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Centro Universitário – Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB

Mestrado Profissional em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios


Disciplina: Fundamentos da Regulamentação Econômica e Social
Profª Drª: Neide Teresinha Malard

RESENHA do capítulo 8, “O governo empresarial”

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo [recurso eletrônico] :


ensaio sobre a sociedade neoliberal. / Pierre Dardot, Christian Laval ; tradução
Mariana Echalar. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016.

Kleber Moreira da Silva

1. Credenciais dos autores

Pierre Dardot, nascido em 28.10.1952, é filósofo e pesquisador francês,


especialista no pensamento de Marx e Hegel. Christian Laval, nascido em 1953,
doutor em sociologia, também é um pesquisador francês da história da filosofia e da
sociologia.

Além de várias obras escritas em separado, depois de A nova razão do


mundo, Dardot e Laval publicaram juntos diversos livros, tais como: Salvar Marx?
Império, multidão, obra imaterial (edições La Découverte, 2007); Marx, primeiro
nome: Karl (col. “Ensaios”, 2012); Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI
(edições La Découverte, 2014); Este pesadelo sem fim. Como o neoliberalismo
derrota a democracia (edições La Découverte, 2016); A sombra de outubro. A
2

Revolução Russa e o Espectro dos Soviéticos (editora Lux, col. “Humanidades”,


2017); Dominar. Levantamento da soberania do Estado no Ocidente (edições La
Découverte, 2020).

2. Capítulo “8 O governo empresarial”

Pierre Dardot e Christian Laval estruturaram sua obra “A nova razão do


mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal” em duas partes: I – A refundação
intelectual; e II – A nova racionalidade.

Subdivide-se a parte I em cinco capítulos: 1. A crise do liberalismo e


nascimento do neoliberalismo; 2. O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenção do
liberalismo; 3. O ordoliberalismo entre “política econômica” e “política de sociedade”;
4. O homem empresarial; e 5. Estado forte, guardião do direito privado.

Na parte II ficaram os últimos quatro capítulos: 6. A grande virada; 7. As


origens ordoliberais da construção da Europa; 8. O governo empresarial; 9. A fábrica
do sujeito neoliberal.

Em relação ao objeto da resenha, o capítulo “8. O governo empresarial”, os


autores começam dizendo que liberais e antiliberais, por razões diferentes, parecem
adotar a falsa ideia de que existe separação entre esferas do interesse privado e do
interesse do Estado. “O mercado não é um sistema fechado e anterior à sociedade
política” (p. 267).
3

Dizem os autores que as ondas mundiais de privatização, 1


desregulamentação e diminuição de impostos, ocorridas a partir dos anos 1980, 2
reforçaram a ideia que o Estado estava se afastando de seu papel protetivo para
assumir a função de mero agente regulador e avaliador (p. 267).

Citando o texto “Le New Deal permanent”, escrito por Walter Lippmann em
1935, os autores afirmam que a crença na “autorregulamentação dos mercados”, a
concepção de um mercado autônomo e espontâneo, era uma fábula (p. 267-8).

Percebem os autores que o neoliberalismo não busca tanto a retirada do


Estado e o domínio da acumulação de capital, mas a “transformação da ação
pública”, sujeitando o Estado às regras semelhantes àquelas que regem a iniciativa
privada, instituindo, assim, o chamado “governo empresarial” regido por regras de
concorrência e submetida às exigências de eficácia, como nas empresas privadas.
Para tanto, a reestruturação do Estado se deu de duas maneiras distintas: as
privatizações maciças e instauração do Estado avaliador e regulador (p. 268).

Extrai-se do capítulo em estudo que, diante das novas exigências impostas


pela globalização, o Estado apresenta-se ineficaz, improdutivo, oneroso, dificultando
a competitividade da economia. Portanto, a partir dos anos 1980, começa-se a
construir o “Estado eficaz” ou o “Estado gerencial”, com forma própria de realizar e
discriminar as “agendas e não agendas”3 (p. 269).

1
No Brasil, apesar de ter se iniciado nos anos 1980, a privatização só se destacou no cenário
internacional quando, na segunda metade dos anos 1990, chegou aos serviços públicos. Logo após tomar posse,
o governo do Presidente Fernando Collor submeteu ao Congresso a Medida Provisória – MP n. 155, de
15.3.1990, que criou o Programa Nacional de Desestatização - PND. A referida MP foi convertida na Lei n.
8.031, de 12.4.1990, que, por sua vez, foi revogada pela Lei n. 9.491, de 9.9.1997, que alterou procedimentos
relativos ao PND.

