Você está na página 1de 11

Educação como produto de consumo no mercado capitalista

ou a negação da flama do saber na tecnocracia neoliberal


RENATO NUNES BITTENCOURT*

Resumo
O artigo aborda a degradação cultural promovida pela inserção de parâmetros
econômicos alheios ao autêntico projeto de promoção da educação em nossa
estrutura social. Duas questões fundamentais surgem dessa problematização: 1)
A educação atual é capaz de emancipar intelectualmente o indivíduo? 2) De
que maneira vivemos uma crise de criação intelectual a partir da ofensiva
neoliberal?
Palavras-chave: Educação; Capitalismo; Infantilismo; Emancipação;
Alienação.

Abstract
The article discusses the cultural degradation promoted by insertion of
economic parameters other than genuine education promotion project in our
social structure. Two fundamental questions arise from this: 1) questioning the
current education is able to emancipate the individual intellectually? 2) that
way we have a crisis of intellectual creation from the neo-liberal offensive?
Key words: Education; Capitalism; Infantilism; Emancipation; Alienation.

*
RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/Professor do
Curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA.

9
Introdução sobrevivência
financeira em sistema
No decorrer deste
econômico capitalista
artigo analisaremos
terrivelmente
de que maneira a
competitivo, alheio
educação se tornou
ao bem-estar
um negócio rentável
existencial do ser
para os especuladores
humano e desprovido
financeiros infiltrados
de qualquer pudor
nas corporações de
moral. Contudo, esse
ensino e de que forma
processo financeiro não pode jamais se
as relações humanas entre professores e
tornar um mero recurso para captação
alunos nos espaços acadêmicos se
incondicional de riquezas para a
modificaram mediante a inserção de
instituição educacional e seus
parâmetros monetários no processo de
mandatários, em detrimento da
aquisição de saber.
qualidade de vida do corpo docente,
A educação subjugada ao poder do cada vez mais explorado por esse
Capital e suas interfaces sociais sistema economicamente autoritário que
A educação, submetida aos parâmetros deprecia e humilha a dignidade
do regime capitalista se torna mais uma profissional da figura do professor,
mercadoria disponível ao público submetido constantemente a casos
consumidor, aos estudantes revoltantes de assédio moral e mesmo
transformados em clientes do sistema de agressões contra sua integridade física
ensino. Não é de se estranhar que por estudantes-consumidores-clientes
instituições acadêmicas privadas insatisfeitos. Para Moacir Gadotti,
substituam os diretores pedagógicos por A escola tornou-se válvula de
“gerentes de ensino”, evidenciando escape da sociedade opressiva. E
assim de forma nua e crua a analogia quem está suportando a pressão é o
dessas instituições com as grandes professor. Os professores deveriam,
corporações empresariais. Para Néstor por isso, lutar por um adicional no
Gárcia Canclini, seu salário, uma taxa de
insalubridade, decorrente de um
A educação foi cedendo autonomia sistema social em decomposição
ao diminuir a importância da escola (GADOTTI, 1987, p. 125).
pública e laica e crescer o ensino
privado que, com frequência, Os estudantes “infantilizados” pelo
subordina o processo educacional espírito do consumismo são ludibriados
às aptidões de mercado e se com as pretensas facilidades prometidas
preocupa mais em capacitar pela vida universitária das instituições
tecnicamente do que formar para privadas regidas pela lógica
aptidões culturais. Em vez de plutocrática. Surgem assim vestibulares
formar profissionais e absurdamente flexíveis onde se faz
pesquisadores para uma sociedade valer o infame ditame do “pagou,
do conhecimento, treina peritos passou”, associada diretamente a um
disciplinados (CANCLINI, 2008, p.
método de ensino deficitário que não
23).
prepara efetivamente o alunado para o
Toda instituição educacional de mercado de trabalho, tampouco
fomento privado necessita de promove o desenvolvimento da
rentabilidade em prol de sua consciência cidadã. Segundo Lyotard,

