
decisão, seja do lado do consumo ou da
produção.
Por exemplo, imaginemos um produtor de aço: ele precisa entender o que acontece na
China, se há a descoberta de uma nova jazida de minério de ferro no Brasil, se há
demanda crescente pelo produto nos Estados Unidos, entre outras informações relevantes.
É fácil imaginar a complexidade das informações que dirigem o mercado de aço no
mundo e que, portanto, é inviável a pretensão de que alguém possa apreender toda a
informação necessária à tomada de decisões no mercado de aço. Agora imagine as
informações de todos os mercados somados em uma economia globalizada! O preço é,
portanto, a resultante do encontro de todas essas informações, sendo útil até mesmo para
quem não conhece a sua origem. Para o comprador, basta saber que o preço subiu ou
desceu, e em que valor, para decidir se comprará ou não o produto. Se o preço subiu, o
comprador pode decidir esperar a queda do preço, aplicando seu dinheiro em outros usos
melhores, segundo suas preferências.

PRINCÍPIOS DA FORMAÇÃO DOS PREÇOS NA ECONOMIA DE MERCADO


Há, porém, um caveat:5 a formação do preço precisa ser livre. Caso contrário, ele não
proverá essa informação relevante, o que nos conduz à discussão sobre a deturpação dos
preços pela intervenção estatal. Por exemplo, os preços da energia começam a subir e nós,
consumidores comuns, não sabemos a razão. Não sabemos se a origem desse aumento foi
no Japão, no Oriente Médio, ou em qualquer outro lugar. Assim, diante do aumento de
preços, retomando um exemplo anterior, decidimos desligar o aquecimento da piscina,
porque é o último item em nossa hierarquia de preferências. Esse ato, em si mesmo, já
leva uma informação relevante ao mercado: o aumento de preço causou uma redução na
demanda por energia.

Ao impedir a livre flutuação de preços, o governo subtrai uma informação relevante


para os tomadores de decisão que podem, deste modo, adotar um uso irracional do
produto. Um caso exemplar foi o do congelamento do preço da energia, promovido pela
presidente Dilma Rousseff. Ela anunciou em cadeia nacional de rádio e tv, com fanfarras,
que estava “ajudando a população”, especialmente os mais pobres, com o tabelamento
dos preços da energia. Ao fazer isso, o governo desregulou completamente o mercado,
gerando prejuízos bilionários, porque as informações que chegaram tanto aos produtores
quanto aos consumidores foram deturpadas. Do lado produtor, o preço final informava
que não compensava o investimento em novas plantas, porque o preço obrigava a
produzir energia com prejuízo. Do lado consumidor, o indivíduo que talvez tivesse
cortado seus gastos de energia com bens supérfluos — ou seja, com utilidade marginal
reduzida — prosseguiu com o seu consumo total, porque o preço não o informava de que
deveria praticar uma utilização mais racional da energia. O tabelamento do preço de um
produto tão fundamental para a economia gerou um efeito dominó de informações
equivocadas para os tomadores de decisão.

Com esse exemplo, torna-se clara, até mesmo para os leigos em Economia, a
necessidade da livre formação de preços no mercado, isto é, por meio da interação de
oferta e demanda sem interferência do governo. A economia planejada centralmente, de
cima para baixo, ainda que operada por “gênios”, jamais pode funcionar, porque até
mesmo os maiores gênios jamais deterão todas as informações necessárias para a
formação dos preços na economia. Sem a livre formação de preços, não há possibilidade
de cálculo econômico racional.

Esse foi o grande insight da Escola Austríaca que levou à refutação, por Mises e Hayek,
da economia marxista. A Gosplan era uma entidade na antiga União Soviética que tinha a
seu serviço os melhores matemáticos e os mais sofisticados modelos econométricos para
calcular o preço de mais de 30 mil commodities.6 Qual foi o resultado desse modelo?
Faltava papel higiênico nas prateleiras enquanto enviavam o Sputnik para o espaço.
Apesar de toda a sua estrutura, a Gosplan não era capaz de fazer cálculos racionais que
atendessem à demanda dos consumidores.

Outro princípio fundamental é o de que as trocas devem ser sempre voluntárias. Uma
troca é voluntária quando as pessoas avaliam que ganharam mais do que ofereceram em
troca — por exemplo, quando você avalia que obteve mais valor ao ler este livro do que o
dinheiro que pagou por ele.

É óbvio que nossas decisões no mercado são sempre a priori,7 sempre ex ante.8 Muitas
vezes, compramos um produto e só depois nos damos conta de que sua utilidade não é tão
grande quanto esperávamos. Mas o que dizemos, no momento da aquisição de um
produto, é que valorizamos mais a expectativa de sua utilidade do que a do dinheiro que
oferecemos em troca. É somente por isso que ocorre uma troca: porque ela é percebida
pelos agentes nela envolvidos como mutuamente benéfica. Caso contrário, ela não ocorre.
O mercado só existe quando as pessoas acham que estão levando para casa mais valor do
que estão oferecendo em troca.

Outro corolário dessas premissas é a legitimidade do lucro. O lucro não é, como dizia
Marx e seus seguidores, o produto da “exploração da mais-valia”, mas um resultado que
se consegue obter, num livre mercado, apenas se o vendedor oferecer um produto
valorizado pelos compradores. A Apple, por exemplo, lucra muitos bilhões de dólares
apenas porque consegue oferecer produtos que nós valorizamos mais do que o dinheiro
que deixamos na loja. Ou seja, o lucro é perfeitamente legítimo num ambiente de trocas
voluntárias; é um sinal de que as ofertas do produtor conseguem agradar aos
compradores; de que o produtor é capaz de gerar valor para a sociedade do ponto de vista
do indivíduo que adquire seus produtos.

QUEM SABE PRODUZIR UM LÁPIS?


Quem, num mundo com bilhões de pessoas, sabe produzir um objeto tão simples quanto
um lápis? Essa pergunta foi uma provocação feita pelo escritor Laurence Read, mais tarde
popularizada por Milton Friedman. A resposta, que pode parecer um tanto paradoxal, é:
ninguém. Nenhum ser humano, isoladamente, é capaz de produzir um simples lápis. Para
entender o motivo, basta traçar a “árvore genealógica” do lápis.

Um lápis de escrever comum tem, em uma ponta, uma borracha. Ora, de onde sai a
borracha? É preciso toda uma cadeia de produção desde a seringueira até chegar a uma
borracha utilizável num lápis. Em seguida, temos um envoltório em alumínio para
prender essa borracha ao corpo de madeira do lápis. Novamente, teremos toda uma cadeia
produtiva desde a extração do minério até a fabricação do envoltório de alumínio.
Também há uma complexa cadeia de produção para a produção da madeira, do grafite, do
pigmento que cobrirá esse lápis com a marca do fabricante, além da união de todos esses
elementos num objeto que chamamos de “lápis”.

O mais interessante é perceber que a produção de um lápis não dependeu de um


indivíduo genial que, do alto de sua sapiência, sentenciou: “Precisamos produzir
borracha, madeira, alumínio, grafite e desenvolver um método de unir tudo isso num
objeto a que chamaremos ‘lápis’”. Ao contrário, foi um processo contínuo de trocas
voluntárias em que cada indivíduo levou para o mercado sua parcela de conhecimento e
sua demanda subjetiva, sempre atendendo aos próprios interesses, que acabou resultando
no objeto a que chamamos “lápis”.

Foi a esse “milagre” do mercado que Adam Smith se referiu com a metáfora da “mão
invisível”. Cada um de nós, lutando pelos nossos próprios interesses, numa dinâmica
economia de mercado, somos como que levados por uma “mão invisível” a criar produtos
úteis para atender às necessidades dos compradores, úteis à sociedade. Adam Smith
sintetizou essa idéia numa frase que ficou famosa: “Não é da benevolência do açougueiro
que esperamos o nosso jantar”.

Quando entendemos o funcionamento


“milagroso” doprocesso da economia de
mercado, entendemos como é importante não
interferir em seu funcionamento,
deixando-o funcionar da forma mais livre possível, sem demonizar o lucro e os
interesses particulares, pois é graças a eles que temos ao alcance tantos produtos úteis
para todos.

John Stossel, um pensador americano, fez uma experiência para contrastar o


planejamento central com a economia de mercado. Ele reuniu dezenas de pessoas num
rinque de patinação e, no centro, posicionou o campeão mundial de patinação no gelo,
com um apito, para que coordenasse os movimentos de todos. O resultado foi uma
catástrofe: ele tentava dar ordens às pessoas para que fossem por um lado ou pelo outro,
mas as pessoas tropeçavam, colidiam, caíam umas sobre as outras. Depois, ele removeu o
campeão de patinação e permitiu que cada um agisse por conta própria. O resultado foi
um fluxo muito mais racional do movimento dos patinadores, sem acidentes e quedas,
porque cada um deles, buscando os próprios interesses num ambiente de trocas
voluntárias, acabou tendo de se adaptar e fazer o que era melhor do ponto de vista do
outro.

O CONCEITO DE MONOPÓLIO
No capítulo anterior, avaliamos algumas das vantagens do livre mercado. Uma questão
que sempre surge quando abordamos esse tema pode ser expressa nos seguintes termos:
“Concordo que o livre mercado é mais eficiente. Mas o que dizer a respeito da
concentração econômica nas mãos de poucos grupos? Como preservar a livre
concorrência quando algumas empresas conseguem se destacar e, assim, formam grupos
muito poderosos? Não haveria nesse ponto um espaço legítimo de intervenção do Estado
para preservar a livre concorrência?”.

Começo a responder a esse questionamento — no meu ponto de vista e, também, no de


muitos liberais, falacioso — com uma provocação: afinal, qual é o maior cartel do
mundo? O mais famoso e poderoso entre eles? É a opep. Ora, alguém realmente acha que
a opep, formada por governos autoritários, é um problema criado pelo mercado? No caso
brasileiro: qual é o monopólio mais famoso do Brasil? A Petrobras. Ela teve o monopólio
da exploração do petróleo no Brasil durante décadas, desde sua criação, por um governo
ditatorial. Alguém acha que a Petrobras teve esse monopólio devido a algum defeito da
economia de mercado? Só com esses dois exemplos já se torna evidente que é falaciosa a
crítica freqüente de que o mercado leva à concentração de poder econômico e à formação
de monopólios e cartéis. A idéia de que o governo poderá “proteger o livre mercado”
começa a soar estranha, como se quiséssemos deixar à raposa o encargo de cuidar do
galinheiro.

Outra pergunta importante: o tamanho grande de algumas empresas é mesmo ruim?


Comparemos os mercadinhos de bairro, as quitandas, com os supermercados. Por
exemplo, o Walmart, em que todos os herdeiros de seu fundador, Sam Walton, figuram
entre as pessoas mais ricas do mundo. De que modo podemos considerar que a política de
“preço baixo todo dia” adotada pelo Walmart faça mal à economia? Até que ponto é bom
manter a quitanda do seu Zé ali na esquina? Será que ela é mais higiênica, mais eficiente,
ou vende mais barato do que o Walmart? Certamente não, por um motivo simples: o
Walmart tem magníficos ganhos de escala, investe pesado em tecnologia, tem até satélites
próprios. Com isso, ele consegue entregar essa política de “preços baixos todo dia”, um
sofisticado controle de qualidade. Assim, não parece que faça tão mal assim às pequenas
cidades quando um Walmart chega ao local.

Se os monopolistas e oligopolistas reinarem soberanos porque são mais eficientes, que


problema haverá nisso? Há alguns interessantes exemplos históricos. O primeiro é a
Alcoa, empresa americana de alumínio. Quando a Alcoa nasceu, em 1877, o preço do
lingote de alumínio estava em torno de 5 dólares por libra. Em 1937, quando ela foi
processada sob a acusação de “excesso de poder econômico”, o preço do lingote de
alumínio caíra para 22 cents por libra. Será que foi ruim a dominância da Alcoa no
mercado de alumínio? Não parece que os consumidores de alumínio tenham se sentido
prejudicados ou infelizes com a queda de 95% no preço do alumínio promovida pelo
monopólio da Alcoa.

A palavra “monopólio” vem do grego e significa “um vendedor”. Entretanto,


normalmente se emprega a palavra em Economia para designar uma alta concentração de
poder de mercado, incluindo duopólios, oligopólios, cartéis, etc. O sentido, na prática, é
mais próximo de “número reduzido de vendedores que dominam quase inteiramente o
mercado”.

O problema começa na definição do mercado. A pergunta é: essa empresa é


monopolista, concentra muito poder, em que mercado? Afinal, o alumínio não tem
substitutos? Ele não compete com o aço? Consideremos, no caso brasileiro, uma empresa
que domina mais de 70% do mercado de cervejas. A cerveja não compete com outras
bebidas fermentadas, com as bebidas destiladas e, até, com entorpecentes em geral?
Dependendo de como se define um mercado, alguns “monopólios” podem não parecer tão
dominantes assim.

O segundo problema é definir o que é alta concentração. Seria 70% um bom número de
corte? Provavelmente sim. 60%? Talvez. 50%? Há controvérsias. É fácil percebemos que,
neste assunto, navegamos numa zona cinzenta.

Outro setor freqüentemente acusado de concentração é o da telefonia. Mas será que as


empresas de telefonia competem apenas umas contra as outras? Será que os jogos que
disponibilizam nos seus smartphones não competem com outras opções de lazer? Será
que um filme no cinema não pode ser considerado um substituto para um jogo num
smartphone? Ora, as famílias e consumidores em geral fazem comparações entre os
produtos substitutos, por exemplo, no mercado de lazer, e podem cortar ou acrescentar
algumas opções de acordo com suas preferências.

O ponto importante é perceber que, quando afunilamos demais o conceito de mercado,


praticamente qualquer empresa pode ser considerada “monopolista”. Por exemplo, a
Guess é “monopolista” da venda de jeans com seu design diferenciado e com a marca
“Guess”. Este exemplo parece um pouco ridículo, a princípio, mas devemos lembrar que
o marketing procura diferenciar os produtos. Embora o produto jeans seja praticamente
uma commodity, a Guess consegue diferenciar os seus jeans das ofertas concorrentes.
Assim, na prática, quase todo fabricante de qualquer produto, na atualidade, por ter uma
marca única e exclusiva, poderia ser considerado “monopolista” dos próprios produtos,
porque só eles levam aquela marca.

OS DOIS TIPOS DE MONOPÓLIO


Há dois tipos principais de monopólio. O primeiro é chamado de monopólio natural ou
monopólio técnico; o outro, de monopólio artificial. O monopólio é “natural” quando,
pelas próprias características do mercado, a concorrência não é possível. Por exemplo, no
fornecimento de água, não é possível criar encanamentos de água paralelos, cada um de
um vendedor diferente, para que possam competir pela preferência do consumidor. O
mesmo acontece com a rede de energia elétrica.

Problema: aquilo que, hoje, parece um monopólio natural, amanhã poderá não ser mais,
devido ao avanço tecnológico. O exemplo clássico é o das ferrovias. Nos Estados Unidos,
elas surgiram a partir da livre iniciativa privada. Quando se criava uma nova ferrovia, isso
favorecia a prosperidade das cidades que por ela eram ligadas e movimentava fortemente
a economia. Esse fato fez “crescer o olho” dos governantes, que logo começaram a alegar
que a atividade é “importante demais”, que o setor é “estratégico” — eles adoram esse
termo! — e, portanto, não pode ser deixado nas mãos de apenas um ofertante.

O que essas pessoas não vislumbraram foi que as ferrovias se tornaram obsoletas com o
surgimento da aviação comercial. A própria tecnologia encarregou-se de quebrar o
monopólio daquele setor, que não era de ferrovias, mas de transportes. A aviação
destruiu grande parte do negócio das ferrovias, que se tornaram caras e pouco
competitivas. A parafernália regulatória do Estado, no intuito de “impedir os
monopólios”, na verdade impediu que as empresas ferroviárias americanas se adaptassem
aos novos tempos e, assim, muitas foram à bancarrota.

Até mesmo o chamado monopólio natural pode não ser tão “natural” assim. O que é o
capitalismo senão a superação da natureza, graças à tecnologia? Milton Friedman, quando
questionado sobre o monopólio natural, respondeu: “Dos males, o menor. Deixe-o nas
mãos de um empresário. Ele será melhor do que o governo”. No mínimo, haverá maior
escrutínio social e maior flexibilidade para adaptar o negócio às mudanças do mercado,
ao contrário do governo, que é amarrado por leis e regulações, elevando os custos dos
pagadores de impostos.

Até mesmo um monopólio natural, ao contrário do que diz a esquerda, não pode abusar
de sua posição de uma forma totalmente arbitrária. No limite, se um fornecedor de
energia começar a cobrar preços excessivamente altos pelo seu produto, as pessoas
voltarão a usar a luz de velas. Mesmo nos casos em que a demanda é inelástica, isto é, em
que as alterações nos preços causam alterações discretas na demanda, sabemos que a
inelasticidade não é absoluta.

Em meu livro Privatize já, abordo essas questões e trago dados que derrubam muitas
falácias. Ao contrário do que se pensa, o setor elétrico não era monopolista nem estatal
em seu início. O economista Harold Demsetz mostrou que, na cidade de Nova York,
havia 6 empresas em disputa pelo fornecimento de energia elétrica em 1877. Em 1907, 45
empresas elétricas detinham o direito legal de operar em Chicago. Antes de 1895, em
diversas cidades, mais de 4 empresas competiam nesse segmento. Esses exemplos
mostram que, se o Estado não interferir no setor, a atividade tende a se desenvolver
melhor mesmo em setores de demanda inelástica em que a barreira técnica dificulta a
competição.

George T. Brown, no livro The Gas Light Company of Baltimore, narra a história de
uma empresa fundada em 1816 e que sempre enfrentou concorrência. Não havia proteção
do consumidor pelo Estado, mas a permanente ameaça de novos concorrentes.

Outro livro que recomendo vivamente é A revolta de Atlas [Atlas Shrugged] da


pensadora, novelista e filósofa russa Ayn Rand. Esse livro conta a história de um produtor
que desenvolve um produto muito mais competitivo e, deste modo, atrai os olhares de
competidores que desejam destruí-lo. Como operam essa destruição, sem criar produtos
melhores? Eles influenciam o governo para impedi-lo de pôr no mercado o seu produto.
A autora mostra, nessa história, como os produtores ineficientes unem-se aos burocratas e
governantes para dificultar a vida dos jogadores mais eficientes.

Sobre o segundo tipo de monopólio: o que é um monopólio artificial? É aquele criado


pelas barreiras impostas pelo governo. A existência de um monopólio artificial sempre
significa que o governo criou alguma barreira regulatória que impede a entrada de novos
concorrentes. Por exemplo: legislação protecionista, barreiras tarifárias, alfandegárias,
sanitárias, licenças para atuação — como é o caso dos táxis no Rio de Janeiro. Quando
chega o Uber, oferecendo um serviço de melhor qualidade, qual a reação dos taxistas?
Ameaçar com a violência — atitude de máfia — ou com restrições legais. Será que o
interesse é proteger o consumidor? Balela. O que precisamos mesmo é de mais livre
mercado, a melhor garantia de proteção aos interesses do consumidor.

Na realidade, as barreiras impostas pelo governo representam um custo maior para o


consumidor, que o obrigam a pagar um preço maior por qualidade pior devido à ausência,
imposta pelo governo, de competidores no mercado.
O que obriga as empresas a um comportamento mais eficiente não é, necessariamente, a
presença efetiva de competidores mas, como diz o economista austríaco Schumpeter, a
“concorrência potencial”. Um setor pode até estar monopolizado, mas há ou não
liberdade de entrada nesse setor? Quando a situação é de livre entrada, até mesmo o
agente monopolista terá de agir de forma mais racional. Se ele, por exemplo, elevar
demais o preço, atrairá a entrada de novos concorrentes. Ou seja, mesmo num monopólio,
quando há liberdade de entrada, o monopolista deverá agir como se estivesse em um
ambiente de forte concorrência.

Há, portanto, duas coisas que podem impedir a livre concorrência. Uma, é a ameaça de
violência. Esse é um caso de polícia, não de Economia. A segunda é, como vimos, o
próprio governo.

Um argumento freqüente dos intervencionistas é o de que seria perigoso deixar o


mercado livre porque as grandes empresas fariam um conluio para derrubar os preços e
destruir os concorrentes. Após matar a concorrência, elas poderiam abusar dos
consumidores. O que esses críticos não percebem é que, se a concorrência for livre, elas
não poderão abusar dos consumidores, porque logo surgirá outro concorrente com uma
oferta livre de abusos.

No brilhante resumo de Ludwig von Mises, uma política de medidas restritivas favorece
os produtores, enquanto uma política que não interfere no funcionamento do mercado
favorece os consumidores.

OLIGOPÓLIOS E CARTÉIS
As mesmas reflexões que envidamos sobre monopólios também servem para oligopólios
e cartéis. Nos oligopólios, temos um pequeno número de vendedores, em vez de apenas
um. Nos trustes, temos a fusão de diversas empresas numa só. Já os cartéis representam
os acordos entre empresas do mesmo ramo para esvaziar a concorrência.

Voltemos ao caso da opep. O comportamento de máfia, de Estados totalitários, tais


como os Estados que compõem a opep, ao lado dos obstáculos criados pelo próprio
governo, são o que permitem a formação de cartéis, não o livre mercado. Já o setor de
petróleo nos eua, país um pouco mais liberal, tem dezenas de empresas competindo nesse
setor estratégico. E qual é o resultado prático? Uma revolução energética com a
tecnologia de fracking, entre outras, que elevaram a produção de petróleo nos eua de 4
para 8 milhões de barris diários.

Um cartel, ademais, representa uma situação sempre instável, porque o mecanismo de


incentivo ao conluio induz à traição. Ou seja: uma empresa faz um “acordão” com as
outras mas, se ela vender no mercado negro, pegará para si uma fatia de mercado criada
pelo preço abusivo do cartel.

Uma ação de cartel, portanto, se for voluntária, não pode agredir a liberdade de
competição e, se for rentável, beneficiará em vez de prejudicar os consumidores. Essa
avaliação radical é de Murray Rothbard, outro expoente da Escola Austríaca.

Até mesmo situações como a queima de estoques para elevar artificialmente os preços,
tal como fez o Brasil com o café nos anos 1930, se for voluntária, se o Estado não
impedir outros ofertantes de aproveitar o preço artificialmente alto resultante da queima
de estoques, também não prejudicará os consumidores. Aliás, a queima de estoques não é
muito diferente de uma indústria que mantenha máquinas ociosas, que prefere não
produzir a plena capacidade. É uma decisão legítima de mercado.

Portanto, o cade, nosso maravilhoso órgão governamental para proteger a livre


concorrência, acaba sendo, muitas vezes, empregado para dificultar a livre concorrência
— esse tem sido o seu histórico. O grande risco desses instrumentos estatais de controle é
sua captura por algumas empresas no mercado para impedir a entrada de novos
concorrentes.

