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A missão no território secular atual

As metanarrativas racionalista-humanista e bíblica:


conflito entre religiões?

Rafael Zulato Langraff


Este artigo não reflete, necessariamente, a posição do Centro de Reflexão Missiológica
Martureo. Representa uma parte do pensamento evangélico brasileiro e/ou mundial em
relação a diferentes aspectos da Missão e publicamos aqui com o intuito de contribuir para
a nossa reflexão como movimento missionário.
3

Introdução I. A narrativa ocidental secularista


Trabalhei por dezessete anos no escritório O dicionário define secular como “algo
de uma indústria metalúrgica na cidade de São mundano, sem voos monásticos, leigo ou que
Paulo e, logo em meu primeiro ano, fui cha- não pertence a ordens religiosas”.1 Assim, secu-
mado ao departamento de Recursos Humanos lar refere-se a algo que está isento de religião.
para ser advertido sobre minha postura. Sen- A ideia de um espaço ou território secular é,
tei-me do outro lado da mesa à frente da su- portanto, o argumento de que em locais públi-
pervisora do departamento e escutei um breve cos deve existir uma neutralidade religiosa. A
sermão sobre a necessidade de eu me conscien- defesa em favor de uma sociedade secular con-
tizar que aquele local era um local de “trabalho siste, em suma, na busca em se desprender da
secular” e, desse modo, eu não deveria expres- metanarrativa bíblica como resposta às questões
sar nenhum tipo de religião pessoal ali. Não, existenciais. Metanarrativa é o grande discurso
eu não estava pregando o evangelho em meu que tem por função responder como o mundo
horário de trabalho do modo que você pode é (sua função descritiva) e como devemos viver
estar imaginando –discursando em voz alta de no mundo (sua função normativa).2 Trata-se da
pé no meio do escritório, dando estudos bíbli- explicação descritiva, isto é, de pequenas narra-
cos ou “fazendo um culto” enquanto deveria tivas que definem as crenças. A metanarrativa
estar em alguma reunião profissional. Estava é o cerne de uma cosmovisão. Cosmovisão, por
apenas sendo cristão: não escondendo minha sua vez, pode ser definida como:
fé, convicções e me negando a mentir ou ter
compromisso, a orientação fundamental do
outras condutas condenáveis justificando-me
coração, que pode ser expresso em uma his-
com as Escrituras.
tória ou um conjunto de pressupostos (supo-
A crença na existência de um espaço reli-
sições que podem ser verdadeiras em parte
gioso neutro – protegido por um domo onde
ou de todo falsas) que mantemos (de forma
Deus não atua e, portanto, consistindo em um
consciente ou subconsciente, consistente ou
local legislado por suas próprias regras morais
inconsistente) sobre a constituição básica da
– é um conceito a que o Ocidente pós-ilumi-
realidade e que fornece fundamento sobre
nista aderiu fortemente e a que muitos cristãos
o qual vivemos, nos movemos e existimos.3
(infelizmente) neste contexto aderiram. Em
Lucas 6.22-23, somos encorajados por Jesus a Todo ser humano possui – consciente ou
nos alegrarmos quando sofrermos injúrias ou inconscientemente – uma cosmovisão ou
perseguições por causa do evangelho de Cristo. aquilo que se acredita ser real.4 A cosmovisão
Vale destacar que não devemos nos alegrar se
formos advertidos por sermos negligentes no
trabalho ou desrespeitosos em relação à algu-
1
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio: O di-
cionário da língua portuguesa. Curitiba, 2010.
ma autoridade. Segue que o cristão deve ser 2
GOHEEN, Michael W. & BARTHOLOMEW, Craig G. In-
responsável para com suas obrigações, mas ao trodução à cosmovisão cristã: Vivendo na intersecção entre
a visão bíblica e a contemporânea. São Paulo, 2016, p. 54
mesmo tempo é esperado o conflito por não 3
SIRE, James W. O universo ao lado: Um catálogo básico
pressupor uma vida de neutralidade religiosa sobre cosmovisão. Brasília, 2018, p. 24
4
É comum encontrar a definição de cosmovisão como “uma
em um território secular. visão de mundo”. Apesar de comportar a ideia central de
Neste artigo, apresentarei algumas defini- uma cosmovisão – responder ao que é real –, corre o risco de
ser simplista. Alguns teóricos diriam que a cosmovisão são as
ções acerca do secularismo a fim de propor uma lentes dos óculos pelo qual enxergamos o mundo. James W.
reflexão sobre qual deve ser a postura do cristão Sire afirma que não devemos entender o conceito somente
como lentes hermenêuticas da vida, isto é, visão de mundo
nos espaços tidos por seculares. ou modo de interpretar a realidade, mas em primeiro lugar
4