2
No início dos anos 1980, o Brasil ainda vivia a ditadura militar. Adveio o movimento “Diretas Já”.
Altos índices de endividamento e de inflação. Os diversos planos econômicos, Plano Cruzado, Plano Bresser e
Plano Verão, fracassaram. A Constituição de 1988 sedimentou o fim da ditadura. Ao final dessa década a
chamada “guerra fria” já estava se encerrando. Impulsionado por um processo de globalização econômica, o
modelo neoliberal de governo ganhou força pelo mundo afora.

3
Definição de onde o governo deve intervir e onde ele não deve intervir.
4

Pierre Dardot e Christian Laval dizem que, na prática, todos concordavam que
o governo não podia se afastar da gestão da segurança, da saúde, da educação, do
transporte, da moradia e do emprego. No entanto, por exigência da competição
econômica mundial, também era certo que o Estado devia reduzir os custos
administrativos e sociais (p. 269).

As críticas ao Estado produtor passam pela ideia de que a gestão de bens e


serviços à população nas mãos da administração pública contraria a “lógica de
mercado quanto ao papel dos preços e à pressão da concorrência”. Essa noção,
segundo os autores, implicava na degradação dos salários e das condições de
trabalho dos “agentes de base dos serviços públicos”, contribuindo para desvalorizar
aquilo que “dependia da ação pública e da solidariedade social” (p. 269).

Desde os anos 1980,4 no âmbito dos países-membros da Organização para a


Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), esse novo paradigma
determinava que o Estado fosse “mais flexível, reativo, fundamentado no mercado e
orientado para o consumidor”, salientam os autores (p. 270).

Para os autores, o management transposto para o setor público, a pretexto de


aumentar a eficácia e reduzir os custos dos serviços públicos, subverte os
fundamentos da democracia (p. 270).

Diferente do que pregava Léon Walras, os partidários da nova “governança”


pregavam que o princípio da livre concorrência se aplicava também à produção de
coisas de interesse público. Para os autores essa racionalidade do mercado era uma

4
No início dos anos 1980 o Brasil ainda vivia a ditadura militar. Adveio o movimento “Diretas Já”. Altos
índices de endividamento e de inflação. Os diversos planos econômicos, Plano Cruzado, Plano Bresser e Plano
Verão, fracassaram. A Constituição de 1988 sedimentou o fim da ditadura. Ao final dessa década a chamada
“guerra fria” já estava se encerrando. Impulsionado por um processo de globalização econômica, o modelo
neoliberal de governo ganhou força pelo mundo afora.
5

difamação muito conveniente aos interesses de “uma parte das elites


administrativas”5 (p. 271).

Segundo os autores, as diretrizes do neoliberalismo acabaram por introduzir


um significado político ao termo “governança” 6 com três dimensões entrelaçadas de
poder: condução das empresas, condução dos Estados e condução do mundo (p.
271).

A chamada “boa governança”, então, vincula-se a uma política de integração


do mercado mundial e, como resultado da transferência das experiências da
governança corporativa para o setor público, os dirigentes dos Estados ficam sob o
controle da comunidade financeira internacional. No entanto, os autores afirmam que
(p. 271-2):

Um Estado não deve mais ser julgado por sua capacidade de assegurar sua soberania sobre
um território, segundo a concepção ocidental clássica, mas pelo respeito que demonstra às
normas jurídicas e às ‘boas práticas’ econômicas da governança.

Embora o Estado mantenha uma certa e enfraquecida autonomia em outros


domínios, “as políticas macroeconômicas são amplamente o resultado de
codecisões públicas e privadas” (p. 273).

5
Notadamente vinculada aos credores e aos investidores estrangeiros.

6
No conceito adotado pelo Banco Mundial, de acordo com o documento Governance and Development,
de 1992, governança é “o exercício da autoridade, controle, administração, poder de governo”. Trata-se da forma
de exercício do poder na administração de recursos sociais e econômicos de um país em prol do seu
desenvolvimento.
6

Citando como exemplo7 a crise financeira de 2007, 8 os autores sustentam que


essa “governança híbrida” é um fracasso marcado pelo próprio insucesso do Comitê
de Basileia (p. 274).9

Na tentativa de reforçar a transparência e a vigilância no mercado financeiro,


nos Estados Unidos da América foi sancionada a Lei Sarbanex-Oxley de 2002 e na
França a chamada Lei de Segurança Financeira de 2003. Contudo, esse conjunto
normativo acabou favorecendo “uma prática sistemática de transferência externa
dos riscos assumidos pelos bancos” (p. 275).