Dominick Armentano, em uma de suas obras, demonstra como foi exatamente isso que
aconteceu nos eua: as leis antitruste foram usadas para impedir a entrada de novos
jogadores no mercado, com produtos melhores ou preços menores.

UMA ANEDOTA
Há uma anedota, ou piada, que retrata com perfeição esse risco de arbitrariedade:
concentra-se todo o poder num órgão como o cade, onde somente meia dúzia de ungidos
e clarividentes tecnocratas decidirão quando há ou não ameaça à livre concorrência.

Três empresários foram presos e conduzidos à mesma cela. Começam a conversar e


ficam curiosos para saber por que os demais haviam sido presos. O primeiro disse: “Estou
aqui sob acusação de monopólio, por ter praticado preços acima do mercado”. O segundo
replicou: “Fui preso sob acusação de práticas predatórias, por praticar preços abaixo do
mercado”. Finalmente, respondeu o terceiro: “Estou aqui sob acusação de formação de
cartel, porque pratiquei preços iguais aos do mercado”.

Ou seja, se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. Se praticar preço acima, é
monopólio; se praticar preço abaixo, é dumping; se praticar preço igual, é cartel. Ou seja,
quando o Estado reserva para si todo esse poder arbitrário, com definições vagas sobre o
que é concentração de mercado, bem como sobre o que é o próprio mercado, os
empresários tornam-se reféns do governo.

As acusações de “vendas casadas” também são muito comuns. Por exemplo, a


Microsoft sofreu acusações de fazer vendas casadas ao incluir o próprio navegador de
internet em seu sistema operacional. Ora, qual o problema, se a compra for voluntária? Se
a Microsoft não impedir o consumidor de escolher outro navegador, qual será o problema
em oferecer o próprio? Sobre esse caso, alguns economistas comentaram, brilhantemente,
que a Ford também poderia ser acusada de “venda casada” pois, em seus carros, vendiam
pneus da marca Michelin. É um absurdo. Cada empresa decide livremente como deseja
empacotar os próprios produtos e, num mercado livre, é o consumidor quem, em última
instância, decide se quer ou não efetuar a compra desse modo.

Também acusam o McDonald’s de praticar venda casada em seu McLanche Feliz,


porque seriam “obrigados” a comprar o lanche para ganhar o brinquedo. Mas essa é uma
decisão de mercado que cabe ao McDonald’s: foi dele a decisão de vender aquele pacote.
Ninguém é obrigado a comprá-lo.

Deixar nas mãos de burocratas a decisão sobre


o modo como o fornecedor venderá seu produto é
imoral, e fere o direito à propriedade privada.
O vendedor é proprietário do produto e decide como quer vendê-lo; o consumidor é
proprietário do próprio dinheiro e decide se quer ou não fazer a compra. O Estado não
tem o direito de interferir nessa relação. No fundo, trata-se da mentalidade marxista, que
retrata os empresários sempre como exploradores e, os consumidores, como mentecaptos
que não sabem defender os próprios interesses e, portanto, precisam da ajuda de
burocratas clarividentes.

O CASO DA KODAK
A Eastman Kodak foi uma empresa pioneira em fotografia no mundo. Por exemplo, ela
inventou a primeira câmera portátil e imortalizou as imagens do homem na Lua. Há não
muito tempo, ela foi à falência, após incorrer em prejuízos enormes com a concorrência
da fotografia digital. O interessante é que foi a Kodak quem, praticamente, inventou a
fotografia digital. Mas a empresa julgou que aquele não era o seu core business, que os
custos eram muito altos e não havia mercado para isso: tratava-se apenas de um “nicho”
de mercado. Eles tiveram a faca e o queijo nas mãos e não souberam explorá-lo.

Ao deixar o livre mercado funcionar, ele engolirá até a Kodak, uma empresa gigante,
que inventou a tecnologia mas não quis levá-la adiante. Para isso, a condição sine qua
non9 é a liberdade de mercado, cujo dinamismo será capaz de mostrar ao consumidor ex
ante aquilo que o agradará e que desejará.

A Kodak foi punida pelo mercado de um modo exemplar; o mercado pune a


incompetência e premia a excelência. Somente as melhores empresas sobrevivem no livre
mercado. Por outro lado, sob a intervenção estatal, sobrevivem apenas os amigos do rei.

Bastiat, para mostrar o absurdo do protecionismo, fez, no século xix, uma fantástica
petição irônica em defesa dos produtores de velas e querosene, contra um inimigo cruel,
um competidor desleal, um adversário injusto, que aceitava trabalhar em condições
precárias e desumanas, oferecendo gratuitamente um produto com a intenção de aniquilar
os produtores de velas e querosene. Esse competidor era o Sol, que ficava no céu 12 horas
por dia, trabalhando de graça, sem pagar salários… Espero que este capítulo tenha
deixado claro que, para proteger o consumidor, a resposta é uma só: livre mercado. Não à
intervenção estatal!
ECONOMIA MONETÁRIA

A ORIGEM DO DINHEIRO
ual a origem do dinheiro? Por que aceitamos um pedaço de papel impresso como
Q meio de troca? Segundo Ludwig von Mises, o dinheiro não pode surgir por decreto
estatal. Tampouco poderia surgir de uma espécie de “pacto social” consciente entre
os cidadãos. Na opinião historicamente fundamentada de Mises, sua origem é o livre
mercado.

O que existia na economia primitiva, nos primórdios da civilização, era o escambo. A


situação-limite era a de um Robinson Crusoé, a produção para a auto-subsistência, um
estágio de baixíssima produtividade para o qual alguns românticos de esquerda ainda
sonham em levar o ser humano. Quando adicionamos uma complexidade à equação —
um “Sexta-feira” na história de Robinson Crusoé — com a convivência de pessoas ou
tribos, começam a surgir as trocas entre elas.

A primeira grande limitação do modelo de escambo é a coincidência entre as


necessidades dos envolvidos na troca: ambos precisam concordar com os termos da troca;
caso contrário, não haverá escambo. A segunda é o problema da indivisibilidade: a troca
precisa ser entre elementos da mesma magnitude, ou será necessário que o dono do
produto mais valioso encontre diversos indivíduos que estejam, ao mesmo tempo,
dispostos a trocar diversos produtos pelo seu. Por exemplo, o proprietário de um terreno
não o trocaria por alguns porcos ou calçados. Ele teria de encontrar diversas pessoas
dispostas a trocar grande volume e variedade de mercadorias pela propriedade de seu
terreno.

Em resumo, o escambo só é viável para pequenas quantidades de mercadorias de baixo


valor individual. O dinheiro é um “denominador comum” encontrado pelos comerciantes
para facilitar as trocas. Foi-se tornando claro, ao longo do tempo, que seria interessante
usar alguma coisa que outros comerciantes entendessem como meio de troca. Em vez de
trocar diretamente, por exemplo, carne por calçados, bastaria trocar a carne por moeda e,
em seguida, usar a moeda para trocá-la pelos calçados desejados.

Para atender a essa primeira função — facilitar as trocas — a commodity empregada


como moeda necessita apresentar algumas características peculiares. Em primeiro lugar,
um valor intrínseco: o meio empregado como moeda precisa ter algum valor em si
mesmo. Segundo, que seja divisível, para que seja possível transacioná-la em unidades
menores. Terceiro, que seja portável, fácil de transportar no itinerário de ida e volta ao
mercado. Finalmente, ela precisa ser durável, isto é, manter o seu valor ao longo do
tempo, sem se deteriorar muito rapidamente. São essas as quatro características que
fizeram com que as pessoas, naturalmente, num processo dinâmico e voluntário de
mercado, escolhessem as commodities mais valiosas, com maior poder de compra por
unidade — o ouro e a prata — ao longo da história da economia. Não foi um fetiche, uma
decisão arbitrária de um governante, mas uma escolha natural dos comerciantes. Várias
outras commodities, na ausência do ouro e da prata, foram usadas como moeda; por
exemplo, o cobre, o sal — vem daí a palavra “salário” — e até os cigarros, nas prisões.

A segunda função da moeda é a de reserva de valor.

Se tivéssemos de consumir imediatamente tudo o que produzimos, ou trocar o que


produzimos por produtos que serão imediatamente consumidos, a economia teria um
horizonte muito mais curto. Hayek definia a economia capitalista justamente pelo seu
horizonte temporal muito maior: quando produzimos excedentes, podemos armazená-los
sob a forma de moeda sem perda de valor; afinal, um estoque de ouro não perde valor.
Houve época em que a baixíssima inflação permitia até mesmo estocar dinheiro dentro de
colchões para cumprir essa função de reserva de valor.

OS ABUSOS DO ESTADO E O IMPOSTO INFLACIONÁRIO


Se a moeda surge como um instrumento do próprio mercado para facilitar as trocas,
automaticamente surge também uma demanda muito clara em todos aqueles agentes
envolvidos nas trocas: a padronização. Por exemplo, o mercado decidiu que o ouro é a
melhor moeda natural. Mas, como averiguar a autenticidade e a pureza do ouro
empregado numa troca? Essa averiguação constante eleva os custos e a complexidade das
transações, especialmente nas trocas entre povos distantes, onde a desconfiança seria
necessariamente maior.

Assim, mesmo diante de uma commodity valiosa como o ouro, faz-se necessário algum
tipo de padronização: a homogeneidade torna-se uma quinta característica essencial à
moeda. Entram em cena os reis, que estampam nas moedas o seu rosto, o seu selo real,
como uma espécie de “atestado de qualidade”. Ao incluir sua efígie numa moeda, o rei
atesta que aquela moeda é boa, confiável, depositando nela a qualidade de seu reino. É
como se ele dissesse: “eu garanto que, nesta moeda, há a quantidade certa de ouro”.

Evidentemente, esse atestado tem um custo, chamado pelos economistas de


senhoriagem: os reis cobravam pela oferta desse “selo de qualidade” que padronizava as
moedas em circulação no mercado. Concomitantemente, surge o risco de cometimento de
abusos pelos reis para apropriar-se do valor representado pela moeda. Como faziam isso?
Entra em cena o imposto inflacionário. Os reis perceberam o seguinte: “Aponho um selo
de qualidade numa moeda e todos confiam. Ora, e se eu disser que o ouro é puro e incluir
10% de latão na mistura? Ninguém perceberá e a diferença ficará para mim — o
equivalente a 10% de toda a economia”. Essa é uma forma dissimulada e muito menos
impopular do que seria, por exemplo, o confisco de 10% da economia do reino por meio
de tributos.
Na obra Quarenta séculos de controles de preços e salários: o que não se deve fazer
para controlar a inflação, de Robert L. Schuettinger e Eamonn F. Butler, vê-se como a
história de abusos cometidos por governantes estende-se por 4 mil anos. Um dos casos
mais famosos é o do imperador Diocleciano, da Antiga Roma, que punia com morte
quem não aceitasse suas imposições econômicas, o que foi uma das raízes de sua queda.
Os governantes, ao mesmo tempo que ofereciam valor ao mercado quando criavam um
padrão para a moeda, historicamente sempre abusaram desse poder.

Outro fato interessante é que todas as moedas atuais tiveram, em sua origem, algum elo
com o ouro e a prata. Por exemplo, a palavra “dólar” teria se originado de “taler”, uma
medida de pureza do ouro. A libra é uma medida de peso; também o marco e o franco:
todas as moedas tinham alguma relação, em sua origem, com o peso da moeda metálica.
Ou seja, de início, os governos, para que pudessem impor o papel-moeda como meio de
troca, precisavam atrelar esse valor ao peso de uma moeda já existente. A adoção do
papel-moeda não é um ato ex nihilo.10 Um decreto do governante nesse sentido não seria
aceito pelo mercado, a menos que se tratasse de um tirano sangüinário. Marco Polo relata
que, no reino de Cubla Khan, neto de Gêngis Khan, os comerciantes que chegavam a seu
reino eram instados a trocar seus metais valiosos pela moeda que ele obrigava ser aceita
em seu reino.

O imposto inflacionário foi extraordinariamente facilitado com o surgimento do papel-


moeda. A falsificação de uma moeda é compreendida por todos como um crime grave. O
indivíduo que, isoladamente, falsificasse uma moeda, era visto como um elemento
criminoso. É fácil compreender que a falsificação produz uma moeda sem lastro em nada,
seja um metal, uma mercadoria, uma commodity, e será usada no mercado para adquirir
produtos. Assim, o falsário está, de fato, confiscando produtos que deveriam pertencer a
outras pessoas. O próprio vendedor será lesado, pois ele se julgará em posse de algo
valioso quando, na verdade, terá em mãos apenas papel pintado. Todos compreendem a
gravidade da falsificação da moeda, pois se trata de um logro contra os agentes do
mercado, punindo algumas pessoas por transferir a riqueza de uns para outros sem
nenhum benefício para quem a transferiu. Houve, portanto, uma transferência criminosa
da riqueza do produtor para o falsário.

O livro juvenil As aventuras de Jonas, o ingênuo, de Ken Schoolland, oferece um


exemplo muito interessante. Jonas sofre um naufrágio e vai parar numa ilha. Como ele é
apenas um menino, é ingênuo e faz perguntas incômodas. Cada capítulo desse livro
aborda uma falácia econômica típica da esquerda — e um deles trata, justamente, da
falsificação da moeda. Jonas depara-se com um sujeito que tem uma máquina de fazer
dinheiro. Jonas pergunta por que ele não pode ter uma máquina daquelas. O outro
responde que ele seria preso por falsificação. Jonas replica: por que, então, o seu
interlocutor pode ter uma máquina de fazer dinheiro e ele, Jonas, não? O outro responde:
por que ele é um agente do governo. Quando o governo emite moeda, ele não chama esse
ato de “falsificação”, mas de alguma outra coisa.
O PROBLEMA DO PAPEL-MOEDA

O papel-moeda representa o momento em que


o próprio governo, que deveria fiscalizar e punir a
falsificação de moeda, transforma-se, ele próprio,
no grande falsificador.
O governo falsário é o grande inimigo de todos nós que trabalhamos e queremos poupar
— isto é, usar a moeda como reserva de valor — e efetuar trocas com o produto de nosso
trabalho. É ele, o governo, que abusa de seu poder de coerção e de monopólio da emissão
de moeda para confiscar o que produzimos. A invenção do papel-moeda foi um convite
tentador para que os governos embarcassem nessa nefasta prática inflacionária.

Alan Greenspan escreveu, num livro de Ayn Rand publicado em 1966, um importante
esclarecimento sobre por que o padrão-ouro era tão detestado pelos defensores do welfare
state — o famoso “Estado do bem-estar social”: a obrigatoriedade do lastro da moeda em
ouro dificulta muito a impressão de papel-moeda pelos que desejam apenas fingir que se
trata de uma moeda real. Quando o governo quebra o elo da moeda com uma commodity
escassa na natureza, substituindo-a pela tinta que aplica num pedaço de papel, ele está
livre para abusar desse poder, como sempre fez ao longo da história. Rothbard esclarece
detalhadamente como ocorreu a quebra desse elo. Primeiramente, o governo oferece a
garantia de que aquele pedaço de papel é resgatável por uma quantidade determinada de
ouro ou prata; caso contrário, ninguém o aceitaria voluntariamente. Em seguida, ele liga
esse papel a uma legislação coercitiva, que obriga o público a aceitar o papel-moeda,
incluindo os seus credores. Aos poucos, o papel-moeda começa a ser adotado como meio
de pagamento em todas as trocas naquela economia; os contratos são estabelecidos
forçosamente naquela moeda, com cláusulas que impedem o uso de outras moedas, tais
como o ouro e o dólar. Quando a moeda começa a ser amplamente utilizada, o governo
pode inflar a sua oferta e financiar os gastos do governo de forma mais sutil e disfarçada.

É nesse ponto que surge o processo inflacionário, uma decisão política deliberada para
beneficiar o governo com sua prerrogativa de abocanhar o que foi produzido pelo povo na
economia. É o pior, o mais nefasto imposto que existe, porque toma riqueza de forma
desproporcional dos mais pobres e porque, sendo disfarçado, as pessoas não se dão conta
de que ele existe. De início, inclusive, ele cria uma sensação de prosperidade na
economia.

Por exemplo, voltando ao caso do sujeito que tem em casa uma máquina de falsificar
moeda. Quando ele vai à quitanda do seu Zé, a primeira informação que chega a este
último é a de que há um aumento de demanda na economia. Ele fica feliz por vender
mais. Mas esse aumento é fruto de impressão de moeda falsa, não um reflexo de aumento
na produtividade e na riqueza da economia; as pessoas não estão produzindo mais com
menos e, por isso, não podem comprar mais. Portanto, o primeiro efeito do imposto
inflacionário é criar uma ilusão de prosperidade.

Devemos considerar também um segundo fator que escapa a muitos economistas. David
Hume, por exemplo, filósofo escocês que era amigo de Adam Smith, fez uma
provocação: pediu que imaginássemos uma fada que, num passe de mágica, fizesse com
que as pessoas despertassem no dia seguinte com o dobro da moeda que possuíam no dia
anterior. Qual seria o efeito disso sobre a economia? Não é difícil de entender que, do
ponto de vista real, o efeito seria nulo: todos os preços seriam igualmente dobrados.
Porém, o que Hume, com essa provocação inteligente e instigante, falhou em perceber foi
que o processo inflacionário não se dá de modo uniforme em toda a economia. Além de
gerar um efeito de prosperidade ilusória, o processo inflacionário beneficia, de fato,
alguns às expensas de outros: o dono da máquina e seus amigos se beneficiarão pois, no
final do dia, terão os produtos em suas casas, mas os últimos que chegarem ao mercado
pagarão o pato, pois, como os produtos estarão mais escassos, o preço terá subido. No
processo inflacionário, o governo imprime moeda, papel sem lastro, gasta esse dinheiro,
beneficiando alguns com o aumento inicial dos gastos públicos pela transferência de
riqueza dos demais membros da economia, que pagarão a escassez de produtos adquiridos
pelo governo com o aumento de preços.

É exatamente isso o que acontece hoje no Brasil: todos vão ao mercado pagar muito
mais pelos produtos, com essa inflação de 9,5% ao ano, pelos ganhos das empreiteiras
com o aumento dos gastos com obras públicas. O governo produz moeda a partir do nada,
enriquece seus amigos, e o povo paga a conta com inflação, um imposto disfarçado e
cruel pago pela maioria para uma minoria que se apropria da riqueza real da economia.

Como a prerrogativa governamental de criar moeda é extremamente perigosa, diversos


economistas preconizaram restrições para que o governo não cometesse abusos. Um bom
exemplo é o dos Estados Unidos, onde, segundo Rothbard, surgiu o primeiro papel-
moeda governamental do Ocidente, especificamente na província de Massachusetts em
1690. Essa província dirigia periódicas expedições militares contra a província francesa
de Quebec, onde as vitórias rendiam o tradicional meio de pagamento aos soldados: a
pilhagem. Porém, naquele ano, eles sofreram uma derrota. Os soldados regressaram a
Boston descontentes com a falta de pagamento e o governo estava endividado. Um
aumento de impostos, nesse contexto, seria fortemente impopular, com potencial de
causar uma rebelião. Historicamente, diversas revoluções originaram-se nessa situação.
Assim, em dezembro de 1690, foram impressas 7 mil libras em notas de papel, com a
garantia governamental de resgate dessas notas em ouro e prata em poucos anos e o
compromisso de não mais emitir outras notas antes do resgate.

Em fevereiro de 1691, o governo novamente declarou escassez de recursos para honrar


sua promessa e emitiu mais 40 mil libras em notas, provocando um gigantesco salto na
inflação. Em seguida, o governo declarou que não poderia resgatar toda aquela papelada
antes dos 40 anos seguintes. Abriram-se as portas do inferno inflacionário em
Massachusetts. Durante a Revolução Americana houve um processo idêntico. Para
financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu grande quantidade de continentals,
cuja desvalorização foi abrupta. Antes do término da guerra, essas notas não tinham mais
valor algum no mercado. Durante a Guerra Civil Americana, foram emitidas greenbacks,
notas não resgatáveis, para pagamento do esforço de guerra que, ao final do conflito, já
haviam perdido metade do seu valor. Os governos apelavam ao patriotismo na venda
desses papéis de guerra, mas, no fundo, estavam apenas confiscando riqueza de forma
disfarçada.

Por fim, Roosevelt, na era mais intervencionista da história dos eua, presidente numa
época em que o mundo flertava com Mussolini e Vargas ao lado da opção comunista,
confiscou, novamente em nome do patriotismo, todo o ouro existente na economia em
1933. Quem possuía ouro na véspera, despertou no dia seguinte em plena ilegalidade.
Keynes chamava o ouro, a commodity empregada como moeda em todas as sociedades,
de “relíquia bárbara”: um produto que se tem o custo de cavar e, depois, de “enterrar”
num cofre, uma prática sem sentido. Ele fingia não entender que o custo de cavar e,
depois, de enterrar podia até ser alto, mas é muito mais baixo do que a outra alternativa,
isto é, o custo de emitir uma moeda sem lastro. É muita arrogância chamar de “relíquia
bárbara” uma solução que emergiu voluntariamente do próprio mercado.

Os governos mostraram-se, ao longo da história, muito pouco confiáveis. Por isso,


Hayek publicou um livro sobre o tema, em que ele propôs a desestatização do dinheiro, a
privatização da moeda, pois o governo, tendo nas mãos o monopólio de sua emissão,
sempre abusaria dessa prerrogativa.

Agora que entendemos de onde vem, como surge, para que é usado, por que tem valor,
podemos dizer que o dinheiro é fonte de todo mal, como dizem os inimigos do
capitalismo, num espectro que varia desde os marxistas até alguns Papas? Será que, caso
o dinheiro fosse abolido, a ganância humana desapareceria junto com ele? É claro que
não. O que aconteceria com a desaparição do dinheiro seria o retorno da economia a um
nível extremamente rudimentar, precário, míope e de curtíssimo prazo, acarretando uma
queda drástica da produção de riquezas. Sem eliminar o problema da ganância,
acrescentam-se diversos outros.