de um indivíduo influencia diretamente suas cristã, por exemplo, olha o mundo por meio da
crenças. Essas crenças moldam poderosamen- Bíblia, sua fonte de revelação.
te a vida, pois estão incrustadas na narrativa
Olhar o mundo por meio das Escrituras é,
que adotamos acerca do mundo e, portanto,
na verdade, olhar o mundo através de três
influenciam nossos valores e costumes, ou
lentes ao mesmo tempo: como algo criado
seja, toda nossa cultura. Denominamos cultu-
por Deus, deformado pelo pecado e que está
ra o conjunto de costumes, valores, crenças e
sendo resgatado pela obra de Cristo. Tire
cosmovisão de um indivíduo ou sociedade. Ao
qualquer uma dessas lentes, e a cosmovisão
olharmos para uma cultura, o que vemos são
bíblica ficará distorcida.5
as práticas ou costumes (como agimos), que
consistem apenas na casca exterior de um siste- Por outro lado, uma cosmovisão que exclui
ma de camadas. É necessária uma análise mais a metanarrativa bíblica necessariamente substi-
cuidadosa para identificar a próxima camada, tuirá a narrativa cristã por outras narrativas. Um
que são os valores (o que é bom ou melhor) exemplo é a cosmovisão apresentada pelo ilumi-
nos quais os costumes se baseiam. Os valores, nismo ocidental do século 18, que defende uma
por sua vez, estão pautados nas crenças (o que metanarrativa na qual o progresso, baseado na
é verdadeiro) que são fundamentadas em uma razão e na ciência, conduziria a humanidade
cosmovisão (o que é real). a um novo mundo de paz e prosperidade. Os
iluministas, desse
O que se faz? modo, substituí-
ram a metanarra-
O que é bom ou melhor? tiva bíblica pelo
racionalismo hu-
O que é verdadeiro? manista.
O desenvolvi-
O que é real? mento histórico
do cristianismo
e do humanismo ocorreu paralelamente como
duas cosmovisões concorrentes do ocidente.
Com base nesse antagonismo, pode-se dividir a
história do ocidente em quatro grandes períodos:
1. Pagão – Período clássico do império greco-
A reflexão cosmológica busca investigar -romano.
as camadas mais profundas a fim de que haja 2. Síntese medieval – Após a fusão do cristianis-
consciência dessas crenças basilares e de seu mo com o estado romano.
impacto. Em suma, um estudo cosmológico 3. Antitético – Período marcado pela hostilida-
busca expressar resumidamente a grande nar- de entre as duas cosmovisões durante a mo-
rativa de uma determinada cosmovisão, identi- dernidade pós idade média.
ficar as crenças fundamentais dessa narrativa e 4. Neopagão – Período contemporâneo pós-
enunciar e explicar essas crenças. A cosmovisão -moderno.
“Enquanto o [período] pagão se refere a uma
cultura que nunca teve a luz do evangelho, o
como comprometimento (orientação) do coração. Assim, ao
mudar a cosmovisão de alguém não estamos lidando apenas
com suas crenças, mas tirando o chão que pisa. 5
GOHEEN & BARTHOLOMEW, p. 56, 104.
5

