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Poder, política e educação

Paul Singer
Faculdade de Economia e Administração, Universidade de São Paulo

Conferência de abertura da XVIII Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, outubro de 1995.

O grande debate educacional hoje O grande propósito da educação seria proporcionar


ao filho das classes trabalhadoras a consciência, por-
Mais do que nunca, a educação está hoje em tanto a motivação (além de instrumentos intelec-
debate, no Brasil e em todo do mundo. O universo tuais), que lhe permita o engajamento em movimen-
dos educadores, educandos, administradores de tos coletivos visando tornar a sociedade mais livre
aparelhos educacionais, políticos e gestores públi- e igualitária. É óbvio que a educação escolar tam-
cos está dividido e polarizado em duas visões opos- bém deveria cumprir muitos outros propósitos, que
tas dos fins da educação e de como atingi-los. Os poderiam ser resumidos na habilitação do indivíduo
dois lados são entusiásticos defensores da educação, a se inserir de forma adequada na vida adulta: pro-
que consideram importantíssima. Mas, além disso, fissional, familiar, esportiva, artística, etc.
quase nada têm em comum. A sua caracterização, A visão civil democrática da educação não vê
a seguir, deliberadamente acentua as diferenças, contradição entre a formação do cidadão e a for-
mesmo sabendo que devem existir muitos que se mação do profissional, da futura mãe ou pai de fa-
posicionam de forma menos extremada. É que as mília, do esportista, do artista e assim por diante.
diferenças permitem compreender melhor o teor do O laço que une os procederes educativos é o respeito
debate e ajudam a dele participar. e a preocupação pela autonomia do educando, por-
Vamos chamar a primeira posição de civil de- tanto, pela autoformação de sua consciência e pela
mocrática, porque ela encara a educação em geral e sua gradativa capacitação para se libertar da tute-
a escolar em particular como processo de formação la do educador e poder prosseguir, sozinho ou em
cidadã, tendo em vista o exercício de direitos e obri- companhia de seus pares, sua auto-educação. A ên-
gações típicos da democracia. Essa visão da educação fase, nessa visão, é num tipo de relação entre edu-
centra-se no educando e em particular no educan- cador e educando em que o primeiro conduz o se-
do das classes desprivilegiadas ou não-proprietárias. gundo por vias que vão sendo determinadas cada

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vez mais pelo último. Há muita discussão, eviden- As duas visões valorizam a educação como
temente, sobre como se deve constituir essa relação, meio de melhorar a sociedade, acentuando deter-
mas o que une todos os que compartilham essa vi- minados efeitos daquela. Mas as concepções de co-
são é a idéia de que toda criança deseja “natural- mo a sociedade e a economia funcionam, que sub-
mente” aprender e que esse desejo deve ser respei- jazem a cada visão, são muito diversas e se integram
tado e alimentado. O limite desse respeito pela in- em legados ideológicos opostos. Cumpre observar
dividualidade do educando é dado pelas necessida- que há outras visões de educação além das duas aqui
des e interesses dos demais — educandos, educado- esquematizadas, mas que porém são atualmente
res, pais e familiares etc. —, o que exige disciplina, ofuscadas pelo grande debate em andamento. Para
outro tópico controverso. compreender esse debate, cumpre retornar às ori-
gens das visões em confronto.
O que se contrapõe a essa visão é a que deno-
minarei produtivista. Esta concebe a educação so- A exigência democrática
bretudo escolar como preparação dos indivíduos pa- da educação universal
ra o ingresso, da melhor forma possível, na divisão
social do trabalho. Não custa repetir que também a A visão civil democrática da educação decor-
visão produtivista não despreza outros propósitos re do grande movimento pela igualdade dos dois
do processo educacional, mas enfatiza o que é cha- últimos séculos, que culminou na batalha pelo su-
mado pelos economistas de acumulação de capital frágio universal, da qual resultou a democracia mo-
humano. Cada indivíduo é encarado como tendo derna. Convém diferenciar aqui a ideologia demo-
capacidade produtiva potencial, cujo desenvolvi- crática da liberal. Esta confinava a igualdade entre
mento exige esforço tanto do próprio como de seus os cidadãos aos resultados da competição no mer-
instrutores e familiares. Esse esforço se traduz num cado. Os homens (mas não as mulheres) deviam ser
custo, que pode ser formulado em termos pecuniá- iguais em direitos jurídicos, para poderem compe-
rios e representa o valor do capital humano de que tir nos mercados, porém nada deveria reduzir a de-
dispõe cada indivíduo. Esse capital humano provém sigualdade “natural” entre ganhadores e perdedo-
não apenas da educação escolar mas também de cui- res. Sendo justas as regras do jogo do mercado, que
dados com a saúde e outros que contribuem para de- constituiriam a liberdade perfeita de Adam Smith,
senvolver a capacidade produtiva do indivíduo. qualquer interferência nos resultados reduziria o
Educar seria primordialmente isto: instruir e sagrado direito à liberdade. A premissa era a de que
desenvolver faculdades que habilitem o educando os ganhadores obtêm a preferência dos comprado-
a integrar o mercado de trabalho o mais vantajo- res por servi-los melhor e utilizam com mais parci-
samente possível. Cumpre atentar para o pressupos- mônia e sabedoria o excedente de renda a que fa-
to crucial dessa visão: o de que a vantagem indivi- zem jus. Transferir dos ganhadores aos perdedores
dual, que se traduz em ganho elevado e outras con- parte desse excedente, além de injusto, piora a uti-
dições favoráveis de usufruto material, é simulta- lização do excedente com prejuízo para toda a so-
neamente social. O bem-estar de todos é o resultante ciedade. Pior ainda, desincentiva os ganhadores, ao
da soma dos ganhos individuais, que, em um mer- privá-los de seu prêmio, e também os perdedores,
cado de trabalho livre e concorrencial, são propor- ao anular suas perdas.
cionais ao capital humano acumulado em cada um
dos indivíduos. Em outras palavras, a educação pro- A ideologia democrática parte de premissas
move o aumento da produtividade, que seria o fa- diferentes. Coloca igualdade e liberdade no mesmo
tor mais importante para elevar o produto social e pé e nega a legitimidade dos resultados do jogo do
dessa maneira eliminar a pobreza. mercado pelo fato de a sociedade capitalista estar