Ayn Rand, em A revolta de Atlas, escreve uma das mais brilhantes respostas a essa
acusação. Um dos personagens desse romance se expressa em termos semelhantes aos
seguintes: você acha que o dinheiro é a fonte do mal se, na sua origem, é um instrumento
de troca de um valor por outro valor? Eu trabalho para produzir um calçado; você
trabalha para produzir um alimento; ambos usamos o dinheiro para trocar uma coisa pela
outra. Será essa a origem do mal? Isso só é possível se chamarmos de “mal” todo o
funcionamento de uma economia de trocas voluntárias, a base da produção de riquezas na
história da humanidade. O dinheiro é, então, a forma material do princípio de que os
homens que querem negociar uns com os outros precisam trocar um valor por outro. O
dinheiro não é um instrumento dos “pidões”, que pedem produtos com suas lágrimas;
nem dos saqueadores, que pegam a produção alheia à força; ou, como faz o governo, por
meio do imposto inflacionário. O dinheiro só se torna possível numa economia livre
através dos homens que produzem. É isso que se considera o mal? Quem aceita o
dinheiro como pagamento pelo seu esforço só o faz porque sabe que ele poderá ser
trocado pelo produto do esforço de outrem. Não são os pidões e os saqueadores que dão
valor ao dinheiro; e o dinheiro tampouco tem seu valor extraído do nada, só porque o
governo diz. Ele tem valor porque representa o valor produzido por aquela sociedade, que
produz algo demandado por terceiros. Aqueles pedacinhos de papel, que deveriam ser
ouro, são penhores de honra; por meio deles, nos apropriamos da energia de homens que
produzem. A sua carteira afirma a esperança de que, em algum lugar do mundo ao seu
redor, existem homens que traem aquele princípio moral que está na origem da produção.
Olhe um gerador de eletricidade e ouse dizer que ele foi criado por seres irracionais.
Tente plantar um grão de trigo sem os conhecimentos que lhe foram legados pelos
primeiros homens que o plantaram. Tente obter alimentos usando apenas movimentos
físicos e descobrirá que a mente do homem é a origem de todos os produtos, de todas as
riquezas que já houve na Terra.

O dinheiro é, portanto, o reconhecimento, numa economia livre, daquilo que cada um


produziu de valor para a própria sociedade de acordo com o julgamento voluntário,
subjetivo, dos indivíduos que livremente escolhem produzir e trocar o seu produto por
outros. É absolutamente legítimo acumular, dinheiro, ouro, reserva de valor, se ele é fruto
de seu próprio trabalho voluntário na sociedade.

A ORIGEM DOS BANCOS


A ação dos bancos e a concessão de crédito estão inteiramente atreladas à criação de
moeda. Se o governo é o grande culpado pela inflação, entenderemos hoje a parcela de
culpa que cabe aos bancos. Se a esquerda adora demonizar os bancos, talvez você se
surpreenda ao perceber que muitos liberais e libertários alimentem um certo receio e, até
mesmo, ojeriza, ao sistema bancário. Por exemplo, Thomas Jefferson, um dos “pais
fundadores” dos eua, temia fortemente os bancos, pois achava que os bancos poderiam
agir como potenciais catalisadores do processo inflacionário. Neste capítulo,
esclareceremos essas acusações tão pesadas contra os bancos.

Os bancos, enquanto instituições de depósitos, que as pessoas usam para guardar seus
valores, têm uma origem totalmente diferente dos bancos enquanto instituições de crédito,
isto é, que concedem empréstimos. Compreender essa distinção de funções é crucial para
entender como eles participam do processo inflacionário. O banco de crédito é uma forma
de canalizar recursos de quem poupou para quem deseja investir, normalmente, em
empreendimentos produtivos. Essa é uma função social legítima e imprescindível para o
adequado funcionamento da economia, mas distinta de sua função como depositantes dos
recursos das pessoas. Esta última surgiu como conveniência para os proprietários de ouro
e prata amedrontados pelo risco de roubo. Em vez de carregar o ouro físico, o indivíduo
depositava o metal em um armazém seguro e, em troca, recebia um certificado que
atestava o seu direito sobre a quantidade depositada.

Com o passar do tempo, muitos bancos conquistaram uma boa reputação de


credibilidade e segurança por sua atuação honesta como depositários de valores, de modo
que esses certificados começaram a ser, eles próprios, transacionados. Em vez de sacar o
metal e transportá-lo para efetuar uma transação, o depositante transfere esse certificado
para o nome da outra pessoa, transformando-o efetivamente numa moeda. Nesse caso
específico, a oferta monetária, nessa economia, não aumenta; o que ocorre é apenas a
substituição da forma da moeda.

Os bancos de depósitos surgiram em tempos diferentes em diversos locais do mundo.


Por exemplo, já estavam presentes no Antigo Egito, na Grécia Antiga, na Síria do século
xiii, na Veneza do século xiv, em Hamburgo e Amsterdã nos séculos xvii e xviii, e assim
por diante.

Todas as pessoas, no entanto, estão sempre sujeitas às tentações do engodo, do roubo e


da fraude. Os donos dos bancos não são exceções. Não se trata de dizer que os banqueiros
sejam “ladrões”, mas que, como veremos, os instrumentos que eles têm à sua disposição
são muito tentadores. Por exemplo, um banqueiro poderia simplesmente pegar para si
todos aqueles valores e fugir do país. Mas essa seria uma fraude cometida uma única vez,
que o transformaria em um procurado pela polícia. Há, no entanto, outra maneira mais
interessante de roubar os proprietários de todo aquele ouro. Ele o toma emprestado
temporariamente para especulação, sem que o proprietário se dê conta do ocorrido. Surge
então o chamado sistema de reservas fracionárias, o início da cumplicidade dos bancos
no processo inflacionário.

Quando não se tem um objeto específico usado como reserva de valor — por exemplo,
uma jóia ou obra de arte — mas uma commodity, tal como o ouro, a especulação com o
estoque de valor se torna muito mais fácil: o especulador usa uma parte do ouro
depositado por uma pessoa e, caso essa pessoa venha resgatá-lo, ele o paga com o ouro de
outra pessoa, em igual valor.

Para compreender isso, basta imaginar que, em vez de ouro, as pessoas depositassem
grãos no armazém do banqueiro e ele simplesmente os despejasse num silo. Se o sujeito
depositou tantos quilos de grãos, quando quiser sacar, receberá o peso equivalente ao
depositado, não fazendo diferença se os grãos que recebe pertenciam a outras pessoas. O
banqueiro, percebendo que apenas um pequeno percentual dos depositantes retira seus
depósitos a cada ano, pode pegar uma parte dos valores e emprestá-la a terceiros,
cobrando juros e auferindo lucros sobre o que não lhe pertence.

Esse ato é, sob essa perspectiva, uma espécie de fraude. O depositante confia que seus
valores estão depositados no banco e disponíveis para saque na hora em que desejar.
Como vimos, isso não é verdade: o banqueiro, prevalecendo-se de uma percepção
“esperta” de que nem todos pedem o resgate de seus valores ao mesmo tempo, usa os
produtos dos clientes para obter lucro sem que eles se dêem conta disso.

Ao longo do tempo, surgiram demandas jurídicas que questionavam essas práticas:


vários depositantes foram aos tribunais quando descobriram o que os bancos faziam com
seus valores, confundindo sua função de armazém de recursos com a de emprestadores.
Em 1811, na Inglaterra, ocorreu o famoso caso “Carr versus Carr”, em que a corte decidiu
que os depósitos deveriam ser entendidos como dívidas: o depositante fazia um
“empréstimo” ao banco, que armazenava seu dinheiro. Essa definição beneficiou os
bancos, porque, caso o depositante decidisse resgatar seus valores e o banco o tivesse
disponível para saque imediato, isso não seria entendido como roubo, como aconteceria
numa casa de penhores em que o depositante tivesse guardado sua jóia.

Em 1848, o caso “Foley versus Hill” estabeleceu definitivamente que o dinheiro


depositado num banco deveria ser considerado uma dívida, concedendo carta branca aos
banqueiros para que emprestassem livremente o dinheiro depositado nos seus cofres, sem
medo de serem enquadrados como ladrões.

Essa é origem do sistema de reservas fracionárias.

Como diz o nome,

a reserva de valor não estará integralmente


disponível no banco, mas apenas uma fração,
tornando-se um importante fator deinflação
nas economias.
Quanto menor for a fração do valor total que o banco mantiver disponível em seus
cofres, maior será a quantidade de moeda que ele emitirá na economia, sob a forma de
certificados de depósito sem lastro.

Um dos erros fundamentais do sistema de reservas fracionários está em que ele não
respeita uma das regras fundamentais do comércio: a estrutura temporal do ativo não deve
ser maior do que a do passivo. Se um banco tem uma dívida com os correntistas que
precisa pagar à vista, e empresta os recursos dos depositantes a prazo mais longo, isso
significa que o banco está sempre, potencialmente, falido. Se uma parcela
suficientemente grande dos depositantes quiser sacar os seus depósitos simultaneamente,
o banco quebra. Tanto que é até mesmo considerado crime o ato de espalhar boatos de
insolvência de um banco, o que pode acarretar uma corrida de saques e efetivamente
quebrá-lo.

Há duas soluções liberais para esse problema: o free banking e as reservas integrais. O
free banking foi defendido por Hayek em seu argumento pela desestatização do dinheiro.
Ele achava que, num ambiente de total liberdade de emissão de moeda, ao longo do
tempo, de forma darwinista, sobreviveriam apenas os emissores responsáveis, que não
abusassem de sua prerrogativa de reservas fracionárias, dessa fraude implícita no acordo
entre depositantes e banqueiros, de modo que os certificados de depósitos tenderiam à
reserva integral, pois os depositantes não arriscariam todo o seu dinheiro em quem não
adotasse esse sistema. Tal como no mercado de criptomoedas, o próprio mercado se
encarregaria de impor sua disciplina aos banqueiros.
Por outro lado, Rothbard, o grande defensor da opção da reserva integral, considerava o
sistema de reservas fracionárias como uma fraude pura e simples. Sendo fraude, o livre
mercado não pode tolerá-lo e, portanto, nesse caso, deve haver o uso da força pelo
Estado.

Percebe-se que, de fato, o que está em discussão nessas correntes da Escola Austríaca é
a moralidade do sistema. Boa parte dessa discussão entre vertentes liberais vem do fato de
que os bancos assumem e misturam dois papéis: de depositantes e de emprestadores. Se
houver uma separação mais clara entre essas funções, o depositante poderá escolher se
quer que seus recursos sejam emprestados para terceiros na expectativa de ganhar alguma
coisa com isso, tal como nos sistemas de depósitos a prazo e fundos de investimento. O
depositante se torna um sócio do banco em sua empreitada de conceder empréstimos,
coletando spread11 e ganhando dinheiro com essa atividade. Por outro lado, se o
depositante quiser manter depósitos à vista no banco, sem perspectiva de auferir lucros
com isso, apenas para sua conveniência e segurança, ele deveria ter garantia de que o
banco não emprestaria esse dinheiro sem seu consentimento, de que o valor estaria
sempre lá, integralmente, à sua disposição.

A ORIGEM DOS BANCOS CENTRAIS


Conhecer a origem dos bancos centrais é essencial para compreender a natureza do
conluio entre o governo e os banqueiros no processo inflacionário. Sabendo que a
situação dos bancos é de insolvência crônica, como eles fazem para se proteger? Neste
momento, cabe a pergunta: você já ouviu falar de algum setor industrial que tivesse
pleiteado que o governo, em parceria com os empresários do setor, fiscalizasse e criasse
controles maiores sobre o próprio setor? Foi exatamente o que aconteceu no setor
bancário.

Atuando como emprestador de última instância — a principal função de um banco


central — ele pode ajudar a manter a confiança no sistema bancário, inclusive nos mais
insolventes. Por isso ouvimos com tanta freqüência a expressão “risco sistêmico”
empregada para justificar todo tipo de ação e intervenção do banco central para salvar
bancos e banqueiros em tempos de crise. Não estou dizendo que isso seja
necessariamente ruim: dada a situação do sistema bancário atual, se ele quebrar num
efeito dominó, a economia entrará em processo de depressão. Mas é preciso entender
como fomos parar aí. Se entendermos a origem dos problemas, entenderemos melhor
como a economia funciona, bem como as propostas de solução. Talvez por isso mesmo os
liberais sejamos acusados de “radicais”, pois vamos sempre à “raiz” dos problemas.

Os bancos centrais surgem como uma demanda dos próprios banqueiros para criar
instrumentos de proteção contra a insolvência dos bancos e evitar o tal “risco sistêmico”.
Por exemplo, o Bank of Finland, um dos mais antigos bancos centrais, foi criado para
cumprir a função de proteger os bancos que haviam emprestado grandes quantias ao
governo contra sua eventual inadimplência durante as guerras. Trata-se de um processo
inflacionário, em que o banco central emite moeda para tirar o dinheiro de alguns para dar
a outros — os banqueiros, os “amigos do rei”.

Nos eua, os defensores do sistema de banco central são herdeiros intelectuais de


Alexander Hamilton, que, entre os founding fathers, foi um dos mais centralizadores, um
dos maiores defensores de um governo central forte, intervencionista e protecionista, de
elevadas barreiras alfandegárias. Não é coincidência.

O “pânico de 1907”, como foi batizada a grande crise econômico-financeira daquele


ano — até então, a economia americana funcionou muito bem; no século xix, sem banco
central, a economia dos eua cresceu mais do que no século xx —, forneceu o pretexto
perfeito para a criação do Federal Reserve Bank, o “Fed”. J. P. Morgan salvou o mercado
de um crash, mas argumentou que o sistema não poderia mais funcionar de forma tão
instável, sendo necessária a criação de um banco central, que nasceu em 1913 como um
braço da iniciativa privada no setor financeiro, uma estranha simbiose de mercado e
governo. O que Rothbard demonstra — no livro em que explica a história do Fed e pede o
seu fim, e no qual empregou argumentos replicados por Ron Paul em outro livro — é que
grandes banqueiros como Morgan e Rockefeller estavam por trás da demanda pela
criação do banco central. Mais do que isso: a história adquire cores de teoria
conspiratória, digna de um filme, quando Rothbard mostra que eles se reuniam
secretamente na ilha de J. P. Morgan, usando nomes falsos para não atrair a atenção da
imprensa. Será que a criação do Fed foi em prol do interesse público? Há controvérsias.
Em 1913, portanto, os banqueiros conseguiram remover as barreiras históricas
americanas, ligadas aos liberais do sul do país, herdeiros intelectuais de Thomas
Jefferson, e criou-se o Fed para exercer a função básica de emprestador de última
instância. Pondo o Fed no banco dos réus, qual foi, desde então, o resultado de sua
criação? Será que ele pode alegar um sucesso histórico no cumprimento de sua missão?
Novamente, há controvérsias. Mas o fato é que a inflação nesse período não foi
desprezível, mesmo sem mencionar as diversas crises ocorridas desde sua criação. A
maior de todas, já em 1929, foi o crash da Bolsa de Nova York. Muitos economistas,
entre eles Milton Friedman, da Escola de Chicago, atribuem ao Fed uma grande parcela
de responsabilidade por essa crise, seja por inoperância, como considera essa escola, seja
por ter contribuído para criar a crise, como consideram os economistas da Escola
Austríaca, que acreditam que o Fed ajudou a alimentar a bolha especulativa que conduziu
ao crash. Rothbard está incluído neste último caso: em seu livro America’s Great
Depression, ele demonstra que houve uma inflação nada desprezível sob o comando do
Fed sobre a economia.

Ninguém menos do que Alan Greenspan — que foi o presidente do Fed durante muitos
anos, sendo inclusive acusado de ter contribuído para a bolha especulativa que estourou
em 2008 —, quando ainda era um libertário objetivista seguidor da filósofa russa Ayn
Rand, publicou um livro intitulado Capitalism: the unknown ideal, que contém alguns
artigos sobre o Fed em que o acusa de ser o responsável pela crise de 1929. Segundo ele,
se os bancos, tal como argumentavam os defensores do banco central, pudessem
continuar indefinidamente emprestando dinheiro, nunca mais ocorreriam quedas drásticas
nos negócios. Greenspan entendia que o Fed se relacionava ao interesse de inflacionar a
economia e, assim, foi responsável pela geração da bolha especulativa.

Um ex-dirigente do Fed, Lawrence H. Meyer, escreveu um livro com memórias de seu


período à frente da instituição intitulado A Term at the Fed: An Insider’s View, em que
alega que o Fed não sabia muito bem para onde caminhava a economia e agia tateando no
escuro — ao contrário da clarividência que os leigos atribuem aos tecnocratas — e
chama, de forma pejorativa, as reuniões da todo-poderosa cúpula do Fed de “o templo”,
para caracterizar a forma obscura como se processavam as suas decisões. Era muito poder
concentrado nas mãos de poucos tecnocratas, com reduzida responsabilidade, porque
poderiam ajudar a criar as bolhas especulativas e, depois, não poderiam ser acusados ou
punidos por isso. Trata-se de um modelo muito perigoso, na visão dos liberais e
libertários da Escola Austríaca.

Num sistema capitalista, presume-se que a formação do custo do capital numa economia
tem alguma relevância. Ora, defender a entrega da formação do custo do capital,
manifesto na taxa de juros, que depende de inúmeros fatores, tais como preferências
intertemporais, demanda por moeda, oferta de poupança e capital na economia, a meia
dúzia de tecnocratas reunidos numa sala, no mínimo despertará o receio dos economistas
liberais.

Rothbard analisou o que aconteceu antes e depois da criação do Fed. Em 1819, houve
uma crise séria, num tempo em que a economia americana era muito mais simples,
predominantemente agrária. Rothbard mostra como houve um amplo debate, fortemente
qualificado, com argumentos fortíssimos, entre as partes que defendiam diferentes formas
de enfrentar a situação. Já naquela época, houve grande defesa da criação de um banco
emprestador de última instância. Os defensores do banco central saíram perdedores no
debate, decidiu-se não salvar o sistema e, incrivelmente, a crise durou apenas dois anos:
em 1821, a economia americana voltou a crescer.

O LEGADO DO FED
O gráfico que ilustra esta seção mostra o preço do ouro — a “relíquia bárbara” dos
keynesianos — em dólares desde a criação do Fed, cuja missão seria proteger a moeda.
Como se pode ver, esse preço saiu de 35 dólares a onça para um valor 10 vezes maior
apenas alguns anos após a criação do Fed. Até 1970, quando foi abandonado o padrão-
ouro, o valor se manteve relativamente estável. A partir de então, o preço do ouro
disponível aumentou, e hoje vale quase 1.100 dólares a onça. A valorização foi de cerca
3,5% ao ano — mais do que o valor do crescimento da economia americana. Assim,
historicamente, não é fácil obter retornos reais de 3,5%. Se um sujeito esqueceu uma
moedinha de ouro em sua gaveta e, 100 anos depois, alguém da sua família a encontrou,
ela já valia quase 30 vezes mais do que quando foi esquecida. Será que esse exemplo
milita a favor do papel do Fed como guardião do valor do dólar? Invertendo o gráfico,
veremos que o dólar perdeu 95% do seu valor em um século.

Finalmente, é preciso entender o que significa o moral hazard, um termo empregado


por muitos economistas para se referir aos problemas desse modelo que combina o
sistema de reservas fracionárias com um banco central e uma agência garantidora dos
depósitos. Podemos fazer uma analogia: se pusermos uma rede de segurança sob os
trapezistas, eles terão um incentivo para ser mais ousados. Da mesma forma, esse modelo
acabou criando um monstro, uma economia onde todos se tornam negligentes porque, se
o banco emprestar mal o seu dinheiro, o banco central o socorrerá. Deste modo, os bancos
centrais estimulam o processo inflacionário e a criação de bolhas de ativos na economia.
Portanto, os austríacos defendem a eliminação desse emprestador de última instância,
sustentando que o próprio mercado deve disciplinar-se para ficar atento à relação entre
depósitos e empréstimos — as duas funções básicas do sistema bancário.

Por isso, este capítulo e o anterior compõem uma mesma lição: se não houver
efetivamente um sistema de livre mercado funcionando nesse importantíssimo setor de
uma economia capitalista — o financiamento do capital —, criam-se incentivos perversos
à própria produção de bolhas e de inflação. A culpa não é do livre mercado: a defesa de
banqueiros com o discurso de risco sistêmico não é um discurso liberal. Os liberais
desejam que os banqueiros não possam mais abusar da reserva fracionária e que, por
outro lado, o banco central não seja seu cúmplice nesse esquema cartelizado.

O MULTIPLICADOR BANCÁRIO
Falemos agora sobre a tace (teoria austríaca dos ciclos econômicos), uma recapitulação de
assuntos já vistos acompanhada de algumas conclusões novas e um resumo do que
expusemos até o momento.

De início, precisamos esclarecer alguns conceitos relacionados à atuação dos bancos


centrais, a formação dos ativos e passivos, e como funciona a criação de moeda a partir
do nada e, assim, entender a coordenação do processo inflacionário junto aos bancos.

Se um cliente de um banco comercial deseja sacar os seus depósitos sob a forma de


papel-moeda, ele não poderá obter as notas de seu banco, porque eles não estão
autorizados a emiti-las. Ou seja, não estamos sob a vigência de um sistema de free
banking, como propunha Hayek. O banco deverá, então, obter essas notas junto ao banco
central — o único que detém o poder de autorizar a impressão de moeda. Assim como
cada um de nós tem uma conta-corrente num banco comercial, os bancos comerciais têm
suas próprias contas-correntes no banco central. Portanto, o banco comercial obterá essas
notas, seja sacando-as de sua conta-corrente no banco central, seja vendendo algum tipo
de ativo para o próprio banco central. Os bancos, seja por determinação legal ou pela
prática do mercado, em geral mantêm um nível de “alavancagem”, isto é, a razão
reserva/depósitos, mais ou menos constante. Num sistema de banco central, a oferta
monetária — que chamamos de M em seus diversos conceitos, M1, M2 e M3, cada um
deles agregando formas de moeda cada vez menos líquidas — será igual ao dinheiro nas
mãos do público somado aos depósitos em conta-corrente detidos pelo público em bancos
comerciais. Quando ocorrem as chamadas “corridas bancárias”, em contraste com o que
ocorreria num sistema de pluralidade bancária, o banco central age para impedir esse
risco sistêmico. Há diversas formas desse tipo ação do banco central. Por exemplo, ele
pode se converter em emprestador de última instância, seja emprestando suas próprias
reservas, seja comprando ativos para auxiliar os bancos em dificuldade. Desta forma, o
banco central consegue, por algum tempo, manter a saúde do sistema.

Todos os bancos conseguem expandir juntos a oferta de crédito, pois o acesso às


reservas de que dispõem para essa finalidade provém do próprio banco central. Se não
existisse um banco central, os bancos receariam as corridas bancárias e não ofertariam
crédito todos ao mesmo tempo. Se um banco expandisse demais sua oferta de crédito, ele
provocaria uma expansão temerária da alavancagem dos bancos, isto é, na razão
reserva/depósitos. Por si, essa expansão já poderia criar uma corrida bancária. Os outros
bancos deixariam, portanto, de emprestar para esse banco e, vendo-se em dificuldades,
ele teria de deter a expansão do crédito. A única possibilidade de expansão simultânea de
crédito por todos os bancos é a garantia oferecida pelo banco central. Nenhum banco
perde reservas às custas dos demais, porque todos contam com o banco central para
provê-las ao sistema.

