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A impossível neutralidade discursiva na práxis educacional e

a improbidade ideológica da Escola sem Partido


RENATO NUNES BITTENCOURT*

Resumo
O artigo aborda o cerceamento da liberdade de cátedra do professor na
realidade educacional brasileira mediante o projeto ideológico da Escola sem
Partido, que apregoa o fim do partidarismo político na atuação docente em
sala de aula. Contudo, o citado projeto mascara suas reais intenções, que é a
de eliminar da atuação do professor o seu papel de estimulador da reflexão
crítica sobre os problemas sociais de nossa realidade política, auxiliando
assim os estudantes a compreenderem as nossas contradições estruturais. A
ideologia da Escola sem Partido defende a neutralidade pedagógica, mas a
própria construção curricular já denota ausência de neutralidade, pois
diversos critérios e interesses ocultos se encontram subjacentes no currículo
pedagógico.
Palavras-chave: Ideologia; Neutralidade; Política; Neoliberalismo;
Currículo.

*
RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ; professor da
FACC-UFRJ.

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Prólogo desolação política para a necrofilia
A onda reacionária evidencia sua força fascista. Esse texto é então dedicado a
virulenta ao criminalizar professores todos aqueles que subvertem as
que fazem do espaço educacional uma consciências estudantis com ideias
resistência incondicional aos ditames contrárias ao sistema alienado da vida
arbitrários de um ilegítimo e temerário retrógrada dos reacionários, filisteus,
poder governamental corrupto que defensores de regimes militares e outros
prevarica a coisa pública em favor dos tipos humanos axiologicamente afins.
interesses privados da sua cúpula Educação ou barbárie.
criminosa. Nesse espírito de Introdução
perseguição aos atos de resistência
O exercício do magistério sofre, na
contra a opressão direitista, os espaços
atual configuração social brasileira,
educacionais, espaços políticos por
contínuos golpes contra sua dignidade
excelência, são vigiados pelos olhares
profissional. Desvalorização salarial,
de abutres dos delatores que,
desprestígio social, desamparo político,
intrinsecamente dominados por
assédio moral e constantes agressões
disposições ressentidas, não aceitam
das truculentas forças policiais ao
que os sujeitos ocupem as escolas e
serviço do Estado Plutocrático, dentre
universidades para a realização de
outros males até então irresolvíveis.
debates políticos, protestos e outros atos
Desponta agora a perda da autonomia
contestatórios do regime temerário em
intelectual do professor e o cerceamento
vigor. A ignorância reacionária,
das suas atividades educacionais
convertida em obtusa virtude, faz da
mediante a erupção de disposições
educação um caso de polícia. Toda
reacionárias de segmentos ideológicos
manifestação de insatisfação de
apoiados por partidos políticos
professores e de estudantes ao poder
desprovidos de efetivo compromisso
vigente é reprimida militarmente e
republicano. Essa ação orquestrada de
juridicamente, preparando o terreno da

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dissolução da autonomia do professor esfera privada, e a máquina pública,
que atende pelo nome de Escola sem imputada como burocrática, a fonte de
Partido expressa a submissão da práxis todos os prejuízos sociais. O empresário
educacional aos ditames neoliberais da é configurado como o catalizador de
privatização da vida e da todas as formas de progresso
mercantilização da cultura em nome da econômico, político e social na ordem
concretização inapelável do sistema de mercado:
capitalista e seu inerente processo de
formatação unidimensional da Numa economia de mercado o
consumidor é soberano. É ele que
existência, que se irmana cada vez mais
manda, e o empresário tem que se
com o fascismo. Em nome da suposta empenhar, no seu próprio interesse,
neutralidade epistemológica da em atender seus desejos da melhor
educação, a Escola sem Partido visa maneira possível [...] O empresário
criminalizar todo tipo de discurso bem-sucedido é aquele que
pedagógico imputado como sectário de consegue antever os futuros desejos
ideologia política ou religiosa, em favor dos consumidores, melhor do que
da preservação da pretensa liberdade de os seus competidores. Para o
consciência dos estudantes, afetados empresário, na qualidade de vassalo
pelo arbítrio tirânico dos professores do consumidor, é irrelevante se os
que fazem do seu exercício docente um desejos e necessidades dos
consumidores decorrem de uma
espaço de politização discursiva. No
escolha, racional ou emocional,
decorrer desse artigo pretendo moral ou imoral. O empresário
demonstrar o vínculo indissociável entre procura produzir o que o
Escola sem Partido, os paradigmas consumidor quer. Nesse sentido
neoliberais e o conservadorismo pode-se dizer que ele é amoral
ideológico que grassa a frágil (MISES, 2010, p. 20; p. 22)
democracia brasileira, cuja esfera
pública permanece dominada pela No âmbito educacional, o projeto
hegemonia de grandes cartéis neoliberal visa estabelecer uma gestão
midiáticos, pelos conglomerados pedagógica rigorosamente pragmatista,
empresariais, pelos latifundiários de modo a formar quadros técnicos
patriarcalistas e pelo autoritarismo de altamente especializados para a
corporações tradicionalmente atreladas organização dos seus escalões elevados,
aos dispositivos repressivos da máquina ao mesmo tempo em que visa precarizar
pública. as bases estruturais do sistema público
de educação, de modo a naturalizar nas
A educação sob a égide neoliberal consciências juvenis as divisões sociais
perpetradas pela ordem capitalista como
O pensamento neoliberal se caracteriza se esta fosse uma estrutura inevitável.
pela crítica ao que considera como o Segundo as críticas de Henry A. Giroux,
inchaço do Estado Social, mantenedor
dos serviços cruciais que garantem O conhecimento, como capital no
formalmente a estabilidade da esfera modelo empresarial, é privilegiado
como forma de investimento na
pública. Segundo seus ideólogos, ao
economia, mas parece ter pouco
poder estatal caberia apenas manter a valor quando está relacionado com
ordem pública para que os o poder de autodefinição, com
empreendimentos individuais obtenham responsabilidade social, ou com a
devida segurança. Toda iniciativa capacidade dos indivíduos de
proativa está associada diretamente à expandir o âmbito da liberdade, da