10
Em vez de serem difundidos em própria, é fundamental para
virtude do seu valor “formativo” e compreendermos o processo de
de sua importância política alienação existencial produzida pela
(administrativa, diplomática, introdução dos critérios monetários na
militar), pode-se imaginar que os
composição das modernas interações
conhecimentos sejam postos em
circulação segundo as mesmas
interpessoais:
redes da moeda, e que a clivagem O que é para mim pelo dinheiro, o
pertinente a seu respeito deixa de que eu posso pagar, isto é, o que o
ser saber/ignorância para se tornar dinheiro pode comprar, isto sou eu,
como no caso da moeda, o possuidor do próprio dinheiro.
“conhecimento de Tão grande quanto a força do
pagamento/conhecimento de dinheiro é a minha força. As
investimento”, ou seja: qualidades do dinheiro são minhas
conhecimentos trocados no quadro – de seu possuidor - qualidades e
da manutenção da vida cotidiana forças essenciais (MARX, 2004, p.
(reconstituição da força de trabalho, 159).
“sobrevivência”), versus créditos de
conhecimentos com vistas a
Na conjuntura plutocrática das relações
otimizar as performances de um sociais, tudo é mercadoria e tudo está a
programa (LYOTARD, 2002, p. 7). serviço da acumulação do capital; não é
se de estranhar, portanto, que o sistema
No sistema mercantilista do ensino, o educacional tenha se subordinado aos
aluno é o cliente preferencial, desde ditames econômicos mais brutais,
que, todavia, pague em dia todas as determinando assim a condução
taxas acadêmicas que lhe cabem. O intelectual dos projetos pedagógicos.
aluno só serve ao regime comercialista Conforme argumenta Ivan Illich,
de ensino na sua condição de
consumidor, jamais de um futuro Se não questionarmos a suposição
profissional que possa intervir de que o conhecimento é uma
mercadoria que, sob certas
positivamente na estrutura social através
circunstâncias, pode ser infringida
do exercício de sua competência ao consumidor, a sociedade será
intelectual. O progresso da educação cada vez mais dominada por
estaciona nas margens da decadência sinistras pseudo-escolas e
intelectual e cândidas mentiras são totalitários gerentes de informação
pronunciadas pelos especuladores (ILLICH, 1982, p. 91).
educacionais como forme de
O professor academicamente exigente
legitimação social da expansão da
corre o risco de vir a ser demitido dessa
educação para todos, ou seja, um
instituição comerciária (isso quando
genuíno discurso ideológico que
esse professor não sofre chantagens,
mascara as relações de poder desse
pressões institucionais, mesmo
sistema comercialista. O estudante
agressões por não coadunar com a
adquire o diploma, mas ela não tem
aprovação acadêmica de estudantes
acesso ao conhecimento, pois o
intelectualmente indignos de tal
percurso para aquisição do mesmo foi
resultado). Nesse quesito, Gilda de
diluído pela ausência de esforço
Castro aponta: “Na escola-empresa, eles
intelectual. Nesse contexto, a análise
se transformam em clientes e, como tal,
que Marx estabelece acerca da realidade
não podem sofrer qualquer
fetichista do sistema capitalista, onde as
contrariedade por quem é simples
relações sociais passam a ser mediadas
por coisas que adquirem como que vida

