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a pandemia da transição
Estratégias complexas e disputas acirradas tornaram-se tão presentes nas novas socieda-
des que até Sun Tzu, um mestre da arte da guerra, passou a ter seus ensinamentos apli-
cados aos negócios. Hoje, em vez de balas e bombas voando, vemos produtos, preços e
praças agitando – também violentamente - táticas empresariais cada vez mais elaboradas.
Esse ambiente de mercado bélico pode ser descrito pelo acrônimo VUCA – volatile (volátil),
uncertain (incerto), complex (complexo) e ambiguous (ambíguo) -, quatro palavras que
resumem um cenário caótico.
Trata-se de um panorama no qual não há garantias de nada e tudo muda rápido demais;
paralelamente, temos demais aquilo que precisaríamos apenas de menos, enquanto ou-
tros são condenados a uma vida de penúria – paradoxos que abrangem da alimentação à
fome, da riqueza à miséria, da hiperconexão à exclusão social e digital.
Há alguns anos, dois professores suecos de Economia escreveram um livro incrível cha-
mado ‘Freaky Business: talento movimenta capitais’. Jonas Ridderstrale e Kjell Nordstrom
analisam o que chamaram de ‘sociedade do excedente’ – um fenômeno que descreve pra-
ticamente todos os mercados de todos os produtos e serviços do mundo desenvolvido. Na
Noruega, relatam, um país com apenas 4,5 milhões de habitantes, os leitores podem es-
colher entre 200 jornais diferentes e 100 revistas semanais. Na Suécia, com apenas 9 mi-
lhões de habitantes, é possível escolher entre mais de 350 marcas de cerveja, sendo que
há 10 anos havia só 50. Em apenas um ano, contam eles admirados, a Seiko vendeu 5 mil
modelos de relógios. ‘Vivemos a era do mais’, declaram os professores. ‘Mais escolhas. Mais
consumo. Mais diversão. Mais medo. Mais incerteza. Mais competição. Mais oportunidades.
É um mundo de excessos: um mundo de abundância’” (TAYLOR & LABARRE, 2008, p. 139).
Barry Schwartz, psicólogo e professor de teoria social do Swarthmore College, também abor-
da a sociedade do excedente em seu livro “O Paradoxo da Escolha” (SCHWARTZ, 2004). Se-
gundo ele, o aspecto mais significativo do mundo das escolhas infinitas não é o fato de dei-
xar as prateleiras das lojas abarrotadas ou os negócios menos rentáveis – ele deixa os clientes
confusos, perdidos e até deprimidos. “No ponto em que estamos, a escolha, em vez de ser
libertadora, passa a ser opressora”, escreveu, “podendo ser até mesmo tirânica... Os america-
nos de hoje estão cada vez mais insatisfeitos, ainda que sua liberdade de escolha esteja em
constante expansão”.
Esse abismo entre excesso e escassez, tão presente no atual mundo VUCA, que vem
sendo questionado, repensado e desconstruído desde a eclosão da pandemia de Covid-19.
Quanto é o suficiente? Por que tantos são forçados a viver com tão pouco? Qual é o valor
(ou preço) da vida? Perguntas como essas pairam no ar, ainda sem respostas definidas,
mas trazendo uma certeza: o mundo nunca mais será o mesmo.
E é nesse contexto que emerge, como única alternativa viável, uma sociedade capaz de
reconhecer suas vulnerabilidades e unir forças para suplantá-las; nasce o chamado mundo
VIC (vulnerável, integrado e consciente).
“Se você quer algo novo, você precisa parar de fazer algo velho.”
- Peter Drucker
A Covid-19 está transformando nossas vidas. Não se trata apenas das alterações na ro-
tina pelo isolamento, mas sim de uma série de cenários prováveis que devem reconfigurar
a sociedade pós-pandemia.
Figura 1.0: “Isso é perto o suficiente.”
Não só teve repercussões no âmbito da saúde, o que levou à aplicação de medidas extremas,
como o fechamento de fronteiras em vários países, mas também teve um impacto devasta-
dor no campo econômico, com perdas de mais de 25 trilhões de dólares na capitalização de
ações nos Estados Unidos e na Europa (SBPT, 2020).
