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Resumo
O artigo aborda o grande descompasso ético entre a teoria e a prática
na experiência religiosa do devoto cristão tradicional, muitas vezes
incapaz de aplicar rigorosamente os preceitos evangélicos propostos
por Jesus de Nazaré por justamente não vivenciar em seu âmago a
intensidade dessa doutrina plena de beatitude e amor. Desse modo,
argumentamos que a essência do modo de ser crístico raramente se
realiza em nossa conjuntura civilizacional, não obstante bilhões de
indivíduos se denominarem como cristãos.
Palavras-chave: Cristianismo; Beatitude; Hipocrisia; Estado;
Ressentimento.
*
RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ; Professor do
Curso de Especialização em Pesquisa de Mercado e Opinião Pública-UERJ, da Faculdade CCAA e da
Faculdade Duque de Caxias-UNIESP.
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Introdução algumas passagens bíblicas e das
contribuições de pensadores
Determinadas épocas do ano estimulam
fundamentais que refletiram sobre a
a reflexão sobre os valores
consciência moderna e suas
predominantes que fundamentam nossa
idiossincrasias sociais, veremos o
estruturação social, de maneiro que
quanto a grande massa de sectários
possamos assim produzir um
cristãos vive afastada efetivamente das
diagnóstico cultural sobre nossa época e
prédicas evangélicas originárias.
nosso modo de viver. O Natal, data que
no mundo cristão celebra
simbolicamente o nascimento de Jesus
A questão do valor da vida
de Nazaré, é uma delas. O Natal, que
originalmente afirma a esperança de Muitos cristãos defendem de maneira
renovação da vida a cada ano que se talvez automática o valor da vida como
inicia, se afastou dos seus propósitos uma categoria intocável, de modo que
sagrados ao se tornar acima de tudo refutam a prática do aborto e da
uma efeméride capitalista de defesa do eutanásia, não importando em quais
consumismo e dos seus efeitos circunstâncias as mesmas são
deletérios nas relações humanas. Se o realizadas. Nesse contexto, nada mais
Natal se tornou um dispositivo fetichista fazem do que adotar uma perspectiva
de consumo, o que teríamos a dizer extensiva da vida, pautada na mera
sobre a estrutura axiológica cristã que quantificação do tempo, e não na sua
sustenta hegemonicamente nossa ordem qualidade. Há ocasiões em que o aborto
civilizacional? deve ser praticado sem qualquer aflição
moral por parte da mãe (em caso de
A doutrina evangélica de Jesus de estupro ou risco de morte para a
Nazaré, se porventura fosse aplicada progenitora), assim como em casos de
rigorosamente pelos fieis cristãos que degradação absoluta da vida do enfermo
tanto se pavoneiam como tais perante o em estado terminal ou irreversível, a
mundo, certamente promoveria um eutanásia seria uma saída para o término
melhoramento da condição humana em do tormento moral desse grande mal-
sua organização social e uma maneira estar existencial. O que podemos
mais amorosa de se relacionar não afirmar categoricamente é que cada caso
apenas com o próximo, mas com o merece ser analisado em sua máxima
próprio meio ambiente. Todavia, entre singularidade, evitando-se a expressão
teoria e prática existe uma cisão “nunca”: “nunca farei isso”, “nunca
fundamental, e diversas contradições aceitarei isso”. Contudo, se muitos
marcam o que chamamos usualmente de cristãos condenam peremptoriamente o
“vida cristã”. A partir da exegese de
Esse talvez seja o mais blasfemo pecado povo, queriam era fazer-se admirar
cometido pelos cristãos, pois esses e censurar publicamente os
sujeitos, desprovidos de onisciência, dissidentes, não ensinando senão
ousam proferir juízos que somente coisas novas e insólitas para
caberiam a Deus, fonte de misericórdia deixarem o vulgo maravilhado. Daí
surgirem grandes contendas, invejas
e de amor que certamente não age e ódio, que nem o correr do tempo
movido por parâmetros tacanhos de foi capaz de apagar (ESPINOSA,
avaliação. Vejamos outras sublimes 2003, p. 9)
colocações de Espinosa:
Sob uma perspectiva escatológica,
Inúmeras vezes fiquei espantado talvez sejam esses cristãos imputados 70
por ver homens que se orgulham como puros e perfeitos que seriam os
por professar a Religião cristã, ou primeiros condenados ao fogo infernal,
seja, o amor, a alegria, a paz, a pois eles se julgam superiores aos
continência e a lealdade para com demais por conta de sua pretensa pureza
todos, combaterem-se com tal espiritual, considerando todo o resto do
ferocidade e manifestarem mundo a escória por excelência que
cotidianamente uns para com os merece toda sorte de sofrimentos.