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justiça e das operações da necessidade de decodificar essas
democracia (GIROUX, 2003, p. informações travestidas de saberes para
61). que possa obter sucesso nas avaliações
Eis um dos motivos pelos quais as escolares e nos exames admissionais no
disciplinas de Filosofia e de Sociologia, ensino superior. Segundo Edgar Morin
que justamente estimulam uma A educação atual fornece
reflexividade crítica sobre os valores conhecimentos sem ensinar o que é
vigentes, as ideias, o sentido da ação o conhecimento. Ela não se
humana, as organizações sociopolíticas preocupa em conhecer o que é
e suas contradições, sofrem contínuas conhecer, ou seja, os dispositivos
fragmentações didáticas de modo a cognitivos, suas dificuldades, suas
empobrecer a qualidade do trabalho instabilidades, suas propensões ao
educacional dos seus docentes na era da erro, à ilusão. Isso porque todo
conhecimento implica risco de erros
espoliação neoliberal, inclusive sob o
e de ilusões (MORIN, 2013, p.
risco de retirada do currículo escolar.1 195).
Conforme argumenta Viviane Mosé,
A usual desvalorização institucional das
A fragmentação do pensamento e
disciplinas reflexivas se cristaliza no
do saber é o modo mais eficiente de
controle social, quer dizer, da
imaginário estudantil, que comumente
submissão de pessoas a um modelo identifica nesses conteúdos um
excludente de sociedade. Sem a momento de contragosto pessoal, já que
capacidade de relacionar a nesses saberes críticos o estudante é
experiência particular com o todo estimulado pedagogicamente a analisar
da vida, sem a capacidade de as bases sectárias de nossa formação
articular o todo da vida com um política, tarefa que exige de cada pessoa
projeto social mais amplo, sem a uma inevitável autoanálise de seu papel
capacidade de relacionar esse como ator social, revelando comumente
projeto social com o planeta e a suas contradições axiológicas e suas
vida, jovens e crianças terminam
feridas existenciais. Segundo Néstor
submetidos a processos e
engrenagens que os tornam tão
García Canclini,
pequenos e insignificantes que não A educação foi cedendo autonomia
se sentem potentes para transformar ao diminuir a importância da escola
aquilo que os oprime (MOSÉ, pública e laica e crescer o ensino
2013, p. 52). privado que, com frequência,
subordina o processo educacional
A carga horária excessiva de disciplinas
às aptidões de mercado e se
técnicas, como Matemática, Física ou preocupa mais em capacitar
Química, usualmente tecnicamente do que formar para
instrumentalizadas e desprovidas de aptidões culturais. Em vez de
análise epistemológica dos seus formar profissionais e
conteúdos, promove o embotamento pesquisadores para uma sociedade
crítico do estudante, que se encontra na do conhecimento, treina peritos
disciplinados (CANCLINI, 2008, p.
1 23).
Cabe ressaltar que em regimes autoritários
de outrora, orientados por lógicas A ideologia neoliberal, expressão cabal
econômicas distintas do projeto neoliberal, a da visão unidimensional do
desvalorização cultural da Filosofia e
Ciências Humanas também se configurava
empresariado na dinâmica econômica
como uma constante em favor do tecnicismo do capitalismo tardio, não apenas
profissionalizante. converte a experiência da cidadania

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como a capacidade do sujeito ampliar suas vantagens diferenciadas, num
seus atos de consumo, como também mundo globalizado no qual impera
faz da própria práxis educacional um um capitalismo cada vez mais
filão de lucros para os investidores, jovial, embora também feroz
(SIBILIA, 2012, p. 132).
direcionando a pauta pedagógica das
instituições de ensino conforme os A visão de mundo neoliberal defende
critérios da flexibilização, de modo a como fundamentais palavras de ordem o
atender a maior demanda possível de empreendedorismo e a meritocracia,
estudantes configurados como mas escamoteia as suas reais condições.
consumidores-clientes, que jamais Vejamos possíveis objeções a ambos os
podem sofrer qualquer retração em suas conceitos:
demandas pessoais. Segundo José
Carlos Libâneo, O discurso do empreendedorismo
mistifica a própria estruturação social
Quer-se subordinar os sistemas conflitante do regime capitalista,
educacionais à economia já que, no defendendo a ideia de que a inovação e
novo paradigma de produção, as a versatilidade são condições cruciais
novas tecnologias requerem para que ocorra o sucesso profissional
trabalhadores mais qualificados,
do sujeito em um mercado
com mais flexibilidade profissional
para atender novas demandas do extremamente autofágico e competitivo,
mercado de trabalho e com mais desprovido de qualquer consideração
espírito empreendedor para fazer humanista pelos indivíduos. Ainda de
frente à competitividade econômica acordo com as críticas de Paula Sibilia a
internacional (LIBÂNEO, 2015, p. tal ideário,
200)
Com a transferência dessa
Para tanto, são exigidas avaliações responsabilidade para os indivíduos
facilitadas, condições extremamente cada vez mais convertidos em
favoráveis aos estudantes para que eles consumidores e empresários de si
mesmos, propaga-se a crença de
não se sintam constrangidos por
que cada um pode e deveria ser
eventuais insucessos, que compreendem capaz não só de se capacitar, mas
o processo educativo não como um também de administrar sua carreira,
exercício de transformação pessoal que otimizando seus próprios recursos e
exige dedicação e disciplina intelectual, minimizando a necessidade de
mas apenas como a alavanca para o intervenção pública (SIBILIA,
futuro sucesso profissional. Paula 2012, p. 139).
Sibilia argumenta que
Uma vez que a sociedade capitalista
Na oferta educacional pressupõe, para o seu pleno
contemporânea busca-se oferecer funcionamento econômico, que exista
um serviço adequado a cada perfil uma grande massa humana, alheada dos
de público, proporcionando-lhe meios de produção, que venda por
recursos para que cada um possa necessidade de subsistência aos
triunfar nas árduas disputas de detentores dos mesmos a sua força de
mercado. Isso não é para todos,
trabalho mediante pagamento
como a lei, mas tem uma
distribuição desigual como o incompatível com os seus esforços
dinheiro: todos os consumidores metabólicos no desempenho das tarefas
querem ser distintos e únicos, profissionais exigidas, os ganhos
singulares, capazes de competir financeiros dessas realizações são
com os demais para se destacar com retidos, nessas condições, pelo