Jerome Roos, economista da London School of Economics, observa que durante a qua-
rentena cresce uma montanha de dívidas públicas e privadas. Um endividamento de pro-
porções inéditas, que “poderia desatar uma grande crise internacional da dívida que fará o
crash e a recessão global de 2008 parecerem uma brincadeira de criança” (TRIBUNE, 2020).
Em seu livro “Pós-capitalismo: Um guia para o nosso futuro”, o jornalista britânico Paul
Mason defende que a evolução do capitalismo não pode ser derivada de utopia e sonhos
infantis, mas que “precisamos de um projeto coerente baseado na razão, na evidência e
em esquemas testáveis; um projeto que esteja de acordo com a história econômica e seja
sustentável em termos do nosso planeta” (MASON, 2017).
Nesses tempos incertos, outra voz favorável a mudanças assertivas no sistema é a da filó-
sofa feminista norte-americana Judith Butler. Para ela, enquanto a economia global pro-
duz desigualdades crescentes e trata seres humanos como supérfluos ou dispensáveis, os
conceitos de vulnerabilidade e precariedade ganham cada vez mais destaque.
Através da vulnerabilidade é possível buscar pelo outro e conceber novos meios de vida
e de confrontação das desigualdades. A filósofa explica que, ao sermos vulneráveis em
diversos graus e modos a uma precariedade que é socialmente imposta, cada indivíduo
pode reconhecer como sua própria experiência de sofrimento encontra relação com a so-
ciedade de seu tempo. “A partir daí podemos começar a desarticular essa forma individu-
alizadora e exasperante da responsabilidade, substituindo-a por uma concepção solidária
que ratificará nossa dependência mútua, e essa sujeição às infraestruturas operativas e às
redes sociais, abrindo espaço para uma forma de improvisação que concebe formas co-
letivas e institucionais de manipular a precariedade imposta”, conclui ela (BUTLER, 2017).
O questionamento da precariedade que nos é imposta exige que sejamos capazes de po-
tencializar nossas vulnerabilidades. Nesse sentido, o filósofo Franco “Bifo” Berardi afirma
que “não podemos saber como sairemos da pandemia. Poderíamos sair dela definitiva-
mente sozinhos, agressivos e competitivos, ou com um grande desejo de abraçar: solida-
riedade social, contato e igualdade” (DIARIO UNO, 2020).
As três desconexões
“O ser humano vivencia a si mesmo, seus pensamentos como algo separado do resto do univer-
so – numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência. E essa ilusão é uma espécie de prisão
que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto por pessoas mais próximas.
Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compai-
xão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza. Ninguém con-
seguirá alcançar completamente esse objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte
de nossa liberação e o alicerce de nossa segurança interior.”
- Albert Einstein
Em meio a tantas incertezas instauras pelo novo vírus, começamos a enxergar com
certa clareza algumas tendências mais duradouras. As decisões que estamos tomando para
enfrentar a Covid-19 definirão nosso destino como seres humanos e cidadãos nos próximos
anos; nesse sentido, o conferencista Otto Scharmer e a pesquisadora Katrin Kaufer apontam
três principais tipos de desconexões que devemos consertar (SCHARMER & KAUFER, 2013):
A relação do ser humano com o planeta em que habita é distante. Os recursos são es-
cassos e finitos, porém parecemos negar essa realidade. Acreditamos dominar a natureza,
mesmo diante de tantas catástrofes que muitas vezes nos tornam reféns dela. Não cultiva-
mos a terra e nos tornamos cada vez mais dependentes de “soluções prontas” e das pratelei-
ras de supermercados.
Desde o início da pandemia de Covid-19, imagens de satélite da Nasa revelaram uma signifi-
cativa redução dos níveis de poluição na China, resultante do fechamento de várias fábricas.
De fato, os melhores índices atmosféricos da história da Terra foram observados em períodos
de crise e recessão financeira, que levaram a quedas no processo produtivo – ou seja, quanto
mais ativa e “rica” a economia, mais pobre torna-se a qualidade do ar e a natureza em geral.
Fonte: https://www.bbc.com/news/world-asia-51691967
Nas últimas décadas, Pequim atingiu níveis de poluição tão elevados que chineses
ricos pagam caro por sistemas de purificação de ar em ambientes fechados, enquanto os
milionários chegam a construir engenhocas de proteção em seus quintais. Recentemente,
a Escola Internacional de Beijing, frequentada por filhos da classe alta chinesa e de diplo-
matas estrangeiros, ergueu uma cúpula gigante sobre suas quadras poliesportivas (STUDY
INTERNATIONAL, 2015).
