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Em A Era do Capital Improdutivo, Ladislau Dowbor revela que o crescimento

abissal das desigualdades, a ausência de limites para a depredação da natureza e


o esvaziamento da política podem ser faces de um só fenômeno. Uma
nova metamorfose do capitalismo (para usar expressão de Celso Furtado) criou
um sistema que já não pode ser compreendido – muito menos superado –
manejando apenas as chaves analíticas do passado. O autor não se contenta em
constatar o déficit teórico: ele adianta pistas para ultrapassá-lo, ou seja: para
tramar um novo projeto pós-capitalista.

***

A natureza mutante do capitalismo já havia sido destacada por Karl Marx. Mais
recentemente, François Chesnais formulou, em A mundialização do
capital (1988) e em obras posteriores, a hipótese do declínio do industrialismo
e o surgimento de um “regime de acumulação sob dominância financeira”.
Ladislau está de acordo, e oferece farta documentação e dados a respeito. Para
dar ao leitor noção das dimensões do cassino financeiro global, mostra, por
exemplo, que só as transações financeiras com “derivativos” – aquelas em que
não se negociam mercadorias, mas apenas índices (a taxa de inflação, o preço de
uma moeda, a cotação de uma commodity) atingiram 710 trilhões de dólares em
2013 – ou 9,6 vezes o PIB mundial naquele ano.
Mas A Era do Capital Improdutivo situa esta transição num conjunto de outras
transformações civilizatórias marcantes, que se acentuam a partir dos anos
1950. A primeira delas é uma drástica mudança na arquitetura do poder
mundial. Pela vez desde a Paz de Westphalia (1648), os Estados-Nações estão
deixando de ser os atores centrais. Em seu lugar, emergem as megacorporações
globais – grupos financeiros gigantescos; conglomerados industriais ligados e
eles; um punhado de dealers que controlam o grosso do comércio de alimentos,
minérios e combustíveis no planeta.

A passagem de bastão se dá por dois motivos. Primeiro, a concentração


empresarial, mais intensa que nunca. Apoiado num vasto estudo do Instituto
Federal Suíço para Pesquisa Tecnológica – o renomado ETH –, Ladislau
demonstra que 147 grandes corporações (75% delas financeiras) controlam hoje,
sozinhas, 40% do PIB do mundo. Numa espécie de “núcleo do núcleo” estão 28
“instituições financeiras sistematicamente importantes” (SIFIs, em inglês), cada
uma das quais tem capital médio de US$ 1,8 trilhão (superior ao PIB do Brasil, a
sétima economia do planeta).

O problema não é só o gigantismo. As megacorporações atuam em todo o


mundo, enquanto os Estados-Nações são limitados por
fronteiras. Todas mantêm sedes e filiais em “paraísos fiscais” (um capítulo do
livro é reservado a examiná-los), onde podem articular oligopólios, evadir
impostos ou praticar fraudes “livres” do constrangimento de governos ou
Judiciários. Mais recentemente, diversos acordos comerciais permitem-lhes
formar tribunais paralelos (Investor-State Dispute Settlement, ou ISDS, em
inglês), nos quais podem exigir indenizações de Estados que adotem normas
consideradas hostis a seus interesses (por exemplo, a redução da jornada de
trabalho ou uma nova lei de proteção da natureza…).

O resultado é o esvaziamento rápido da democracia. Porque surgiu – acima dos


Estados e com força superior à deles – uma nova esfera global de poder. Está
inteiramente colonizada: em seu interior, o capital reina absoluto; não há
eleições, parlamentos, governos escolhidos pela sociedade, transparência. Quem
conhece a agenda do FMI, ou sabe como votam os representantes brasileiros na
Organização Mundial do Comércio? Como frisa o autor, “o poder mundial
realmente existente está nas mãos de gigantes que ninguém elegeu e sobre os
quais há cada vez menos controle”.

A terceira grande transformação está ligada às novas relações entre a natureza,


ser humano e conhecimento; ao advento do que passamos a chamar de
Antropoceno. Ladislau insere-se claramente entre os autores que o veem como
resultado do predomínio das lógicas mercantis. O livro resgata, à página 24 um
gráfico desconcertante e pouco conhecido, em que está representada a evolução
de fenômenos normalmente não relacionados: aumento da população humana,
PIB, concentração de CO² na atmosfera, número de automóveis, consumo de
papel, extinção de espécies, destruição das florestas e outros.

As curvas são coincidentes: tudo dispara a partir de 1950, num claro sinal de
que entramos em outra fase. O autor analisa: “todos querem consumir mais,
cada corporação busca extrair e vender mais, e tecnologias cada vez mais
potentes permitem ampliar o processo (…) Para a maioria dos economistas, o
crescimento é tão necessário quanto o ar que respiramos”. Duas consequências
dramáticas, já visíveis, são o declínio abrupto da vida marinha e os sinais de
uma sexta extinção em massa das espécies: “em apenas quarenta anos, de 1970
a 2010, destruímos 52% da fauna do planeta”.