neopagão designa uma cultura nascida da rejei- do-lhes uma morte lenta e simples pela falta de
ção do evangelho”.6 atenção”. Por fim, a secularidade controlada ou
Estamos, dessa forma, vivendo um período ambígua é quando “a maioria continua a aderir
caracterizado pela cultura de hostilidade, quase à religião cristã, mas sutilmente a transforma de
sempre não fundamentada, em relação às cren- maneira significativa para se adequar à visão se-
ças cristãs. Vale destacar que, conforme supra- cular”.8 Esse último modelo é marca caracterís-
citado, uma cosmovisão acarretará, em último tica dos Estados Unidos, mas acredito ser asser-
estágio, em comportamentos condizentes com tivo afirmar que também é o modelo que tem
aquilo em que se acredita. Tendo isso em men- dominado mais amplamente a cultura no Brasil,
te, é importante destacar três importantes ob- como mostra o relato do início deste artigo do
servações acerca da relação entre as narrativas quadro cultural pelo qual fui confrontado.
da cultura ocidental contemporânea (humanis-
ta) e a bíblica (cristã): II. O aspecto religioso da cosmovisão secular
Todo ser humano serve em sua vida a um ou
Em primeiro lugar, assim como a própria mais deuses. Adoração consiste em se prostrar
narrativa bíblica, a narrativa ocidental perante algo ou alguém para servi-lo. Nessas
afirma ser a verdadeira narrativa do mun- duas afirmações, não estamos nos referindo es-
do. Aliás, com frequência ela simplesmente tritamente à adoração de uma imagem ou está-
pressupõe essa superioridade, mascarando tua de algum deus pagão, mas a qualquer coisa
sua própria reinvindicação de ser verda- que guie a volição humana de forma servil.
de ao atribuir a todas as outras narrativas
semelhantes uma posição secundária, con- Costumamos definir religião como a crença
siderando-as meramente “religiosas”. Em ou devoção a um objeto transcendente [...],
segundo lugar, à semelhança da narrativa no entanto, ao longo da história da huma-
bíblica, a narrativa cultural abarca tudo, nidade, não apenas objetos transcendentes,
com reivindicações sobre todos os aspectos mas também objetos imanentes – aqueles
da vida humana. Em terceiro lugar, a nar- que são parte da realidade concreta – têm
rativa ocidental é radicalmente, embora sido alvo de crença e devoção religiosa. [...]
não totalmente, incompatível com a nar- Religião é a relação de confiança e devoção
rativa bíblica.7 estabelecida por um indivíduo ou grupo
com um determinado objeto, da qual esse
Durante o século 19, o processo de secula- indivíduo ou grupo espera obter as respostas
rização tomou três caminhos distintos no Oci- finais sobre: sentido, significado, valor, re-
dente. O primeiro caminho foi o da secularidade conhecimento, prazer, segurança etc.9
absoluta ou máxima, que é marca principalmente
do continente europeu. Nesse modelo, a cosmo- Desse modo, uma pessoa materialista – que
visão humanista secular vê a fé cristã como ini- defende que o conhecimento racional é o co-
miga que deve ser atacada, destruída e substituí- nhecimento definitivo da realidade, sendo que
da. O segundo caminho, característico do Reino tal racionalismo focado no homem poderá
Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, é guiá-lo a uma situação de estabilidade, seguran-
denominado mera secularidade. Aqui, “a visão
humanista ignora as formações cristãs, permitin- 8
GOHEEN, Michael W. A missão da igreja hoje. Viçosa,
2019, p. 178.
9
FONTES, Filipe. Você educa de acordo com o que adora:
6
Ibidem, p. 116, 117. Educação tem tudo a ver com religião. São José dos Cam-
7
Ibidem, p. 30. pos, 2017, p. 22, 24.
6