Yuval Noah Harari também aborda a desconexão entre homem e natureza (HARARI, 2016,
pp. 29, 30):
Figura 1.3: “Sim, o planeta foi destruído. Mas, no passado, por um belo ins-
tante nós geramos muito valor para nossos acionistas.”
Muitas pessoas, no entanto, agem como se isso não fosse um problema coletivo, observando
tudo à distância e pensando: “enquanto minha família estiver protegida, ok”. Ignoram, porém,
que essa situação coloca a todos em perigo - assim como uma doença que começou na Chi-
na e hoje mata milhares de pessoas no mundo inteiro.
“Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respos-
tas para os problemas que a afligem.”
- Zygmunt Bauman
Hoje, a qualidade de vida não representa mais um conceito abstrato e alternativo, mas sim
uma realidade que contesta o mantra “se você tem um problema, precisa de mais coisas e,
para ter mais coisas, precisa produzir mais coisas”. O lema atual é “melhor com menos”, ou
seja, é melhor crescer menos, mas de forma sustentável, do que crescer muito, mas de modo
irresponsável e destrutivo em relação ao meio ambiente e às pessoas. Para avançar de verda-
de, são necessários consenso e participação popular.
O historiador Yuval Noah Harari questiona esse processo (HARARI, 2016, p. 215):
“Tome-se, por exemplo, uma engenheira de software que ganha cem dólares por hora tra-
balhando para uma start-up de alta tecnologia. Um dia, seu pai sofre um AVC. Ela passa a
ter de ajudar nas compras, na cozinha e até mesmo no banho. Ela poderia levar o pai para
a própria casa, sair mais tarde de manhã, voltar mais cedo ao entardecer e cuidar pessoal-
mente dele. Tanto a sua renda como a produtividade da start-up sofreriam, mas seu pai con-
taria com os cuidados de uma filha respeitosa e amorosa. Alternativamente, a engenheira
poderia contratar uma cuidadora mexicana, por doze dólares a hora, para morar com seu
pai e suprir todas as necessidades que ele apresentar. Isso significaria que a situação não se
alteraria para a engenheira e sua start-up, e até mesmo a cuidadora e a economia mexicana
se beneficiariam. O que a engenheira deveria fazer?
O capitalismo de livre mercado tem uma resposta firme. Se o crescimento da economia exige
que afrouxemos laços de família, incentivemos pessoas a viver longe de seus pais e importe-
mos cuidadores do outro lado do mundo – que assim seja. Essa resposta, no entanto, envol-
ve um juízo ético e não uma declaração factual. Sem dúvida, quando algumas pessoas se
especializam em engenharia de software enquanto outras passam seu tempo cuidando de
idosos, podemos produzir mais softwares e dar aos idosos um atendimento mais profissional.
Mas será que o crescimento econômico é mais importante do que os laços familiares?
A conciliação entre valores humanos, até então perdidos ou deixados de lado, e lucratividade
organizacional é uma das principais tendências no mercado de trabalho do futuro. O grande
desafio para funcionários e gestores, neste caso, é criar um ambiente laboral no qual coexis-
tam em equilíbrio o desempenho profissional e as relações humanas como amizade, solida-
riedade e companheirismo.
Em seu livro The Myth of Capitalism: Monopolies and the Death of Competition (“O
mito do capitalismo: monopólios e a morte da concorrência”, sem versão para o português), o
economista norte-americano Jonathan Tepper dedica-se a explicar o desempenho defeituo-
so do capitalismo contemporâneo (TEPPER, 2018).
Tepper argumenta que, embora o capitalismo tenha se mostrado o melhor sistema para cria-
ção de riqueza e redução da pobreza da população, o que vivemos atualmente é algo em
total desacordo com sua origem, fundamentada na existência de mercados concorrenciais.
Ou seja, o princípio básico de competição está sendo esquecido e a maioria dos setores está
altamente concentrada nas mãos de poucos.
O crescente poder de mercado das companhias dominantes vem gerando menos investi-
mento, menor produtividade, menor dinamismo, margens maiores, menores salários e maior
concentração de riqueza. O setor de tecnologia é o caso mais grave, tendo em vista seu mode-
lo “o ganhador leva tudo”. São corporações gigantes como Google, Amazon, Apple, Microsoft
e Facebook que, nas palavras de Tepper, “são ótimas para os acionistas, mas são arrogantes
e matam a competição”.