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empresariado e seus investidores modelo de vida imputado como o único
associados. Para Marli E. D. A. André, possível e, por conseguinte, o melhor;
nega-se assim o dimensionamento da
A escola, visto ser constitutiva da
consciência reflexiva para alternativas
práxis social, e não produtora desta,
terá refletidas no seu cotidiano as
societárias e políticas divergentes,
marcas contraditórias de um convergentes com um modo de vida
sistema que mercantiliza as mais sustentável.
relações, as pessoas e as coisas, ao
mesmo tempo em que mercantiliza O problema da politização da
a força de trabalho, geradora de educação
mais-valia (ANDRÉ, 1990, p. 171)
É conveniente que questões partidárias
Na lógica da administração privada, o não sejam inseridas na práxis
discurso do empreendedorismo gera pedagógica, evitando-se assim a
ainda falsas expectativas nos polarização propagandística de ideias
funcionários que aspiram ao rápido concernentes a uma dada associação
crescimento profissional na corporação, política. Contudo, isso não significa a
pois se a organização econômica anulação da reflexão política em sua
capitalista pressupõe a perpetuação das indissociável relação com a dimensão
disparidades sociais para que uma educacional, pois o processo
massa humana atue ao serviço da pedagógico é um ato social. Ocorre no
satisfação da elite plutocrática, nem discurso da Escola sem Partido uma
todos os sujeitos poderão vivenciar e tendenciosa confusão entre partidarismo
usufruir as benesses de uma possível e política, visando justamente retirar da
elevação social, malgrado as promessas dimensão educacional a necessária
em contrário. Nesse contexto, se todos análise dos fenômenos concretos da
os empreendedores se tornassem práxis política.
executivos, gestores, pessoas de
O projeto de Escola sem Partido, que
comando, quem atuaria como os seus
apregoa lutar contra a manifestação de
serviçais? Tal como argumenta
ideologias na educação é, ele mesmo,
Maurício Tragtenberg,
ideológico. Esse movimento apenas
Uma educação competitiva que se mascara os seus interesses reais na
preocupa em escolher o “melhor”, o despolitização da educação como forma
“primeiro da classe”, esquece de criar uma massa profissional
aquele que merece mais atenção: o alienada mediante sua adequação ao
“pior”, o “último da classe”. Ela tecnicismo, como também chancela os
reproduz, no plano da escola, as propósitos espoliativos de partidos
determinações socioeconômicas,
reacionários do espectro da direita
ela transforma o pobre num
desgraçado escolar, pune-o associado aos setores mais
diretamente com a reprovação e conservadores da sociedade civil
indiretamente tornando-o um tradicionalmente atrelada a uma agenda
evadido escolar (TRAGTENBERG, nitidamente retrógrada incompatível
2004, p. 203). com os paradigmas modernos da
laicidade política.
O economicismo educacional se
configura assim como uma ideologia Por outras palavras, os promotores da
que naturaliza as contradições Escola sem Partido pretendem excluir
estruturais do capitalismo e visa do debate educacional quaisquer temas
preparar o jovem educando para um usualmente associados ao espectro da

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esquerda para que as pautas direitistas judicialização. Uma práxis cultural
dos partidos interessados nessa esclarecida não hesita em debater
estigmatização da crítica política qualquer temática, dissolvendo os tabus
encontrem assim espaço livre para sua que envolvem determinados conteúdos
inoculação, visando degradar as já relegados ao esquecimento como forma
frágeis bases democráticas da sociedade justamente de se compreender os erros e
brasileira, de modo a favorecer a os acertos de dada experiência
hegemonia dos grupos políticos sociopolítica. Quando ocorre o
caracteristicamente obscurantistas e silenciamento da análise crítica em
adeptos do discurso truculento afiliado nome da pretensa harmonia pedagógica
ao fascismo. Conforme argumenta abre-se o caminho para a legitimação da
Tamires Gomes Sampaio, barbárie, pois as vozes de dissenso são
emudecidas e a unidade axiológica se
Esse projeto educacional expõe e torna o padrão por excelência. Segundo
protege os ideais conservadores e
Henry A. Giroux,
fundamentalistas, que sempre foram
usados para garantir a manutenção
O conhecimento que é privado de
do status social e econômico,
considerações éticas e políticas
consolidando um ensino meramente
oferece noções limitadas, se
técnico e despolitizado
alguma, de como as escolas
(SAMPAIO, 2016, p. 148).
deveriam educar os estudantes para
Os próprios partidos sectários da direita combater os limites opressivos da
obscurantista que lutam pela secção dominação baseada em gênero,
raça, classe e idade. Essa linguagem
violenta entre ensino e estofos políticos
também não proporciona as
reforçam, inevitavelmente, o condições pedagógicas para que os
entrelaçamento entre educação e estudantes envolvam-se
política. Por conseguinte, os ideólogos criticamente com o conhecimento
da Escola sem Partido ratificam a como uma ideologia profundamente
partidarização da escola, comprometida com questões e lutas
convenientemente aos seus interesses que dizem respeito à produção de
escusos. Portanto, em um estranho identidades, cultura, poder e
paradoxo, os defensores da Escola sem história. A educação é uma prática
Partido evidenciam afiliação aberta em moral e política, e sempre
relação aos partidos de agenda política pressupõe uma introdução e
preparação para formas específicas
reacionária. Vivemos assim um
de vida social, uma interpretação
renascimento, em terras tupiniquins, das particular das noções de
artimanhas macarthistas contra toda comunidade e daquilo que o futuro
atividade pedagógica imputada como pode trazer (GIROUX, 2003, p.
subversiva, ou seja, objetora do 61).
autoritarismo institucionalizado
vivamente presente em nosso cotidiano O projeto da Escola sem Partido ratifica
sociopolítico e dos imperativos a condição de pária do professor na
mercadológicos do capitalismo sociedade tecnocrática, como se o
monopolista, espoliador da coisa docente fosse o culpado por todos os
publica e da vivência cidadã. Nesse problemas estruturais de nossa vida
contexto, toda inserção de temáticas pública. É fato que existem muitos
culturalmente polêmicas, que contestem professores pedagogicamente
a estruturação normativa do status quo despreparados para o exercício
são passíveis de vituperação e de profissional, mas daí torná-los bodes

