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Inconsciência econômica: opacidade construída

Ladislau Dowbor
9.6.2022
A explicitação dos dramas econômicos, sociais e ambientais surge com força no que ainda
chamamos de imprensa alternativa, que saiu da lógica interessada da mídia comercial, e apresenta o
mundo real. Mais do que alternativa, uma imprensa livre. No Brasil, essa mídia é hoje um universo
em expansão, com poucos meios financeiros, mas navegando no potencial que se abriu com o
acesso online, colaborando em rede, de forma gratuita, e sobretudo honesta. São opiniões diversas,
sem dúvida, mas honestas.
Inventaram que economia é coisa para economistas, área em que leigos não devem se intrometer. O
que era economia política, ou seja, uma simples dimensão das ciências sociais, virou “ciência
econômica”. Mas se tem uma coisa que as pessoas precisam entender, é precisamente como
funciona a economia, pois é da economia que depende o nosso bolso, a condição da nossa família, o
emprego, a aposentadoria, a qualidade da escola e da saúde: trata-se de uma dimensão essencial da
nossa vida. E todos podem entender. É só pegar as consequências, sentidas na pele, e subir pela
cadeia de causalidade.
Na mídia comercial, no Jornal Nacional e semelhantes, aparecem numerosos especialistas que com
ar ponderado explicam que a situação é complexa, e fazem previsões surrealistas, mas
essencialmente justificam os dramas do país apontando para causas externas sobre as quais não
teríamos controle. Forças misteriosas são apresentadas como “os mercados”, sem nome nem
endereço, forças anônimas e inevitáveis, quando sabemos perfeitamente onde fica a Faria Lima. Os
problemas viriam de Kiev, não de Brasília. O importante é as causas serem externas, e se possível
distantes.
Do lado da mídia comercial, jornais, rádio e televisão, é essencial entender que vivem da
publicidade e da cumplicidade dos grandes grupos corporativos. O que chamamos de imprensa
livre, é na realidade uma imprensa que serve aos interesses dos mercados. Não há aqui nenhuma
simplificação ideológica: quando o dinheiro que sustenta a grande mídia comercial vem de um
grupo restrito de interesses econômicos, é a visão desses interesses que termina sendo apresentada e
martelada, com ocasional janela para outras visões, em nome de “ouvir o outro lado”. A fortuna dos
Marinho, 30 bilhões de reais segundo a Forbes 2021, equivalente ao que era um ano de Bolsa
Família para 50 milhões de pessoas, vem de algum lugar, e aqui é uma família apenas. Essa fortuna
é aplicada nos mesmos “mercados” financeiros.
A inflação não é misteriosa, e ajuda a entender o que é uma cadeia de causalidade. O que se
apresenta é que os preços “subiram”, como se não houvesse quem os eleva. A culpa seria da Rússia,
como sempre, e da guerra, impactando a “lei da oferta e da procura”. Mas o processo é simples: três
quartos dos grãos do planeta são comercializados por apenas quatro empresas, conhecidas como
‘ABCD’: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus. São “market makers” (fazedores de mercado), têm
suficiente controle para elevar os preços, sem que apareçam concorrentes, e contam nos diversos
países com os associados nacionais que participam dos lucros. É capitalismo sem moderação da
concorrência: força de oligopólio. Eles também usam Kiev como explicação e justificativa, mas na
realidade simplesmente elevam os preços e os lucros, e o resto do mundo tem de pagar. A inflação
tem causas, e elas estão no oligopólio que controla a oferta.
O resto do mundo não tem como não repassar os preços, porque “vieram” mais altos. Na padaria
explicam que sim o pão está mais caro, mas é porque a farinha veio mais cara. E com razão: a
padaria não gera a inflação, repassa os preços, e isso vale para milhões de empresas que são
“market takers” (tomadores de mercado), têm de aceitar a elevação dos custos. Isso vale para
inúmeras empresas que têm de repassar os custos para a frente, como por exemplo a de ônibus que
tem de pagar mais pelo combustível. Nesse segundo nível, a inflação se generaliza e parece surgir
sem pai nem mãe. Os preços “subiram”. Bem, por vezes aproveitam para elevá-los um pouco mais,
mas a lógica é de repasse, não de causa primeira.