Com a centralização das reservas de ouro e com a centralização da moeda, o banco


central induz os bancos a inflacionar a economia de modo uniforme, pois substitui a
moeda forte — ouro ou outra commodity — sem inflação, pela inflação bancária do
crédito coordenado. Torna-se claro agora por que os bancos comerciais não se opõem ao
controle do banco central — ao contrário, como vimos, eles estimulam sua criação e
recebem-na de bom grado. É um passaporte para a inflação via moeda fácil, sem
necessidade do hard currency.12

Até que ponto os bancos inflacionam a


economia?
Se eles emprestarem o máximo que puderem, inflacionarão até o limite de alavancagem
máximo permitido legalmente ou, de outro modo, mantendo o nível mínimo de reservas
requerido pelo próprio banco central. Por exemplo, se o nível de reservas for de 20%, em
quanto o sistema bancário poderá inflacionar a economia? A resposta é a fração inversa
da razão reservas/depósitos: se 20% correspondem a 1/5, ele poderá inflacionar o
mercado em até 5 vezes o valor que recebeu dos depositantes.

A taxa pela qual os bancos podem criar novos depósitos relativamente à quantidade de
novas reservas é o que chamamos de economia de multiplicador bancário. Uma maneira
de aumentar a oferta monetária, portanto, é reduzir a razão reserva/depósitos. Se o banco
central entender que não precisa mantê-la em 20% e decidir reduzi-la para 10%, ele
dobrará o nível de alavancagem do sistema, pois o multiplicador bancário passará de 5
para 10.

Outra ferramenta empregada pelo banco central para aumentar a oferta monetária é o
chamado open market, as operações de mercado aberto. Imagine que o banco central
deseje comprar uma escrivaninha para um de seus escritórios. De onde sairá o dinheiro?
A resposta é: de nenhum lugar. O banco central não recebe depósitos diretos, não poupa,
nem adquire commodities. Ele simplesmente cria o valor da escrivaninha, creditando o
seu preço no ativo de um banco comercial e registra o mesmo valor no seu passivo com
esse banco. O banco central usa o dinheiro do banco comercial para adquirir o produto
que deseja comprar.

A escrivaninha, claro, é apenas um exemplo simplificado, banal. Há diversos tipos de


ativos que o banco central pode adquirir — principalmente, os títulos do governo, que os
bancos comerciais compram, vendem ou mantêm em sua carteira. Deste modo, o banco
central sempre pode extrair ou injetar liquidez na economia, comprando dos bancos os
títulos do governo com recursos que criou a partir do nada, que os bancos podem usar
como forma de aumentar a oferta de crédito, inflacionando a economia.

O CICLO MONETÁRIO
O ciclo monetário se caracteriza, em seu primeiro estágio, o boom,13 por uma expansão
generalizada da produção; no segundo, o bust14 ou depressão, a queda. O ponto de
inflexão entre uma fase e outra é a chamado de crise ou crash.15 Segundo a visão de Karl
Marx, no século xix, as crises econômicas teriam origem nas “contradições intrínsecas”
do capitalismo: a necessidade permanente de novos mercados e a contínua pauperização
das classes baixas, que levaria às crises de superprodução.

Os keynesianos também atribuem a responsabilidade pelas crises ao livre mercado, ao


próprio funcionamento do capitalismo de laissez-faire,16 de modo que, para mitigar as
crises, preconizam a intervenção do Estado para suprir a “escassez de demanda agregada”
no período do bust.

É preciso diferenciar ciclos econômicos de flutuações econômicas. As flutuações


ocorrerão sempre que houver uma importante inovação tecnológica, um aumento
significativo na produtividade, uma mudança nas preferências relativas dos consumidores
em relação a diferentes setores, uma característica intrínseca ao regime capitalista, seja ou
não de livre mercado. Mas quando se tem uma euforia generalizada em todos os setores
da economia, gerando inflação de ativos num primeiro momento e, em seguida, de preços
ao consumidor, é necessária uma explicação diferente; é preciso descobrir que fator
gerou, de forma simultânea em todos os mercados, essa euforia generalizada.

As preferências subjetivas do consumidor sempre se alterarão ao longo do tempo. Será


mais interessante consumir hoje este produto ou esperar um pouco mais? Esse fator tem
impacto sobre os juros na economia. Se os bancos quiserem induzir o agente econômico a
depositar maior volume de dinheiro, ele terá de oferecer um retorno maior para refletir
essas mudanças nas preferências intertemporais.

O fenômeno dos juros é inerente a toda e


qualquer forma de troca em diferentes
períodos no tempo.
Ele representa o prêmio da espera, pelo lado credor, e o preço da impaciência, pelo lado
devedor. Em outras palavras, os juros são os ganhos da transferência de valores do
presente para o futuro ou, inversamente, os custos de antecipar os valores do futuro para o
presente. Os juros monetários, portanto, são apenas uma pequena fatia do conceito geral
de juros, que representam a opção entre ganhar mais se não consumirmos tudo hoje, ou
consumir menos do que poderíamos se quiséssemos antecipar um consumo futuro. A
troca intertemporal representa o intercâmbio entre o que se pagou e o que se recebeu
numa transação. Juros e descontos são vocábulos que denotam especificamente o termo
de intercâmbio contido nas trocas intertemporais. Em termos monetários, são exatamente
o custo de capital — medido por um denominador comum, o dinheiro — em relação às
trocas no tempo. Desses conceitos, emerge a noção de “miopia temporal”, a situação em
que o indivíduo confere demasiada importância ao que está mais próximo no tempo. Uma
sociedade de cigarras, que acham que o verão durará para sempre, sem preocupação com
o futuro, com poupar para o amanhã, sofre dessa miopia temporal e, portanto, terá uma
taxa de juros mais alta, devido ao seu grau de impaciência aumentado para a espera do
consumo futuro.

Outros fatores que integram a taxa de juros numa economia incluem: 1. a expectativa da
inflação futura — se o consumidor acredita que seu dinheiro perderá poder de compra ao
longo do tempo, ele terá menos incentivo para poupar e 2. o risco do credor. Justamente
porque o consumidor não está consumindo hoje para consumir mais no futuro, os
recursos dessa poupança ficam disponíveis para a concessão de empréstimos com
aplicações produtivas na economia e, assim, cresce em importância o risco de não obter
esse dinheiro de volta, o que influencia diretamente o valor da taxa de juros. Se o credor
pode arrestar os bens do inadimplente com maior confiança e segurança, ele cobrará juros
menores: as incertezas em relação ao retorno do capital emprestado também exercerão
impacto sobre o custo do capital.

Deste modo, a taxa de juros de mercado, aquela que Wicksell chamou de “taxa de juros
natural”, depende da oferta e da demanda por capital naquela economia, que resultam de
todos os fatores abordados aqui. Não se pode “brincar” impunemente com esse custo: ele
é a resultante de todas essas variáveis. Não se pode mudá-lo por “vontade política” ou
belos discursos. Por exemplo, não é possível mudar com retórica a confiança do credor.
Também não se pode mudar por decreto uma sociedade de cigarras que, culturalmente,
por vários motivos históricos, confere pouco valor ao amanhã. Depois dessa explicação,
entendemos o quão absurdo é o clamor, por exemplo, da fiesp para que o copom reduza a
taxa de juros: é como defender a quebra do termômetro para que não aponte mais a febre
do doente. A taxa de juros é um preço de mercado, a taxa de equilíbrio, a taxa natural, a
resultante de todas essas variáveis envolvidas na oferta e na demanda por capital.
A taxa de juros sinaliza para todos os agentes econômicos o que realmente acontece na
economia. Por exemplo, se há mais poupança, a taxa de juros tende a cair, porque houve
um aumento na oferta de capital. Este é um sinal, para os tomadores de decisão, de que há
maior poupança disponível, de que as pessoas estão consumindo menos, poupando mais.
Deste modo, os decisores podem usar essa informação para planejar investimentos de
maior alcance e prazo mais longo. Porém, se houver uma intervenção artificial nesse
preço, produz-se uma distorção numa informação relevante para a tomada de decisão.

Taxas de juros elevadas significam poupança reduzida. As pessoas optam por consumir
muito hoje e não no futuro. Essa preferência intertemporal tem como pressuposto a
existência de um excedente transferível: não se transfere para amanhã aquilo que não se
tem hoje. A poupança não é algo que “cai do céu”, mas a intenção de abrir mão do
consumo presente para consumir em outro momento. Só podemos investir aquilo que
antes poupamos, e só poupamos aquilo que deixamos de consumir.

A conclusão fundamental de todo este raciocínio é que o poder de multiplicação do


capital depende necessariamente de uma redução temporária do consumo: quem quer
multiplicar o capital no futuro, precisa usá-lo menos no presente. O sonho de voar mais
alto no futuro precisa ser pago com um vôo mais baixo no presente; o bônus da
prosperidade depende do ônus da poupança.

Entretanto, só é possível obter mais no futuro com a poupança reprodutiva. Se a


poupança foi completamente empregada em consumo, se nada do que se poupou foi
usado para investir em aumento de produtividade daquela economia, não será gerada uma
capacidade maior de consumo no futuro: houve apenas uma transferência de uma pessoa
a outra do poder de consumo presente, sem aumento da capacidade produtiva da
sociedade como um todo. A vocação da “riqueza”, isto é, do consumo dos recursos, sem a
vocação do trabalho e da poupança, costuma resultar em dívidas, pelo ato de pegar
emprestado o que os outros pouparam para gastar em consumo. As sociedades que
querem crescer sem o preço da espera, portanto, acabam com juros altos. Uma lei básica
da economia é a necessidade de plantar agora para colher depois.

Os ciclos econômicos começam, portanto, quando, por intervenção da autoridade


monetária, a expansão do crédito é maior do que o próprio mercado determinaria em seu
livre funcionamento. A taxa de juros cai artificialmente devido à expansão monetária sem
lastro num aumento de poupança, gerando o que os austríacos chamam de malinvestment.
O preço do capital abaixo de sua taxa natural de equilíbrio sinalizará, para todos os
agentes daquela economia, a existência de um nível de poupança disponível maior do que
há na realidade. Conseqüentemente, os agentes econômicos tiram da gaveta projetos que
deveriam ser mantidos em espera e usam esse capital disponível sem saber que ele não
tem lastro. Em resumo, o início do ciclo econômico se dá quando a taxa de juros
apresenta uma tendência declinante falseada pela ação do governo, fazendo parecer que
na sociedade existe uma poupança maior do que há na realidade.

Trata-se de uma poupança excedente fictícia, gerada pela ação do banco central nas
operações de mercado aberto e pela redução das reservas compulsórias dos bancos
comerciais, que informa erroneamente aos agentes do mercado que eles podem investir
mais do que o fariam numa situação de livre mercado. Eles poderão, então, iniciar
projetos de investimento de maior tempo de maturação, que costumam exigir uma taxa de
juros maior, que Hayek analisou em seus famosos “triângulos”. Para entender essa noção,
basta perceber que tudo o que é intensivo em capital, com um longo horizonte de
maturação — por exemplo, uma nova planta industrial, prospecção de petróleo, projetos
cujo tempo de retorno pode se estender por várias décadas —, exige uma taxa de juros
maior, porque a espera pelo retorno será maior. Quando há uma redução da taxa de juros,
são justamente esses os setores viabilizados pelas operações artificiais do banco central.
E, assim, gera-se um boom num ciclo econômico perigosíssimo, porque se provoca um
deslocamento nos triângulos hayekianos: a economia move-se de projetos com prazo de
maturação mais curto para outros mais longos, aumentando a duration17 da economia, o
que aumenta o seu risco. Para Hayek, uma economia mais capitalista define-se por um
duration maior. Essa redução artificial nas taxas de juros cria uma sensação de euforia
que estimula, em termos proporcionais, um aumento no número de projetos de longa
duração em relação aos de duração mais curta. Esse fato explica melhor o bust: as pessoas
estão investindo tanto em coisas que não deveriam, por conta da inexistência de
poupança, quanto em prazos que não deveriam, porque a taxa de custo de espera ao longo
do tempo — a taxa de juros — é muito menor do que deveria ser de fato.

Um exemplo citado por Ludwig von Mises é o do indivíduo que pretende construir uma
casa e projeta três cômodos, porque a quantidade de “tijolos” — a poupança —
disponível na economia sinaliza que essa é a quantidade que ele pode empregar em seu
projeto. Quando o banco central altera artificialmente essa taxa de juros, esse indivíduo
pode ser levado a crer que pode construir uma casa com seis cômodos, em vez de três.
Mas não há “tijolos” suficientes para todas as pessoas que cometerão o mesmo erro ao
mesmo tempo, devido a essa informação falsa. O próprio peso das decisões erradas — o
malinvestment — provoca o bust.

Qual deveria ser a reação normal do mercado a esse problema? Deixar a economia
ajustar-se naturalmente à dura realidade da escassez de “tijolos”. Porque, enquanto o
indivíduo em questão não ajustar o projeto de sua casa para três cômodos, ele manterá o
uso excessivo de recursos que não estão disponíveis para todos, agravando cada vez mais
a situação. Portanto, quanto antes ocorrer o ajuste, melhor será para a economia como um
todo.

Não é assim que pensam os keynesianos. Eles entendem a crise do ajuste natural do
projeto individual de uma casa de seis cômodos para três, dada a escassez de tijolos
naquela economia, como “falta de demanda agregada”. Portanto, preconizam o estímulo à
demanda por mais tijolos para impedir esse ajuste: sua solução é imprimir “tijolos de
papel” e manter a farra. É óbvio que isso não pode funcionar, pois não ocorreu o
necessário aumento de poupança na economia para justificar tantas construções de casas
de seis cômodos. O bust é decorrência desse efeito indesejável de uma taxa de juros
artificial que, na primeira fase do ciclo, gerou o boom. Para os austríacos, o bust é uma
etapa necessária e saudável da economia para limpar os excessos, tal como a ressaca é
uma etapa na cura de uma bebedeira. Para os keynesianos, a ressaca é um problema de
falta de bebida, não de injeção excessiva de bebida alcoólica no sistema.

Outra complexidade do mundo real que os austríacos observam e os keynesianos


ignoram é a questão da heterogeneidade do capital, desenvolvida por Ludwig Lachmann.
Nos modelos keynesianos, o capital é tratado como uma simples variável, “k”. Mas esse é
apenas um denominador comum que simboliza o capital de fato: fábricas, máquinas,
insumos, etc. Quando a redução artificial nas taxas de juros provoca esses
malinvestments, o que ocorre de fato é a má alocação do capital em bens físicos que não
podem ser desviados para outras finalidades. Uma fábrica de gelo no Alasca não é um
simples “k” que pode se transformar magicamente em outro tipo de fábrica. Devemos
considerar que os projetos desengavetados por uma redução artificial da taxa de juros são,
em sua maioria, justamente os de longo prazo. Quanto antes esses projetos, que não
fariam sentido numa economia em condições normais de equilíbrio, forem abandonados,
melhor. Um “k” é uma máquina, um terreno, uma instalação física alocada para uma
finalidade específica.

Não é possível evitar a ressaca mantendo a economia permanentemente bêbada. Toda


essa euforia artificial permite prever grandes dores de cabeça à frente, quiçá uma cirrose.
A crise é um sinal positivo de que a economia está regressando à situação normal.
Obviamente, toda crise tem um elevado custo político. Como os políticos, em simbiose
com os sindicatos, olham, porém, apenas para o curto prazo, isso é muito mais facilmente
dito do que feito. Todos querem soluções que postergam o problema, para que não caia
no próprio colo. Por isso, precisamos entender por que essas soluções keynesianas são
ruins, fadadas ao fracasso, por aumentar os problemas que deveriam resolver: elas não
atacam a raiz do problema, apenas o seu sintoma.

Há um conceito em Economia chamado fronteira de produção eficiente, que expressa as


proporções de troca entre consumo e investimento. No exemplo clássico, a troca entre
manteiga e canhões: para produzir maior quantidade de manteiga, é necessário produzir
menos canhões, e vice-versa. A fronteira de produção eficiente nos lembra de que
precisamos consumir menos para produzir mais, ou produzir menos para comprar mais. O
que o intervencionismo keynesiano faz é deslocar para cima a curva da fronteira de
produção, levando os agentes a pensar que, de alguma forma mágica, houve um aumento
de recursos naquela economia. Mas não se trata de recursos reais e, assim, ocorre um
aumento simultâneo de consumo e poupança.

Para os austríacos, a expressão “queda na demanda agregada” não faz sentido: trata-se
apenas de uma economia que regressa à sua fronteira de produção real. Com seu
instrumental inadequado, são os próprios keynesianos que acabam fomentando a
formação de bolhas e os conseqüentes crashes. Os austríacos entendem que ocorrerão
flutuações normais num ambiente econômico repleto de incertezas e preferências
subjetivas, onde há alocação equivocada de capital devido a erros legítimos cometidos em
certos setores que, em seguida, precisarão ajustar-se. Mas não haverá um erro
generalizado, em que todos os setores errem juntos ao mesmo tempo, uma situação em
que todos os produtores desengavetem projetos e que todos os consumidores comecem a
comprar ao mesmo tempo, todos achando que, do nada, ficaram mais ricos. Esse
fenômeno não tem relação nenhuma com o funcionamento do livre mercado, mas com
intervenções artificiais do governo e do banco central sobre a economia. Não é razoável
imaginar que todos os agentes econômicos, numa economia, cometerão os mesmos erros
ao mesmo tempo por mera coincidência.
O PAPEL DO GOVERNO NAS DISFUNÇÕES
ECONÔMICAS

O MERCADO DE TRABALHO

T endo entendido a formação de preços na economia, não haverá grandes dificuldades


no entendimento da formação dos “preços” no mercado de trabalho, isto é, dos
salários.

Antes de mais nada, é preciso definir o que é trabalho, um conceito que não abrange
apenas as atividades “braçais”, mas também as intelectuais, que crescem em importância
na era da informação. Para lembrarmos de Ayn Rand, quem ousaria dizer que um gerador
de eletricidade é obra de movimentos brutos de uma mente bárbara? A maior parte do que
temos à disposição na economia de hoje é fruto de trabalho intelectual.

Nesse contexto, a expressão “classe trabalhadora” é uma “pegadinha” marxista. O


próprio conceito de classe é coletivista, envolvendo uma noção de imobilidade social.
Quem “pertence” a uma classe social não pode mudar de classe com os frutos do próprio
esforço. Enfim, todo o linguajar empregado na imprensa para abordar o mercado de
trabalho é poluído pela mentalidade marxista.

Ademais, Ludwig von Mises refutou um conceito marxista chamado “polilogismo”, isto
é, o ato de, baseando-se num conceito equivocado de classe, defender a existência de uma
“lógica de classe”: as pessoas pensariam de uma forma ou de outra porque pertenceriam a
uma classe. Na mentalidade marxista, haveria mais de uma lógica: o “trabalhador”,
sempre braçal na concepção marxista, deveria pensar de forma diferente do “patrão”, do
“burguês”. Isso é um absurdo, porque a lógica é universal. É sempre conveniente lembrar
que Marx e Engels, que diziam falar em nome dessa “classe trabalhadora”, sequer
pisaram em uma fábrica durante toda sua vida: Engels era um herdeiro industrial, e Marx
era um vagabundo que falava muito em trabalho mas, ele próprio, não trabalhava.

FATORES DE PRODUÇÃO
Existem três fatores básicos de produção: a terra, o capital e o trabalho. O mercado de
trabalho se forma quando o indivíduo oferece sua força de trabalho em troca de um bem
chamado salário. O valor do trabalho é medido pela sociedade, por suas preferências
subjetivas.

Os indivíduos tendem a superestimar o valor do próprio trabalho, mas quem decide esse
valor não é o indivíduo, e sim o mercado. O mercado não é sensível às nossas demandas e
anseios: do mesmo modo que não avaliamos a entrega de uma pizza segundo o custo de
produção e entrega, mas pelo valor da conveniência de receber uma pizza pronta para
consumo no conforto da própria casa. O salário do entregador da pizza dependerá,
segundo os diversos fatores que compõem a oferta e a demanda, do quanto os
consumidores estarão dispostos a pagar pelo serviço de entrega. Não adianta chorar
miséria: o salário do entregador não é determinado por ser solteiro ou casado com cinco
filhos para sustentar.

O mercado foi definido por Ludwig von Mises como a “democracia dos consumidores”,
pois são eles que determinam o valor daquilo que desejam. Como todo produto, quanto
mais escassa for a habilidade que o trabalhador oferta no mercado, e quanto mais
demandada ela for pelos contratantes, maior será o seu preço — isto é, o salário.

Karl Menger nos alerta que o tempo tem valor. Todos sabemos que o valor da posse de
uma maçã no dia de hoje é menor do que o valor de uma maçã igual no dia seguinte; que
ter cem reais nas mãos hoje vale mais do que cem reais na semana que vem. É importante
recapitular esse conceito porque o salário não é correspondente ao valor integral do
produto, algo fácil de perceber no filme Tempos modernos, de Charles Chaplin, onde há
uma cadeia de produção em que cada operário se limita a executar apenas uma tarefa
repetitiva. O produto acabado será vendido a um preço, mas o salário será menor.

É nesse ponto que os marxistas começam a se queixar de “exploração”, “rentismo” e


“mais-valia”, que podemos definir como o salário não-pago. É uma falácia porque, se
entendemos que o processo de produção consome algum tempo, em que foram
empregados fatores de produção não pertencentes ao empregado, adquiridos e cedidos
pelo patrão para uso dos funcionários; e que o patrão antecipou ao funcionário o salário
ao pagá-lo antes mesmo que o produto fosse vendido, não é difícil concluir que, se o
tempo tem valor, ele jamais poderia pagar ao funcionário o preço total do produto.

Por outro lado, se considerarmos que o patrão é um explorador da parcela do salário


não-pago, por que um pintor não poderia ser um microempresário? O que impede um
pintor de adquirir ele próprio os insumos e pôr à venda no mercado os seus serviços?
Bem, talvez ele não tenha os fatores de produção. Talvez não tenha acesso aos clientes: o
sujeito que tem uma “carteira” de clientes e conecta o trabalhador aos seus contratantes
também realiza um trabalho de valor. O empresário agrega valor e, portanto, seu lucro em
nada se relaciona com “exploração de parcela não paga do salário”. Se o pintor não quer
correr o risco de não conseguir clientes, se quer um salário garantido no final do mês
independentemente de conseguir ou não clientes, ele pagará por essa segurança. Com
apenas alguns momentos de reflexão já é possível jogar por terra toda a retórica marxista
de “exploração no mercado de trabalho”.

O capital é inimigo do trabalho? Será que, para que alguém obtenha um ganho, o outro
terá que assumir uma perda? Muita gente, inclusive economistas, acredita nisso, com base
em indicadores como a distribuição do pib entre capital e salário, o que transmite a
mensagem de que o ganho de um foi obtido pela perda do outro. Mas será que o patrão é
um inimigo do trabalhador, sendo ele próprio um trabalhador intelectual, cada vez mais
valorizado na era da informação? Ao contrário:

quanto maior o volume de capital investido


numa economia, maior a disponibilidade de
tecnologia
e, tanto teórica quanto empiricamente, demonstra-se que isso favorece os aumentos de
salários — a economia com maior estoque de capital é a que paga os melhores salários.

