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o Revista Adusp

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UNIVERSIDADE E TALENTO
Claudomiro Teodoro/Folha Imagem

Neste artigo, redigido no ano passado, Florestan Fernandes analisa a crise


da educação no Brasil. Para ele, nunca existiu uma política educacional que atendesse
aos interesses dos mais necessitados. O Estado não priorizou e não prioriza o ensino
gratuito e a pesquisa. Quanto à USP, Florestan lamenta que ela tenha conferido à
antiga Faculdade de Pedagogia e à Licenciatura o segundo plano, não assumindo
sua vocação de formadora do quadro docente.
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Revista Adusp Outubro 1995

universidade en- realidade, o Estado daria, forço- combinar alta concentração da

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frenta uma crise de samente, prioridade, no ensino riqueza, da cultura e de poder
alcance mundial. Já gratuito e de qualidade em todos nas mãos de minorias privilegia-
escrevi sobre o as- os graus, à pesquisa básica em to- das e a crescente concentração
sunto, que, aliás, dos os ramos do saber, à pesquisa de miséria, de ignorância e de su-
preocupa muitos científica aplicada e à invenção balternização nas inúmeras maio-
estudiosos. A situação brasileira tecnológica original, para evitar rias dos de baixo. As classes so-
é peculiar, porque atravessamos exatamente o que aconteceu - o ciais funcionam como bombas de
rápido demais a transição do ca- que fizeram os Estados Unidos, a sucção: os que mandam reprodu-
pitalismo competitivo para o ca- Alemanha e o Japão. A autono- zem com maior dureza os proces-
pitalismo oligopolista; e este se mia da produção do saber e do sos de expoliação aplicados pelas
alterou em seus dinamismos eco- pensamento inventivo represen- nações capitalistas centrais (o
nômicos e culturais antes que ti- tam os alvos essenciais de uma que levou alguns autores a usar o
véssemos nos adaptado ao mode- Nação que pretenda crescer e di- conceito de “colonialismo inter-
lo anterior. Toda uma no”, pouco preciso
infra-estrutura, mon- por ocultar as mani-
tada principalmente festações efetivas da
às custas do poder po- luta de classes e da
lítico, foi obsoletizada As chamadas “políticas educacionais” das dominação imperialis-
nas duas transforma- ta). Em conseqüência,
ções sucessivas. E o várias repúblicas deste século nunca o que sobra do exce-
grande beneficiário dente econômico vai
dos investimentos pú- existiram. Se elas tivessem realidade, o predominantemente
blicos e do processo para as funções de
de acumulação “pri- Estado daria, forçosamente, prioridade, no acumulação de capital
mitiva”, a firma gigan- do Estado. Destinam-
te estrangeira, agora ensino gratuito e de qualidade em todos os se recursos mínimos
exige um marco zero para as demais fun-
como novo ponto de graus, à pesquisa básica em todos os ramos ções, vinculadas à
partida, com a privati- educação escolar, aos
zação das estruturas do saber, à pesquisa científica aplicada e à serviços de saúde e de
criadas pelo interven- assistência social ou
cionismo estatal, sob invenção tecnológica original. de habitação etc. Não
as bandeiras contradi- são as escolas que
tórias do “nacionalis- barram e expulsam os
mo econômico” e da pobres da seleção po-
“modernização” com vistas à “in- ferenciar-se através do capitalis- sitiva. É a estrutura de classes so-
corporação no primeiro mundo”. mo. Este possui duas faces distin- ciais que impede qualquer forma
Poucos países erraram tanto em tas. Ao lado de uma interdepen- de distribuição das oportunida-
suas políticas econômicas e de- dência inevitável, coexistem, no des educacionais entre todas as
vastaram maior soma de recursos plano internacional, os países ca- classes, marginalizando as classes
materiais e humanos no altar do pitalistas hegemônicos, cuja ex- subalternas da participação edu-
“desenvolvimento econômico”, pansão é relativamente auto-sus- cacional, cultural e política
primeiro, e da “aceleração do de- tentada, e os países de origem “eqüitativa”e “democrática”.
senvolvimento econômico”, de- colonial ou não, cujo crescimento Uma “política educacional”,
pois. Mas não aprendemos a li- é neocolonial, dependentes ou aberta para a formação e o penei-
ção. A ilusão continua de pé e o associados, os quais transferem ramento do talento, compreende
governo, juntamente com as eli- para o exterior parcelas variáveis a pré-escola e os demais graus de
tes no poder das classes domi- do excedente econômico, pilha- ensino. E deve ser, necessaria-
nantes, barafustou pela última al- das através das técnicas econômi- mente, seletiva a nível vocacional.
ternativa, certos que as contas cas, culturais e políticas do impe- A crítica corrente, sobre o “elitis-