Os autores questionam a capacidade dos “atores privados”, incluindo as


agências de classificação, de se autodisciplinarem, tendo em vista o conflito de
interesses (p. 276).

Para os autores, ao se curvar às novas condições da política financeira


global, sob a retórica de defesa do “interesse nacional”, o Estado causou um
retrocesso social e colaborou para o fortalecimento dos oligopólios (p. 276-7).

Ressaltam os autores que as grandes instituições internacionais criadas


depois da Segunda Guerra Mundial – tais como, o Fundo Monetário Internacional –
FMI, o Banco Mundial e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (General

7
Vale lembrar também o caso Eron (2001). A Eron Corporation foi uma companhia gigante de energia
que, aproveitando-se da desregulamentação do mercado, cometeu fraudes contábeis de forma institucionalidade,
causou um prejuízo de 11 bilhões de dólares aos seus acionistas. Sua falência foi decreta em 2.12.2001.

8
Vários fatores contribuíram para a crise financeira que se iniciou no mercado imobiliário nos Estados
Unidos em 2007, popularmente chamada de “bolha”. Para alguns, ela gerou a mais profunda recessão global
desde a Segunda Guerra Mundial. Pierre Dardot e Christian Laval afirmam que essa crise se deve, em grande
parte, ao conjunto de acordos chamado Basileia I e II que delegou às próprias instituições financeiras o poder
regulamentar os critérios de autocontrole.

9
“O Comitê de Supervisão Bancária da Basileia (BCBS, sigla de Basel Committee on Banking
Supervision em inglês) é uma organização que congrega autoridades de supervisão bancária, visando a fortalecer
a solidez dos sistemas financeiros. […] Ele foi estabelecido em 1974 pelos presidentes dos bancos centrais dos
países do Grupo dos Dez (G-10). Normalmente se reúne no Banco de Compensações Internacionais, na cidade
de Basileia, Suíça, onde se localiza sua secretaria permanente […] . (CONTEÚDO aberto. In: WIKIPÉDIA: a
enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Comit%C3%AA_de_Supervis%C3%A3o_Banc
%C3%A1ria_de_Basileia. Acesso em: 19 abr. 2023).
7

Agreement on Tariffs and Trade – GATT) – “constituíram os principais vetores de


imposição da nova norma neoliberal” (p. 277).

A crítica dos autores à mudança na concepção da ação do Estado pode ser


sintetizada no seguinte trecho (p. 278-9):

[...] o Estado não abandona seu papel na gestão da população, mas sua intervenção não
obedece mais aos mesmos imperativos nem aos mesmos motivos. Em vez da ‘economia do
bem-estar’, que dava ênfase à harmonia entre o progresso econômico e a distribuição
equitativa dos frutos do crescimento, a nova lógica vê as populações e os indivíduos sob o
ângulo mais estreito de sua contribuição e seu custo na competição mundial.

Na visão dos autores, surge uma forma inédita de “poder mundial”, sem
governo, nas mãos do mercado mundial. Desse modo, as sociedades nacionais e
regionais ficariam à mercê do dumping social10 e fiscal.

No tópico “o modelo da empresa”, os autores dizem que o intervencionismo


neoliberal visa criar situações de concorrência, “supostamente”, em benefício dos
mais aptos e mais fortes competidores11 (p. 280).

A partir dos anos 1980, afirmam Pierre Dardot e Christian Laval, a empresa
passou a ser vista como o “vetor de todos os progressos, condição da prosperidade
e, acima de tudo, provedora de empregos”. O Estado de bem-estar social é tido
como um “peso” (p. 283).

10
No conceito da Economia, dumping é a prática de exportação de produtos por preços inferiores aos do
mercado interno, com a finalidade de dominar a concorrência. No campo da ciência do Direito do Trabalho,
entende-se por “dumping social” a conduta de certas empresas que procuram aumentar seus lucros em
detrimento dos direitos dos trabalhadores, praticando baixos salários e desprezando as normas de saúde, higiene
e segurança no trabalho.