outros um ódio tão exacerbado que Segundo Nietzsche
se torna mais fácil reconhecer a sua
fé por estes do que por aqueles - Não nos devemos deixar enganar:
sentimentos. De fato, há muito que “Não julguem” [Mateus, 7,1] dizem
as coisas chegaram a um ponto tal eles, mas mandam ao inferno tudo o
que é quase impossível saber se que lhes fica no caminho. Fazendo
alguém é cristão, turco, judeu ou com que Deus julgue, eles próprios
pagão, a não ser pelo seu vestuário, julgam; glorificando a Deus,
pelo culto que pratica, por glorificam a si mesmos;
frequentar esta ou aquela igreja, ou promovendo as virtudes de que são
finalmente porque perfilha esta ou capazes – mais ainda, de que têm
aquela opinião e costuma jurar necessidade para ficar no topo -,
pelas palavras deste ou daquele dão a si mesmos a grande aparência
mestre. Quanto ao resto, todos de pelejar pela virtude, de lutar pelo
levam a mesma vida. Procurando predomínio da virtude
então a causa desse mal, conclui (NIETZSCHE, 2007, p. 52)
que ele se deve, sem sombra de
dúvidas, a considerarem-se os A elaboração da ideia da existência do
cargos da Igreja como títulos de Inferno como local de expiação da
nobreza, os seus ofícios como postulada iniquidade seria uma das mais
benefícios, e consistir a Religião, grotescas criações do espírito de
para o vulgo, em cumular de honras ressentimento contra a divergência,
os pastores. Com efeito, assim que contra todo tipo de ação que vai de
começou na Igreja esse abuso, se encontro aos interesses e valores
apoderou dos piores homens um teológicos instituídos dogmaticamente
enorme desejo de exercer os pela estrutura dominante dos sacerdotes.
sagrados ofícios; logo o amor de É a partir de tal perspectiva que
propagar a divina Religião se
transformou em sórdida avareza e
Nietzsche ironiza o fato de Dante
ambição, de tal maneira que o Alighieri ter colocado no portal do
próprio templo degenerou em “Inferno” de sua Divina Comédia a
teatro, onde não mais se veneravam inscrição “Também a mim criou o
doutores da Igreja, mas oradores eterno amor” [DANTE ALIGHIERI,
que, em vez de quererem instruir o “Inferno”, III, vs. 5-6], quando na
os pés de Jesus com óleo e enxuga-os Não julgueis que vim trazer paz a
com seus cabelos e o Nazareno diz que Terra; não vim trazer-lhe paz, mas
seus numerosos pecados lhe são espada; porque vim separar o
perdoados porque ele demonstrou muito homem contra seu pai, e a filha
amor (Lc, 7, 47). contra sua mãe, e a nora contra sua
sogra; e os inimigos do homem
Um Deus que não pode perdoar os serão os seus mesmos domésticos
pecados mais ignominiosos não é um (Mt, 10, 34-36).
ser divino pleno. Nesse contexto,
podemos afirmar que Deus não ama o A vivência crística desperta no
pecador e odeia o pecado, em verdade indivíduo a capacidade de se emancipar 72
Deus ama o pecado do pecador, pois dos seus valores mais tradicionais,
somente assim o homem pode abrindo-se ao novo, ao desconhecido,
estabelecer a conexão imanente com sua ao insólito, de modo que seus
essência sagrada mediante a consciência preconceitos são eliminados de sua
de seu afastamento da plenitude divina. consciência. Se a família de sangue
Esse é o grande paradoxo da impede a libertação existencial do
experiência do pecado, pois ao mesmo indivíduo imerso na beatitude
tempo em que o pecador supostamente evangélica, a sua família espiritual, em
se distancia do âmago divino ao plena sintonia com suas aspirações
transgredir os mandamentos sagrados, existenciais, lhe promoverá a
ele também afirma assim sua própria emancipação.