não sairão de seus bolsos, mas rialismo. Quanto maior for a re- mo”, pressupõe equívocos circu-
dos cofres públicos. lação entre o excedente econômi- lares. Ela envolve um lapso con-
Isso quer dizer que as chama- co gerado e as alíquotas apro- tra-ideológico, que contém efeito
das “políticas educacionais” das priadas pelas nações capitalistas boomerang. O nosso ensino, espe-
várias repúblicas deste século hegemônicas, maior será a ten- cialmente no segundo grau, mas
nunca existiram. Se elas tivessem dência dos países explorados em de modo particular na graduação
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e pós-graduação, não é elitista - A programação do curso de tes de avaliação. Acresce que
constitui um monopólio das elites didática subordinou-se ao objeti- muitos lograram manter-se na
das classes dominantes. A alta vo de formar professores com universidade, como assistentes e
qualidade do ensino interessa aos comprovado nível de profissiona- professores contratados ou cate-
setores das classes sociais dos lização. Por isso, a escolha das dráticos. Era uma minoria que se
dois níveis inferiores, trabalhado- matérias e os conteúdos dos cur- amparava em status próprio, que
ras ou médias. A antiga concep- sos foram mais teóricos do que a punha em um nível de reputa-
ção da educação escolar como práticos. Professores ideais para ção social equivalente ao top dos
um ascensor social, apesar de in- alunos ideais de uma escola ideal. profissionais liberais mais consi-
sustentável, continha aí o seu Esse nexo sustentou os resultados derados. No planejamento global,
grão de congruência com o regi- positivos alcançados e, ao mesmo nunca se tentou um teste precoce
me de classes e o caráter do “produto real” da licen-
competitivo da sociedade ciatura. Os professores mais
capitalista. Em certas con- atilados ou corajosos sa-
dições históricas, ela cor- biam que deviam fazer
responde às exigências edu- adaptações pedagógicas sé-
cacionais e psicoculturais rias, em benefício dos estu-
da mobilidade social. dantes e de suas futuras ta-
Quando foi fundada, a Fa- refas como professores. Po-
culdade de Filosofia, Ciên- rém, o Frankenstein teórico
cias e Letras respondia a e prático permaneceu, sem
uma ideologia “oficial” das modificações pedagógicas
elites no poder, de buscar estruturais e dinâmicas, por
meios de ampliação e reno- muito tempo.
vação através de “sangue Enquanto isso, a socie-
novo”. Vilfredo Pareto e A “carreira de professor” dade inclusiva alterou-se e o
outros cientistas sociais objetivo de formar professo-
analisaram esse processo, perdeu suas lantejoulas, res sofreu diversos desloca-
que surge imperativamente mentos e outras tantas de-
quando as elites das classes tornando-se pouco atrativa: só formações correspondentes.
dominantes “envelhecem” O próprio professor de se-
e “declinam” ou em cir- a vocação ou um grau gundo grau enfrentou um
cunstâncias especiais, nas processo de desnivelamento
quais após uma prolongada profundo de curiosidade pela persistente, perdendo pres-
exclusão voltam para o in- tígio, renda e condições de
terior da classe dominante socialização dos adolescentes auto-realização pedagógica
(ou estamento; ou casta) a propícias. Em suma, a “car-
única viabilidade da “reno- garantiam uma procura reira de professor” perdeu
vação das elites” (o que suas lantejoulas, tornando-
também pode ocorrer co- oscilante. se pouco atrativa: só a voca-
mo efeito de invasões ou da ção ou um grau profundo
imigração). A licenciatura de curiosidade pela sociali-
surgiu nesse contexto, que lhe foi tempo, alimentou a fonte dos ma- zação dos adolescentes garantiam
favorável, porque houve extensa logros ocidentais que se segui- uma procura oscilante. Paralela-
passagem de professores de se- ram. Nas três primeiras décadas, mente, a ênfase (que começa com
gundo grau e de escolas normais os professores licenciados pos- a ditadura militar mas aumentou
para o ensino superior, patrocina- suíam uma reserva de mercado e progressivamente, pela incorpora-
do e amparado pelo poder públi- o professor de segundo grau e de ção do Brasil na economia oligo-
co estadual. A experiência, a ma- escola normal desfrutava de pres- polista mundial) foi posta na for-
turidade e por vezes a vocação tígio social que o situava aproxi- mação de massas de estudantes
desses professores asseguraram madamente (embora de maneira dos cursos técnicos e da gradua-
um corpo estudantil sofisticado, nebulosa) nas cercanias do profis- ção e pós-graduação, nas quais se
crítico e ansioso por encontrar al- sional liberal. Além disso, o pro- difundiu a ambição do “profissio-
guma via de sair da rotina e de fessor conseguia um salário que nal para a iniciativa privada”. A li-
conseguir o ensejo de lançarem- permitia sustentar as aparências e cenciatura perdia sentido para