11
empregado da organização” (CASTRO, A educação, na época neoliberal,
2003, p. 53). visa, ao contrário, à formação do
assalariado ou, mais geralmente, do
O professor é assim diminuído em suas “trabalhador”, cuja existência
funções profissionais, circunstância que parece se reduzir a utilizar
acarreta inevitavelmente sua conhecimentos operacionais no
descartabilidade laboral, pois quem não exercício de uma profissão
é capaz de lutar por seus direitos especializada, ou de uma atividade
básicos progressivamente perde sua julgada socialmente útil (LAVAL,
representatividade social em uma esfera 2004, p. 42).
pública cada vez mais fragmentada. O Ensinar em tempos de capitalismo
professor é judiado pelas mais silvestres tecnocrático exige habilidades didáticas
arbitrariedades do engomado cada vez mais elaboradas. Com efeito,
homenzinho de mente tacanha que uma das causas principais para o
barbariza a experiência educacional em fracasso educacional dos
nome do poder do capital; a avidez estabelecimentos privados regidos pelo
desse lunático capitalista representa o comercialismo desenfreado reside na
grande marco da infelicidade da vida do influência decisiva de parâmetros
professor no capitalismo tardio. De economicistas no seu sistema
acordo com Paula Sibilia, pedagógico: “A escola vende currículo
Na oferta educacional – um monte de bens de consumo feitos
contemporânea busca-se oferecer pelo mesmo processo e tendo a mesma
um serviço adequado a cada perfil estrutura que outras mercadorias”
de público, proporcionando-lhe (ILLICH, 1982, p. 78). Essas
recursos para que cada um possa instituições continuamente interferem
triunfar nas árduas disputas de no processo de avaliação dos
mercado. Isso não é para todos, professores, pois se estes exigem
como a lei, mas tem uma demais dos estudantes, acarretando
distribuição desigual como o
muitas reprovações, a universidade
dinheiro: todos os consumidores
querem ser distintos e únicos, comerciária corre o risco de perdê-los
singulares, capazes de competir para outras instituições academicamente
com os demais para se destacar com mais complacentes; desse modo, o
suas vantagens diferenciadas, num professor se encontra na obrigação
mundo globalizado no qual impera profissional de ser condescendente com
um capitalismo cada vez mais a carência intelectual desses estudantes
jovial, embora também feroz despreparados, que perpetuam sua
(SIBILIA, 2012, p. 132). inaptidão cultural mediante o
A educação na era tecnocrática do mecanismo de legitimação da alienação
capitalismo neoliberal se configura e da estupidez acadêmica estabelecida
como um mecanismo que não visa à pela inserção de interesses alheios ao
promoção da singularidade humana em âmbito da verdadeira cultura pelos
sua possibilidade de expressão criativa, empresários da educação nos seus
mas acima de tudo a criação de negócios acadêmicos. Para José
especialistas máximos do mínimo que Contreras,
apenas reproduzem a ideologia da A escola começa a se movimentar
alienação existencial em suas atividades para oferecer o que atrai a clientela.
profissionais. Para Christian Laval, E a clientela se movimenta em
função do que sente como
competitivo no mercado social.