11
No contexto da reforma administrativa iniciada no Brasil em 1995, no início do governo do Fernando
Henrique Cardoso, pela crise econômica, social e administrativo, sob a égide do capitalismo globalizado,
inserem-se as agências reguladoras e as agências executivas como espécies de autarquia ou fundações públicas
sob regime especial. Integram a Administração Pública indireta e possuem natureza jurídica de direito público.
As agências reguladoras têm como principal finalidade disciplinar e controlar certas atividades (ANEEL, ANTT,
ANTAQ, ANCINE, ANP, ANVISA etc.). Já as agências executivas, como o próprio nome diz, destinam-se à
execução efetiva de certas atividades administrativas típicas de Estado (o Inmetro, por exemplo). Para serem
criadas, dentre outros requisitos, as agências executivas requerem “contrato de gestão com o respectivo
Ministério” e “plano estratégico de reestruturação e desenvolvimento”.
8

Essa nova “governança” baseia-se no postulado de que a gestão privada é


mais eficaz que a administração pública. Dizem os autores que (p. 284):

[...] Uma das constantes da retórica da nova direita consistiu em mobilizar a opinião pública
contra os ‘desperdícios’, os ‘abusos’ e os ‘privilégios’ de todos os parasitas que povoam a
burocracia e vivem à custa da população honesta e trabalhadora. O gerencialismo tornou-se,
assim, a ‘face aceitável do pensamento da nova direita sobre o Estado’, como observa
Christopher Pollitt.

Na ótica dos autores, os teóricos neoliberais consideram o Estado como um


“ator egoísta e racional”, cujos agentes têm a tendência de perseguir seus próprios
interesses e, portanto, precisam ser vigiados para eliminar abusos e fraudes.
Contudo, não se nega que os mecanismos de transparência sejam uma ferramenta
importante para a democracia (p. 285).

Comentando a Escola do Public Choice, os autores sustentam que, na prática


e na teoria, o funcionamento do Estado e do mercado se misturam. O agente público
é um “homem igual aos outros” que prioriza a satisfação do seu próprio interesse,
mesmo quando em detrimento do interesse público (p. 289).

Com o tópico “A concorrência no centro da ação pública”, os autores


demonstram que “o governo empresarial” seria uma terceira via entre o livre
mercado e o mercado regulamentado (p. 298).

Para outros autores, o mérito da chamada “terceira via” seria a de conciliar as


ideologias opostas do socialismo e do liberalismo, propondo uma interferência
estatal moderada e adequada às particularidades de cada Estado.

Nesse sentido, Karin Bergit Jakobi e Márcia Carla Pereira Ribeiro sustentam
que:12

12
JACOBI, Karin Bergit; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. A análise econômica do direito e a regulação
do mercado de capitais [livro eletrônico]. São Paulo: Atlas, 2014. p. 69-70.
9

[...] o insucesso do modelo intervencionista social e socialista trouxe à tona a necessidade de


repensar a forma e a intensidade da intervenção no domínio econômico, bem como as
políticas públicas referentes à inclusão social e à repartição de rendas. Desse modo,
abandonou-se a planificação econômica socialista e a crescente assunção de
responsabilidades coletivas, sem, contudo, retroagir ao liberalismo puro, ou seja, sem deixar
de observar os ideais de proteção aos bens essenciais e à dignidade da pessoa humana.

O Estado passou, então, a atuar como ente garantidor e regulador da atividade econômica,
que voltou a se pautar nos princípios da livre-iniciativa e da liberdade de mercado, bem como
na desestatização das atividades econômicas e redução sistemática dos encargos sociais,
destinados a garantir o equilíbrio nas contas públicas. No entanto, não abandonou a
preocupação com o contexto social, nem deixou de atuar na promoção dos serviços públicos
essenciais à coletividade.

Voltando à obra em comento, Dardot e Laval afirmam que, como evidência


da dominação da nova razão neoliberal, o governo empresarial muitas vezes é
vendido como uma reinvenção da política de esquerda, quando, na realidade, o
governo empresarial era apenas um aprofundamento da política iniciada pelos
governos neoliberais dos anos 1980 (p. 299).

Em seguida, os autores comentam a mutação empresarial da ação pública


como fruto de uma política iniciada pelos governos neoliberais dos anos 1980,
passando por medidas conservadoras na Grã-Bretanha, no Canadá, Austrália, Nova
Zelândia, Dinamarca, Suécia e França (p. 299-300).

De acordo com os autores, a partir de 2007, após a eleição do presidente


francês Nicolas Sarkozy, desencadeou-se uma segunda fase, denominada fase de
aceleração, “com o nome de Revisão Geral das Políticas Públicas”, visando reduzir
gastos e melhorar a eficácia e qualidade do serviço público. Esse novo modelo
“conquistou muitos países” (p. 301).