O ciclo inflacionário se fecha no nível do consumidor final. A pessoa que compra o pão mais caro
não tem como repassar, vai ter de pagar mais ou comer menos. Quem toma o ônibus vai ter de
pagar, ou economizar indo a pé. A dona de casa que paga mais caro pelo botijão de gás não tem
opção. Em certos casos vai até entrar no rotativo do cartão de crédito, que no Brasil está em 365%,
acrescentando os juros ao preço que já está mais elevado. Para informação, no Canadá o rotativo do
cartão é 11% ao ano. O essencial da lógica da inflação é que ao fim e ao cabo é a base da população
que passa a reduzir o seu consumo, repassando mais dinheiro para os market takers (a padaria), que
por sua vez repassam dinheiro para o clube dos controladores mundiais de commodities e seus
associados nacionais (market makers). Temos os que sobem os preços, os que repassam – e os que
pagam.
A inflação, como bem explicou Celso Furtado, é um processo de transferência de renda para a mão
dos mais ricos, e no caso presente para os commodity traders, o ABCD e os correspondentes nas
áreas dos alimentos, da energia, dos minerais metálicos e dos minerais não metálicos. Alguém acha
que os preços das vacinas ou dos testes resultam de concorrência de mercado, leal competição entre
muitos produtores? O Big Pharma não foge à lógica, e muito menos os planos de saúde. O custo da
saúde suplementar aumenta 15,5%, sem relação com nível de inflação: a pessoa que deles depende
vai fazer o quê? Para dar um exemplo, o plano de saúde Notre Dame tem entre seus acionistas a
BlackRock, grupo mundial que administra (asset management, gestão de ativos) 10 trilhões de
dólares, equivalente à metade do PIB dos Estados Unidos. O dinheiro imaterial, apenas sinal
magnético nos computadores, permite microdrenos em escala mundial. Apresentar a inflação como
simples mecanismo impessoal é uma farsa. Aumentar a taxa Selic, repassando mais dinheiro para os
grandes aplicadores financeiros, quando não se trata de inflação de demanda, é farsa maior ainda.
São os nossos impostos, dinheiro do nosso bolso.
O caso do petróleo é particularmente interessante. A produção e o consumo mundiais são estáveis
nas últimas décadas, em torno de 90 milhões de barris por dia. Os custos de extração pouco
variaram. Mas os preços têm oscilado de forma espetacular, entre 14 e 148 dólares, segundo os
interesses dos traders e os mecanismos dos mercados de futuros. Oferta e procura? Qualquer bomba
no Oriente Médio ou variação de previsão do PIB na China servem de pretexto. O mercado
especulativo de commodities, derivatives, representa mais de cinco vezes o PIB mundial. Como se
trata de gigantes que controlam as transações, não temos concorrência de mercado, e sim poder de
fixação de preços. E como se trata de um espaço econômico mundial, onde não há governo,
tampouco temos leis, ou regulação. No nível global, temos poder especulativo em vez de
mecanismos de mercado, e vale tudo e guerras em vez de planejamento e regulação. Nem
mecanismos de mercado nem políticas públicas. No capitalismo extrativo gerado (“extractive
capitalism”, Mariana Mazzucato), quem paga são as populações.
Visto do lado do Brasil, o mecanismo se torna particularmente transparente. O Brasil controla o
ciclo completo do petróleo, tecnologias, plataformas, extração, refino, distribuição, petroquímica:
pode servir, como servia, antes das privatizações, aos interesses públicos, assegurando gás e
combustível a preços decentes. E os lucros serviam para reinvestimento na empresa e políticas
públicas. Com a privatização, qualquer grupo financeiro internacional passa a comprar ações da
empresa, e passa a exercer pressões no sentido de elevar os preços, para as ações renderem mais.