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expiatórios da degradação social é um do espectador de um
avilte, pois esses docentes são apenas a acontecimento.
superfície do problema cultural que nos
assola, jamais a causa fundamental. Esta II - O Professor não favorecerá,
se encontra na má gestão não prejudicará e não
governamental, nas ações indébitas dos constrangerá os alunos em razão
políticos prevaricadores da coisa de suas convicções políticas,
pública e na ação inescrupulosa de ideológicas, morais ou
segmentos da iniciativa privada que não religiosas, ou da falta delas.
hesitam em fazer com que as riquezas O professor, grosso modo, já é
estatais beneficiem seus interesses constrangido pela ideologia
particulares. Podemos então afirmar que mercadológica de adequação
a penalização do professorado decorre aos imperativos do alunado
de uma tentativa reativa de se afetar o para que facilite sua vida
lado mais fraco da estrutura social acadêmica. Na lógica
fragmentada, tal como ocorre capitalista vigente, o professor
usualmente na extrema virulência não encontra nem mesmo os
manifestada pelo homem médio contra meios para exercer esse
os praticantes de pequenos delitos, pretenso autoritarismo.
responsáveis por violações ínfimas do
tecido social, enquanto os atos III - O Professor não fará
degradantes dos grandes criminosos de propaganda político-partidária
colarinho branco permanecem em sala de aula nem incitará
comumente despercebidos pela opinião seus alunos a participar de
pública, assim como são manifestações, atos públicos e
constantemente absolvidos dos seus passeatas.
graves delitos contra a coisa pública e
até mesmo benquistos por grande Muitos estudantes encontram
parcela da população, que no fundo na figura do professor o
gostaria de ser também tal como essas exemplo intelectual de
figuras distintas. intervenção na ordem
sociopolítica. Quando as
Analisemos os “princípios motivações para participação
deontológicos” do projeto Escola sem em manifestações coletivas e
Partido para que possamos comentá-los afins são em honra de causas
criticamente: democráticas/emancipatórias,
I- O Professor não se aproveitará é um dever que o professor
da audiência cativa dos alunos, estimule seus estudantes para
para promover os seus próprios que se unam a tais
interesses, opiniões, concepções mobilizações. Se não luto por
ou preferências ideológicas, causas libertárias que
religiosas, morais, políticas e contestem a opressão, quem
partidárias. lutará por mim? Se até mesmo
mandatários políticos
Na formulação dos ideólogos, convocam mobilizações
os alunos são imputados como multitudinárias, por qual
figuras passivas que não motivo os professores não
participam autonomamente da poderiam fazê-lo? Quando a
aula, reproduzindo o discurso adesão dos alunos para uma

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manifestação política é desenvolver a pretensa “forma
voluntária, movida por ideais justa”, isto é, proporcional, na
democráticos, não há qualquer apresentação e
problema moral quanto a isso. problematização dos temas
A única exceção ocorreria se concernentes aos conteúdos
porventura o professor didáticos de sua disciplina.
exigisse participação dos Existem dados que são mais
alunos nesses atos para que enxutos, outros mais amplos.
eles obtenham notas em Não é possível se mensurar
avaliação ou registro de precisamente esse ansiado
presença na chamada. equilíbrio, tornando assim
Participação em passeatas não imprecisa qualquer tentativa
é atividade pedagógica fora de de controle.
sala, mas uma adesão coletiva
perante uma causa V- O Professor respeitará o
reivindicatória imputada como direito dos pais a que seus filhos
justa. recebam a educação moral que
esteja de acordo com suas
IV - Ao tratar de questões próprias convicções.
políticas, sócio-culturais e
Essa prédica reforça a noção
econômicas, o professor
doutrinária do papel
apresentará aos alunos, de forma
pedagógico do professor em
justa – isto é, com a mesma
incutir nos jovens valores
profundidade e seriedade –, as
morais, como se os mesmos
principais versões, teorias,
fossem indissociáveis dos
opiniões e perspectivas
conteúdos epistêmicos. Exceto
concorrentes a respeito.
em casos específicos de
Essa prédica não é original dos instituições de ensino
proponentes da Escola sem confessionais
Partido; na verdade convenientemente outorgados
encontramos versões similares legalmente, o professor deve
em diversos outros códigos seguir os parâmetros laicos da
deontológicos de conduta, constituição federal, inclusive
como, por exemplo, para a encontrando liberdade de
regulação da profissional cátedra para formular críticas
jornalística, que poucos a determinados valores morais
seguem, por sinal. Na teoria e/ou religiosos que porventura
formula-se uma bela regra atentem contra os direitos
normativa, mas na prática humanos e o progresso da
raramente se aplica. Se os consciência intelectual.
jornalistas cumprissem VI - O Professor não permitirá
rigorosamente os preceitos que os direitos assegurados nos
deontológicos da profissão, itens anteriores sejam violados
nossa esfera pública seria pela ação de estudantes ou
muito mais reflexiva, terceiros, dentro da sala de aula.
inteligente e contestadora do
status quo. Talvez um Essa prédica impõe ao
professor robotizado consiga professor um poder ao qual

