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VOCÊ JÁ OUVIU FALAR DO MAL DE “FROUDE”

LANGLOIS, C. V.; SEIGNOBOS, C. Introdução


aos estudos históricos. Curitiba: Patola
Livros, 2017 pp. 76-78.
Publicado originalmente em 1897.

Há jovens estudantes que não apresentam uma rejeição a priori pelos trabalhos da crítica
externa, e que talvez até estejam dispostos apreciá-los, mas que são – a experiência tem
demonstrado – totalmente incapazes de realizá-los. Não seria algo estranho se fosse o caso
dessas pessoas serem intelectualmente frágeis; essa incapacidade seria então uma
manifestação de sua fraqueza geral; algo que não se resolveria nem mesmo se tivessem
passado por estudos técnicos.

Mas trata-se de indivíduos de erudição e inteligência, por vezes de habilidades excepcionais,


que não trabalham com aquelas desvantagens. São pessoas de quem ouvimos dizer: “Ele
trabalha mal, tem o gênio da imprecisão”. Seus catálogos, suas edições, sua regesta, suas
monografias estão repletas de imperfeições e não inspiram confiança; por mais que tentem,
nunca atingem, e eu não me refiro à precisão absoluta, mas qualquer grau decente de
precisão. Eles estão sujeitos à “imprecisão crônica”, uma doença da qual o historiador
inglês Froude é um caso típico e célebre. Froude era um escritor talentoso, mas destinado a
nunca apresentar qualquer afirmação que não fosse desfigurada pelo erro; foi dito que era
constitutionally inaccurate.

Por exemplo, quando visitou a cidade de Adelaide, na Austrália: “Vimos”, diz ele, “abaixo de
nós, numa bacia com um rio serpenteando por ela, uma cidade de 150.000 habitantes, sendo
que nenhum deles jamais tenha conhecido, ou conhecerá, a menor apreensão a respeito da
regularidade de suas três refeições diárias”. Assim disse Froude; agora vamos aos fatos:
Adelaide foi construída em um pequeno planalto; nenhum rio passa por ela; quando Froude
a visitou, a população não ultrapassava 75 mil pessoas, e que padeciam de fome. E outros
erros semelhantes.

Froude estava perfeitamente ciente da utilidade da crítica, e foi inclusive um dos primeiros
na Inglaterra a fundamentar o estudo da história em documentos originais, tanto inéditos
quanto publicados; mas sua conformação mental o tornava totalmente inadequado para a
correção de textos; na verdade, mesmo sem intenção ele os assassinava, sempre que os
tocava.

Assim como o Daltonismo (uma doença da vista que impede que um homem diferencie
corretamente sinais vermelhos e verdes) o incapacitaria para um emprego em uma ferrovia,
sua imprecisão crônica, ou “mal de Froude” (uma doença não muito difícil de diagnosticar)
deveria ser considerada incompatível com a prática profissional da erudição crítica.

O mal de Froude não parece ter sido estudado por psicólogos, nem, de fato, deve ser
considerado como uma entidade patológica única. Cada um comete erros “por descuido”,
“por precipitação” e de muitas outras maneiras. O que é anormal é cometer muitos erros,
e permanecer errando, apesar dos mais constantes esforços para ser exato.
Provavelmente, esse fenômeno esteja ligado à pouca a atenção e à atividade excessiva da
imaginação involuntária (ou subconsciente) que a vontade do paciente, desprovida de
força e estabilidade, é incapaz de controlar.

A imaginação involuntária invade as operações intelectuais apenas para arruiná-las; sua


função é preencher as lacunas da memória por conjecturas, ampliar e atenuar a realidade
e confundi-la com puras invenções. A maioria das crianças distorce a realidade por
inexatidões desse tipo, e é somente após uma luta árdua que alcançam certa precisão – ou
seja, aprendem a dominar sua imaginação. Muitos homens permanecem crianças, neste
aspecto, durante suas vidas.

Mas, abandonemos as causas psicológicas do mal de Froude, para analisarmos outro ponto
que nos chama a atenção. O homem de mente mais equilibrada é susceptível de destruir o
mais simples trabalho crítico se não lhe dedicar o tempo necessário. Nesse campo, a
precipitação é a fonte de inúmeros erros. Diz-se corretamente que a paciência é a qualidade
fundamental do erudito. Não trabalhar às pressas, agir como se houvesse prêmio pela
paciência, manter o trabalho incompleto preferencialmente a arruiná-lo: são máximas
bastante fáceis de serem enunciadas, mas que na prática só podem ser seguidas por pessoas
de temperamento tranquilo.

Há pessoas nervosas e excitáveis, que têm pressa de chegar ao fim, buscando diversidade
em suas tarefas, e ansiosas de brilhar e causar sensação: possivelmente estas pessoas podem
encontrar empregos honrosos em outras carreiras; mas se abraçam a erudição, estão
condenadas a acumular uma massa de trabalhos provisórios, susceptíveis de serem mais
prejudiciais que benéficos e que, no longo prazo, muito provavelmente, a atividade não lhes
tratará nada mais que aflição.

O verdadeiro estudioso é calmo, reservado, circunspecto. No meio do tumulto da vida, que


passa por ele como uma torrente, ele nunca se apressa. Por que deveria? O importante é
que o trabalho seja sólido, definitivo, imutável. Melhor “passar semanas polindo uma obra-
prima de poucas páginas”, a fim de convencer dois ou três estudiosos da Europa de que uma
determinada carta é falsa, ou levar dez anos para construir o melhor texto possível de um
documento corrompido, do que levar à impressão volumes de anecdota apenas
razoavelmente precisas que os futuros estudiosos deverão refazer do princípio ao fim.

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