Somente durante a última década, essas cinco super empresas compraram 436 companhias,
formando verdadeiros monopólios em setores fundamentais como mecanismos de busca,
aplicativos, softwares e redes sociais. Apesar disso, o Departamento de Justiça dos Estados
Unidos e a Federal Trade Comission (FTD) apenas recentemente abriram alguns poucos pro-
cessos para investigar práticas anticompetitivas dessas companhias.
Maior concentração de mercado implica maior poder das empresas de manipular os
preços, elevando suas margens. Em 2007, o economista norte-americano Matthew Weinberg
publicou um estudo sobre fusões entre competidores dos 22 anos anteriores, revelando que
a grande maioria dos negócios resultou em aumento de preços - tanto nas empresas que se
fundiram quanto nas concorrentes. As fusões, concluiu Weinberg, resultam em uma inequí-
voca e devastadora subida de preços e de margens (HBR, 2020).
Essa visão foi reforçada por John Kwoka, especialista em política de competição, que demons-
trou que, em 95% dos casos, sempre que processos de fusões e aquisições envolvem menos
de seis competidores principais, os preços subiram 4,3%, em média (KWOKA, 1983).
Por fim, um recente trabalho de economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) cons-
tatou que, no período entre 1980 e 2016, as margens das maiores companhias nos países
avançados subiram, em média, 39%; e nos Estados Unidos, 42% (IMF, 2019).
Figura 1.6: “O mundo não é justo”; “Há alguma justiça no mundo”; “O mundo é justo”.
A palavra mutirão é derivada do termo tupi motyrõ, que significa “trabalho em comum”. Já
a sigla P2P significa literalmente “Peer to Peer”, isto é, trabalho entre pares. Atualmente, no
entanto, o mutirão ocorre em espaços virtuais e globais.
Tanto na área corporativa quanto na vida pessoal, só é possível crescer de modo sustentável
quando as pessoas à nossa volta também crescem. Um profissional individualista, porém,
opõe sua obsessão pelo sucesso pessoal ao êxito coletivo, competindo selvagemente e viven-
do em busca exclusivamente do que almeja.
De acordo com o pesquisador e conferencista belga Michel Bauwens, esse modelo está se
esvaindo rapidamente. “Do mesmo jeito que ninguém percebia que o capitalismo nascia no
século XV, quando os Cavaleiros Templários criaram uma espécie de cheque de viagem para
os peregrinos à Terra Santa, a gente tem dificuldade em perceber que uma nova ordem nas-
ce hoje”, afirma Bauwens (P2P Foundation, 2020).
As pessoas vêm reconhecendo a importância de pensar mais na ética. Nos trabalhos em equi-
pe, quem atua de modo egoísta logo é excluído.
Por mais difícil que seja acreditar que essa mentalidade pode se propagar e virar algo co-
mum, essa é uma tendência irrefreável para os próximos anos, defende Bauwens. “Somos
bons e maus ao mesmo tempo”, ele lembrou. Agora seria a vez de nosso lado bom. Breve te-
remos novos modelos econômicos, que reunirão os tubarões do capitalismo e os golfinhos da
cooperação entre iguais - o crowdfunding e o financiamento coletivo de projetos inovadores
são exemplos claros desse movimento.
Recentemente, o famoso jornal Financial Times lançou a campanha “Capitalism: Time for a
Reset” (Capitalismo: Momento de Revisão) (FT, 2020). “O modelo capitalista liberal proporcio-
nou paz, prosperidade e progresso tecnológico nos últimos 50 anos, reduzindo drasticamen-
te a pobreza e elevando os padrões de vida em todo o mundo. Mas, desde a crise financeira
global, o modelo ficou sob pressão, particularmente o foco em maximizar lucros e o valor para
os acionistas. Esses princípios de bons negócios são necessários, mas não suficientes. Está na
hora de uma redefinição do capitalismo”, afirmou Lionel Barber, editor do jornal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
• TAYLOR, William C. & LABARRE, Polly. Inovadores em ação: as estratégias das empresas que estão re-
definindo seus mercados e criando vínculos originais com seus clientes. Editora Sextante, 2008.
• SCHWARTZ, Barry. O paradoxo da escolha: por que mais é menos. Editora A Girafa, 2004.