A devastação da natureza é facilitada pelo “avanço” tecnológico, mas em mais de


um trecho o livro demonstra: esta mesma técnica ameaça, perigosamente, criar
uma sociedade cada vez mais desigual e alienada. A concentração de riquezas é
possível, em escala nunca vista, porque um pequeno número de corporações
controla e processa informações sobre os mercados e inclusive sobre nossas
vidas. O sinal mais evidente de que as questões social e ambiental se entrelaçam
está expresso numa formulação ao mesmo tempo feliz e terrível: “estamos
destruindo o planeta (…) de forma muito particular para o proveito do 1%”.
Em muitos de seus textos recentes, Immanuel Wallerstein tem sustentado que o
capitalismo, tal como o conhecíamos, vive em crise terminal; mas que não é
possível saber, o que o substituirá – e não se deve afastar a hipótese de que seja
um sistema ainda mais desigual, mais hierárquico, mais alienante e menos
democrático. Em seu novo livro, Ladislau Dowbor parece sugerir que este
cenário de pesadelo está sendo montado agora, diante de nossos olhos.

***

O próprio livro fornece, porém, elementos para enxergar como tal construção é
instável; como resta, portanto, espaço para a resistência e a busca de
alternativas. O livro trata, em especial, de duas vulnerabilidades. A primeira é o
declínio do próprio crescimento econômico – objetivo essencial da lógica
mercantil –, acompanhado de riscos novos de terremotos financeiros
avassaladores.

A concentração de riquezas, explica o autor, acaba convertendo-se num


obstáculo à reprodução do ciclo do capital. Sob o regime de dominância
financeira, cresce o rentismo – a capacidade de apropriar-se da riqueza social
sem nada produzir. O Brasil (a que Ladislau dedica dois capítulos) é um
exemplo extremado. O sistema financeiro estende seus tentáculos tanto sobre o
orçamento público (de onde são desviados R$ 400 bilhões, ou cerca de treze
programas Bolsa-Família ao ano) quanto sobre as famílias e empresas
(reduzindo a capacidade de consumo e as margens de lucro). Em meio ao
terceiro ano seguido de recessão, os lucros dos bancos não cessam de crescer.

Mas o resultado desta punção é, em todo o mundo, a economia estagnada.


Desde os abalos de 2008, não houve recuperação efetiva. O autor explica, dando
tintas atuais às ideias de Marx sobre as crises de superprodução: os mais ricos
entesouram seu dinheiro; são as maiorias que gastam quase tudo o que recebem
– mas se elas são atingidas pela desocupação e pela queda dos salários, quem
manterá a economia girando? Que empresários ousarão investir, se os
consumidores finais estão quebrados?

A segunda debilidade crucial é a ineficiência das empresas. Para desenvolver o


tema, Ladislau recorre a seus estudos e experiência como gestor e planejador –
algo raro entre a esquerda. A intensa concentração empresarial, explica, criou
conglomerados enormes e disformes, movidos cada vez mais pela lógica única
da rentabilidade financeira, incapazes de atender às demandas sociais e mesmo
de evitar fraudes e tragédias. O exemplo emblemático é o do desastre de
Mariana: “entre o engenheiro da Samarco que sugere o reforço na barragem e a
exigência da rentabilidade da Vale, Billiton e Bradesco, a relação de forças é
radicalmente desigual”. O resultado é o soterramento do distrito de Bento
Rodrigues.

Os exemplos de ações fraudulentas entre as grandes corporações, aliás,


multiplicam-se. O sistema financeiro é líder, mas a Justiça garante blindagem:
“Praticamente todos os grandes grupos [internacionais] estão com dezenas de
condenações, mas em praticamente nenhum caso houve sequelas judiciais como
condenação pessoal dos responsáveis (…) Basta a empresa fazer, enquanto
pratica a ilegalidade, uma provisão financeira para enfrentar os prováveis custos
do acordo judicial”. A velha mídia cumprirá seu papel, ocultando sempre que
possível os crimes e construindo, contra todas as evidências, a imagem de
corporações responsáveis e de famílias saltitantes, felizes com seu banco. Mas as
enxurradas de publicidade não apagam os fatos: tem futuro um sistema que não
é capaz sequer de cumprir sua promessa de crescimento e eficiência?

***

Por outro lado, é possível enfrentar este capitalismo metamorfoseado com as


ideias e personagens dos séculos passados? Ladislau Dowbor tem pistas
também para esta questão. Em certo trecho, ele recomenda “aos sindicatos e
movimentos sociais” examinar melhor as novas formas de extração de mais-
valia. Explica: “A forma tradicional – o patrão que produz mas paga mal,
ensejando lutas por melhores salários – foi brutalmente agravada por um
sistema mais amplo de extração do excedente produzido pela sociedade”. Nos
novos tempos, “todos somos explorados, em cada compra ou transação, seja
através dos crediários, dos cartões, tarifas e juros abusivos, seja na estrutura
injusta da tributação”. Há aqui uma fraqueza por excesso: “O rentismo é hoje,
sistematicamente mais explorador, e pior, um entrave aos processos produtivos
e às políticas públicas. (…) Sua grande vulnerabilidade está no fato de ser
improdutivo, de constituir dominantemente uma dinâmica de extração sem
contrapartida à sociedade”.