singularidade existencial e sua
autonomia, tornando-se, ainda, O discurso reacionário usualmente
merecedor da misericórdia divina que defende uma concepção de família
tudo absolve em seu infinito amor. pautada numa pretensa ordem natural,
como se esta fosse a única possível ou a
única aceitável, excluindo todas as
Família demais de sua categorização. Nesse
contexto, a verdadeira família seria a
Muitos cristãos, desprovidos de senso
biparental, heterossexual, na qual a
histórico, desconhecem que a família é perpetuação da espécie humana se torna
uma construção social, de modo que os
o fim maior. Diversos grupamentos
laços familiares não são estruturas religiosos incrustrados na política
atemporais, mas configurações afetivas defendem ferrenhamente os princípios
que se modificam no decorrer das eras a moralistas dessa organização familiar
partir de critérios materiais e nas suas atividades parlamentares,
simbólicos. O próprio Cristianismo inclusive fazendo dessa questão sua
originário rompe com a noção de grande plataforma eleitoreira, não
família baseada nos laços de sangue, obstante a laicidade do Estado
criando uma noção comunal de republicano, incompatível com esses
associação de pessoas imbuídas de um ranços teológicos arcaicos. A vivência
espírito agregador, a vida crística, para crística originária não nega o valor da
além das diferenciações parentais. Jesus composição familiar, apenas nos faz
de Nazaré em diversos momentos de perceber que de nada adianta vivermos
sua doutrina evangélica evidencia a enclausurados na dimensão fechada da
incompatibilidade de sua práxis com os família como se esta fosse o grande
parâmetros judaicos das configurações refúgio para os males cotidianos da
familiares:
sociedade, desprovidos, assim, de
que se proclamam cristãos e que dão nome de Deus em sua boca, mas que em
testemunho público de sua fé, inclusive seu âmago porta todas as iniquidades
através de grandiloquentes tons imagináveis.
orgulhosos, não deixam de recorrer a
subterfúgios desonestos para que
obtenham vantagens pessoais, o que Referências
viola o senso de justiça e de verdade da BENJAMIN, Walter. “O capitalismo como
doutrina evangélica primordial. Mesmo religião”. In: O capitalismo como religião.
na dimensão educacional percebemos Trad. de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,
2013, p. 21-25.
essa hipocrisia reinante nas vidas dos
que usam a máscara cristã para que BÍBLIA DE JERUSALÉM. Direção Editorial 78
possam prosperar academicamente, de Paulo Bazaglia. São Paulo: Paulus, 2002.
utilizando-se de colas e outros artifícios DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia.
intelectualmente claudicantes nessa Trad. de Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo: Ed.
paulatina miséria intelectual. 34, 1998.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da
A aplicação da ética cristã deve ser propriedade privada e do Estado. Trad. de
incondicional e um exercício constante Ciro Moranza. São Paulo: Lafonte, 2012.
de virtude, pois, caso contrário, corre o ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-
risco de se tornar apenas uma palavra Político. Trad. de Diogo Pires Aurélio. São
esvaziada de sentido que, nos momentos Paulo: Martins Fontes, 2003.
mais importantes, não é exercida KIERKEGAARD, Soren A. As obras do
fielmente. Se a civilização cristã Amor: algumas considerações cristãs em forma
adotasse rigidamente as prédicas de discursos. Trad. de Álvaro L. M. Valls.
evangélicas, a paz e o amor reinariam Petrópolis: Vozes, 2005.
entre os povos e as violências mais LAWRENCE, D. H. Apocalipse / O Homem
cruéis seriam progressivamente que morreu. Trad. de Paulo Henrique Brito.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
eliminadas da ordem social.
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo:
A sociedade da era técnica se maldição ao Cristianismo / Ditirambos de
emancipou das amarras morais das Dionísio. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
instituições eclesiásticas, mas de modo
algum ela perdeu a necessidade de uma __________. Genealogia da Moral: uma
busca espiritual para preencher o vazio polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
da sua existência, e o projeto burguês da
felicidade definitiva conquistada na WEBER, Max. A ética protestante e o
Terra mediante o usufruto dos bens “espírito” do capitalismo. Trad. de José
Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
materiais se revelou um fracasso, Companhia das Letras, 2004.
enquanto a axiologia crística originária
perpetua continuamente a sua TOLSTÓI, Liev. Minha Religião. Trad. de
Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: A Girafa,
pertinência, para além de qualquer 2011.
dogma ou sectarismo. Porém, enquanto
perdurarem as intenções e as atitudes ________. O Reino de Deus está em vós. Trad.
de Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: Ed. Rosa
incompatíveis desses falsos cristãos, dos Tempos, 1994.
pouco avanço ético obteremos em
nossas relações sociais, de modo que
um ateu virtuoso é muito mais útil para Recebido em 2014-11-28
o estabelecimento do bem comum do Publicado em 2012-12-10
que um cristão hipócrita, que traz o