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talvez não lhe pertença mais, que significa ser humano, intervir
pois continuamente espoliado no mundo, pois o protagonismo
de sua autoridade intelectual e humano é condicionado e não
dignidade profissional. determinado. Significa, também,
reconhecer que as escolas e outros
Conforme o planejamento educacional espaços culturais não podem
estabelecido pelos ideólogos da Escola abstrair-se das condições
sem Partido, há distinção epistêmica socioculturais e econômicos de seus
entre educação e instrução, cabendo aos habitantes, de suas famílias e de
pais a primeira e aos professores a suas comunidades. A educação
segunda, ou seja, apenas a transmissão política também significa ensinar
aos estudantes a correr riscos, fazer
objetiva dos conteúdos pedagógicos
perguntas, desafiar aqueles no
concernentes a uma dada disciplina para poder, honrar tradições críticas e ser
o seu alunado. A ignorância acerca do reflexivo a respeito da forma como
que é a essência da experiência a autoridade é utilizada na sala de
educacional pelos signatários desse aula e em outros espaços
projeto reacionário gera a confusão pedagógicos. Uma educação
entre as instâncias citadas. Educação é política propicia a oportunidade
cultivar, formar, construir, de modo a para que os estudantes não apenas
realizar no sujeito sua capacidade de se expressem de forma crítica, mas
agir autonomamente como ator social para que alterem a estrutura de
em suas mais diversas segmentações. participação e o horizonte de debate
pelo qual suas identidades, seus
Por conseguinte, não cabe apenas aos
valores e seus desejos são
pais essa tarefa, mas também a todos os moldados. Uma educação política
profissionais pedagógicos em seus constrói condições pedagógicas
afazeres didáticos com seus estudantes. para capacitar os estudantes para
A tacanha compreensão sobre a entenderem como o poder opera
experiência da educação pela ideologia sobre eles, através deles e por eles,
da Escola sem Partido visa enfatizar para construir e ampliar seu papel
acima de tudo o seu aspecto normativo, como cidadãos críticos (GIROUX,
como se tal dispositivo fosse um 2003, p. 161).
mecanismo de controle sobre a Os signatários da Escola sem Partido
subjetividade do jovem, incutindo-lhe representam os aspectos mais grotescos
valores cívicos e morais convenientes da degradação política brasileira,
ao status quo. Ao propor separar a apresentando uma agenda social
educação da instrução, o discurso nitidamente reacionária, pois contrária
doutrinário da Escola sem Partido aos avanços paulatinos das pautas
estabelece um processo análogo da libertárias concernentes a um Estado
divisão técnica do trabalho na dimensão laico, ainda que formalmente. As ditas
pedagógica, compartimentando as ações bancadas da bala e da bíblia, regidas
em estatutos estanques sem qualquer pelo sectarismo e pela truculência, são
diálogo, favorecendo assim a grandes defensores desse projeto
atomização social e a cisão política, ideológico, circunstância que evidencia
ainda que defenda o contrário. Para o perigo para a democracia que esses
Henry A. Giroux, segmentos políticos representam para a
A educação política significa esfera pública e seus efeitos deletérios
reconhecer que a educação é no progresso educacional brasileiro. Em
política porque é diretiva e dirige-se contraponto a tal dispositivo, Fernando
a uma natureza inacabada daquilo Savater defende a tese de que

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O ensino deve ser tanto pluralista qualquer vergonha, pois a onda
quanto a própria sociedade, e conservadora inoculada no tecido social
convém que nela possam encontrar chancela os seus pronunciamentos
lugar estilos e tendências diferentes autoritários.
[...] A criança vai à escola para se
pôr em contato om o saber de sua Os sectários desse disparate educacional
época, não para ver confirmadas as fingem não reconhecer que inexiste
opiniões de sua família qualquer pretensa neutralidade
(SAVATER, 2012, p. 163-164). discursiva, quimera idealista que
A cada nova geração que passa é mascara as bases concretas da produção
possível percebermos que ocorrem social do conhecimento. Essa questão
contínuas aberturas acerca da aceitação também se manifesta em setores de
dos padrões de comportamento outrora grande impacto na ordenança social,
considerados destoantes dos padrões como a atividade midiática e a atividade
normativos estabelecidos, assim como científica, ambas desprovidas de
mudanças nas concepções sociais, qualquer neutralidade em seus ofícios.
sexuais, políticas, mais abrangentes e Em ambos os casos é o interesse que se
democráticas, circunstância positiva que potencializa como o motor das ações
exige a reconfiguração dos conteúdos dos seus agentes, mesmo que movidos
pedagógicos. No entanto, contra todos pelas intenções mais nobres.
os avanços culturais que esclarecem a
consciência humana e favorecem a sua Assim como não existe saber
abertura intelectual para a diversidade e desinteressado, também não existe ação
a afirmação das diferenças axiológicas, desinteressada. Mesmo a defesa
o espírito reacionário evidencia incondicional da neutralidade
claramente sua ausência de axiológica já se configura uma tomada
neutralidade, ao pretender impor um de decisão, uma escolha singular. Exigir
modelo discursivo de verdade para a neutralidade de alguém, portanto,
sociedade inteira, sem respeitar sua denota tendenciosidade. Somente o
pluralidade cultural e seus direitos reacionarismo temerário, certamente por
cidadãos, seja na religião (a hegemonia má fé e tacanhez intelectual, insiste
do Deus cristão), seja na ordem familiar nessa proposta indecente. O bom senso
(a biparental), seja na questão da determina, nessas condições, que não se
sexualidade (estigmatização de todas as exija neutralidade de ninguém, pois
práticas consideradas “antinaturais”, assim se evita mistificações ideológicas
pois contrárias aos mandamentos geradoras de grandes problemas
eternos de “Deus”), seja na política concretos. Por exemplo, no plano das
(legitimação do sistema patriarcalista, relações internacionais, está
no qual a mulher não possui visibilidade provadíssimo que mesmo países
e dignidade social e a propriedade proclamados politicamente neutros que
privada é imputada como um bem são flexíveis em suas legislações
sagrado), seja na economia (glorificação bancárias (paraísos fiscais) favorecem a
do empreendedorismo, da desregulação satisfação de interesses particulares,
do mercado e da meritocracia), seja na subjetivos, de países, grupos
segurança pública (criminalizando a empresariais ou pessoas implicadas em
pobreza e estabelecendo visões crimes e transações desonestas. Por
maniqueístas sobre as contradições conseguinte, a ausência de
sociais). Por conseguinte, o espírito posicionamento axiológico legitima a
direitista ousa afirmar seu ideário sem barbárie, a violência, o delito.