“Quem serão os atores sociais” aptos a enfrentar este poder? Pergunta Ladislau
em outro ponto, que talvez merecesse ser mais destacado no livro. Ele mesmo
responde: “Os partidos, os governos – mesmo democraticamente eleitos – e até
os sindicatos estão fragilizados e sem credibilidade. O que era uma classe
trabalhadora relativamente homogênea e com capacidade de articulação (…) é
hoje extremamente diversificada pela multiplicidade e complexidade de
inserção nos processos produtivos”. A esperança estaria numa espécie de novo
proletariado, já entrevisto por autores como David Harvey e Toni Negri: “Os
prejudicados do sistema são a imensa maioria, e não faz sentido o 1% pesar mais
que o 99%”.

Como inverter a balança – ou seja, como abordar a luta pela emancipação social
na Era do Capital Improdutivo? Aqui, Ladislau destoa tanto do pensamento
econômico tradicional quanto de grande parte dos economistas de esquerda, tão
autolimitados pelo mito segundo o qual “não há orçamento” para atender às
demandas sociais. É preciso, mostra o livro, opor, às lógicas contábeis da
“austeridade” e dos “ajustes fiscais”, outras realidades.

“Se há uma coisa que não falta no mundo são recursos”, lembra Ladislau – e
aqui ele parece atualizar a ideia de Marx sobre a contradição entre a técnica (as
“forças produtivas”) que avança, e o sistema social (as “relações de produção”)
que se vê obrigado a limitá-la – porque podem ser uma ameaça aos privilégios.
O livro ressalta: “O imenso avanço da produtividade planetária resulta
essencialmente da revolução tecnológica que vivemos. Mas não são os
produtores destas transformações que aproveitam. Pelo contrário, ambas as
esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas nas mãos de gigantes
do sistema financeiro, que rende fortunas a quem nunca produziu e consegue
nos desviar radicalmente do desenvolvimento sustentável, hoje vital para o
mundo”.

O autor resgata dados desconcertantes – mas sempre ocultados, porque


incômodos. “Se arredondarmos o PIB mundial para 80 trilhões de dólares,
chegamos a um produto per capita médio de 11 mil dólares. Isto representa
3.600 dólares por família de quatro pessoas, cerca de 11 mil reais por mês. É o
caso também no Brasil, que está exatamente na média mundial em termos de
renda. Não há razão objetiva para a gigantesca miséria em que vivem bilhões de
pessoas, a não ser justamente o fato de que o sistema está desgovernado, ou
melhor, mal governado e não há perspectivas no horizonte”.

Mas como ir além do sistema? Ladislau frisa, desde o início, que sua experiência
o ensinou a passar ao largo das ideologias – os “ismos”, como ele as chama.
Quer saídas práticas. Porém, a radicalidade do que propõe, sempre com base em
um imenso volume de dados articulados, convida a especular: tais respostas não
cabem no sistema a que estamos submetidos. Por isso, talvez não haja heresia
em dizer que o autor pratica um “pós-capitalismo discreto”. É como se dissesse,
à moda de Leminsky: não se afobem: “distraídos, venceremos”.

O livro termina com o “Esboço de uma Agenda”, um brevíssimo ensaio


construído em coautoria com Ignacy Sachs – um dos propositores do conceito
de “ecossociodesenvolvimento – e Carlos Lopes – pesquisador africano, ex-
subsecretário-geral da ONU.

Proposto em 2010, o rascunho chama a atenção por sua atualidade. Nele,


propostas estruturais – como a instituição Renda Básica da Cidadania, a
redução da jornada de trabalho, a reorganização do sistema financeiro, a
reorientação dos sistemas tributários e a livre circulação do conhecimento (em
oposição à “propriedade intelectual” e aos sistemas de “copyright”) – figuram
lado a lado com mudanças de atitude decisivas (como a “moderação do
consumo” e a “generalização da reciclagem).

É pouco, certamente – e é ótimo que seja assim. Reconstruir um projeto de


emancipação social será obra de multidões e exigirá décadas de imaginação,
sondagens, tentativas, erros, novas reflexões e criações. O que o livro de
Ladislau Dowbor reitera é que o esforço começou; que já somos capazes de nos
perceber submetidos à Era do Capital Improdutivo – mas também de buscar as
saídas; que, em oposição ao futuro distópico que hoje nos ameaça, podemos
tatear o pós-capitalis

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