12
Assim, enquanto escola e usuários existencialmente e intelectualmente
não se sentarem para discutir o que preparadas para as dificuldades
acreditam que deveria ser a prática intrínsecas da vida acadêmica. Para
educativa, ambos estarão fazendo Paulo Freire,
movimentos de ajuste a partir de
demandas e necessidades que eles A sociedade alienada não tem
próprios não construíram, porque consciência de seu próprio existir.
não atuam enquanto grupo que Um profissional alienado é um ser
toma decisões deliberativas e inautêntico. Seu pensar não está
compartilhadas, senão como comprometido consigo mesmo, não
agentes isolados guiados por é responsável. O ser alienado não
interesses individuais, não sociais. olha para a realidade com critério
Não participam na definição pessoal, mas com olhos alheios
coletiva da educação e de sua (FREIRE, 1983, p. 35).
vinculação com a sociedade, mas Como o estudante da era tecnocrática
tão somente em processos de
não é rigorosamente exigido
escolha e de adequação a partir de
decisões dos quais estão excluídos,
academicamente pela instituição
porque são decisões tomadas pela educacional submetida ao crivo
administração (CONTRERAS, mercadológico, ele acaba por perder
2012, p. 285-286). qualquer parâmetro avaliativo em sua
intelectualidade, enfraquecendo a sua
A permissividade do sistema
capacidade de pensar, tornando-se um
comercialista de ensino se reflete no indivíduo alienado em um espaço
comportamento do estudante em sala de cultural que deveria justamente
aula e no decorrer de sua vida prática,
promover o progresso da sociedade em
manifestando-se principalmente no seu
suas expressões intelectuais,
desinteresse intelectual e no
econômicas e materiais. Conforme as
embotamento de sua personalidade
indagações de Fernando Savater,
narcísica, pois esse indivíduo se
considera a grande joia da coroa do A educação deve preparar gente
capitalismo educacional; ele somente apta a competir no mercado de
quer saber dos seus benefícios trabalho ou formar homens
completos? Deve dar ênfase à
institucionais e nada mais lhe importa
autonomia de cada indivíduo, com
desde que não seja afetado na realização frequência crítica e dissidente, ou à
dos seus interesses tacanhos. Se coesão social? Deve desenvolver a
porventura lhe indagarem se aceita a originalidade inovadora ou manter a
obtenção do diploma sem maior identidade tradicional do grupo?
esforço, certamente ele responderá Atendem à eficácia prática ou
afirmativamente, pois lhe falta tanto o apostam no risco criador?
senso de luta pela vitória como também Reproduzirá a ordem existente ou
o amadurecimento existencial para instruirá os rebeldes que possam
reconhecer que toda vida se constitui derrubá-la? (SAVATER, 2012, p.
sempre como um exercício de 17).
superação dos seus limites pessoais. A flama do saber se transforma na lama
Na sociedade tecnocrática, a formação da ignorância, socialmente legitimada
intelectual cede seu espaço para a pela ideologia da fragilidade do
arrecadação de novas divisas, pensamento incapaz de refletir
agregando nas fileiras estudantis radicalmente sobre qualquer tema
pessoas que, horrível de dizer, não estão intelectualmente mais sofisticado.

13
Ocorre assim a dissolução do projeto Quando ocorre uma reprovação, a culpa
iluminista e sua proposta de é do professor, quando o aluno não
emancipação do homem perante toda compreende o conteúdo da disciplina, a
forma de dominação externa, tal como culpa é do professor, e assim
apresentada por Kant: sucessivamente. Cria-se, dessa maneira,
Esclarecimento [Aufklärung] é a uma relação social injusta e tendenciosa
saída do homem de sua que torna o professor o bode expiatório
menoridade, da qual ele próprio é por toda degradação educacional, na
culpado. A menoridade é a qual o estudante não desenvolve a
incapacidade de fazer uso de seu consciência de autonomia na regulação
entendimento sem a direção de de sua existência, projetando toda
outro indivíduo. O homem é o responsabilidade pedagógica apenas na
próprio culpado dessa menoridade pessoa do professor, sem que haja na
se a causa dele não se encontra na consciência do estudante o
falta de entendimento, mas na falta desenvolvimento do senso crítico acerca
de decisão e coragem de servir-se
de sua própria necessidade de
de si mesmo sem a direção de
outrem. Sapere Aude! Tem participação ativa no processo de
coragem de fazer uso de teu próprio formação intelectual; nega-se assim o
entendimento, tal é o lema do estabelecimento de uma experiência
esclarecimento [Aufklärung]. dialética, na qual ambas as partes se
(KANT, 2005, p.63-64) transformam em sua ação no mundo
concreto. Olinda Maria Noronha
O espírito crítico do Esclarecimento
argumenta que
sucumbe perante a infantilização
sociocultural legitimada pela conversão O professor é entendido como um
da educação em mercadoria acessível trabalhador polivalente e flexível,
para todos que possam pagar por seus que precisa ter as ferramentas para
benefícios, impossibilitando que se se adequar às demandas do mundo
globalizado em constante mutação,
formem assim pessoas responsáveis por
priorizando as atividades práticas e
suas ações, pois essa massa infantilizada as situações concretas na
acredita que o poder financeiro é capaz aprendizagem dos alunos, para que
de resolver todos os seus problemas estes também respondam de
cotidianos, ocasionados justamente por maneira rápida e criativa aos
sua característica falta de discernimento problemas enfrentados no cotidiano
acerca da responsabilidade ética por (NORONHA, 2008, p. 34).
suas ações. A inserção de dispositivos Ao descrever a constituição ideológica
capitalistas nas relações pedagógicas da pós-modernidade, caracterizada pela
certamente cria pessoas incapazes de dissolução do projeto cultural
promoverem nas suas vidas o processo universalista do Esclarecimento, pela
de esclarecimento intelectual em sua constatação de que o projeto de
radicalidade. Ironicamente, apesar de emancipação plena do homem se
vislumbrarem a emancipação perante dissolveu pela barbárie totalitarista, pela
toda forma de autoridade social (pais, crítica ao conceito de identidade
professores, políticos), permanecem atômica e pela fragmentação técnica da
atrelados ainda diante de uma experiência do saber, Jean-François
autoridade, a do dinheiro, grande Lyotard pondera que
mediador de uma existência reificada
incapaz de proporcionar qualquer O antigo princípio segundo o qual a
exercício de singularização existencial. aquisição do saber é indissociável