Apesar desse fato, a luta de trabalhadores contra o capital é mais antiga do que o próprio
marxismo. Por exemplo, o movimento “ludista” desejava combater todo avanço
tecnológico porque, novamente citando Bastiat, atacavam o que viam e ignoravam o que
não viam. Eles viam apenas uma grande força de trabalho demitida devido ao progresso
tecnológico, sem ver os benefícios que aquela tecnologia traria com o tempo aos próprios
trabalhadores. Os ludistas não percebiam que a tecnologia não reduz o total da massa de
empregos disponíveis na economia, mas apenas alguns empregos que se tornavam
obsoletos, liberando mão-de-obra para outras atividades melhores, mais demandadas ou
mais produtivas.

No já citado livro Jonas, o ingênuo, um dos episódios trata exatamente desse tema. Na
ilha em que se encontra o personagem-título, os lenhadores cortam as árvores usando
porretes. Um dos habitantes da ilha teve a idéia de instalar uma lâmina nos porretes para
facilitar o corte. Essa invenção liberou inúmeros trabalhadores que eram empregados
naquela atividade inútil para outras mais produtivas. Imediatamente, os lenhadores
identificaram no inventor um inimigo de classe e se posicionam contra a inovação
tecnológica, porque ela o faria perder os seus empregos. O exemplo soa familiar quando
consideramos o caso do Uber. Sempre que surge uma tecnologia que melhora a
produtividade, segue-se a reação de uma categoria que não aceita perder sua reserva de
mercado — uma reação política decorrente da impossibilidade de reação econômica. Os
sindicatos não passam disso: forças de organização política para penalizar toda a
economia.

AUMENTO DE SALÁRIOS
O processo por meio do qual ocorrem os aumentos de salários pode ser descrito, passo a
passo, do seguinte modo.

1. Abstenção do consumo corrente: não há consumo total daquilo que se produz, com o
objetivo de formar poupança.

2. Investimento da poupança em capitalização: instalações, máquinas, etc.


3. Emprego do capital investido na produção: o administrador do capital planeja usar
esse capital para servir à sociedade oferecendo bens ao mercado. Para atingir esse
objetivo, ele precisa empregar o trabalho, seja manual ou intelectual, disponível entre
aqueles que o estão ofertando no mercado.

4. Atração de mão-de-obra: para atrair, reter e estimular essa mão-de-obra, esses


ofertantes de trabalho, é preciso oferecer melhores salários.

Esse é, em resumo, o processo pelo qual se formam os aumentos de salários na


economia e que demonstra, por sua própria racionalidade, que o capital inclina-se ao
aumento de salários e da produtividade. O melhor amigo do aumento de salários não é,
portanto, o sindicalista, mas o capitalista.

Se você disser isso numa roda de amigos, verá o choque nos olhares e reações, mas é
inevitável chegar a essa conclusão quando se entende o funcionamento do mercado. Um
trabalhador que nada tem a oferecer além do seu trabalho braçal deveria torcer para que
essa sociedade fosse a mais capitalista possível, porque isso aumentaria o seu salário ao
longo do tempo.

Um exemplo prático é o contraste, nos Estados Unidos, entre o Vale do Silício e Detroit.
Detroit floresceu com a indústria do automóvel e faliu após 50 anos de gestões
esquerdistas sob a influência de fortes sindicatos, que enrijeceram o mercado de trabalho
a ponto de impossibilitar que a indústria se adaptasse à nova realidade representada pela
entrada no mercado americano de concorrentes como a China e a Coréia. Já o Vale do
Silício mantém seu dinamismo e oferece os melhores salários, além de uma série de
regalias para atrair os trabalhadores mais qualificados de forma independente da pressão
de sindicatos: o que ocorre é uma disputa entre os patrões pelos mais inteligentes
trabalhadores disponíveis no mercado.

O empresário não precisa ser “bonzinho” para oferecer os melhores salários e as


melhores condições de trabalho: basta que o mercado seja dinâmico a ponto de estimular
a concorrência entre diversos empregadores pela mesma força de trabalho. É por isso que
as economias mais capitalistas pagam os melhores salários, inclusive para os trabalhos
braçais. Quanto maior for a produtividade do trabalhador, isto é, quanto mais ele
consegue produzir com os mesmos insumos, maior será o seu salário. Portanto, se
queremos elevar os salários na economia, precisamos de investimento em educação de
verdade, não essa doutrinação ideológica disfarçada de educação que se oferece no Brasil.
É preciso ensinar o trabalhador a ler para que consiga entender o texto do manual de
equipamentos modernos; é preciso ensiná-lo a fazer contas para que consiga tirar medidas
e fazer uso competente dos insumos; enfim, uma educação efetiva, produtiva. Também é
preciso especializá-lo, tal como preconizado desde Adam Smith e David Ricardo. Os
esquerdistas acham que todos podem ser pescadores pela manhã, operários à tarde e
filósofos à noite. Mas o fato é que a especialização aumenta a produtividade e, portanto,
tende a aumentar proporcionalmente os salários.

Os sindicatos costumam lutar pelos interesses dos sindicalistas, não dos trabalhadores.
Muitas vezes eles criam barreiras que dificultam a vida dos próprios trabalhadores que
dizem representar, especialmente os menos qualificados. São estes os maiores
prejudicados pela ação dos sindicatos em conluio com os governos — a própria definição
de “fascismo” —, que criam barreiras ao mercado de trabalho. Hayek definiu os
sindicatos da seguinte forma: o poder sindical é essencialmente o poder de privar alguém
de trabalhar pelos salários que estaria disposto a aceitar. O que acontece com esse
trabalhador? Como sempre, aquilo que não se vê.

Mas alguém poderia perguntar: se não houvesse sindicatos, os empresários não iriam
sempre explorar os trabalhadores? Acabamos de ver que isso não é verdade, porque eles
têm de disputar essa mão-de-obra. Mas podemos inverter a pergunta: se os sindicatos são
tão bons, por que a adesão a eles não é voluntária? Por que, no Brasil, temos que pagar
esse nefasto imposto sindical? Por que há necessidade de coerção sobre os “fura-greves”?
Quem pode ser contra o aumento do salário-mínimo? Afinal, ele é, como diz o nome,
mínimo; mantém a pessoa no nível mais básico de subsistência, é horrível viver apenas
com ele. Ora, mas se o governo precisa impor um salário-mínimo, pressupõe-se,
naturalmente, que ele está acima do salário de mercado que seria praticado por aquela
categoria.

O salário-mínimo, portanto, é um preço definido artificialmente acima do preço real, de


equilíbrio, naquele setor da economia. Já sabemos o que acontece nessa situação — os
resultados só podem ser os mesmos: desemprego e informalidade.

Por exemplo: José quer contratar Pedro, mas só está disposto a pagar 500 reais pelo seu
trabalho: é quanto vale o trabalho para o qual pretende contratar o empregado. Pedro
estaria disposto a aceitar esse valor, porque a alternativa — o desemprego — seria pior
para ele, considerando sua baixa qualificação. Há, portanto, um encontro entre oferta e
demanda que resultaria numa troca voluntária percebida como mutuamente benéfica por
ambas as partes. Nesse ponto, os governos e os sindicatos intervêm, impedindo essa
transação, proibindo que José contrate Pedro por menos de 750 reais, sob o pretexto de
“defender os interesses de Pedro”. O que acontece? Ou José não contrata Pedro, porque
não está disposto a pagar esse valor, ou contratará Pedro na informalidade. Não é por
coincidência que, no Brasil, o país dos direitos trabalhistas e das regalias legais no
mercado de trabalho, cerca de um terço da mão-de-obra esteja na informalidade.

O preço artificialmente inflado,no caso, o


salário-mínimo, provoca sofrimento real nas
pessoas,
algo que, implicitamente, todo esquerdista e intervencionista entende perfeitamente.
Quando eles disserem que o salário-mínimo está muito baixo, basta fazer com ele um
“leilão de populismo”. Pergunte quanto ele acha que deveria ser o valor do salário-
mínimo. Se ele disser, “mil reais”, responda que não, que o certo deveria ser cinco mil já
que, afinal, como ele mesmo diz, esse aumento não teria conseqüências econômicas.
Como seria bom se todos pudessem receber cinco mil reais por mês, a vida das pessoas
seria muito mais digna. Até mesmo um esquerdista, se não for um completo desvairado,
gaguejará, porque sabe que um preço artificialmente inflado por um governante gera
conseqüências econômicas. Ele sabe que terá de demitir empregados e abrir mão de
contratar certos serviços, gerando um imenso desemprego naquela economia.

É claro que salários excessivamente baixos sensibilizam as pessoas. Porém, estudamos


economia para entender como mudar isso, não para entrar numa disputa pelo monopólio
da virtude.

É uma realidade inexorável: todo preço é função da oferta e da demanda. Devemos


considerar também que os empresários correm riscos: eles podem não conseguir vender
os produtos que fabricam. Eles podem ir à bancarrota, perdendo todo o capital que
pouparam e pegaram emprestado para investir no negócio. Essa incerteza tem um valor:
quando ele paga os salários, está antecipando aos trabalhadores ganhos que não sabe se
terá. Os empresários reduzem as incertezas dos trabalhadores quando definem a priori os
seus salários, enquanto o resultado dos acionistas é totalmente incerto. Não por acaso,
Peter Drucker afirmou que os Estados Unidos são a economia que mais se aproximou do
socialismo pela via capitalista, pois os principais acionistas das empresas americanas são
os trabalhadores, através dos fundos de investimento e de aposentadoria.

Agora, proponha aqui no Brasil substituir os seus ganhos certos, recebidos por meio de
salários fixos, pela possibilidade de obter ganhos maiores ou menores conforme o
negócio vá bem ou mal. Nem todos terão estômago para isso — a própria quantidade de
pessoas que sonham em se tornar funcionários públicos já é um sinal da imensa aversão a
risco de nossa população. As pessoas querem abrir mão justamente dessa incerteza que é
a característica central de uma economia capitalista dinâmica. É lógico que o desejo de
estabilidade, de reduzir os riscos, terá um custo para o trabalhador. O mesmo argumento
responde à objeção comum sobre os diferentes salários pagos pelas multinacionais em
diferentes países. Ora, por que uma empresa americana pagaria na China os mesmos
salários dos Estados Unidos se, na China, ela precisa encarar maior burocracia, maior
corrupção, maior incerteza, um governo ditatorial, ausência de império das leis, mão-de-
obra muito menos qualificada? Qual seria a vantagem para a empresa? Ou seja, por trás
do discurso demagógico, quando o interlocutor é bem-intencionado, jaz a ignorância
econômica. O que torna maiores ou menores os salários é um conjunto de fatores
estruturais. Se queremos aumentá-los, é sobre esses fatores que devemos atuar.

Como vimos,

os que mais sofrem com a atuação dos


sindicatos são os trabalhadores menos
qualificados.
Entre eles, os que estão em pior situação são os jovens, aqueles que estão iniciando sua
carreira. Os sindicatos só protegem os “sitiados”, que constituem uma clientela principal,
não os desempregados, que não militam nem pagam contribuições sindicais. Os
trabalhadores ficam protegidos, dentro dos sindicatos, contra todos aqueles cuja
produtividade vale menos que um salário-mínimo, especialmente os mais jovens, que
acabam de chegar ao mercado. Não é à toa que o desemprego nos países com leis
trabalhistas mais rígidas, fruto de muitas “conquistas” da atividade sindical, apresenta
taxas muito mais elevadas entre os mais jovens, porque é óbvio que não compensa
contratar um trabalhador cuja produtividade é inferior aos custos de todas essas
“conquistas”.

Mais ainda: os “defensores dos direitos dos trabalhadores” criaram uma técnica que
mantém os sitiantes à distância: o seguro-desemprego, que obriga a sociedade como um
todo a pagar para manter desempregada essa horda que estaria disposta a trabalhar por
salários menores. Com isso, mantém-se o emprego de quem já está empregado com
salários artificialmente inflados. Nos Estados Unidos, já há mais de 50 milhões de
pessoas recebendo food stamps.18 O “Estado do bem-estar social”, enquanto cria
privilégios e “conquistas trabalhistas” que geram desemprego, especialmente entre os
mais jovens, cria também esmolas para manter os desempregados quietos no seu canto.

Quanto mais rígida for a legislação trabalhista, pior para os trabalhadores. Por exemplo,
quanto mais difícil for demitir um empregado, mais difícil será contratar um novo. O
discurso de proteção ao trabalhador é sempre dirigido aos “direitos” de quem já está
empregado. Quando se criam dificuldades para o contratante, dificulta-se também a
contratação de novos empregados. Outro aspecto do problema pode ter o seu ridículo
exemplificado da seguinte forma: imagine que você esteja com muita fome e, assim, em
vez de dividir uma pizza em 8 fatias, decide dividi-la em 12, para comer maior
quantidade de fatias. A pizza não mudou de tamanho! Ora, o salário depende da oferta e
da demanda no mercado e, deste modo, não mudará se o fatiarmos em diversas
categorias: vale-refeição, vale-transporte, décimo terceiro, férias remuneradas, fgts…
Nada disso muda o salário final, apenas a forma como é entregue ao trabalhador,
normalmente de forma pior, porque ele ganhará muito menos para seu uso discricionário.
A propósito, o fgts é roubo, confisco: o governo tira 8% do ganho do trabalhador e
oferece um retorno abaixo da inflação. Se o trabalhador tivesse o uso discricionário desse
dinheiro, seu retorno seria muito maior.

A verdadeira “conquista” para o trabalhador é um mercado de trabalho flexível,


dinâmico, com muitos empregadores que competem para contratá-lo. Basta perceber
como o Brasil tem muito mais leis trabalhistas do que os Estados Unidos. Você já viu
uma horda de americanos desesperados para entrar no Brasil ilegalmente e desfrutar de
todas essas benesses? Esta pergunta basta para demonstrar o absurdo da premissa.

Os encargos trabalhistas no Brasil dobram o custo final do trabalhador para a empresa.


Se o trabalhador for contratado por 1.500 reais por mês, seu custo para a empresa será de
3 mil reais. Quem está embolsando essa diferença? O patrão? Não: o governo e os
sindicatos.

Outra distinção importante é entre valor e mérito. Conta-se que Ford exibia sua fábrica
para alguns investidores potenciais quando passaram em frente à sala de um diretor que,
ao meio-dia, lia um jornal com as pernas sobre a mesa. Os investidores ficaram
indignados e pressionaram Ford para que explicasse por que não demitia aquele diretor.
Ford teria respondido que o sujeito, no último ano, tivera duas idéias que renderam
dezenas de milhões de dólares. Se ele tivesse uma idéia dessas por ano, recuperaria com
sobra o salário que lhe pagava.

Esse exemplo demonstra claramente a distinção entre esforço, mérito e valor monetário.
Alguém pode trabalhar muito, fazer grande esforço para produzir coisas que, do ponto de
vista da sociedade, não têm grande valor; enquanto outros se esforçam muito menos para
produzir coisas que a sociedade valoriza muito e, portanto, ganham muito mais do que os
primeiros. Os consumidores, voluntariamente, atestam a qualidade do trabalho do
segundo e, deste modo, ele ganha um valor muito mais alto do que a média.

A TEORIA DA EXPLORAÇÃO
O que os socialistas desejam é que os trabalhadores recebam, através do contrato de
trabalho, mais do que o valor de seu trabalho. “Os valores de todas as mercadorias são
apenas medidas de tempo e de trabalho cristalizadas”, dizia Marx. Bobagem. Dizer isso é
não entender que o valor é subjetivo e depende da demanda, o que, por si, derruba o
marxismo em sua principal premissa, a “mais-valia”. Para Marx, a mais-valia é a
conseqüência de uma parcela de trabalho realizado e não pago ao trabalhador. Por essa
estranha ótica marxista, um pipoqueiro que contrate um assistente é um explorador,
enquanto o diretor assalariado de uma multinacional que recebe milhões de salário é um
explorado. Nesse ponto, o marxismo começa a criar exceções para sua teoria “geral”. Por
exemplo, os “bens raros” são excluídos desse tipo de trabalho. Nem mesmo o marxista
mais empedernido dirá que uma tela de Picasso vale apenas o trabalho que o artista teve
ao pintá-la. Outra exceção: os bens que não são produzidos pelo trabalho “comum”, isto
é, que são frutos de trabalho mais qualificado. Ora, numa economia moderna e complexa
como a atual, essa definição abrange quase todas as atividades profissionais. Somando
tudo, concluímos que a “grande lei geral” do marxismo é a exceção e, mesmo assim,
muito questionável.

Como alguém ainda abraça essa teoria? Só posso entender como um desejo muito
grande de acreditar num “dogma”. O marxismo é uma seita; não uma teoria econômica,
muito menos uma ciência, como eles pretendem. No fundo, a teoria marxista apenas
mascara a inveja: é um consolo para aqueles que ganham menos do que gostariam e
olham com ressentimento e rancor para todos os que ganham mais do que eles. É uma
embalagem para a inveja, que seduz pessoas incomodadas com as desigualdades inerentes
a qualquer troca voluntária numa sociedade formada por indivíduos desiguais.
A CURVA DE PHILLIPS
A curva de Phillips tenta demonstrar uma troca mutuamente exclusiva entre desemprego
e inflação: quanto maior a inflação, menor seria o desemprego, e vice-versa.
Intuitivamente, a noção faz algum sentido: quanto mais aquecida estiver a atividade
econômica, maior será a pressão exercida sobre os preços. Mas, como já entendemos, nos
capítulos anteriores, que a inflação é um fenômeno monetário, a curva de Phillips foi
completamente refutada empiricamente, nos anos 1970, quando os Estados Unidos
viveram um período de estagflação, a combinação perversa de estagnação econômica
com inflação alta. No Brasil, então, é ridículo falar nessa teoria, que já deveria estar morta
e enterrada, dados os inúmeros períodos de estagflação por que já passamos. Quando
entendemos que o desemprego resulta da rigidez do mercado de trabalho, com a
dificuldade de aceitar que este, dinamicamente, se adapte às mudanças, criando
intervenções estatais para “preservar conquistas”, a curva de Phillips perde todo o
sentido.

A grande reforma que todos os liberais deveriam pleitear seria o fim das “conquistas”
trabalhistas. Basta lembrar que a nossa clt data da Era Vargas, inspirada na “Carta del
Lavoro” de Mussolini, ou seja do fascismo, essa grande simbiose entre sindicatos,
empresas e Estado.

CRÍTICAS À GLOBALIZAÇÃO
Vemos com freqüência na mídia protestos contra a globalização, todos partindo da idéia
de que ela não passa de um grande mecanismo de exploração dos países mais pobres.
Neste capítulo, veremos como são absurdos esses protestos, com base nas mesmas
premissas que abordamos até agora em todos os capítulos anteriores.

Qual é o extremo oposto da globalização? Imaginemos a situação-limite de auto-


subsistência: Robinson Crusoé mais uma vez isolado numa ilha, tendo de fazer todo o
trabalho necessário ao próprio sustento: ele será pescador, tecelão, engenheiro, médico,
um faz-tudo. Sabemos que essa situação será ineficiente: perdido na ilha, ele não tem
opção, mas decerto será péssimo para sua qualidade de vida e haverá dúvidas quanto à
sua capacidade de sobrevivência desse modo. Caso consiga, terá uma vida absolutamente
primitiva, provavelmente de caçador-coletor.

A grande vantagem da vida em sociedade, do advento da civilização, da vida sedentária


resultante da agricultura, é que ela permite as trocas voluntárias entre indivíduos, fruto da
especialização de cada um. Alguns se dedicarão à pescaria, tornando-se cada vez
melhores nessa atividade; outros se tornarão agricultores; ainda outros, engenheiros; e
assim por diante. Com o produto dessa especialização num sistema de trocas voluntárias,
cada um obterá na sociedade aquilo de que necessita. Adam Smith, em A riqueza das
nações (1776), chamava a atenção para a importância da especialização para os ganhos de
produtividade. Para que um indivíduo adquira excelência numa atividade, ele precisa da
força do hábito. Um profissional especializado na fabricação de pregos será mais eficiente
nessa atividade do que outro que se divida em múltiplas atividades diferentes.
Quando partimos de uma concepção de um Robinson Crusoé isolado numa ilha para a
de uma pequena aldeia, já se torna inevitável a pergunta: por que limitar os ganhos dessas
trocas a uma feira local? A uma cidade? A um país? Por que não incluir todo o mundo
nesse mercado livre? Quando raciocinamos a partir do microcosmo individual para o
todo, a palavra “globalização” perde seu sentido “místico”, pejorativo, essa conotação de
“exploração” que a ela se atribui, a menos que se entenda como exploração o ato de trocar
algo voluntariamente com seu vizinho. Se entendermos como positiva a troca com um
vizinho especializado em outra atividade produtiva — por vários motivos, entre eles o
ganho de produtividade decorrente da especialização —, parece evidente que efetuar
trocas com um vizinho além da fronteira nacional não será ruim.

A famosa frase de Samuel Johnson — “O nacionalismo é o último refúgio dos


canalhas” — ganha um novo sentido, pois será o único argumento restante para condenar
a globalização: o repúdio a outras nações. Essa atitude, segundo Hayek, quando sincera,
pode ser atribuída ao tribalismo, uma percepção rudimentar, atávica, com origem nos
tempos das cavernas, de “nós contra eles”.

Quando um povo, historicamente, tem vizinhos que, de fato, não se aproximavam para
praticar o comércio, mas para pilhar, destruir, estuprar, escravizar e matar, é natural o
desenvolvimento de um sentimento de desconfiança em relação aos visitantes
desconhecidos. Curiosamente, a esquerda costuma imputar à direita acusações de
“xenofobia” — de fato, existe uma direita xenófoba — mas também se posiciona contra a
globalização, contra as trocas voluntárias entre indivíduos de diferentes nações só porque
estão além das fronteiras, em países que arbitrariamente elegeram como hostis. Esse
tribalismo está mais no plano das emoções do que no da razão, de uma desconfiança
atávica em relação ao “outro que vem tirar de nós o que nos pertence”.

Ora, a “exploração”, do ponto de vista marxista, ocorre dentro das fronteiras do país: o
burguês explora o proletário local. Deste modo, a repulsa à globalização, sob uma
perspectiva teórica, nada mais é do que a “exportação” da teoria marxista para o mundo
como um todo — o chamado “leninismo”. Lênin escreveu um livro sobre o
“imperialismo” explorador, que abordava a globalização dos mercados exatamente sob
esse ponto de vista.