se em outra linha de competição uma tradição estamental o prote- duas categorias importantes de
profissional. gia de quedas abruptas e constan- alunos: os que pretendiam “seguir
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a carreira universitária”; e os que O maior erro que ocorreu na tro e para baixo. A universidade
buscavam os melhores salários USP foi o de conferir à antiga condenou-se a subsistir como
nos melhores empregos, fazendo Faculdade de Pedagogia e à li- prisioneira das elites das classes
a conexão entre “empresa e uni- cenciatura o segundo plano, de dominantes e não percebeu que
versidade” ao nível profissional. companheiros de viagem de ter- dependia dos professores para
Essas alterações teriam de ceira qualidade. Desde o início, associar a imaginação pedagógi-
afetar o número de candidatos à a Pedagogia deveria, pelo me- ca a um novo estilo de cultivar e
licenciatura e o grau de atração nos, ter uma preeminência à Fi- estimular os talentos para ativi-
pela imaginação pedagógica. É losofia. Trazer bons professores dades que transcendiam aos “in-
preciso que se reconheça objeti- do exterior e fomentar a sua in- teresses empresariais” e ao
vamente: isso não acarretava fluência interna segundo ritmos “crescimento econômico”.
uma natural deterioração da li- intensos. E difundir representa- Uma “política educacional”
cenciatura. Ao contrário, punha ções que expusessem a pedago- pioneira e transformadora deve
em questão a sua especificidade gia como o eixo das esperanças, centrar-se na associação recí-
e o modelo de realizá-la. Quan- que movia a USP e a Faculdade proca da atividade docente críti-
do saí da USP a situa- ca e do despertar do
ção estava nesse pé e talento inconformis-
não tive ocasião de ir ta. O que se preten-
além das reflexões ali-
O maior erro que ocorreu na USP foi o de de? Integrar o jo-
nhadas acima. Desco- vem à estrutura e ao
bri que a Faculdade de
conferir à antiga Faculdade de Pedagogia e funcionamento do
Educação encetou uma maquinismo ou da
evolução que não se
à licenciatura o segundo plano, de empresa? Ou con-
previa, muito instigan- duzir a Nação emer-
te e produtiva. E que,
companheiros de viagem de terceira gente em sua auto-
dentro dos altos e bai- emancipação coleti-
xos dos obstáculos que
qualidade. Desde o início, a Pedagogia va? A imaginação
a USP ergue à renova- pedagógica nutre-se
ção fora e acima de
deveria, pelo menos, ter uma preeminência de conhecimentos
certos campos de ensi- teóricos e de proce-
no e investigação, ela
à Filosofia. Trazer bons professores do dimentos práticos
se equipou para dar que agitam a orga-
um sentido mais pro-
exterior e fomentar a sua influência interna nização e os conteú-
vocativo à formação do dos da personalida-
professor. Daí a preo-
segundo ritmos intensos. de. Ela não pode ser
cupação que orientou a excluída das corren-
escolha do tema deste tes culturais, sociais
artigo. O talento conta como o de Filosofia, Ciências e Letras. e políticas que mudam dia-a-dia
alfa e o ômega das funções cru- Correlatamente, os alunos que o porvir do Brasil. No ponto ze-
ciais da universidade. E cabe aos se destinavam à licenciatura e ro, pretendeu-se que a universi-
professores conclamar o corpo pretendiam devotar-se ao ensi- dade fosse a serva dos podero-
coletivo da instituição em que no deviam aprender que abraça- sos e de seus privilégios. Hoje, o
trabalham para essa função. Não vam uma vocação complexa e que se quer é que a universida-
porque o número de professores fundamental. Cabia aos profes- de contribua para a libertação
formados seja pequeno. Mas sores do curso de pedagogia e dos oprimidos e que promova,
porque o talento permeia ou é o da licenciatura ou do curso de entre os de baixo, uma forte as-
nervo vital da existência de uma filosofia assinalar a importância piração de combater o embrute-
matéria-prima (perdõem-me a li- nuclear do talento virgem e do cimento, de promover a desalie-
berdade) que valha a pena, o es- seu polimento na universidade. nação e desvendar o seu talento
tudante, de uma universidade A tarefa ficou, por algum tem- para si, para a sua classe e para
com força criadora e de uma so- po, nas mãos de sociólogos e es- a coletividade. O talento como
ciedade com condições para for- fumou-se, como se a Nação de detonador social? E ele valerá
jar a sua autonomia cultural, ba- origem colonial e dependente alguma coisa, em si e por si, se
se do seu desenvolvimento eco- não devesse bater-se pela sele- não escapar à rotina, ao estran-
nômico relativamente auto-sus- ção e aproveitamento dos talen- gulamento da profissão como
tentado, da revolução cultural e tos, de todas as magnitudes, um fim exclusivo, à tirania da
da revolução democrática. com os olhos voltados para den- ordem?
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