14
da formação (bildung) do espírito, e firme determinação e dedicação dos
mesmo da pessoa, cai e cairá cada indivíduos para alcançar, de
vez mais em desuso. Esta relação maneira bem-sucedida, a auto-
entre fornecedores e usuários do emancipação da humanidade,
conhecimento e o próprio apesar de todas as adversidades, ou
conhecimento tende e tenderá a será, pelo contrário, a adoção pelos
assumir a forma que os produtores e indivíduos, em particular, de modos
os consumidores de mercadorias de comportamento dos objetivos
têm com estas últimas, ou seja, a reificados do capital?
forma valor. O saber é e será (MÉSZÁROS, 2008, p. 47-48).
produzido para ser vendido, e ele é
e será consumido para ser
Tal fenômeno decorre da desvalorização
valorizado numa nova produção: da leitura em nossa sociedade
nos dois casos, para ser trocado. Ele massificada, na qual apenas o que
deixa de ser para si mesmo seu importa é o imediatismo dos resultados
próprio fim; perde o seu “valor de e a espetacularização das vivências,
uso” (LYOTARD, 2002, p. 45). produzindo assim uma consciência
A vida universitária, cuja nobre função reificada, incapaz de desenvolver um
seria a de promover a emancipação nível de capacidade de abstração que
plena da consciência estudantil, se torna não decorre da negação do real, mas da
um período cronológico regido pela própria compreensão do mesmo e seu
regressão bárbara dos costumes, onde subsequente poder de transformação,
toda relação acadêmica se coisifica conforme apresentado por Guy Debord:
através de objetivos utilitários, a A consciência espectadora,
obtenção do diploma para a inserção prisioneira de um universo
imediata no mercado de trabalho. No achatado, limitado pela tela do
processo de aceleração espetacular da espetáculo para trás da qual sua
vida contemporânea, estudar não se própria vida foi deportada, só
conhece os interlocutores fictícios
configura mais como um exercício de
que a entretêm unicamente com sua
elevação intelectual, mas sim como um mercadoria e com a política de sua
esforço doloroso desprovido de sentido. mercadoria (DEBORD, 2006,
A mentalidade embotada do estudante p.140).
não reconhece no estudo a possibilidade
de suprimir o estado de alienação O ritmo vertiginoso da vida do
interior no qual ele se encontra. indivíduo da sociedade moderna exclui
Percebemos o desinteresse massificado dele o apreço pela reflexão e pelo
pela leitura no sistema “comerciário” de exercício da consciência, e esse
ensino, pois de um modo geral o processo torna-o mais suscetível de
alunado anseia apenas pelo saber sucumbir perante as forças envolventes
técnico para se tornar um profissional da “cultura das imagens”,
competente, bem situado no mercado de potencializando ainda mais os seus
trabalho, e de modo algum uma pessoa efeitos deletérios na subjetividade
crítica, pensante, que reflita sobre sua humana. Nessas condições, tudo aquilo
própria atividade profissional. Tal como que é reflexivo, que demande tempo de
indaga István Mészáros, pensamento, análise, amadurecimento,
recebe da massa intelectualmente
Será o conhecimento o elemento alienada o estigma de “chato”, “sem
necessário para transformar em importância”, “cansativo”, além de
realidade o ideal da emancipação
muitos outros estereótipos que
humana, em conjunto com uma
representam o empobrecimento da