Dizem os autores que o Banco Mundial e a OCDE, desde os anos 1990, já


haviam adotado medidas apoiando e reforçando a chamada “boa governança” (p.
301-2).

Os autores reconhecem que essa nova gestão pública que foi disseminada
mundialmente é muito eficaz para enfraquecer as “resistências éticas e políticas”,
1

difundindo “uma concepção utilitarista do homem que não poupa nenhum campo de
atividade” (p. 302).

Mesmo nos hospitais, escolas, universidades, tribunais e delegacias, o


modelo do governo empresarial passou a ser válido para orientar a ação pública e
social (p. 302-3).

Para os autores, a aplicação indiscriminada das regras da empresa privada


na “atividade judiciária, médica, social, cultural, educacional ou policial tem
consequências consideráveis sobre a maneira como são considerados os ‘clientes’
desses serviços” (p. 303).

Surge “Uma tecnologia de controle” na nova gestão estatal visando o


atingimento de metas e o controle dos agentes públicos, priorizando os resultados
até mesmo em detrimento das instituições democráticas (p. 304).

Dizem os autores que o controle contábil de determinadas atividades é uma


ilusão, na medida que a interpretação puramente numérica dos resultados pode se
contrapor à qualidade e a outros valores não quantificáveis do serviço público. 13 (p.
305).

No portal do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por exemplo, consta que


“As Metas Nacionais do Poder Judiciário representam o compromisso dos tribunais
brasileiros com o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, buscando proporcionar
à sociedade serviço mais célere, com maior eficiência e qualidade”
(https://www.cnj.jus.br/gestao-estrategica-e-planejamento/metas/).

13
Celso Antônio Bandeira de Melo ensina que não convém relegar à livre iniciativa as atividades
destinadas a satisfazer a coletividade em geral, qualificadas como serviços públicos. No entanto, de acordo com
a Constituição brasileira, ele classifica os serviços públicos em: i) de prestação obrigatória e exclusiva do Estado
(por exemplo, organizar e manter o Poder Judiciário, O ministério Público, a polícia civil, a polícia penal, a
policial militar; manter o serviço postal e correio aéreo nacional); ii) de prestação obrigatória, mediante
concessão, permissão ou autorização (radiodifusão sonora e de sons e imagens, por exemplo); iii) de prestação
obrigatória, mas não exclusiva do Estado; iv) de prestação não obrigatória, mas, não os prestando, o Estado
deverá efetuar a concessão ou permissão.
1

São inúmeras metas. Ilustrativamente, a meta 1 nacional, de acordo com o


art. 13 da Resolução n. 5, de 29.6.2020, do CNJ, consiste em “julgar quantidade
maior de processos de conhecimento do que os distribuídos no ano corrente,
excluídos os suspensos e sobrestados no ano corrente”.

Até que ponto essa tecnologia de controle adotada pelo “governo


empresarial” num serviço público essencial como a Justiça pode impactar a
qualidade e a segurança da tutela jurisdicional?

Arion Mazurkevic,14 em artigo denominado “A justiça transformada em


números”, afirma que:

Estes mecanismos de controle e de avaliação consideram quase que exclusivamente dados


estatísticos, com metas embasadas em parâmetros temporais e de produção numérica, sem
qualquer preocupação com o conteúdo dos processos e sua complexidade, muito menos com
a qualidade e o resultado efetivo da prestação jurisdicional […] Nesse ambiente de ‘números’,
os magistrados têm sido pressionados a adotar cada vez mais soluções ‘pragmáticas’, isso
sem conotação virtuosa, pois o seu objetivo não é a finalidade da justiça, mas sim a
‘sobrevivência’ ante a imposição dessas metas e dos efeitos negativos gerados pelo seu não
cumprimento.

Nesse ponto, com todo acerto, a obra identificou nitidamente o problema


dessa nova modalidade de gestão aplicada na prestação de serviços públicos
essenciais.

No final do capítulo, os autores discorrem sobre o “Gerencialismo e


democracia política”, salientando que “a tensão entre a centralização das instâncias
de regulação e auditoria e a suposta autonomia dos serviços submetidos à
concorrência acarreta efeitos perversos significativos”. Em síntese, afirmam que o
controle da atividade pública por meio de meros “indicadores sintéticos de
desempenho” corrói a confiança característica da relação entre as instituições
públicas e os sujeitos sociais e políticos (p. 308-9).