AS VANTAGENS COMPARATIVAS E O VALOR DO CONHECIMENTO


O progresso depende das trocas voluntárias de produtos e idéias: quanto mais pessoas
participarem desse processo, mais eficiente ele será. Numa sociedade, um indivíduo se
especializará em Medicina, outro em Economia, ainda outro em Engenharia, e todos farão
trocas mutuamente benéficas desses conhecimentos. Se adicionarmos estrangeiros à
equação, o resultado será ainda melhor. Existem produtos e serviços muito dependentes
de fatores locais; por exemplo, não cortamos nossos cabelos com um cabeleireiro indiano,
mas usamos um call center onde somos atendidos sem problemas por um indiano, ainda
que numa empresa americana. A concorrência global afeta de forma diferente os
diferentes produtos e serviços. Quanto maior for a concorrência num mercado, maior será
sua eficiência e melhor será o resultado para o consumidor. É claro que, sob a óptica do
produtor, a concorrência é ruim: quando é o “meu” produto que está sofrendo
concorrência, é claro que vou querer algum tipo de “proteção”. O grande problema dos
lobbies protecionistas contra a globalização — que não passa do livre mercado estendido
ao mundo inteiro — é que eles raciocinam apenas a partir do lado do produtor, sem
considerar as vantagens para o consumidor.

Os produtos atravessam as fronteiras justamente para que os canhões não precisem fazê-
lo. As trocas comerciais, como Montesquieu já havia notado, e a história demonstrou
empiricamente, tendem a promover a paz, são um processo pacificador. As trocas
constantes com um vizinho dificultam a idéia de entrar em guerra contra ele, pois o custo
da guerra se eleva muito quando se depende dos produtos vendidos pelo inimigo. O fato
de que o comércio promove a paz é solenemente ignorado pelos auto-intitulados
“pacifistas” antiglobalização que, em seus protestos, ironicamente arremessam coquetéis
Molotov contra policiais e civis.

Franz Oppenheimer propunha uma classificação das formas de obtenção de produtos


que se demanda, mas não se possui nem se tem como produzir: a forma política e a forma
econômica. A forma política é a da guerra, da coerção, da pilhagem; a forma econômica é
o comércio, a troca voluntária. Logo, conclui-se que somente os bárbaros fazem uso da
violência e da pilhagem para obter o que querem e não têm: a civilização adota o livre
comércio para que povos e indivíduos de diferentes nações possam efetuar suas trocas em
paz.

No livro The Rational Optimist, Matt Ridley demonstra como esse casamento de idéias
foi fundamental ao longo do tempo para o progresso da civilização. É comprovado tanto
teórica como empiricamente que o livre comércio entre povos trouxe paz e progresso
econômico para a maioria das pessoas envolvidas nessas transações.

Uma objeção comum: mas esse comércio não será a exploração do menos capaz pelo
mais capaz? A mesma lógica que se aplica ao mercado no interior das fronteiras artificiais
das nações também é válida para o que ocorre entre elas. Se houvesse “exploração”, ela
também ocorreria dentro do país: o comércio entre São Paulo e Rio de Janeiro seria uma
exploração. Se admitirmos como positivo o comércio entre indivíduos do Rio de Janeiro e
de São Paulo, será inevitável concluir que também será positivo o comércio entre cariocas
e indivíduos da Califórnia. O argumento econômico é o mesmo.

Outro lado da questão é que, na prática, nem mesmo os esquerdistas mais fanáticos
acreditam nesse argumento. É fácil provar isso quando os vemos culpar o “embargo”
americano pela miséria cubana: ao fazê-lo, admitem implicitamente que ser “explorado
pelos ianques” é algo positivo, que gera riquezas.

O conceito determinante no comércio global é o das vantagens comparativas. Uma


pessoa, ou país, pode até ser melhor em tudo o que fazem na comparação com outro —
uma situação rara, pois a especialização leva à eficiência. Ainda assim, as trocas
comerciais serão mutuamente benéficas. Por exemplo, uma pessoa pode ser um ótimo
advogado e um excelente chefe de cozinha, mas não compensará, do ponto de vista
monetário, dedicar o tempo e demais recursos escassos às duas atividades, se for possível
contratar um terceiro para fazer um desses trabalhos enquanto ela se dedica à outra.

O que está em jogo, como demonstrado já por Adam Smith e David Ricardo, não é a
vantagem absoluta de um indivíduo sobre o outro, mas a vantagem comparativa.
Voltando ao exemplo, a opção seria que o advogado abrisse mão de tempo dedicado à
advocacia para preparar a própria comida, em vez de contratar uma cozinheira e dedicar-
se inteiramente à atividade que lhe oferece o melhor retorno.

É óbvio que os termos de troca de um país cuja economia se baseia na pá e na enxada


serão prejudicados numa economia global em que o gerador de valor é o conhecimento.
Mas isso não é “culpa do capitalismo globalista” e a solução não é fechar as fronteiras.
Ao contrário: ao fechar a economia ao comércio global, pune-se ainda mais gravemente o
país, pois ele não poderá usar suas vantagens comparativas — ainda que apenas no uso de
pá e enxada — para acumular capital e investi-lo em seu progresso intelectual e, um dia,
obter vantagens em setores que geram maior valor agregado. Vale lembrar que, embora
os produtos tecnológicos que compramos sejam made in China, de modo que as receitas
de exportação ficam com a China, o grosso do valor gerado por aquele produto vai para o
Vale do Silício, nos Estados Unidos, pois o maior valor foi agregado pela geração de
conhecimento, não pelo trabalho braçal de montar os produtos.

TAXA DE CÂMBIO
No comércio entre países surge um fator novo em relação ao comércio interno: a taxa de
câmbio, pois há a troca de produtos em diferentes moedas. É claro que, se as trocas
fossem feitas numa moeda universal, como o ouro, esse fator desapareceria. Dado que
vivemos em um regime de moedas fiduciárias, reservas fracionárias, fiat money, a taxa de
câmbio é o grande instrumento regulador das trocas entre países, ou entre indivíduos de
diferentes países. O preço será um importante indicador para esses agentes do mercado:
se ele flutuar livremente, refletirá fielmente todos os fatores que participam de sua
formação: demanda, oferta, produtividade. Quando o preço de uma moeda dispara na
comparação com outra, essa informação é relevante, pois noticia o que está acontecendo
na economia desses países.

O risco do câmbio é o mesmo das taxas de juros: a manipulação desse preço por meio
da intervenção estatal. A expressão “guerra cambial” expressa a manipulação artificial do
câmbio pelos governos como caminho para compensar uma deficiência relativa na
produtividade. É uma tentativa canhestra de contornar problemas reais, como falta de
qualificação da mão-de-obra, infra-estrutura capenga, elevada carga tributária, burocracia
asfixiante — o chamado “custo Brasil”. Como não se consegue fazer as reformas
estruturais necessárias para mudar essa situação, a “solução” encontrada é, mais uma vez,
“quebrar o termômetro”, exatamente como se faz nas taxas de juros.

Avaliando a questão mais detidamente: em que momento os economistas começaram a


considerar que uma moeda fraca, desvalorizada em relação às demais, seria benéfica para
o povo? Às vezes, é preciso um Ph.D. na Unicamp para defender certas idéias. Em outras
épocas, os economistas consideravam que uma moeda sólida, não apenas localmente,
expressa em inflação baixa e em poder de compra estável, como também externamente,
na comparação com outras moedas do mundo, era um sinal de robustez da economia.

Hoje em dia, vivemos uma época tão insana, dominada por desenvolvimentistas
keynesianos, que as desvalorizações constantes de uma moeda são vistas como algo
positivo. O grande problema é que essas pessoas nunca são desafiadas a prestar contas
dos erros de previsão que cometeram no passado, e continuam desfrutando de amplo
espaço na mídia e de influência política.

Eis a pergunta real: o que pode tornar uma economia mais eficiente e competitiva?
Especialização; acúmulo de capitais sob a forma de poupança para investimento
produtivo; educação de qualidade; liberdade econômica para a “destruição criadora” —
um termo de Schumpeter para a eliminação dos ineficientes; carga tributária simples e
reduzida; redução da burocracia; enfim, um ataque às causas do problema. Os
intervencionistas sempre querem mexer nas conseqüências, isto é, nas taxas de juros e de
câmbio, como se uma pessoa pudesse erguer a si mesma no ar puxando os próprios
suspensórios.

Se vender banana e café no mundo do iPhone é algo ruim, a solução não é parar de
comercializar com quem fabrica o iPhone. O que se deve fazer é usar suas vantagens
comparativas na produção de banana e café para atacar as causas do problema e,
eventualmente, tornar-se competitivo em outros setores que geram maior valor agregado
na economia.

Um economista coreano muito celebrado pela esquerda, Ha-Joon Chang, de Cambridge,


argumenta que os ricos auferiram sua riqueza com todos os instrumentos
intervencionistas — protecionismo, Estado hiperativo na economia fomentando setores
industriais — e, depois, chutaram a escada, passando a defender a globalização e o
liberalismo, pois esse é o meio que usam para explorar as economias menos
desenvolvidas. Esse argumento é totalmente errado, pois parte de premissas equivocadas,
mas é importante lembrar que já foi refutado desde os primórdios da ciência econômica
pelo próprio Adam Smith. Um economista alemão chamado List defendia idéias
exatamente opostas às de Smith, seu contemporâneo. Este entendia que a riqueza das
nações provinha das trocas voluntárias entre indivíduos de diferentes países, enquanto
List era um nacionalista que considerava tudo o que vinha do exterior como uma forma
de “exploração” e, portanto, o Estado deveria usar sua “mão benevolente” para proteger
os produtores locais contra a “invasão bárbara” por produtores estrangeiros. Contra a
“mão invisível do mercado” de Adam Smith, List opunha a “mão visível”, benevolente e
clarividente do Estado.

A diferença entre List, séculos atrás, e Chang, hoje em dia, é apenas de embalagem:
trata-se do velho “mercantilismo”, plenamente refutado por Adam Smith já no século
xviii. Ademais, sabemos que, no fim das contas, trata-se apenas de uma tática para
beneficiar um pequeno número de grandes produtores amigos do governo às custas dos
consumidores e produtores menores. Basta lembrar que os produtos importados se, por
um lado, são concorrentes para certos produtores locais, também configuram um insumo
para outros. Por exemplo, quando aplicamos a lei da informática para proibir a invasão de
computadores baratos produzidos no resto do mundo, beneficiamos um punhado de
produtores nacionais com a Itautec e a hoje extinta Cobra Computadores: isso não só
penalizou todos os consumidores de tecnologia obrigados a pagar mais caro por um
produto pior, como todos os produtores que não tiveram disponível esse insumo básico na
economia da era da informação. Puniu-se toda a cadeia produtiva para proteger um
punhado de produtores.

O mercantilismo é uma espécie de “marxismo entre nações”, onde importar é sempre


visto como ruim e, exportar, como a única coisa boa. Cria-se uma obsessão com
exportações e rechaçam-se as importações. Esse é um ranço que aparece diariamente nos
jornais. É impressionante como certos dogmas demoram a morrer; ainda hoje, a balança
comercial positiva é comemorada, enquanto um aumento nas importações é encarado
como uma tragédia.

Ora, nós importamos insumos para exportar produtos acabados. E exportamos para
importar aquilo que queremos consumir. Se pensarmos do ponto de vista individual, por
que as pessoas trabalham? Para acumular ouro? A menos que se trate do Tio Patinhas, a
resposta é “não”. As pessoas trabalham para que possam consumir o que desejam ter, mas
não podem produzir. Logo, as pessoas exportam seu trabalho para que possam importar
bens e serviços. Se não é ruim para um indivíduo, por que seria prejudicial a uma nação?
A proteção aos “campeões nacionais” é uma visão arrogante dos keynesianos com ranço
claramente mercantilista, como se eles próprios soubessem quais setores serão os mais
eficientes, dotados de maior vantagem comparativa. Por que eles saberiam melhor do que
o mercado como alocar de forma mais eficiente esses recursos escassos, permitindo a
destruição criadora schumpeteriana, o escrutínio dos sócios em busca de retorno?
Devemosentender que osmilitantes antiglobalização, que dizem defender os países
pobres, de fato estão defendendo os ricos dos países pobres quando preconizam o
protecionismo em benefício dos “campeões nacionais”.

E sobre a proteção à “indústria nascente”? Se ela está nascendo, como conseguirá


competir em pé de igualdade com empresas estabelecidas em países muito mais
avançados? Sob esse argumento, criamos o infante mais idoso do mundo: a indústria
automotiva brasileira é protegida há setenta incríveis anos. Era preciso proteger nossa
indústria automobilística, pois os Estados Unidos tinham empresas estabelecidas como a
Ford e a Chrysler. Na época, nem se falava em carros coreanos ou chineses. Setenta anos
depois, as empresas automobilísticas brasileiras são multinacionais com fábricas locais,
seus balanços não são abertos, sabe-se que sua lucratividade é muito maior do que a
média internacional, e nós continuamos protegendo esse setor. Resultado: o brasileiro
paga duas a três vezes mais por um carro do que um americano, sendo que o americano é,
em média, cinco vezes mais rico do que o brasileiro. Ou seja, o brasileiro paga dez vezes
mais por um mesmo Toyota japonês ou um Hyundai coreano do que um americano.

A falha lógica por trás desse fenômeno é simples: a proteção gera acomodação. O
privilégio nunca será temporário, porque nenhum político terá coragem de se posicionar
contra um “direito estabelecido”, arriscando-se a perder votos e recursos de campanha.
Os burocratas também não são oniscientes; não são capazes prever quais empresas de
quais setores se desenvolverão a ponto de competir em igualdade de condições com seus
pares internacionais, além do sempre presente risco de corrupção.

Outro aspecto importante: quem disse que os pequenos não podem desafiar os grandes?
Existem nichos de mercado. Por acaso as empresas grandes e gigantes nasceram assim? A
Microsoft não nasceu numa garagem? Apple, Facebook, Twitter e Google não foram
empresas minúsculas, que desafiaram gigantes como a ibm e se tornaram, elas próprias,
gigantes? A idéia de que é preciso uma “ajudinha” da mão benevolente do Estado no
começo é outra balela. O dinamismo do mercado muitas vezes revela que as empresas
grandes não são tão eficientes quanto as menores, pelo menos dentro de um nicho.

Observe também como o discurso protecionista é análogo ao dos militares, que


enxergam a economia como um jogo de soma zero, uma exploração: João é rico porque
Pedro é pobre, e vice-versa. É um discurso tribalista, que vê no outro um inimigo: invasão
de produtos, batalha comercial, guerra tarifária. O mercado global é visto como um
grande jogo de soma zero onde o único objetivo possível é abocanhar uma fatia maior. É
a típica linguagem militar, que entende a política como a única via de obter o que
desejamos e não temos: a pilhagem do que foi produzido pelos outros.

Ao contrário, como as trocas voluntárias são mutuamente benéficas, o capitalismo


global é um grande mecanismo de cooperação. É por isso que, quando você entra em
contato com o call center da American Airlines, sua ligação será atendida na Índia, um
local onde também se fala inglês e onde os custos são mais baixos, pois o serviço de
atendimento a consumidores é intensivo em mão-de-obra e é mais barato contratar um
indiano do que um americano.

“Se a produção doméstica pode ser realizada a custo tão baixo como na indústria
estrangeira, a regulação, evidentemente, é inútil; se não pode, é ineficaz”, disse Adam
Smith. Séculos atrás, ele já entendia que, se a produção local é ineficiente, penaliza os
consumidores; se não é, não precisa de proteção. O protecionismo é uma exigência de
quem se reconhece incapaz de atender à demanda de forma satisfatória e, por isso,
pretende penalizar o consumidor, com produtos mais caros e de pior qualidade. A
diferença é que, como se tratam de interesses bilionários, os produtores se reúnem para
fazer lobby em Brasília, enquanto os interesses dos consumidores são pulverizados entre
milhões de pessoas que não se unem para pressionar politicamente o governo em defesa
de seus interesses.

Um argumento protecionista mais interessante é: “Mesmo se outros países protegerem


seus mercados contra nossos produtos, devemos abrir nossas fronteiras para os produtos
deles?”. O argumento da reciprocidade, sem dúvida, é forte. Do ponto de vista de
estratégia negocial, diplomática, talvez sirva como um fator de pressão sobre os políticos
e diplomatas de outros países para que a usem como moeda de troca, inclusive eleitoral,
em seus territórios, e obter redução mútua de barreiras protecionistas. Mas, do ponto de
vista econômico, isso não faz sentido. É como se disséssemos: “Eles estão dando um tiro
no pé dos consumidores do país deles; vamos retaliar dando um tiro no pé dos nossos
consumidores”. Quando erguemos barreiras contra os produtos estrangeiros, estamos
punindo os nossos consumidores, não os deles. As barreiras comerciais são sempre ruins,
mesmo que o outro lado imponha inúmeras barreiras.

Bastiat chamou a atenção para esse fato com uma metáfora. Haveria duas cidades:
Estulta e Poeira, que foram conectadas por uma grande estrada. Estulta, então, reclamou
que os produtos de Poeira estavam inundando seu mercado, e criou um cargo cuja função
era obstruir o tráfego dos produtos que vinham da outra cidade. Logo em seguida, Poeira
fez o mesmo e o resultado foi mutuamente perverso — ambas, agora, pagavam mais caro
pelos produtos, o que não fazia muito sentido considerando que a construção da estrada
servia, justamente, para facilitar as trocas entre as cidades. Após algum tempo, surgiu um
cidadão de Poeira — sobre quem se levantaram acusações de “entreguismo” e suspeitas
de estar na folha de pagamento de Estulta — que afirmou que os obstáculos criados por
Estulta eram, sim, maléficos para Poeira. Porém, nada havia que pudessem fazer contra os
obstáculos criados na outra cidade, mas podiam, sim, agir contra as barreiras criadas na
própria cidade. Metade do problema poderia ser resolvido se Poeira reduzisse as próprias
barreiras.

As reações foram fortes. Alegava-se que seria mais fácil importar do que exportar os
produtos, deixando Poeira em desvantagem em relação a Estulta, do mesmo modo que as
cidades à beira dos rios estão em desvantagem em relação às montanhosas, pois é mais
complicado subir a montanha do que descê-la. Afinal, surgiu uma voz que lembrou o fato
de que, historicamente, as cidades ribeirinhas prosperaram mais do que as isoladas nas
montanhas.

Lembremos: qual é a primeira providência que toma um país quando entra em guerra
com outro? Dificultar o seu acesso a produtos vindos do exterior, restringir o comércio do
inimigo com a economia global. Os exemplos são inúmeros: sanções ao Irã, embargo a
Cuba, destruição de pontes, bloqueio de portos e aeroportos. O quão estranho não é
quando o seu próprio governo, em tempos de paz, faz exatamente a mesma coisa em seu
próprio país? Erguendo barreiras protecionistas para dificultar a entrada de produtos
importados, concedendo subsídios aos produtores locais que, no fundo, desviam recursos
escassos de outras atividades mais eficientes, o governo, em tempos de paz, age como um
inimigo em tempo de guerra.

O PAPEL DO ESTADO
Quando o assunto é tributação, é inevitável que as questões mais técnicas da Economia
cedam espaço para uma discussão filosófica acerca das funções do Estado, do papel do
governo numa sociedade livre.
Qual deveria ser o papel do governo numa sociedade liberal, onde o objetivo seria
preservar ao máximo as liberdades individuais? Os anarcocapitalistas adotam de forma
bastante dogmática o pna (princípio da não-agressão). Com base no axioma de que, em
qualquer situação, é injusto iniciar o uso da força, em vez de apenas trocas voluntárias,
concluem que o governo jamais poderá usar a coerção na sociedade. Logo, já a partir do
próprio nome, um “imposto” não poderia existir numa sociedade anarcocapitalista.

No passado, a coleta de impostos era mais direta: um coletor aparecia armado e, se o


cidadão não pagasse os tributos, seria alvo de intimidação física. Hoje, a cobrança é um
pouco mais sutil, mas o não pagamento ainda pode resultar em prisão. O cidadão é
instado a pagar seus impostos em dia para não ter problemas sérios.

Ainda que não concordemos com os anarcocapitalistas — como é o meu caso —, faz
sentido a tese de que o Estado tem sua origem na conquista e se mantém através da
exploração, do uso da força. Essa é a tese de Franz Oppenheimer em sua obra The State,
onde ele procede à já mencionada divisão entre a via política da coerção e violência, e a
via econômica das trocas voluntárias. David Hume, filósofo escocês, também identificava
na origem do Estado o uso da força. Ele observou que muitos se submetem ao Estado sem
pesquisar suas origens, o modo como ele se estabeleceu. Com o tempo, ele adquire uma
aura de legitimidade e, portanto, as pessoas obedecem-no por puro hábito, por
desconhecerem qualquer alternativa.

Não é preciso concordar com a tese de Oppenheimer e Hume sobre a origem do Estado
para entender que ele é sinônimo de coerção, de uso da força. Essa é, inclusive, sua
definição: o monopólio do uso da força dentro de um território. Se entendermos que a
origem do Estado é a conquista, e que sua manutenção é pelo uso da força, defender o
menor tamanho possível para esse “monstro frio” — expressão de Friedrich Nietzsche,
filósofo que, curiosamente, foi associado ao nazismo, à defesa de um Estado totalitário —
é um dever de todos os que prezam a liberdade.

Historicamente,

os liberais agem de forma mais pragmática


do que os anarquistas, entendendo que algum
Estado será sempre necessário,
ainda que, para usar a expressão de Thomas Payne, o mais incendiário entre os pais
fundadores, seja um “mal necessário”. Entendemos que a ausência do Estado levaria à
“lei da selva” de Thomas Hobbes e, ao mesmo tempo, que seu crescimento excessivo leva
a uma indesejável e progressiva perda de liberdades.

Outra questão é a da teoria do “contrato social”, de Rousseau, em oposição ao


argumento de Lysander Spooner, que defende o seguinte: se minha assinatura não está no
contrato social, não o reconheço como legítimo. Spooner chegava a comparar o Estado a
um bandoleiro que ataca os viajantes na estrada, e diz que é ainda pior, pois o Estado
acompanharia o cidadão por toda a sua vida, roubando-o incessantemente enquanto se
justifica alegando fazê-lo pelo bem do cidadão. Embora interessante, julgo infantil esse
argumento de Spooner. Se o levarmos às suas últimas conseqüências, diversas instituições
humanas entrariam em xeque; por exemplo, a família, uma instituição fundamental para a
preservação da liberdade, uma verdade que se torna evidente quando constatamos que ela
é alvo prioritário de todos os regimes autoritários. Afinal, historicamente a família sempre
constituiu um foco de resistência ao autoritarismo. Basta lembrarmos que, na Antiga
Grécia, Atenas era uma democracia, enquanto Esparta era um regime militarista onde os
filhos não pertenciam à família, mas ao Estado. As crianças eram afastadas de suas
famílias e enviadas para treinamento militar desde os 7 anos. O fato é que essa
mentalidade espartana foi a inspiração de todos os regimes autoritários que se seguiram
desde então, mas o legado civilizacional foi-nos dado por Atenas, não por Esparta.

Enfim, a família também é uma espécie de contrato social não assinado pelos filhos,
mas todos presumimos que é legítima a tutela dos pais sobre os filhos até a maioridade.
Analogamente, os liberais mais moderados e, sem dúvida, os conservadores, argumentam
que a legitimidade do Estado não vem apenas da força, mas da história e das tradições de
um país, que gerou um contrato social implícito.