15
experiência de pensamento na era investidores das corporações de ensino
tecnocrática. prevalecem radicalmente sobre todas as
A necessidade de o professor disposições culturais autênticas,
empobrecer seu vocabulário para se degradando a busca pelo aprimoramento
adequar ao índice de conhecimento intelectual em vista do estabelecimento
deficiente da língua vernácula por parte de competências sólidas na formação do
do alunado, assim como a inserção de estudante. As mensalidades dos alunos
elementos histriônicos na dinâmica de devem ser pagas em dia, mas o
suas aulas decorre da lógica pragmatista pagamento dos salários dos professores
do projeto tecnocrático do capitalismo é secundário para o especulador
tardio, que requer apenas profissionais financeiro travestido de cândido reitor:
alienados para a composição dos seus primeiro deve-se pagar seus caprichos
diversos quadros funcionais. O docente lúbricos, suas ostentações sociais e
uma espécie de animador de auditório benesses para figurações do poder.
que deve pelejar para conquistar Segundo Laurício Neumann,
despertar a atenção de um alunado que Esse ambiente adverso ao
depende cada vez mais de estímulos crescimento normal, equilibrado e
fortes para se manter na mínima global do indivíduo se dá por
atividade mental. Pensar é algo perigoso diversos motivos. Porém a causa
fundamental está localizada na
na era das emoções fortes da diluição do
organização da sociedade
espetáculo integrado nas relações capitalista cujas relações sociais de
humanas cada vez mais frágeis da dominação e exploração afastam e
sociabilidade contemporânea: dividem cada vez mais as pessoas,
Sob todas as suas formas massificando-as e escravizando-as
particulares – informação ou em torno de interesses gananciosos.
propaganda – publicidade ou É um processo que desagrega e
consumo direto de divertimentos -, despersonaliza as pessoas em
o espetáculo constitui o modelo virtude do caráter mercantil das
atual vida dominante na sociedade. relações sociais (NEUMANN,
É a afirmação onipresente da 1991, p. 37-38).
essência já feita na produção, e o Ao invés de favorecermos o
consumo que decorre dessa escolha desenvolvimento de uma sociedade
(DEBORD, 2006, p. 14-15).
democrática regida pela criticidade,
No jargão do futebol, chama-se transformamos a massa humana em um
“domingada” quando um zagueiro rebanho de consumidores felizes, pois
pretende manifestar um talento além das que plenamente “integrados” aos
suas próprias capacidades técnicas e, em ditames do sistema capitalista, gerando-
um ato de temeridade, perde a bola para se assim a redução intelectual do
o adversário, correndo o risco de assim estudante ao estado de infantilismo
comprometer o sucesso de sua equipe. narcísico, como uma criança que tudo
Analogamente, podemos dizer que quer instantaneamente. Para Istvan
vivemos então na era das “domingadas Mészáros,
pedagógicas”, dias tenebrosos para os
Limitar uma mudança educacional
professores, submetidos aos caprichos às margens corretivas interesseiras
histriônicos de imperiosos diretores do capital significa abandonar de
cujas cabeças são mais duras que a uma só vez, conscientemente ou
madeira de um carvalho; nessas não, o objetivo de uma
condições, os interesses pecuniários dos transformação social qualitativa. Do

