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RESENHAS BOOK REVIEWS


Parnia S. O que acontece quando morremos: um Assim o autor não se sente só para indagar
estudo sobre a vida após a morte. São Paulo: La- sobre a viagem da escuridão à luz, os seres-guia e
rousse; 2008. os sentimentos de paz e alegria presentes, reacen-
dendo a longa dúvida que permeia a vida dos Ho-
Fernanda Godoy Falcão 1 mens: o que acontece quando morremos?
Nelson Filice de Barros 1 Sabendo que o que acontece com a mente du-
1
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Esta- rante o processo de morte ainda permanece uma
dual de Campinas. preocupação muito mais filosófica do que médica,
o que o pesquisador propõe é justamente estudar
essa transição do ponto de vista científico, médico,
Uma luz no fim do túnel fisiológico. É tentar desvendar esse processo utili-
zando a ciência como principal ferramenta de tra-
De repente, a escuridão. E eis que surge um longo balho.
túnel, com uma luz ao seu final, como que chaman- Parnia coletou relatos de vítimas de EQM para
do para um local de paz e bem-estar. Seres o acom- descobrir o que acontece nesse momento crucial.
panham, lado a lado, e tudo é tranqüilidade. Mas há Das experiências selecionou aqueles que passaram
algo errado nisso. Ainda não é o momento, há mais por uma parada cardíaca, viram o túnel com a luz
coisas para se fazer antes de chegar ao fim do túnel! em seu final, vivenciaram a experiência fora do cor-
E num borrão, a cena divina é deixada para trás. Lá po e descreveram os procedimentos médicos que
está você, olhando do teto, para a equipe médica foram realizados neles durante o acontecimento.
tentando fazer seu coração voltar a bater. Com um Esses relatos aguçam a curiosidade pela riqueza de
forte tranco ele volta, bem como você ao seu corpo. detalhes técnicos apresentados e pontos comuns.
Este é um exemplo de Experiência de Quase Morte No livro, então, o pesquisador cruza informa-
(EQM), com um efeito fora do corpo. Situações que ções, compara histórias e acaba percebendo o quan-
intrigam e são ainda objeto de descrédito em diver- to os relatos são próximos. Estabelece relações, pes-
sos meios. Mas seria somente ilusão? Imaginação? quisa origens das vítimas, suas crenças, seus dados
Após o atendimento de um senhor aparentemente biológicos no momento da parada cardíaca (“mor-
estável que acabou evoluindo a óbito em menos de te”) e a cada nova história percebe que não há como
uma hora sob sua responsabilidade, o médico inglês ser invenção. Não uma invenção tão rica em deta-
Sam Parnia, na época em seu último ano de faculda- lhes, principalmente no que tange à atitude da equi-
de, decide iniciar sua busca pelas respostas que já pe médica, vista pelos pacientes, “suspensos” no teto.
tanto o intrigavam: como se dá esse processo de Assim, questiona: como essas pessoas possuem
transição da vida para a morte? Como alguém que memória tão límpida e viva de um momento em
está entre nós, de repente não está mais? Suas pes- que seus corações pararam de bater, deixando seus
quisas, relatadas nas 246 páginas do livro “O que cérebros, considerados a fonte dos pensamentos e
acontece quando morremos - Um estudo sobre a memórias, sem fluxo sanguíneo, sem aquilo que lhes
vida após a morte”, publicado pela editora Larous- permite funcionar? Seria somente o cérebro a ori-
se, no ano de 2008, tentam desvendar a partir dos gem da consciência? Seria ele o total responsável por
pontos de vista médico e científico, o que ocorre nes- armazenar e interpretar informações e sensações?
sa fronteira entre a vida e a morte. Continuariam a mente humana e a consciência fun-
Ao se deparar com as histórias de EQM, Parnia cionando mesmo após a morte clínica?
decide orientar suas pesquisas sob essa óptica, já que Dando margem a essas questões, o autor sai
os depoimentos das vítimas descrevem uma situação em busca de teorias que expliquem a consciência e
que é a mais próxima da morte, até hoje encontrada. sua formação. Como as poucas existentes apre-
Utilizando como frontispício de sua obra uma sentam lacunas importantes começa, então, a cons-
pintura do século XV de Hieronymus Bosch, deno- truir seus próprios meios de avaliação. Algumas
minada “A ascensão para o império”, que retrata a vezes ridicularizado, outras, totalmente desacre-
cena de um túnel com seres em ascensão através ditado, continua suas tentativas de verificar as ex-
dele, o autor visa mostrar que esses fatos misterio- periências fora do corpo, realizando testes em hos-
sos sobre pessoas que viram a morte bem de perto e pitais. Depara-se com relatos incríveis e fica es-
voltaram à vida contando o que presenciaram não pantado ao ver a quantidade de pessoas que con-
são recentes. Além disso, apresenta o relato de um cordam em colaborar com suas pesquisas, inclu-
soldado ferido quase mortalmente em batalha e que sive enviando-lhe cartas com suas histórias de
é ressuscitado na cerimônia do funeral, descrito em EQM, nunca antes contadas por vergonha de se-
“A República” de Platão, escrito em IV a.C. rem consideradas loucas ou inventivas.