Privatização, na Vale ou na Petrobrás, significa desnacionalização. Cobrar o combustível e o gás a
preços internacionais, em nome dos “mercados”, é mais uma farsa: como o país domina o ciclo
completo, pode vender a preço de custo, mais um lucro razoável para reinvestimento e expansão,
reduzindo a pressão inflacionária.
Mas para os grandes “investidores” internacionais e seus correspondentes nacionais, cada real a
mais pago pelos usuários finais representa mais lucros. E esses lucros irão rodar no sistema
financeiro, drenando os recursos. Eu trabalhei em países sem petróleo, esses têm de pagar o preço
que os traders do petróleo cobram. No Brasil, não faz nenhum sentido, ou melhor, faz todo sentido.
Repetindo: privatização, na era da globalização, é desnacionalização. As corporações internacionais
agradecem, a população paga. Para as fortunas nacionais e globais, de algum lugar o dinheiro tem
de vir. Para entender economia, é seguir o dinheiro.
Tomamos aqui o exemplo da inflação, porque afeta a população em geral, e porque o mecanismo é
claro para qualquer pessoa que acompanha a literatura econômica internacional. No caso brasileiro,
temos de acrescentar o desabastecimento de um sistema que prefere exportar alimentos do que
abastecer o mercado interno, reforçando a pressão inflacionária. A Índia resolveu de maneira
simples o dilema: proibiu a exportação de trigo, priorizando e abastecendo o mercado interno. Aqui
a mídia nos díz que temos de respeitar “os mercados”. Não precisamos ficar nessas narrativas da
mídia comercial.
A explicitação dos dramas econômicos, sociais e ambientais surge com força no que ainda
chamamos de imprensa alternativa, que saiu da lógica interessada da mídia comercial, e apresenta o
mundo real. Mais do que alternativa, uma imprensa livre. No Brasil, essa mídia é hoje um universo
em expansão, com poucos meios financeiros, mas navegando no potencial que se abriu com o
acesso online, colaborando em rede, de forma gratuita, e sobretudo honesta. São opiniões diversas,
sem dúvida, mas honestas.
O trabalho do IHU (Instituto Humanitas Unisinos), do Outras Palavras, do Le Monde
Diplomatique-Brasil, do GGN, do Brasil 247; as pesquisas da Oxfam, do ISA (Instituto Sócio-
Ambiental); os artigos publicados por tantos cientistas nas universidades – criaram um universo de
informação diversificado e confiável. Mencionamos aqui só alguns, mas é um uma nova dinâmica
que permite a democratização do conhecimento e a compreensão das dinâmicas econômicas,
políticas e sociais.
No nível internacional, uma mídia gratuita online como o Guardian permite o acesso a uma
informação confiável, que repassa por sua vez os trabalhos de tantos núcleos de pesquisa como o
Roosevelt Institute, o New Economics Foundation, a Friedrich Ebert Stiftung, os próprios relatórios
da ONU, resumidos e tornados acessíveis. É um trabalho em rede, em grande parte gratuito, que
articula jornalistas, pesquisadores, universidades, organizações da sociedade civil, com pouco
dinheiro, mas com muita verdade. Na opacidade construída da mídia comercial, está aparecendo o
mundo real.
Ladislau Dowbor, economista, é professor da PUC-SP e consultor de várias agências da ONU. Os
seus trabalhos estão disponíveis online gratuitamente (Creative Commons) no site
https://dowbor.org. As fontes de informação que recomenda estão no artigo Como se Informar
(https://dowbor.org/2019/02/dowbor-como-eu-me-informo-fev-2019-5p.html).
Fonte: https://www.comciencia.br/inconsciencia-economica-opacidade-construida/#more-8256,
acesso: 17.08.2022

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