16
mesmo modo, contudo, procurar pelo mundo não deveria ter
imagens de reforma sistêmica na crianças, e é preciso proibi-las de
própria estrutura do sistema do tomar parte em sua educação [...] A
capitalismo é uma contradição em autoridade foi recusada pelos
termos. É por isso que é necessário adultos, e isso somente pode
romper com a lógica do capital se significar uma coisa: que os adultos
quisermos contemplar a criação de se recusam a assumir a
uma alternativa educacional responsabilidade pelo mundo ao
significativamente diferente qual trouxeram as crianças [...] A
(MÉSZÁROS, 2008, p. 27). educação é o ponto em que
decidimos se amamos o mundo o
O projeto econômico do ensino privado bastante para assumirmos a
quando destituído de genuínos objetivos responsabilidade por ele e, com tal
educacionais tende assim a prejudicar o gesto, salvá-lo da ruína que seria
amadurecimento existencial do inevitável não fosse a renovação e a
estudante, pois este, ludibriado pela vinda dos novos e dos jovens
permissividade dos seus progenitores e (ARENDT, 2011, p. 239; p.240; p.
preservado pela lógica bonachona do 241).
capital, perde todo senso de Nessas condições, no decorrer da
responsabilidade perante o mundo, configuração tecnocrática do sistema
tornando-se então incapaz de se capitalista foi atribuído ao docente o
responsabilizar por seus atos oficio de inculcar nos estudantes valores
irrefletidos. Adorno e Horkheimer, ao que concerniam originalmente aos
descreverem a sociedade administrada estamentos familiares, mas estes,
capitalista, destacam que inseridos em uma ordenação
Quanto mais a realidade social se econômico-materialista que exige a
afastava da consciência cultivada, participação contínua no sistema de
tanto mais esta se via submetida a trabalho para acumulação de capital e
um processo de reificação. A subsequente ampliação do poder de
cultura converteu-se totalmente consumo, alienaram-se dessa
numa mercadoria difundida como responsabilidade ética. Conforme
uma informação, sem penetrar nos
salienta Paula Sibilia, “o desabamento
indivíduos dela informados. O
pensamento perde o fôlego e limita- das antigas hierarquias no seio familiar
se à apreensão do fatual isolado. e escolar, essa indistinção gradual entre
Rejeitam-se as relações conceituais os papéis de pais e filhos ou professores
porque são um esforço incômodo e e alunos, é sem dúvida um aspecto
inútil (ADORNO & importante na dissolução das etapas da
HORKHEIMER, 1985, p. 184). vida organizada pela modernidade”
O ritmo alucinante do processo de (SIBILIA, 2012, p. 111).
trabalho da sociedade capitalista e o O clientelismo economicista é, sem
despreparo familiar impede que os dúvida, potencialmente sedutor sobre as
filhos recebam a educação conveniente individualidades ávidas pelo consumo
em seus lares, de modo que os pais fácil e todo prazer efêmero daí
projetam para a instituição escolar a resultante, promovendo assim a
responsabilidade pela educação total cristalização das disposições narcísicas
dos filhos, imiscuindo-se de seu dever da pessoa que, adulada pelo discurso
primordial. Hannah Arendt aponta que publicitário, sente-se na obrigação de
Qualquer pessoa que se recuse a ser feliz, ainda que tal estado de
assumir a responsabilidade coletiva