ça e prosperidade ao ponto de dedicar sua vida Logo, é impossível agir de modo neutro no
na busca de tais ideais – pode ser considerada espaço secular. Quando um indivíduo pensa
uma pessoa religiosa. Um homem pode, por estar agindo de modo neutro, ele está, na ver-
exemplo, adorar o dinheiro e dedicar toda sua dade, aderindo à religião da cosmovisão secular.
vida na busca de riquezas. Outro pode adorar a
sua própria imagem e transformar o seu corpo III. O secularismo: uma religião a ser
em objeto de culto. Ainda que a metanarrativa confrontada pelo evangelho
de uma cosmovisão exclua a existência de Deus, O conflito entre o cristianismo e outras re-
como é o exemplo do ateísmo naturalista gera- ligiões é inevitável. “As boas-novas também
do pelo iluminismo, ainda assim suas crenças podem ser uma má notícia para aqueles cujos
o conduzirão a uma posição religiosa de ado- interesses pessoais sejam ameaçados por elas”.
ração. Bob Goudzwaard afirma ainda que cada Defender a verdade do evangelho cristão encon-
pessoa é transformada à imagem e semelhança trará, necessariamente, resistência nos grupos
de seu deus e, consequentemente, “a humani- (1) que defendem outras cosmovisões depen-
dade cria e forma uma estrutura de sociedade à dentes do orgulho das próprias realizações, (2)
sua própria imagem”.10 Segue que é falsa a su- que desejam que a “sua” salvação venha de um
posta neutralidade do secularismo em relação à mercado religioso mais “lucrativo” ou (3) que
religião. reivindicam o direito de pertencer a um ‘povo
certo’ exclusivista. Há ainda “o fato de o evange-
O que existe não é uma sociedade secular, lho convocar as pessoas ao arrependimento e a
mas uma sociedade pagã; não é uma so- mudar radicalmente sua ética pessoal e social”,
ciedade carente de imagens públicas, mas o que “irrita aqueles que querem os benefícios
uma sociedade que cultua deuses que não do evangelho, mas resistem às suas exigências”.
são Deus.11
Portanto, há uma dimensão polêmica no
A partir do que foi exposto até aqui, podem evangelho. O evangelho confronta as coisas
ser deduzidas as seguintes proposições úteis: que o contradizem ou as pessoas que o ne-
1. A narrativa ocidental secularista consiste em gam ou rejeitam. Ele existe em um explícito
uma cosmovisão que busca substituir a nar- contraste e conflita com outras cosmovisões e
rativa bíblica cristã; com as principais convicções que as pessoas
2. Todo ser humano é religioso com base na têm.12
cosmovisão que possui (de forma consciente
ou não); Trata-se de uma questão urgente para ser
3. Todo ser humano é transformado à imagem tratada no âmbito da missão cristã. Existe uma
e semelhança daquilo que adora; expansão da pluralidade religiosa no mundo
4. A sociedade é formada e estruturada sob os que já resulta em uma minoria cristã em meio a
padrões de crença dos indivíduos; um mar de pluralidade religiosa no Sul global.
5. A esfera secular consiste em uma sociedade “A igreja já não pode ignorar ou subestimar ou-
religiosa que se opõe ao cristianismo; tras religiões”.13
6. O conceito de neutralidade religiosa do se-
Uma postura fiel para a igreja cristã em re-
cularismo é falso.
lação às grandes religiões do mundo será a

10
GOHEEN & BARTHOLOMEW, p. 86. 12
WRIGHT, Christopher J. H. A missão do povo de Deus:
11
NEWBIGIN, Lesslie. O evangelho em uma sociedade plu- Uma teologia bíblica de missões. São Paulo, 2012, p. 235.
ralista. Viçosa, 2016, p. 281. 13
Goheen, p. 268.
7

do confronto missionário. [...] O confronto mundo (mundanismo). Se o secularismo é uma