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A rigor, todo conhecimento educacional demonstra sua atuação proativa em
é manipulado pelo professor que favor desse processo ótimo de
organiza e planeja as suas aulas e desenvolvimento das capacidades
textos-base, o que cabe investigar é se intelectuais. Se porventura
tal processo de manipulação é postulássemos a absurda existência de
ideológico ou não, isto é, se visa professores desprovidos desse objetivo
esclarecer os agentes sociais sobre as emancipatório, o docente guiado pelos
contradições intrínsecas das relações princípios do formalismo da
sociais ou se ratifica o status quo, neutralidade se assemelharia a uma
naturalizando piamente suas bases máquina propagadora de conteúdos,
autoritárias como se fossem sem qualquer humanidade na criação do
efetivamente democráticas. Segundo discurso pedagógico. A natureza
Louis Althusser, dialética do processo educacional
evidencia que não apenas o professor
É pela aprendizagem de alguns
anseia pela mudança na maneira pela
saberes contidos na inculcação
maciça da ideologia da classe
qual o estudante compreende a
dominante que, em grande parte, realidade concreta, como também ele
são reproduzidas as relações de próprio se modifica constantemente em
produção de uma formação social suas múltiplas dimensões existenciais a
capitalista, ou seja, as relações entre partir das suas experiências
exploradores e explorados, e entre educacionais. Conforme argumenta
explorados a exploradores. Os Henry A. Giroux,
mecanismos que produzem esse
resultado vital para o regime Os educadores e pais terão que
capitalista são naturalmente passar a encarar a escola não como
encobertos e dissimulados por uma neutra nem objetiva, mas sim como
ideologia da escola universalmente uma construção social que
aceita, que é uma das formas incorpora interesses e suposições
essenciais da ideologia burguesa particulares [...] O conhecimento
dominante: uma ideologia que torna-se importante na medida em
representa a escola como neutra, que ajuda os seres humanos a
desprovida de ideologia (uma vez compreenderem não apenas as
que é leiga), aonde os professores, suposições embutidas em sua forma
respeitosos da “consciência” e da e conteúdo, mas também os
“liberdade” das crianças que lhes processos através dos quais ele é
são confiadas (com toda confiança) produzido, apropriado e
pelos “pais” (que por sua vez são transformado dentro de ambientes
também livres, isto é, proprietários sociais e históricos específicos
de seus filhos), conduzem-nas à (GIROUX, 1997, p. 39).
liberdade, à moralidade, à A educação submetida ao crivo do
responsabilidade adulta pelo seu capital neoliberal desprestigia a
exemplo, conhecimentos, literatura
atividade docente, fazendo-a seguir
e virtudes “libertárias”
(ALTHUSSER, 1985, p. 80). critérios mercadológicos de otimização
do tempo, resultados positivos e
O professor comprometido eficiência didática. O erro e o fracasso,
pedagogicamente com a formação de eventos imprescindíveis para a
um coletivo de estudantes formação crítica do ser humano na sua
intelectualmente autônomos, reflexivos, progressiva superação de limitações
dotados de senso crítico, quer que eles pessoais, são descaracterizados. O
assim o sejam, circunstância que professor deve ainda satisfazer os