AS FUNÇÕES TÍPICAS DO ESTADO


Até mesmo alguns liberais mais radicais como Ludwig von Mises e Ayn Rand
reconheciam que certas funções não poderiam ser desempenhadas pelo mercado, com
base num modelo de lucros e prejuízos; entre elas, a polícia e a justiça. Ayn Rand não
queria aceitar o uso da coerção pelo Estado nem, ao mesmo tempo, a conclusão dos
ANCAPs,19 que se recusavam a aceitar a existência de qualquer tipo de Estado. Deste
modo, ela defendeu a criação de uma loteria voluntária para financiar o governo. Na
minha opinião, parece uma proposta um tanto ingênua, que pode servir como base para
iniciar uma discussão mais séria, mas que não parece viável na prática.

Já Ludwig von Mises dizia o seguinte: é preciso obrigar a pessoa que não respeita a
vida, a saúde, a liberdade pessoal ou a propriedade das demais a aceitar as regras da vida
em sociedade. Essa é a função que a doutrina liberal atribui ao Estado: a proteção da
liberdade, da propriedade e da paz social.

Mises prossegue: a defesa da segurança de uma nação e da civilização contra a agressão


por parte de ambos, os inimigos estrangeiros e os bandidos domésticos, é o primeiro
dever de qualquer governo. A burocracia em si não é boa, nem ruim: é um método de
gestão que pode ser aplicado em diferentes esferas da atividade humana. A burocracia é a
definição e a aplicação de regras. Um bom burocrata é um bom aplicador de regras. Em
seu livro Burocracia, Mises argumenta que a burocracia não é uma vilã, mas se torna um
problema quando se começa a burocratizar desnecessariamente certas esferas da vida que
poderiam ser muito mais bem exercidas pelo mercado. Ele diz: há um campo em que os
métodos burocráticos são exigidos por necessidade. Os objetivos da administração
pública não podem ser medidos em termos monetários e também não podem ser
verificados por meio de métodos contábeis. A gestão burocrática é a gestão de assuntos
que não podem ser verificados por meio do cálculo econômico.

O PATERNALISMO ESTATAL
Ronald Reagan disse que o Estado existe para nos proteger contra terceiros, mas ele vai
além de suas funções quando tenta nos proteger de nós mesmos — a própria definição de
“paternalismo”, a confusão entre o Estado e a legítima tutela parental sobre os filhos
menores de idade, ainda em fase de desenvolvimento. Ao transportar essa mentalidade
para a sociedade como um todo, tratam a população adulta como se fosse composta de
mentecaptos, de crianças indefesas que precisam da tutela estatal — como se o Estado
fosse clarividente, benevolente e abnegado. O fato é que o Estado não é nada disso: é
formado por pessoas imperfeitas e, via de regra, não as melhores, pelo próprio processo
de seleção.

O paternalismo estatal é o primeiro grande alvo da crítica liberal, pois entendemos que o
Estado excede em suas funções básicas quando tenta proteger o indivíduo de si mesmo,
uma tarefa que não lhe cabe numa sociedade madura e livre.

A noção de justiça social, tão cara aos “igualitários”, é diametralmente oposta ao que os
liberais consideram que cabe ao Estado. Hayek constatou, em um estudo sobre o uso da
palavra “social” em mais de cem expressões diferentes, que ela sempre negava o que
queria dizer a palavra anterior. Por exemplo, o que é justiça social? Ora, a justiça, ou é
justa, ou não é. Para os liberais, justiça é a defesa da propriedade privada, das trocas
voluntárias, da individualidade. Já justiça social é um conceito vago, ambíguo, que dá
margem a inúmeras interpretações que, via de regra, desembocam em mais intervenção
estatal, mais impostos, mais controle, negando o próprio conceito de justiça. Essa visão
igualitária mascara a paixão mais mesquinha do ser humano, como dizia John Stuart Mill:
a inveja. Na verdade, trata-se de pessoas que não toleram as diferenças de resultados, algo
inexorável quando se tem indivíduos diferentes interagindo livremente. Dado que não
somos insetos gregários, é evidente que os resultados serão sempre desiguais entre seres
humanos desiguais. Deste modo, forçar um resultado mais eqüitativo entre pessoas
diferentes é um reflexo muito mais de inveja do que do manto de altruísmo com que os
igualitários tentam ocultar suas verdadeiras intenções. Basta observar como sua
argumentação é sempre mais um ataque aos ricos do que uma defesa dos pobres.

DILEMAS ÉTICOS
Isaiah Berlin, um pensador interessante por sua visão pluralista e isenta de radicalismo,
voltou sua atenção para o que chamou de “valores incomensuráveis” — muitas vezes há
valores em conflito, configurando um dilema moral, em que há mais de um ponto de vista
legítimo, sendo impossível decidir quem está certo com base em apenas um valor
dogmaticamente definido. Obviamente, esse pensamento não é uma espécie de
relativismo: Karl Popper, que combatia o relativismo, também entendia a impossibilidade
de gerar um conceito de ética pronto, definitivo, válido em todas as épocas e situações.
Por isso, diversos liberais defendem a tolerância, a pluralidade, o gradualismo, o respeito
às tradições, porque entendem que não é possível reunir-se numa sala e gestar, com base
na razão, um único modelo de vida em sociedade universalmente válido.

Por exemplo, a liberdade e a igualdade muitas vezes entram em conflito; num caso
específico, pode haver uma região cinzenta na fronteira que separa o anarcocapitalista do
totalitário, onde algum tipo de sacrifício terá de ser feito entre cada uma das partes em
nome da paz social, algo bem diferente da obsessão igualitária, que resulta em perda de
liberdade.

Pensadores como Thomas Sowell insistem bastante na tecla do trade off: “Não existem
soluções, mas alternativas menos piores”, em linha com a frase de Oscar Wilde: “Não sou
jovem o suficiente para saber tudo”. Ou seja, é pueril o julgamento de que encontramos a
resposta para todas as perguntas, a solução de todos os problemas. Como disse H. L.
Mencken: “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e
completamente errada”. É necessário admitir que há certos problemas na vida social cuja
solução não é trivial e que, muitas vezes, o que estará em jogo não será uma única
resposta, mas um trade off, uma troca onde se abre mão de uma coisa para se obter outra
mais valiosa.

A questão é saber como lidar com esses problemas na sociedade. Se entendemos que as
trocas voluntárias não dão conta de toda a complexidade da vida social, em que há
freqüentes regiões cinzentas onde os valores entram em conflito, e esses valores são
incomensuráveis, sendo impossível uma resposta única e objetiva para esse conflito, o
que se deve fazer para viver em sociedade? Os liberais respondem com seu grande apreço
à democracia, a um modelo de divisão de poderes com pesos e contrapesos, em que se
podem moldar instituições que expressem a decisão pública sobre coisas públicas —
diferentemente das decisões individuais sobre a vida individual. Por exemplo, diz Mises:
“A democracia é aquela forma de constituição política que torna possível a adaptação do
governo aos anseios dos governados sem lutas violentas”. Karl Popper afirma:
“Democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária; pelo contrário, ela é o
próprio meio de evitar revoluções e guerras civis”.

Outra citação de Mises: “Chamamos o aparato social da compulsão e coerção que induz
as pessoas a respeitar as regras da vida em sociedade, de Estado.

As regras segundo as quais o Estado procede, de lei” — por isso, o liberal defende o
império da lei, o “governo de leis, não de homens”, como dizia Aristóteles contra Platão
— “e, os órgãos com a responsabilidade de administrar o aparato de compulsão, de
governo”. Caso não tenha ficado claro, Mises enfatiza: “Para o liberal, o Estado é uma
necessidade absoluta, uma vez que as tarefas mais importantes são sua incumbência. A
proteção não só da propriedade privada, mas também da paz, pois na ausência da última,
os benefícios completos da propriedade privada não podem ser aproveitados”.
Democracia, portanto, para os liberais, não é um “deus que falhou”, para citar o título
do livro de Hoppe, um dos mais influentes anarcocapitalistas, porque nunca foi um
“deus” para os liberais. Os liberais não flertam com utopias; eles são mais céticos, porque
conhecem bem demais a história e a natureza humanas para cair num erro tão primário.
Entendemos que a democracia é simplesmente o pior de todos os modelos, à exceção de
todos os outros que já foram tentados, para citar Winston Churchill.

A luta dos liberais não deve ser combater a democracia — um projeto, inclusive, fadado
ao insucesso — mas limitar o seu escopo, o alcance do que cabe à decisão pública,
política, do voto, da “ditadura da maioria”, por assim dizer, evitando a politização de
todos os aspectos da vida individual, justamente a situação que vivemos hoje. A esfera
estatal foi invadindo nossos lares, tudo o que diz respeito ao indivíduo passou a ser
decidido com base num mecanismo que, por si, não é errado, mas apenas acionado para
atuar em áreas que não lhe dizem respeito.

O liberal luta para limitar a atuação do


Estado ao império dalei, independentemente de
quem o ocupe num dado momento
— esta é, de fato, a definição de res publica, a coisa pública, a república, não essa
“democracia” mal compreendida por demagogos latino-americanos, que funciona como
uma ditadura de minorias organizadas que, fazendo barulho, dominam o processo. Por
exemplo, os tais orçamentos participativos que, de “participativos”, não tinham nada. As
pessoas cansaram de ser ignoradas nas assembléias e, com o tempo, instaurou-se a
ditadura da “patota” que dominou ditatorialmente o processo. Todas as bandeiras que
seguem essa linha são de gente que quer uma tirania em nome do povo. O liberal quer,
em vez disso, uma democracia representativa com poderes constitucionalmente limitados.

JUSTIÇA TRIBUTÁRIA
Já que a presença de algum Estado será sempre necessária, ele terá de ser financiado com
impostos. Como financiar essa estrutura? Quais impostos são mais justos? Do ponto de
vista da eficiência econômica, que impostos afetam mais a produtividade? Novamente,
citamos Mises: “Ao taxar mais fortemente as rendas maiores, está-se impedindo a
formação de capital, e eliminando a tendência, que prevalece numa sociedade em que a
formação de capital seja crescente, de aumentar a produtividade marginal da mão-de-obra
e, portanto, de aumentar os próprios salários”. Mises não defendia valores em sua obra,
mas abordava os meios de obter aquilo que se quer. Assim, mesmo que sua intenção seja
defender os pobres, taxar de forma desproporcional os mais ricos é o oposto do que se
deveria fazer. Isto soa paradoxal, porque os liberais são acusados de elitistas, de
defensores dos ricos.

Qual seria, então, a alternativa? Há algumas: o iva (imposto de valor agregado) — é


simpático aos liberais, pois se trata de uma cobrança de imposto sobre o valor adicionado
em cada etapa do processo produtivo. Outra opção, adotada inclusive em países
comunistas, é o flat tax, porque, em termos absolutos, o rico continua pagando mais do
que o pobre. Ora, se a função do Estado é proteger a propriedade e a segurança, cabe uma
discussão ética sobre se ele tem o direito de distribuir renda. Afinal, se o serviço do corpo
de bombeiros beneficia a todos, por que o rico deveria pagar mais por ele? O rico paga
mais pelo cafezinho? Os igualitários gostam muito de citar dados sobre o 1% mais rico,
omitindo sempre o quanto esses ricos pagam de impostos: o 1% mais rico paga 40% dos
impostos; os 10% mais ricos, 90%. Assim, mesmo num regime de flat tax, os ricos
continuarão pagando muito mais pelos mesmos serviços. Ademais, o regime de flat tax
simplifica imensamente a questão tributária: aplique-se uma alíquota de 20% para todo
mundo e abandone-se essa progressividade geradora de incentivos perversos.

Outra opção defendida pelos liberais é o lump-sum tax, baseado num valor fixo, como
as taxas de incêndio, cujo valor é igual para todos.

A regressividade versus progressividade é uma questão interessante. Quanto mais for


taxado o consumo, maior será a carga relativa sobre os mais pobres, que consomem
praticamente 100% de sua renda. Por outro lado, quanto maior for a taxação sobre a renda
ou patrimônio, menor será o incentivo para investir e criar os empregos de que os pobres
necessitam. Temos então um dilema que aflige até mesmo muitos liberais que acham
difícil sustentar o argumento de que é injusto o imposto de herança, porque partem do
princípio de que o ponto de largada na sociedade deveria ser o mais igualitário possível.
Para começar, esse ponto de largada jamais será igual; as diferenças já começam na
genética, e se aprofundam nos valores familiares.

Mas o ponto principal que as pessoas ignoram é que o imposto de herança não é injusto
do ponto de vista do herdeiro, mas da pessoa que deixou a herança. Se a pessoa criou um
patrimônio e pagou impostos por ele durante a vida, o imposto sobre herança não só é
uma dupla taxação, como é uma usurpação, por parte do Estado, do direito de escolher
para quem deixar aquilo que a própria pessoa construiu. Além do mais, ninguém trabalha
para construir um patrimônio que será deixado para burocratas e políticos.

PROBLEMAS DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO


A complexidade dos impostos. — Além da carga abusiva, que chega a 40% no Brasil, há o
problema da quantidade e da complexidade. Paulo Rabelo de Castro chama o Brasil de
“manicômio tributário”, porque o pagamento de impostos exige em média 2.600 horas de
trabalho por ano. Somos líderes mundiais nesse ranking; o segundo colocado consome
pouco mais do que 300 horas por ano. Isso nos transforma no paraíso dos advogados
tributaristas e beneficia as empresas de grande porte, que podem pagar um exército de
advogados, em comparação com as menores. Essa complexidade não pode ser eficiente
do ponto de vista econômico numa sociedade que quer alocar recursos escassos de forma
mais produtiva.
Vale lembrar que as empresas menores dispõem do simples; porém, como o próprio
nome sugere, se pode ser simples, por que não simplificar para todos? Falta de
transparência. — Outro problema é a opacidade da tributação no Brasil. O brasileiro
sequer sabe quanto paga de imposto. Os liberais já calcularam quanto tempo o brasileiro
tem que trabalhar exclusivamente para pagar impostos para o governo: se você começar
em janeiro, só começará a trabalhar para beneficiar a si mesmo em maio. São quatro
meses e meio.

O imposto sobre a receita. — O empresário, antes mesmo de aferir lucro ou prejuízo,


antes de saber se será bem-sucedido em seu empreendimento, já precisa reservar um naco
enorme de sua receita para o governo. É ilusão achar que só os empresários arcarão com
esses custos: é óbvio que eles serão repassados ao consumidor. cpmf. — Um imposto em
cascata que pune toda a cadeia produtiva e é adorado pelo governo porque é difícil fugir
dele. Aliás, embora eu defenda o império das leis e seja contra a sonegação, é fato que,
historicamente, no Brasil, a sonegação de impostos tenha se transformado em questão de
sobrevivência do cidadão que tenta defender o que é seu das garras de um governo
enlouquecido e ladrão.

C urva de L affer. — O economista americano Arthur Laffer demonstrou graficamente,


nos anos 1950, que, quando o governo aumenta a carga tributária, a arrecadação também
aumenta até chegar a um ponto em que o incremento na carga resulta numa arrecadação
menor. A razão disso é que a cobrança excessiva provoca tantos obstáculos à estrutura
produtiva que esta entra em colapso, como se o parasita ficasse pesado demais para o
hospedeiro. Nessa situação, se a carga tributária for reduzida para aproximar-se
novamente do ponto ótimo da curva de Laffer, que tem a forma de “u”, a arrecadação
voltará a aumentar.

Só uma pessoa radicalmente “Estado-afetiva” poderia afirmar que a situação desejável é


a maior arrecadação possível. A arrecadação ideal deveria ser o ponto mínimo necessário
para que o Estado desempenhasse suas funções.

C onclusão. — “Imposto é roubo”, como dizem os ANCAPs? Este é um dilema para


muitos liberais, mas os mais pragmáticos consideram que não há alternativa, já que o
Estado é um mal necessário que precisa ser financiado por impostos. Sendo inevitável,
que seja o mais simples, o mais transparente e o menor possível.

A ESCOLA DE VIRGÍNIA
Quero falar agora da “escola das falhas de governo” — a Public Choice School, também
conhecida como a Escola de Virgínia. Ela conquistou seu espaço e relevância
especialmente pelo seu poder persuasivo entre pessoas que consideram excessivamente
ideológica a Escola Austríaca e vêem a Escola de Chicago como muito concentrada na
hard science, isto é, em números e estatísticas.

Muitos economistas foram laureados até mesmo com o prêmio Nobel devido a seus
estudos sobre as falhas de mercado; por exemplo, Paul Krugman e Joseph Stiglitz,
economistas ligados ao keynesianismo e à esquerda americana. A realidade é sempre
imperfeita; sendo as trocas voluntárias efetuadas por seres humanos imperfeitos, jamais
conduzirão à perfeição. O problema é saber o que assumirá o seu lugar. A reação
automática das pessoas diante de um problema real e, portanto, também do
funcionamento do mercado, é demandar a intervenção estatal. Mas será que essa
intervenção produz mesmo o resultado desejado? Esta é uma questão nem sempre
debatida e submetida a prova, esgotando-se a discussão na primeira etapa, isto é, a
identificação de uma falha de mercado — por exemplo, uma externalidade negativa, um
monopólio natural — e, sem discussão, tem início a defesa da intervenção estatal. O
defensor dessa posição não se sente na obrigação de justificar teórica ou empiricamente a
interrupção do ambiente de trocas voluntárias em favor do uso da força estatal para
consertar essa falha.

Será que, na prática, os governos conseguem solucionar essas falhas de mercado? Esta é
a pergunta-chave. E as falhas de governo? Onde ficam? A Public Choice School, fundada
por James Buchanan — ele mesmo um prêmio Nobel de Economia — e Gordon Tullock,
volta todo o seu foco para a análise dessa questão.

A grande inovação dessa escola foi levar o emprego das ferramentas da análise
econômica para a análise política. Eles não vêem motivo para separá-las, do mesmo modo
que Adam Smith, nos primórdios da Ciência Econômica, também não fazia essa
distinção. O economista estudava o fenômeno como um todo, incluindo seus aspectos
políticos. Com o surgimento dos cientistas que passaram a estudar a Política como uma
entidade à parte, separada da Economia, iniciou-se a separação das disciplinas. A Public
Choice School teve o mérito de recuperar essa integração da discussão econômica à
Política, o entendimento de que a Economia e a Política são partes integrantes de uma
sociedade, que as unifica.

A principal premissa da Escola de Virgínia


é, portanto, a de que o homo politicus não é
diferente do homo economicus.
Na verdade, há apenas um homem: o homo sapiens; racional, mas sujeito a influências
emocionais, tanto nas trocas voluntárias do mercado, quanto em sua vida pública, em sua
atuação política. Essa premissa parece muito mais razoável do que a segregação desses
dois aspectos da vida humana em campos separados: nas trocas voluntárias, o homem
agiria de forma egoísta e individualista; enquanto na política, se transformaria em um
animal diferente, orientado para o bem comum.

O ponto de partida é o “individualismo metodológico”: quem pratica a ação é sempre


um indivíduo, um ser humano de carne e osso; o Estado, em si, não age, não tem
interesses. Nesse ponto, assemelha-se muito à Escola Austríaca pois, devido ao seu foco
no indivíduo, combate essa visão teleológica que concede vida própria a um construto
abstrato, como se o Estado pudesse encarnar a soma dos interesses de todos os indivíduos
de uma nação.

Conceitos abstratos como “vontade popular” e “interesse geral” perdem credibilidade


sob essa visão. Quando consideramos que o sujeito que age no mercado é o mesmo da
ação política, derrubam-se inúmeras falácias e visões românticas sobre o papel do Estado.

Adam Smith, Hayek e outros pensadores já haviam constatado a grande vantagem do


processo dinâmico de trocas voluntárias num ambiente de livre mercado: não ser
dependente das boas intenções dos indivíduos para produzir um resultado socialmente
desejável. “A mão invisível” de Adam Smith e a “ordem espontânea” de Hayek são
metáforas para essas idéias. Na Fábula das abelhas, Bernard de Mandeville ressalta que
os próprios vícios humanos podem resultar em virtudes públicas.

Deste modo, o foco da Escola de Virgínia será sempre no processo, no mecanismo de


incentivos, não na abnegação do indivíduo, na hipótese de que o ser humano político será
de algum modo diferente daqueles com quem interagimos no mercado. É desnecessário
partir da premissa ingênua e romantizada do ser humano segundo a qual, ao entrar para a
política, ele se tornaria automaticamente abnegado e altruísta. Mesmo o ser humano
sendo o que é, com o correto mecanismo de incentivos ele produzirá o bem coletivo. Se
há algum critério minimamente objetivo sobre o que chamamos de benefícios sociais, o
processo de mercado tende a ser muito mais eficiente no sentido de realizá-lo do que sua
alternativa política. Os economistas da Escola de Virgínia não estudam, portanto, uma
parte da realidade; mas a realidade como um todo a partir de uma estrutura de análise
econômica.

Essas premissas derrubam o que chamamos de monopólio das virtudes, um dos aspectos
mais desonestos do debate político-econômico, porque desloca a discussão para os meios
de produzir os resultados desejados. O debate deixa de ser uma disputa sobre quem é
“mais preocupado com os pobres”, deslocando-se para os meios de reduzir a pobreza.
Deixa-se de lado o debate sobre os fins, que se reduz a um jogo sobre quem é o mais
sensível e altruísta. Quando se entende que o ser humano é o mesmo, que os recursos são
escassos, e que a verdadeira questão é a forma de alocar esses recursos, esvazia-se esse
típico estratagema erístico de quem não deseja um debate real, apenas acusar a intenção
supostamente maligna do outro enquanto se finge de única alma nobre que se preocupa
com os mais pobres.

A Escola de Virgínia tem uma visão muito mais realista da natureza humana ao partir da
constatação de que não somos e nunca seremos governados por anjos, mas por seres
humanos iguais ou piores do que nós. A tola dicotomia do mercado como um palco de
interesses egoístas versus a política como um palco de abnegação e luta pelo bem comum
é abandonada desde o início.

A percepção da Escola de Virgínia também expõe um paradoxo, retratado no livro de


Bruno Garschagen intitulado Pare de acreditar no governo: muitas pessoas odeiam
políticos de carne e osso; a classe política aparece no final de todos os rankings de
credibilidade; mas demandam cada vez maior intervenção do Estado. Essas pessoas não
se dão conta da premissa básica da Escola de Virgínia: o Estado é comandado por
políticos, e os políticos são seres humanos sujeitos às mesmas paixões de todos nós.

A ingenuidade dessas pessoas leva-as a entregar ao Estado o monopólio da função de


integração social. E elas o fazem porque, como na sua “contabilidade mental” separam o
mercado da política em termos do perfil de ser humano que atua em um e outro,
consideram que certas questões de integração social em nome do bem público não podem
jamais pertencer ao campo da economia, porque esse seria o campo do indivíduo egoísta
que maximiza apenas os seus próprios interesses, enquanto a política seria o campo das
preocupações sociais.