17
felicidade se conquiste através da Considerações finais
anulação do outro. Para Beatriz Sarlo,
No decorrer deste texto vimos um
Quando a administração quadro tenebroso que perpassa as
educacional perde poder e recursos, relações profissionais dos professores
os grandes ministros da educação da sociedade regida pela ideologia
são, na verdade, os gerentes e neoliberal e de que maneira a
programadores do mercado, cujos
subjetividade dos estudantes, apoiada
valores não incentivam o
pela permissividade das instituições
surgimento de uma sociedade de
cidadãos iguais e sim o de uma rede comerciárias de ensino, adotou esse
de consumidores fiéis (SARLO, discurso nas suas práticas cotidianas.
2005, p. 101-102). Somente uma radical luta por
reconhecimento permitirá que a classe
No sistema “comerciário” de ensino, a docente destrua esse jugo economicista
instituição visa apenas obter lucro para que torna o ofício de professor uma
a sua conta bancária, jamais a promoção espécie de servo da estrutura alienante
da suficiência acadêmica, cultural e do capitalismo tardio. Nessas condições,
intelectual dos seus estudantes, todas as ações sociais perpetradas pelo
assemelhando-se assim a uma grande professorado são legítimas para que sua
loja de departamentos, na qual o respeitabilidade humana seja
indivíduo escolhe de acordo com seu reconquistada, e certamente caberia aos
bel-prazer aquilo que deseja consumir, órgãos públicos maior fiscalização nos
satisfazendo assim as suas necessidades espaços educacionais, penalizando as
materiais mais elementares. Conforme instituições acadêmicas que porventura
aponta Ivan Illich, não permitam ao professor desenvolver
Ensina-se aos alunos-consumidores suas atividades profissionais com
que adaptem seus desejos aos autonomia, segurança e dignidade.
valores à venda. São levadas a
sentirem-se culpadas caso não ajam
de acordo com as predições da Referências
pesquisa de consumo, recebendo os ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max.
graus e certificados que os Dialética do Esclarecimento: fragmentos
colocarão na categoria de trabalho filosóficos. Trad. de Guido Antônio de Almeida.
pela qual foram motivados a Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
esperar (ILLICH, 1982, p. 79). ARENDT, Hannah. Entre o passado e o
A educação, que poderia ser um futuro. Trad. de Mauro W. Barbosa. São Paulo:
Perspectiva, 2011.
instrumento essencial para a mudança
da estrutura excludente do regime CANCLINI, Néstor García. Leitores,
capitalista, torna-se justamente espectadores e internautas. Trad. de Ana
Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.
instrumento dos seus mais violentos
processos de dominação ao fornecer os CASTRO, Gilda de. Professor submisso,
“conhecimentos” e o pessoal necessário aluno-cliente: reflexões sobre a docência no
Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
para a manutenção da maquinaria
produtiva em expansão desse sistema, CONTRERAS, José. A autonomia dos
professores. Trad. de Sandra Trabucco
gerando ainda um sistema ideológico
Valenzuela. São Paulo: Cortez, 2012.
que legitima os interesses dominantes
das grandes corporações empresariais. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo –
Comentários sobre a Sociedade do
Espetáculo. Trad. de Estela dos Santos Abreu.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

18
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de MÉSZÁROS, István. A educação para além
Janeiro: Paz e Terra, 1983. do Capital. Trad. De Isa Tavares. São Paulo:
Boitempo, 2008.
GADOTTI, Moacir. Educação e poder:
introdução à pedagogia do conflito. São Paulo: NEUMANN, Laurício. Educação e
Cortez, 1987. comunicação alternativa. Petrópolis: Vozes,
1991.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Trad. de
Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, NORONHA, Olinda Maria. “Globalização,
1982. mundialização e educação”. In: LUCENA,
Carlos. Capitalismo, Estado, Educação.
KANT, Immanuel. “Resposta à pergunta: que é
Campinas: Alínea, 2008, p.13-42.
Esclarecimento”? In: Textos Seletos. Trad. de
Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes. SARLO, Beatriz. Tempo Presente: notas
Petrópolis: Vozes, 2005, p. 63-71. sobre a mudança de uma cultura. Trad. de
Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José
LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-
Olympio, 2005.
Moderna. Trad. de Ricardo Corrêa Barbosa.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. SAVATER, Fernando. O Valor de Educar.
Trad. de Monica Stahel. São Paulo: Planeta,
LAVAL, Christian. A escola não é uma
2012.
empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino
público. Trad. de Maria Luiza M. de Carvalho e SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em
Silva. Londrina: Ed. Planta, 2004. tempos de dispersão. Trad. de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2012.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-
Filosóficos. Trad. de Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 2004.
Recebido em 2013-06-23
Publicado em 2013-07-06

19

Você também pode gostar