128
imperativos estudantis tal como fossem virulento que perpassa reacionárias
transações comerciais, perpetuando o organizações direitistas não fica nada a
infantilismo cultural próprio de nossa dever aos grupos fascistas que fazem da
conjuntura social caracteristicamente truculência e do autoritarismo as suas
narcísica. De acordo com Beatriz Sarlo, bandeiras guerreiras. Fernando Savater
indaga reflexivamente:
Quando a administração
educacional perde poder e recursos, A educação deve preparar gente
os grandes ministros da educação apta a competir no mercado de
são, na verdade, os gerentes e trabalho ou formar homens
programadores do mercado, cujos completos? Deve dar ênfase à
valores não incentivam o autonomia de cada indivíduo, com
surgimento de uma sociedade de frequência crítica e dissidente, ou à
cidadãos iguais e sim o de uma rede coesão social? Deve desenvolver a
de consumidores fiéis (SARLO, originalidade inovadora ou manter a
2005, p. 101-102). identidade tradicional do grupo?
Atendem à eficácia prática ou
Baixos salários, assédio moral apostam no risco criador?
constante, precarização das condições Reproduzirá a ordem existente ou
trabalhistas, diversas condições instruirá os rebeldes que possam
degradantes são a regra do cotidiano derrubá-la? (SAVATER, 2012, p.
17).
profissional do professor, cada vez mais
desestimulado a desenvolver uma Quando o nome de Paulo Freire é
carreira inovadora e proativa. A difamado pela ideologia da Escola sem
violência concreta e a violência Partido como um “doutrinador
simbólica se conjugam na alienação marxista”, anulando todas as suas
existencial do professor. Nesse contribuições irrefutáveis
contexto, o cerceamento da autonomia internacionalmente reconhecidas para
didática do professor decorrente da os estudos sobre filosofia da educação e
concretização do projeto normativo da temas conexos, fica cada vez mais
Escola sem Partido torna o docente evidenciado o caráter obscurantista que
ainda mais espoliado pelo sectarismo do movimenta as ações virulentas desse
status quo, refratário ao processo de projeto antidemocrático. Paulo Freire
esclarecimento intelectual que é empreendeu diversos trabalhos
resultado direto da livre iniciativa para educacionais fundamentais para a
pensar de todos os sujeitos inseridos no alfabetização de massas camponesas e
mundo educacional. Não apenas outros trabalhadores subalternos de
submetido ao crivo do mercado, que sociedades politicamente
exige do professor a transmissão de conservadoras, e depreciar o seu legado
conteúdos adequados ao espírito do pedagógico sem qualquer análise
capitalismo para tornar seus estudantes rigorosa do mesmo revela a natureza
mais preparados para o processo ressentida dos seus detratores. Paulo
altamente competitivo e imperdoável da Freire, em suas colocações
sociedade administrada, mas também ao epistemologicamente extemporâneas,
silenciamento do discurso imputado afirma que
como subversivo pelos detratores A sociedade alienada não tem
defensores da soberania do mercado consciência de seu próprio existir.
como princípio dogmático. O quadro se Um profissional alienado é um ser
revela tenebroso para a frágil inautêntico. Seu pensar não está
democracia vigente, pois o discurso comprometido consigo mesmo, não

129
é responsável. O ser alienado não A ausência do debate isonômico entre
olha para a realidade com critério as instâncias da dimensão educacional
pessoal, mas com olhos alheios ratifica a lógica autoritária de nossa
(FREIRE, 1983, p. 35). organização social e seu engessamento
O currículo escolar não é estabelecido hierárquico, gerando contínuos focos de
de maneira neutra pelos tecnocratas das tensão no cotidiano escolar. Talvez haja
secretarias de ensino, reproduzindo medo, da parte dos mandatários
antes os seus anseios ideológicos. pedagógicos, em realizar esse processo
Dependendo das circunstâncias dialógico, por considerarem que assim o
funcionais, poucos professores poder burocrático da direção de ensino
encontram flexibilidade pedagógica perderia sua autoridade e sua força
para dobrarem a rigidez desses centralizadora. Nessas condições, é
parâmetros curriculares, uma vez que os imprescindível que haja uma
processos de ensino ficam submetidos progressiva mudança de mentalidade na
ao crivo das avaliações de admissão ao gestão educacional, em prol do
ensino superior, e determinados estabelecimento de uma organização
conteúdos são privilegiados em escolar em conformidade aos
detrimento de muitos outros. Conforme parâmetros democráticos desejados.
argumenta Michael Apple, Segundo Moacir Gadotti,

O currículo nunca é apenas um A educação é atualmente um lugar


conjunto neutro de conhecimentos, onde toda a nossa sociedade se
que de algum modo aparece nos interroga a respeito dela mesma, se
textos e nas salas de aula de uma debate a se busca; educar é
nação. Ele é sempre parte de uma reproduzir ou transformar, repetir
tradição seletiva, resultado da servilmente algo que foi, optar pela
seleção de alguém, da visão de segurança do conformismo, pela
algum grupo acerca do que seja fidelidade à tradição ou, ao
conhecimento legítimo (APPLE, contrário, ficar frente à ordem
2013, p. 71). estabelecida e correr o risco da
aventura; querer que o passado
O currículo é assim um dispositivo configure todo o futuro ou partir
conservador, pois concede pouca dele para construir outra coisa
abertura para a inovação e para o debate (GADOTTI, 1987, p. 18).
da comunidade acadêmica acerca do
mesmo. Com efeito, uma das partes Os estabelecimentos de ensino, segundo
interessadas na práxis educacional, os a conceituação de Althusser, são
estudantes, não participam desse aparelhos ideológicos de Estado,
processo, circunstância que demonstra a instrumentos utilizados pelo poder
ausência de genuínos traços estabelecido para transmitir a visão
democráticos na escolha dos conteúdos hegemônica de integração social e
curriculares e da própria gestão assim suavizar a dominação politica,
educacional como um todo. A intrinsecamente repressiva, sobre a
politização dos processos pedagógicos estrutura social. Não obstante seu
exige que tanto os diretores como os projeto de esclarecimento científico em
professores e os alunos dialoguem favor do progresso técnico e seus frutos
abertamente sobre as demandas sociais, a dimensão educacional
educacionais da instituição de ensino, moderna se configurou como uma
inclusive sobre os saberes formativos estrutura de poder verticalizado e
componentes das estruturas curriculares. burocratizado, impedindo assim sua