O ser humano é corruptível.


A Escola de Virgínia considera que, se o ser humano maximiza seus próprios benefícios e
interesses, e se ele tende ao individualismo e ao egoísmo em suas trocas voluntárias no
mercado, e ele é o mesmo ser humano que ocupará as posições no processo político, é
certo que o poder em suas mãos o corromperá.

O socialismo defende uma espécie de “solidariedade compulsória”, um oxímoro que, na


prática, gera um governo de burocratas para burocratas, porque, se ele delega cada vez
mais poder ao governo — isto é, aos seres humanos imperfeitos e corruptíveis que
ocupam o governo — para resolver todas as questões sociais, é óbvio que um governo
que concentre muito poder criará privilégios para os ocupantes de seus cargos. Essa
realidade é visível até mesmo numa situação um pouco mais amena, como a da
comunidade européia, que encarna um poder sem face humana e sem pessoas eleitas —
visto que são os eleitos em seus respectivos países que apontam os burocratas em
Bruxelas — um modelo que concentrou cada vez mais poder nas mãos desses burocratas
sem sua devida responsabilização. Diante desse caso, podemos imaginar aqueles mais
extremos dos países abertamente socialistas, como União Soviética e Cuba, que criaram
uma casta poderosa — chamada de nomenklatura na União Soviética — que detinha e
usava todo o poder em benefício próprio. Enquanto isso, os românticos insistem em
defender que cada experiência fracassada do socialismo foi uma “desvirtuação”
provocada por pessoas gananciosas — e tentam jogar o fracasso no colo da direita, do
mercado, quando, de fato, trata-se apenas do fracasso previsível dos meios adotados pelos
socialistas.

O percentual crescente dos gastos públicos em todos os países com diferentes graus de
intervencionismo, incluindo o welfare state, uma espécie de socialismo light, consiste em
transferir os rendimentos dos politicamente desfavorecidos para os politicamente
favorecidos. Os governos welfare state gastam cerca de 40 a 50% do pib, de tudo o que é
produzido na sociedade, e uma grande parcela desse valor é usada apenas para beneficiar
apenas a própria casta que toma essas decisões. A burocracia estatal cobra um imenso
pedágio para promover o bem público.

A “justiça social”, portanto, ao concentrar recursos e poder no Estado, além de minar a


solidariedade voluntária — a única que existe na prática — cria dependências para os
seres humanos e enfraquece a sociedade civil. Devemos entender que há, de um lado, a
sociedade civil, e, de outro, o Estado como instrumento para servir certos bens públicos.
Um não é sinônimo do outro, sendo esse o grande truque empregado pelos
intervencionistas: misturar os conceitos, dando a entender que quando falam em “Estado”
e “interesse nacional”, estão se referindo à mesma coisa.

Mais governo sempre representará, portanto, uma sociedade civil menos livre. O
paternalismo estatal, que trata os cidadãos como crianças indefesas, mina a
responsabilidade familiar, empresarial e cultural, pois delega ao Estado a decisão sobre o
uso de recursos escassos, por meio de um processo viciado e imperfeito, em vez de deixar
que a própria sociedade decida como quer lidar com essas questões. A presunção de que a
solução de qualquer problema social deve ser estatal não só é um equívoco ideológico e
empírico, cujo ônus da prova deveria recair sobre o intervencionista, mas um discurso que
interessa aos “amigos do rei”, aos próprios burocratas que estão em busca de poder, ou às
pessoas que estão na carreira política. Precisamos esclarecer esse ponto porque, até hoje,
no Brasil, julgamos egoístas e gananciosos todos os que buscam empreender, enquanto
aqueles que, desde cedo, percebem um caminho de carreira na política, desfrutarão de
uma imagem de abnegados e altruístas. O que está em jogo é a visão de um Estado
benevolente contra a visão de um Estado como um mal necessário.

Qualquer recomendação de natureza normativa deve ser avaliada sob uma análise do
comportamento dos indivíduos com base em seus reais defeitos e virtudes, assim como
suas verdadeiras motivações.

A “FALÁCIA DO NIRVANA”
Trata-se da utilização de uma utopia, uma fantasia qualquer, para combater uma realidade
imperfeita. É uma estratégia muito confortável, que se manifesta no pacifismo, no
ambientalismo, no socialismo, e em diversos outros “ismos” que assumem uma visão
idílica, fantasiosa do mundo, como meio de combate a uma realidade imperfeita. Sim,
existem guerras, existe a miséria, existe a poluição. Mas não se procuram os meios
possíveis, reais, para mitigar esses problemas. Em vez disso, preconiza-se uma utopia. É
um ataque à realidade feito do topo de uma torre de marfim; um ataque impossível de
refutar com dados concretos, porque se trata de algo que nunca existiu e nunca existirá; e
também um ataque covarde, feito por quem quer fugir do verdadeiro debate. O defensor
de utopias não quer discutir opções de cursos de ação num mundo que exige trade offs,
apenas posar de superior do alto de sua nuvem.

Essa é a origem do monopólio das virtudes: somente os que defendem certos meios
podem ser considerados defensores de seus fins. Quem não defende maior atuação do
Estado para combater a miséria, não se importa com a miséria; quem não defende maior
intervenção do Estado na educação, não liga para o analfabetismo.

É uma postura arrogante e covarde, que vemos com muita freqüência no debate público
nacional.

Quem estuda o fenômeno político deve partir sempre da mesma concepção realista da
natureza humana que julga apropriado aplicar aos restantes domínios da ação em
sociedade.

A questão fundamental para quem deseja um debate honesto e sério é “qual a melhor
forma de alocar esses recursos escassos”? Qual o melhor processo, que garante tanto a
liberdade individual, do ponto de vista ético-filosófico, quanto os resultados mais
eficientes do ponto de vista social, uma questão empírica e utilitarista? Surge então o
primeiro obstáculo para os coletivistas: como avaliar, na prática, o interesse geral, já que
as preferências, como vimos, são subjetivas? Seria necessária uma unanimidade no
processo de decisão política para saber se as demandas da sociedade estão realmente
sendo atendidas — caso contrário, não será possível ter certeza de que o interesse social
foi realmente maximizado.

Outro dilema: a maioria tem o direito de impor sua visão contra as minorias? Qual
processo preservará melhor o interesse das minorias: o econômico, das trocas voluntárias
no mercado, ou o processo político de coerção democrática, com a imposição da vontade
da maioria? Todo intervencionista alega falar em nome das minorias: será que estão
defendendo-as de fato? A democracia, por definição, é um processo em que o vencedor
leva tudo — the winner takes all. O vencedor impõe sua visão a 100% da sociedade,
independentemente de quantos escolheram outra opção, pois a decisão majoritária deve
prevalecer e valer para todos, mesmo para os que nela não votaram. Já no mercado, cada
indivíduo é soberano: a escolha da maioria não precisa ser a sua. Cada um escolhe no
mercado os produtos que deseja, pouco importando as preferências dos outros. Em sua
esfera particular de ação, cada um é livre para decidir o que quer. Mesmo que todos
decidam virar veganos, você continuará livre para consumir carne, nem que seja a que
você mesmo produziu. Se o processo for o político, basta uma maioria simples de
veganos para proibir o consumo de carne em toda a sociedade.

Outro problema prático: o seu voto, na democracia, vale muito pouco; é apenas um
sobre milhares ou milhões. Quanto maior for a ágora, o espaço público onde ocorre a
decisão, menor será o incentivo para participar do processo, o que a Escola de Virgínia
chama de “ignorância racional”. O voto individual é insignificante diante de 100 milhões
de votos. Não ligar para política, portanto, não é irracional.

Há também o jogo das maiorias cíclicas e instáveis, dependente das alianças permitidas.
Muitas vezes, a maioria não terá suas demandas atendidas. Por exemplo, caso haja três
preferências em disputa — A, B e C —, estando as duas primeiras empatadas com 40%
das preferências, e a opção C com 20%, aquela entre as duas primeiras que entrar em
acordo com os adeptos da opção C sairá vencedora. O próprio jogo democrático pode
beneficiar opções minoritárias em detrimento de preferências de um número muito maior
de pessoas.

Mesmo que as opções políticas possam afetar imensamente nossas vidas, não temos
muito interesse em participar delas, porque nosso poder de influência é extremamente
reduzido. A grande contradição dos intervencionistas é julgar que não devemos confiar
nos indivíduos para governar a si próprios, mas que terão a capacidade de governar os
outros. O sufrágio universal e o paternalismo estatal são contraditórios.

Para piorar, o processo de escolha democrática está longe de levar os melhores ao


poder. Na melhor das hipóteses, levará os medianos; mas, de acordo com a compreensão
dos jogos políticos, profundamente estudados pela Escola de Virgínia, entendemos que,
de fato, sequer serão vencedores os medianos, mas os piores, os mais sedentos por poder,
os mais cínicos, os mais amorais, os mais dispostos a usar e abusar do jogo de poder,
explorando as fraquezas do próprio processo político. Entendendo isso, é inevitável
concluir que as falhas de governo podem suplantar muito as falhas de mercado
empregadas como justificativas para maior intervenção estatal.

Vários pensadores já haviam alertado para esses riscos da visão romântica da política.
Maquiavel, Hobbes, Adam Smith, Schumpeter, todos eles trouxeram contribuições para a
visão de que a política é formada por seres humanos imperfeitos.

Lembremos que, antes de ser um grande deputado, senador ou presidente da república, o


sujeito precisa ser eleito deputado, senador ou presidente. Isso significa que o foco dessa
pessoa precisa, necessariamente, ser voltado para o curto prazo, porque ela precisa vencer
as eleições. A menos que seja uma pessoa diferente, uma avis rara,20 que sacrifica o
próprio interesse eleitoral em nome do interesse geral. Mas esse tipo de pessoa é
raríssimo na política mundial, porque ela teria de estar disposta a fazer o “serviço sujo”,
impopular, e retirar-se da política em seguida. O sujeito que constrói uma carreira política
precisa ser eleito diversas vezes. Por definição, essa necessidade subordina-o a um
horizonte de interesses muito mais curto.

Por outro lado, o empresário procura maximizar o valor de seus ativos ao longo do
tempo, porque o valor de uma empresa é igual ao fluxo de caixa que ela gera ao longo do
tempo atualizado para o valor presente com uma taxa de desconto.

As pessoas que entendem a linguagem financeira sabem que o grosso desse valor está
no que se chama de perpetuidade. Calcula-se o fluxo de caixa num horizonte
minimamente previsível, de 3 a 5 anos, depois aplica-o num modelo de perpetuidade,
porque espera-se que a empresa não acabará ao final de 5 anos. Além disso, o empresário
quer legá-la a seus herdeiros. Por isso, o empresário tem todo o interesse em maximizar o
resultado dessa empresa num horizonte de 30 anos.

Essa é a maior inversão praticada pelos


intervencionistas— retratar o empresário
como um ganancioso em busca de lucros
no curto prazo, enquanto os políticos são retratados como pessoas voltadas para o
interesse geral a longo prazo, embora tenham de pensar o tempo todo na próxima eleição.

Do ponto de vista do consumidor, também há conclusões interessantes: ele tem mais


incentivos para se informar para melhorar suas decisões no mercado, onde os custos e os
benefícios de suas boas ou más escolhas recaem sobre ele mesmo, do que na política,
onde os custos e benefícios são compartilhados com milhões de outros cidadãos. Muitas
vezes, na política, o incentivo é ainda mais perverso: concentrar os benefícios para si
mesmo e dispersar os custos entre todos. Essa é, na verdade, a própria definição de
política sob uma óptica mais realista: a concentração de benefícios e privilégios, por meio
da pressão de grupos de interesse, concomitante à dispersão dos custos por toda a
sociedade.

É o que a Escola de Virgínia chama de rent seeking, a busca de barreiras ao processo de


livre concorrência para apropriar-se de rendimentos que não lhe pertenceriam se a
concorrência fosse livre. Esses rendimentos extras são socialmente negativos porque
obtidos às custas de um processo livre que beneficiaria todos os seus participantes. O
consumidor paga mais para que o rent seeker possa se apropriar de uma renda indevida
decorrente de uma barreira estatal. O rent seeking é uma das atividades mais comuns na
política.

O problema dos intervencionistas é nunca se colocar do outro lado da mesa. Eles


sempre se colocam ao lado dos que tomam as decisões e se beneficiam da intervenção,
nunca no de quem sofre para pagar o seu custo. Eles tendem a enxergar a si mesmos
como “déspotas esclarecidos”; a sociedade, como um tabuleiro de xadrez; e, os
indivíduos, como peões que podem movimentar a seu bel prazer e, eventualmente,
sacrificar em nome do interesse público, que corporificaram no Estado ou em si mesmos.

Outra conseqüência prática do intervencionismo é o log rolling, a venda do voto, em


que os parlamentares votam em certas medidas governamentais ou leis não devido à
crença em seu valor para o interesse nacional, mas como moeda de troca para uso em
outras votações de interesse do grupo político que representa. O resultado é nocivo,
porque se trata de grupos em disputa por leis socialmente ruins, mas que os beneficiam, e
os demais grupos as aceitam não porque as desejem, mas porque têm outros interesses em
jogo, funcionando como uma espécie de “leilão de privilégios”.

A longo prazo, argumenta a Escola da Virgínia, outra conseqüência prática negativa é o


desvio de energia criativa do investimento produtivo para o investimento em lobby
governamental: a empresa começa a entender o funcionamento do jogo político e logo
começa a dele participar, criando grupos cada vez mais unidos e poderosos para pleitear o
atendimento a seus interesses. A longo prazo, o efeito econômico é terrível, dado o custo-
oportunidade de todo esse capital alocado para uma atividade inútil para a sociedade: a
disputa pelas benesses do Estado.

COMO MINIMIZAR OS EFEITOS DAS FALHAS DE GOVERNO


O que devemos fazer diante de todas essas falhas de governo? Não há mágica, nem
panacéia. A visão econômica liberal é fundamentalmente realista. Mas há algumas
medidas prudentes.

Primeiro: limitar o escopo da política. O problema, muitas vezes, não é o processo de


escolha das políticas, mas o excesso de politização de nossas vidas. Uma vez que
tenhamos consciência das imperfeições do processo político, muitas vezes maiores do que
aquelas que pretendia corrigir, cabe defender que ele seja limitado ao mínimo necessário.

Segundo: impor limites constitucionais ao governo, até mesmo o mais democrático,


porque ele pode se transformar numa ditadura da maioria e, ocasionalmente, sequer da
maioria, mas de minorias organizadas que capturam para si mesmas o poder da máquina
estatal. Em vez de se preocupar com “quem” ocupará o poder, deve-se limitar “o que” ele
pode fazer.

Terceiro: reduzir os gastos públicos, para mitigar o risco de sua captura por grupos de
interesse. Quanto menor for o prêmio da captura, menor será o interesse em investir nesse
processo.

Quarto: estabelecer um limite máximo de carga tributária; por exemplo, que o governo
não possa arrecadar mais do que 20% do pib, porque entendemos que suas funções
básicas podem ser exercidas no máximo até esse valor, e ir além seria um avanço
indevido sobre nossos bolsos.

Quinto: o federalismo, que caminha pari passu com a Escola da Virgínia, porque leva à
descentralização do poder adotando o princípio da subsidiariedade — quanto mais
próximo o governo estiver dos indivíduos e local de impacto de suas decisões, melhor.
Além disso, o federalismo gera a concorrência entre estados. Se um estado começa a
exagerar no intervencionismo, o indivíduo tem a opção de mudar-se para o estado vizinho
— o chamado “voto com os pés”. No Brasil, os intervencionistas tiveram tanto sucesso
que chamamos de guerra fiscal a disputa entre estados para atrair empresas oferecendo
incentivos tributários. O estado que deseja atrair investimentos reduzindo o tamanho de
sua “mordida” sobre eles é malvisto pelos intervencionistas, que propõem unificar as
alíquotas do icms em todos os estados.

Pode-se objetar que os estados farão essa guerra fiscal, quebrarão e, depois, empurrarão
a conta para a União. Ora, ataque-se a origem do problema: retiremos dos estados o
direito de jogar sua responsabilidade sobre os ombros da União. Se quebrarem, assumam
as conseqüências, que paguem o preço de seus erros. O federalismo precisa funcionar
para o bem e para o mal, porque ele melhora o mecanismo de incentivos em um sistema
já bastante perverso.
Sexto: lembrar- se sempre de que você pode estar do outro la- do da mesa. Se você quer
usar o poder do Estado para obrigar ou proibir os outros de fazer alguma coisa hoje,
lembre-se de que, amanhã, esse poder será capturado por maiorias ou minorias
organizadas que o usarão contra você. Não esqueça de que o processo intervencionista
sempre poderá atacá-lo quando você estiver do outro lado da mesa, pagando a conta e
sofrendo a intervenção na sua própria pele.

Sétimo: desconfiar sempre de políticos, de suas reais intenções, pois o ceticismo é o


único antídoto contra a crença ingênua na benevolência do Estado.

Encerro com um trecho de Michael Oakeshott:

Para algumas pessoas, o governo é concebido como um vasto reservatório de poder que
as inspira a sonhar com o uso que poderia ser feito dele. Elas têm projetos favoritos, de
dimensões variadas, e entendem que a aventura de governar os homens consiste em
capturar essa fonte de poder, aumentá-lo se necessário, e usá-lo para impor os seus
projetos favoritos ao restante dos cidadãos.

Esse estilo de mentalidade está na origem da maioria dos intervencionistas bem-


intencionados; é isso que leva as pessoas a clamar por mais Estado — leia-se, mais
impostos, mais coerção, mais ameaça de violência, menos liberdade para os indivíduos,
para as próprias minorias, do que existiria numa sociedade civil que funcionasse mais
livremente.
A VERDADEIRA ESCOLHA
T odos temos uma escolha a fazer: de um lado, o “capitalismo de Estado”, já que o socialismo propriamente dito
jamais existirá. Esse é, aliás, um fato que muitos socialistas usam para justificar, de forma um tanto pérfida, a sua
utopia, insistindo na defesa de algo sabidamente tão nefasto como o socialismo: ele nunca existiu. Exatamente:
enquanto utopia, ele jamais existirá. Para isso, seria necessário criar um novo homem, e é justamente essa tentativa que
gera tantos resultados catastróficos. Na realidade, o que existe de fato são modelos mistos, com maior ou menor
intervenção, o que chamamos de “capitalismo de Estado”, modelos semi-socialistas em que o Estado controla parcelas
significativas ou, até mesmo, majoritárias da economia, da tributação à escolha da alocação de recursos escassos, do
controle por meio de regulação até à intervenção direta como um ente relevante da própria economia, por meio de
empresas estatais e de gastos públicos. Países cujos governos arrecadam de 40 a 50% do pib são, de fato, países semi-
socialistas.

Do outro lado, temos a opção do que chamamos de laissez-faire: deixemos a economia fluir. Essa expressão teria
surgido como uma resposta dos empresários da França de Luís xiv ao seu ministro intervencionista, Colbert, que reunira
alguns grandes empresários e perguntara o que mais o governo poderia fazer por eles. Foi então, que alguém foi
corajoso o bastante para dizer: “Por favor, nada. Deixe fazer, deixe fluir”. Em suma, um grande “deixe-nos em paz e
pare de querer nos ajudar”.

É claro que um sistema de liberalismo puro, sem nenhum tipo de intervenção, parece também um pouco utópico,
especialmente num país democrático, onde sempre haverá grupos se reunindo para pleitear e conquistar privilégios,
uma “patota” que sempre se apropriará de uma parte da coisa pública para atender a seus interesses.

Nos “50 tons de cinza” que separam os extremos nesse espectro do debate econômico, o que temos de fato é uma
defesa de modelos mais liberais de um lado, e mais intervencionistas, de outro. O que esperamos ter mostrado neste
pequeno livro é que a defesa do livre mercado se baseia num argumento filosófico de que o livre mercado é o
mecanismo que melhor preserva as liberdades individuais, e no argumento econômico de que o processo de livre
mercado é o mais eficiente na alocação de recursos escassos. É o sistema que produz os resultados mais socialmente
desejáveis.
NOTAS DE RODAPÉ
1 A palavra “Economia” aparece com inicial maiúscula sempre que se refere à ciência econômica. Quando a palavra
é empregada em seu sentido comum, isto é, de “ambiente econômico” ou de “mercado”, vem com inicial minúscula.

2 “Mercado” refere-se ao ambiente, virtual ou real, onde ocorrem as trocas.

3 Sunk cost é um conceito econômico que se refere a “custos irrecuperáveis”.

4 O artigo mencionado intitula-se “O uso do conhecimento na sociedade”.

5 Caveat emptor: expressão latina que significa “acautele-se o comprador”. Em seu uso corrente, virou sinônimo de
“advertência”.

6 Commodity: palavra inglesa que designa produtos de baixa diferenciação. É especialmente empregada para referir-
se a produtos agrícolas, mas também pode ser aplicada, conforme o contexto, a qualquer categoria de produtos em que os
compradores, em sua maioria, não vislumbrem grandes diferenças entre as opções ofertadas por diferentes fornecedores.
É este último o sentido empregado aqui.

7 A priori: expressão latina que significa “antes da comprovação”.

8 Ex ante: expressão latina que significa “antes do sucesso”, isto é, antes do resultado de uma ação concreta.

9 Sine qua non: expressão latina que significa, literalmente “sem a qual não”, usada para designar uma condição
obrigatória.

10 Ex nihilo: expressão latina que significa “do nada”.

11 O spread bancário é a diferença entre o valor que o banco paga de juros aos seus credores e o valor que cobra dos
seus devedores em operações de crédito.

12 Hard currency: moeda forte.

13 Boom: onomatopéia para o ruído de explosão. O termo é usado para descrever qualquer expansão súbita de um
indicador estatístico. No caso, refere-se a um crescimento repentino da atividade econômica.

14 Bust: arrebentar, quebrar. Implica fracasso, falência, bancarrota. Em Economia, refere-se à retração súbita e
acentuada da atividade econômica.

15 Crash: colisão catastrófica que produz forte ruído, como um acidente de automóvel. Em Economia, é um evento
que desencadeia um efeito dominó, com a quebra de diversas empresas.

16 Laissez-faire: literalmente, “deixe fazer”, em francês.

17 Duration: literalmente, “duração”. Refere-se aos prazos esperados de retorno dos investimentos na economia.

18 Food stamps: Programa social do governo americano que consiste na distribuição de vales para a compra de
alimentos.

19 ancap é um acrônimo comumente empregado para referir-se aos anarcocapitalistas.

20 Literalmente, “ave rara”. Integra o ditado latino avis rara, avis cara, usado para se referir à pessoa ou coisa que,
embora ausente na maior parte do tempo, é bem-vinda quando presente.

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