missionário é o que se dá entre os compro- oposição externa em favor de um espaço neutro
missos religiosos definitivos e abrangentes sem a religião cristã, ele consiste no esvaziamento
que moldam diferentes estilos de vida. A do cristianismo de dentro para fora.
palavra “confronto” defende um firme com- Somando o tempo que estamos em espaços
promisso com afirmações definitivas e am- públicos (transportes, mercados, escolas, traba-
plas, e impede a acomodação de qualquer lho etc.) ao fato de que alguns convivem com
visão religiosa em outra visão mais definiti- familiares não cristãos, vemos que na maior
va e abrangente. Elas podem se opor apenas parte dos nossos dias estamos interagindo com
por meio de um confronto.14 o mundo secular. Caso o cristão venha a aderir
ao mito da neutralidade secular e viver uma di-
O confronto surge por conta de quatro rea-
cotomia de vida religiosa, passará a maior parte
lidades integradas:
do tempo vivendo de acordo com os princípios
1. Uma cosmovisão define de um modo amplo
humanistas, ou seja,
como compreender o mundo e como viver
• com uma ética secular;
nele;
• uma consciência de inexistência de Deus;
2. Existe uma pluralidade de cosmovisões divi-
• regido pelo conceito de causa e consequên-
dindo espaço em uma cultura comum;
cia em que as capacidades e habilidades hu-
3. Todas as cosmovisões afirmam ser verdadei-
manas ditarão os resultados;
ras;
• completamente desassistido da soberania de
4. Uma cosmovisão resulta em um compro-
Deus.
misso fiel dos indivíduos de modo integral
O que segue é que esse cristão, habituado
com suas crenças que regerá seu comporta-
a viver com essa postura e mentalidade, terá
mento.
assimilado a cosmovisão secular. Quando esse
“Assim, a fidelidade reside na postura do
mesmo cristão se reunir com o corpo de Cristo
confronto missionário entre esses compromis-
no domingo por algumas horas – não mais de
sos religiosos conflitantes”.15
2% da totalidade de seu tempo em uma semana
A missão da igreja compreende esse conflito
–, será parte de um fenômeno pelo qual passam
tal como expressado na oração de Jesus descrita
muitas igrejas chamado processo de seculariza-
em João 17.15-18. Existem duas maneiras pelas
ção: o [suposto] cristão trará consigo crenças e
quais a igreja abandona a fidelidade para com sua
costumes seculares para o convívio da igreja.
natureza missionária, ambas em extremos opos-
A triste realidade resultante dessa conjectu-
tos: a sacralização e a secularização. A primeira
ra é: há mais missionários do mundo secular
ocorre quando o povo de Deus se fecha nos li-
dentro das igrejas do que missionários da igreja
mites da igreja institucional. Trata-se de uma de-
no mundo secular! A igreja precisa preparar os
sobediência das ordens divinas de impactarmos
cristãos para serem testemunhas de Jesus nes-
o mundo. Michael Goheen chama esta postura
te mundo de pluralismo religioso que inclui o
de igrejismo. Nesse sentido, “a igreja tornou-se
secularismo. É necessário saber dialogar e inte-
introvertida e egocêntrica”.16 No caso da secu-
ragir com outras cosmovisões sem renunciar ao
larização, ocorre a assimilação dos costumes do
cerne do evangelho, ainda que o conflito – que
de modo algum significa imposição ou desres-
14
Ibidem, p. 270. peito, nem deve estar baseado em confrontos
15
Ibidem, p. 272 somados aos conceitos apresentados por verbais violentos – seja inevitável. O conflito
SIRE, 2018.
16
Ibidem, p. 67. pode ser mais bem compreendido pelo incô-
8