14
MAZURKEVIC, Arion. A justiça transformada em números. Disponível em:
<https://www.anamatra.org.br/artigos/31852-a-justica-transformada-em-numeros>. Acesso em: 11 abr. 2023.
1

3. Conclusão

Na obra em comento, por meio de um processo menos dogmático e mais


vinculado a uma investigação histórica, social e psicanalítica, os autores exploraram
as raízes e as ramificações do neoliberalismo ao longo do século XX.

A obra foi escrita numa linguagem técnico-científica e explora muito os


pensamentos de Karl Marx e Michel Foucault, dentre vários outros grandes nomes.
Desse modo, a leitura requer noções de política, história, filosofia e sociologia,
constituindo, assim, um desafio intelectual de grande peso. Atualmente o livro é de
fácil acesso, podendo ser adquirido na versão já traduzida para o português em
diversos sites, tanto no formato físico quanto eletrônico (e-book).

Os autores exploram as raízes e ramificações do pensamento neoliberal e do


capitalismo moderno, demonstrando que há uma nova racionalidade global
transformando profundamente a sociedade e atingindo todas as pessoas em suas
diversas relações sociais.

Especificamente no capítulo 8, intitulado “O governo empresarial”, os autores


demonstram que o Estado passou a se afastar seu papel protetivo para assumir a
função de agente regulador e avaliador a partir das ondas mundiais de privatização,
desregulamentação e diminuição de impostos, iniciadas anos 1980 sob influência do
pensamento neoliberal.

Na opinião dos autores, premido pela competição econômica mundial, o


Estado devia reduzir os custos administrativos e sociais. Ao conformar-se à lógica
de mercado, adotando o formato de “governo empresarial”, o Estado, por meio de
seu dirigente, fica sob o controle da comunidade financeira internacional e acaba
sendo instrumento de favorecimento dos interesses dos grandes credores e
investidores estrangeiros.
1

Com muito propriedade, os autores demonstram que, ao se reestruturar por


meio de privatizações de empresas públicas prestadores de serviços essenciais, o
Estado alterou significativamente sua própria concepção e passou a focar sua ação
na avaliação e regulação das relações “entre governo e sujeitos sociais”. O conceito
do termo governança, segundo os autores, passou a se confundir com o conceito da
própria soberania.

No capítulo em comento, os autores sustentam que, guiados pela lógica


empresarial da concorrência global, fortemente influenciados pelos grandes
oligopólios, os Estados passam a concorrer entre si pelos pelos investimentos
externos, revisando suas legislações e tomando decisões visando sempre maximizar
seus resultados. Afirmam também que essa nova “governança” se baseia no
postulado de que a gestão privada é mais eficaz que a administração pública.

Para os autores, esse processo acaba se tornando um fim em si mesmo, a


“nova razão do mundo”, concentrando um poder desmedido nas mãos do mercado
mundial, relegando a sociedade aos malefícios do dumping social e fiscal.

Umas das ideias centrais do capítulo 8, “O governo empresarial”, e até


mesmo de toda a obra, é que a disciplina neoliberal prioriza os interesses da classe
econômica dominante em detrimento da classe trabalhadora e da própria cidadania,
causando, assim, um verdadeiro retrocesso social.

Embora os argumentos dos autores estejam em consonância com a primazia


dos direitos humanos, a obra não propõe nenhuma solução específica para
efetivamente enfrentar os problemas da morosidade, ineficiência e corrupção na
gestão pública tradicional. Seria de grande valia uma proposta conciliadora entre as
posições extremas do socialismo e do neoliberalismo.

Isso, no entanto, não afeta o brilhantismo e a importância da obra, cujo


resultado consiste numa profunda análise do neoliberalismo, desfazendo mitos e
revelando uma nova racionalidade de mundo que realmente transforma as ações do
1

governo e a até a conduta de cada indivíduo, beneficiando os oligopólios em


detrimento dos direitos humanos de segunda dimensão.

REFERÊNCIAS

PINHEIRO, Armando Castelar; FUKASAKU, Kiichiro (Ed.). A privatização no Brasil: o


caso dos serviços de utilidade pública. Rio de Janeiro: Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social, 2000. 370 p. – Disponível em:
https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/2222/1/2000_A%20privatiza
%C3%A7%C3%A3o%20no%20Brasil_P.pdf. Acesso em: 2 de nov. de 2022.

JAKOBI, Karin Bergit; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. A análise econômica do


direito e a regulação do mercado de capitais [livro eletrônico] / Karin Bergit Jakobi,
Marcia Carla Pereira Ribeiro. – São Paulo: Atlas, 2014.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo / Celso Antônio
Bandeira de Mello. – 17ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Malheiros, 2004.

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