130
abertura política para os diversos A educação escolar tem a tarefa de
segmentos sociais que dela participam. promover a apropriação de saberes,
Nos períodos de exceção política em procedimentos, atitudes e valores
que o autoritarismo ditatorial regulava a por parte dos alunos, pela ação
mediadora dos professores e pela
práxis organizacional das instituições de
organização e gestão da escola. A
ensino com sua ideologia da defesa da
principal função social e
segurança nacional e da necessidade de pedagógica da escola é a de
se criar funcionários especializados para assegurar o desenvolvimento das
a perpetuação do establishment, o capacidades cognitivas, operativas,
patrulhamento sobre o cotidiano dos sociais e morais pelo seu empenho
estabelecimentos educacionais se tornou na dinamização do currículo, no
ainda mais asfixiante, pois a lógica do desenvolvimento dos processos do
poder consistia justamente em eliminar pensar, na formação da cidadania
todo traço de dissenso, em nome da participativa e na formação ética
ordem e do progresso, e os conteúdos (LIBÂNEO, 2015, p. 115).
pedagógicos que estimulavam a Como o processo de desenvolvimento
reflexão sobre a própria natureza do educacional mediado pela instituição de
poder, da autoridade, da verdade, da ensino engloba uma série de atividades
ideologia sofreram transformações intelectuais que estimulam diversas
epistemológicas de modo a se tornarem potencialidades da subjetividade do
inofensivas para o sistema vigente. estudante, em suas dimensões culturais,
Maurício Mogilka considera que societárias, políticas, psicológicas,
Se é correto que a democratização axiológicas etc., é assim uma
da relação pedagógica não é absurdidade o postulado da neutralidade
condição suficiente para a do processo de transmissão de
democratização social, ela é, conteúdos pedagógicos, pois diversos
contudo, condição essencial para a valores e ideais se mesclam
estruturação de uma subjetividade inevitavelmente nessa dimensão
autônoma, pois processos formativa. Oxalá a pretensão normativa
autoritários não conseguem servir
da Escola sem Partido, apesar de seu
de base para os resultados
democráticos (MOGILKA, 2003, p.
profundo apelo nas camadas
30). reacionárias da sociedade brasileira, se
torne em breve apenas mais uma
Todo processo educacional nas tenebrosa página virada de nossa
instituições de ensino é inevitavelmente trajetória educacional, mas para que tal
um exercício político não apenas por se superação se efetive é imprescindível
realizar no espaço social da que os professores, os estudantes e toda
convivência, a esfera pública, mas a sociedade civil comprometida com a
também porque é uma preparação democracia se unam em prol da defesa
intelectual para que o estudante venha a incondicional da educação livre das
ser um participante ativo na organização contingências reativas contrárias ao
social, não apenas como profissional, livre pensar.
mas como sujeito político cônscio de
sua cidadania, muitas vezes Considerações finais
escamoteada, mas que não pode jamais
A formação do educando pressupõe o
ser suprimida, não obstante todo
debate acerca de todas as temáticas
reacionarismo contrário. De acordo com
pertinentes na conjuntura sociopolítica
José Carlos Libâneo,
em vigor. O lento processo de

131
democratização social brasileiro, ainda estudantes restaura os procedimentos
que às duras penas, traz para a dimensão escusos do macarthismo, gerando um
educacional a reflexão inevitável sobre clima de insegurança sobre a produção
as questões de gênero, sobre o caráter social do conhecimento na sua
histórico da família, sobre a construção expressão educacional. É função
social da identidade, suprimindo os seus pedagógica de cada educador instigar o
arcaicos traços metafísicos e atemporais desenvolvimento da consciência política
que somente chancelavam o discurso em cada estudante, inclusive
unívoco favorável ao modelo de vida estimulando na prática a participação
normativo dominante que impede o em eventos emancipatórios. Nessas
florescimento da diferença. Reflexão condições, essa estultícia ideológica da
sobre temas imputados como Escola sem Partido é uma violação da
socialmente polêmicos, como tabus consciência crítica do professor que
milenares, não é doutrinação, o espaço ousa debater temas progressistas para os
educacional da análise crítica não pode seus educandos justamente por impor
ser controlado pela política do silêncio, como diretrizes normativas a exclusão
que gera consenso não por convencer, de qualquer tema que seja contrário ao
por debater, por intercomunicar, mas credo pessoal dos estudantes. Por
por optar autoritariamente pelo vazio conseguinte, tal projeto ideológico é que
discursivo. Se porventura todos os é a verdadeira instância assediadora, e
temas considerados como tabus pelo não o contrário, tornando-se um perigo
status quo fossem descartados na para a construção de uma sociedade
dimensão educacional, científica e democrática na sua luta contra o
cultural acreditaríamos ainda ser a Terra fascismo institucionalizado. A
uma estrutura plana e o centro do despolitização educacional empreendida
universo. Nessas condições, todo pela Escola sem Partido visa subjugar as
progresso técnico não apenas pressupõe consciências subversivas, dominando-as
progresso cultural, mas, acima de tudo, para que aceitem docilmente o choque
liberdade para reflexão, mesmo que tal de ordem do autoritarismo do mercado e
exercício cultural afete as subjetividades seu dispositivo destruidor dos direitos
pessoais refratárias a qualquer sociais adquiridos com luta e sangue
orientação axiológica divergente da sua. dos cidadãos.
O respeito incondicional pela dignidade
humana pressupõe a liberdade de Não será de se estranhar se, no futuro,
expressão, desde que essa não atente ideólogos proeminentes da Escola sem
contra a consciência de outrem, e a Partido lançarem candidaturas a cargos
problematização de temas acerca de políticos, evidenciando seu abjeto
questões que não nos interessam ou das oportunismo, para que possam nas
quais não concordamos não significa a estruturas parlamentares defenderem
violação de nossa dignidade pessoal se seus objetivos escusos contra a
porventura estivermos no espaço por autonomia da práxis educacional. Seria
excelência para o debate amplo e melhor se os filisteus da Escola sem
irrestrito, o espaço educacional, e se Partido pelejassem pela efetivação da
também não ousarmos impor nossas laicidade na república brasileira.
convicções a outrem. O projeto da Terminamos assim o texto o com as
Escola sem Partido e seu histérico contundentes palavras de Paulo Freire:
combate contra a dita doutrinação “A educação é um ato de amor, por isso
política sobre as subjetividades dos um ato de coragem. Não pode temer o
debate. A análise da realidade não pode

132
fugir à discussão criadora, sob pena de LIBÂNEO, José Carlos. Organização e gestão
ser uma farsa” (FREIRE, 2006, p. 104). da escola: teoria e prática. São Paulo: Heccus,
2015.
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