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Na construção de sua narrativa o autor cita jetos de alto risco e inovadores, acabou negando
teorias sobre a morte clínica e analisa resultados, o financiamento por julgar “o conceito de testar
sempre com um senso crítico científico e esfor- as afirmações das pessoas de estarem ‘fora do
çando-se em construir explicações claras e “tra- corpo’” como sendo algo inaceitável para eles. Te-
duzidas” para leigos. A despeito de certo descui- miam que a pesquisa tivesse um impacto negati-
do na revisão da tradução para o português, a vo para a instituição na imprensa, e a Parnia su-
linguagem é acessível, com analogias simples e geriram que não pesquisasse mais esse tipo de
próximas das pessoas, para que todos possam assunto, por não ser bom para sua carreira.
entender a idéia que visa ser transmitida. Porém, Não é necessário aprofundar a enorme sen-
há momentos mais “tensos”, como na aproxi- sação de fracasso, abandono, carência de recur-
mação que é feita da forma e expressão da cons- sos e falta de confiança que tomou o pesquisador.
ciência com a teoria das 11 dimensões do univer- Também, não é preciso discutir sua obsessão e
so, fruto do pensamento quântico. afinco em reativar a Horizon Research Foundati-
De acordo com essa teoria, do mesmo modo on (www.horizonresearch.org), uma instituição
que não somos aptos (ainda, talvez) a ver as ou- patrocinadora de pesquisa, com o objetivo de não
tras tantas dimensões existentes no universo, tam- somente arrecadar fundos para seu próprio estu-
bém não podemos ver a consciência humana. Dessa do, como também ser uma fonte de financiamen-
maneira, como Faraday que sugeriu haver algo a to para outros que queiram pesquisar sobre a
mais na espiral além da corrente elétrica gerada morte. Desse modo o autor prossegue seus estu-
por ele afetando a circunferência, e só pôde prová- dos de forma árdua, buscando dar visibilidade a
lo anos depois, também há essa sugestão quanto à suas ideias nos meios científico e não científico.
consciência, e, para o autor, apenas não encontra- Para concluir, o autor deixa ver que as pes-
mos ainda uma forma satisfatória de medi-la. quisas continuaram, sobretudo calcadas no ques-
Já formado e com pós-graduação em treina- tionamento da onipotência do cérebro e na dú-
mento clínico na medicina interna, e tendo obtido vida sobre se ele é o único responsável por nossa
o título de Membro da Faculdade Real de Médi- consciência. Em suas palavras: “o que foi desco-
cos, decidiu combinar um PhD em biologia celu- berto até agora talvez seja apenas a ponta de um
lar (sua carreira na pesquisa médica) com uma iceberg, mas possui enormes implicações para
especialização em tratamento respiratório (sua todos nós”. Tendo como única certeza na vida a
carreira na medicina clínica). Mesmo assim, não nossa própria morte, o assunto torna-se de inte-
abandonou suas pesquisas e acabou chegando a resse geral senão no aspecto científico, pelo me-
um ponto em que não poderia continuar os estu- nos por curiosidade ante um momento que se
dos sem um patrocínio. Porém, conseguir o cus- apresentará a todos nós. Além disso, Sam Parnia
teio de uma pesquisa tão ousada como essa não explicita que o papel da ciência não é somente
seria fácil. As instituições médicas de apoio pro- duvidar e rotular como impossível, mas sim de
curadas não tinham interesse pelo tema da mor- ir à busca de evidências. De forma que se ainda
te, ou dispunham de um orçamento extremamen- não somos capazes de provar, não significa que
te limitado. Uma das maiores e mais bem-sucedi- o fato seja improvável. O papel do investigador é
das instituições patrocinadoras de pesquisa do buscar os meios possíveis para compreender e
Reino Unido, que na época almejava apoiar pro- explicar as experiências de fronteira.

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