modo e estranheza que a postura cristã (con- mais ao serem contempladas pelo mundo por
trastante) causam: não são as práticas e costu- meio do testemunho da vida diferenciada dos
mes “esperados”. Em 1 Pedro 3.15b, lemos a cristãos, expondo assim a inconsistência das de-
seguinte recomendação do apóstolo: “Estai mais narrativas.
sempre preparados para responder com mansi- O próprio racionalismo iluminista está per-
dão e temor a todo aquele que vos pedir a razão dendo força à medida que o Ocidente começa
da esperança que há em vós”. A apresentação do a observar as evidências do seu fracasso após as
evangelho é a resposta que pressupõe uma per- duas Grandes Guerras do século 20. Pobreza,
gunta. É no mínimo interessante que o filósofo degradação ambiental, proliferação de armas e
Platão defina filosofia, que por sua vez é – para violência, problemas psicológicos em profusão
ele – o meio para se encontrar a verdade, como e os problemas sociais e econômicos geram de-
aquilo que surge do espanto, isto é, a resposta bates e incertezas que buscam uma alternativa
que vem após o espanto com algo que não com- pós-modernidade iluminista. Trata-se de uma
preendemos. Nesse caso, o espanto deveria ser oportunidade para a igreja proclamar – e viver
causado pelo viver diferente do cristão no mun- – o evangelho como resposta (boas-novas) aos
do. Desse espanto surgirá a pergunta para a anseios deste mundo.
qual a resposta são as boas-novas do evangelho.
Tal desafio não é algo novo ao cristianismo. Conclusão
Quando o evangelho de Cristo foi pregado pela Durante os dezessete anos em que trabalhei
primeira vez em meio ao pluralismo religioso na empresa citada na introdução deste artigo,
do mundo do primeiro século, não foi um es- não fiz concessões à minha fé, nem deixei de tes-
cândalo menor do que ele é para o pluralismo temunhar do evangelho de Cristo. Essa postura
do século 21. gerou alguns – na verdade, vários – conflitos,
mas também tocou nos seguintes pontos essen-
O povo de Deus ainda enfrenta o mesmo ciais da vida cristã e da missão.
desafio ainda hoje. Nossa missão é, no mí- 1. Quando o cristão é fiel ao evangelho de
nimo, fazer com que aqueles que nos ro- Cristo e não vive uma pseudoneutralidade
deiam fiquem curiosos a respeito do Deus religiosa, o mundo perdido encontra a ver-
que adoramos e de nosso estilo de vida. Mas dade por meio de seu testemunho da mesma
note que é o segundo elemento (nosso estilo forma que encontramos uma luz em uma
de vida) que leva ao primeiro (curiosidade casa escura.
a respeito de Deus).17 2. O próprio cristão e a igreja se fortalecem
Todo ser humano é, por natureza, religioso. mutuamente cumprindo a missão, pois os
Como tal: 1) busca a Deus, 2) deseja a salvação, cristãos se reunirão para buscar fortaleci-
3) procura seu lugar no Universo, 4) percebe mento equipando e servindo uns aos outros.
um padrão ou moral e 5) busca significado. Es- Ainda que aceitemos a narrativa do secu-
sas características também são o ponto de atra- larismo de que religião deve permanecer no
ção magnética que possibilita a comunicação do âmbito pessoal (mas não devemos aceitar, prin-
evangelho de Cristo. Responder a esses anseios cipalmente porque vimos que o próprio secula-
é o que dá origem a todas as grandes religiões rismo é um sistema religiosos e utiliza esse dis-
da história. No entanto, as respostas propostas curso por se opor ao cristianismo), precisamos
pela metanarrativa bíblica devem ofuscar as de- nos atentar para o fato de que uma cosmovi-
são pressupõe não somente nossas crenças (re-
17
WRIGHT, p. 158.
ligião), mas valores (ética) e comportamentos
9

que permeiam toda a nossa a vida e exercem FONTES, Filipe. Você educa de acordo com
influência em todas as esferas. o que adora: Educação tem tudo a ver com
Não existe um espaço de neutralidade, um religião. São José dos Campos, 2017.
ambiente isento da onipresença, onisciência e GOHEEN, Michael W. & BARTHOLOMEW,
onipotência divinas. Craig G. Introdução à cosmovisão cristã:
Vivendo na intersecção entre a visão bíbli-
Sobre o autor ca e a contemporânea. São Paulo, 2016.
Rafael Zulato Langraff é bacharel em Teo- GOHEEN, Michael W. A missão da igreja
logia com especializações em Sociologia e Filo- hoje. Viçosa, 2019.
sofia, além de acumular formação na área mu- NEWBIGIN, Lesslie. O evangelho em uma
sical. Professor em alguns seminários, também sociedade pluralista. Viçosa, 2016.
é escritor. SIRE, James W. O universo ao lado: Um ca-
tálogo básico sobre cosmovisão. Brasília,
Referências bibliográficas 2018.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Au- WRIGHT, Christopher J. H. A missão do
rélio: O dicionário da língua portuguesa. povo de Deus: Uma teologia bíblica de
Curitiba, 2010. missões. São Paulo, 2012.

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