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dividida em classes, que agrupam de um lado os tando as principais conquistas democráticas. Pelo
proprietários de capital e do outro os que são obri- que sabemos, nenhum país em que o sufrágio uni-
gados a ganhar a vida com seu trabalho. De acor- versal foi implantado voltou atrás e restaurou o
do com essa ideologia, os detentores do capital en- sufrágio censitário. (Regimes democráticos foram
tram no mercado com vantagens decisivas em re- muitas vezes derrubados e substituídos por ditadu-
lação aos trabalhadores, que dependem dos primei- ras, em que não se votava ou as eleições eram far-
ros para poder participar da produção social. Per- sas, mas isso não significava um retorno ao libera-
dedores e ganhadores, portanto, já estão predeter- lismo pré-democrático.) Era correto então caracteri-
minados e, se nada for feito para atenuar as dife- zar a direita antifascista como liberal democrática.
renças entre eles, estas tendem a se aprofundar. Daí Foi durante esse período que, ao menos nos
as reivindicações democráticas de universalização países capitalistas adiantados, parte importante da
não apenas dos direitos políticos de votar e ser vo- plataforma democrática se tornou realidade, prin-
tado mas também do acesso à educação e ao segu- cipalmente sob a forma do Estado de bem-estar so-
ro social de saúde, de velhice, de morte, de aciden- cial. E foi no âmbito deste que a universalização da
tes de trabalho e de desemprego. educação escolar, sob a forma de ensino público,
A demanda de acesso universal à educação es- foi implantada num importante número de países.
colar tinha como propósitos principais capacitar as A geração atual de adultos, nos países do Primeiro
crianças, sobretudo das camadas mais desprivile- Mundo, foi possivelmente a primeira que teve real-
giadas, a exercer plenamente os direitos políticos mente acesso universal ao ensino básico. Governos
que a conquista do sufrágio universal lhes propor- conservadores (liberal-democratas) contribuíram,
cionava, bem como dar acesso a essas camadas a ao lado de governos social-democratas ou trabalhis-
oportunidades culturais e profissionais que exigem tas, para que isso fosse logrado.
escolarização. Convém lembrar que, nos albores da Na realidade, a fusão do liberalismo com a de-
democracia, o ensino universitário era explicitamen- mocracia, que em meados deste século parecia um
te elitista e era exigido para o exercício das chama- fato consumado e irreversível, foi revertida pelo res-
das profissões liberais, que gozavam de nível rela- surgimento de forte onda liberal anti-democrática,
tivamente elevado de ganho e grande prestígio so- que tomou o nome de neoliberalismo. Essa rever-
cial. Foram as feministas que lideraram boa parte são foi, é bom dizer desde logo, parcial. A adesão
das grandes lutas tanto pelo sufrágio universal como ao sufrágio universal foi mantida, mas o apoio às
pela educação universal, que naturalmente tinha de outras conquistas democráticas, no campo da se-
ser gratuita e, portanto, pública. guridade social e da educação universal, foi retira-
do. Portanto, as referências à liberal-democracia
O liberalismo em face devem ser hoje fortemente qualificadas. As princi-
da democracia pais correntes de direita não-autoritária, a partir de
meados da década de 70, deram uma volta de 180º
Existe hoje uma tendência a minimizar as di- e se tornaram neoliberais, retornando sob muitos
ferenças entre liberalismo e democracia, cunhando- aspectos à postura ideológica que tinham tido no
se a expressão liberal-democracia ou democracia século passado.
liberal. Essa tendência correspondeu a uma realida-
de histórica, que durou de certo modo da década A crítica neoliberal aos serviços
de 30 à década de 60 deste século. Nesse período, sociais do Estado
a resistência liberal à democracia cedeu e grande
parte das correntes mais conservadoras, que tinham A visão produtivista da educação se origina da
o liberalismo clássico como bandeira, acabou acei- crítica neoliberal aos serviços sociais do Estado. Os

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principais pontos dessa crítica têm sido os seguintes: menos competitivo. A reforma escolar chilena é
> Paternalismo. Serviços sociais como au- muitas vezes citada como modelo: o Estado conce-
xílio aos desempregados, às mães solteiras, às de bolsas aos estudantes, que têm liberdade de es-
famílias numerosas oferecem incentivos aos colher sua escola. Espera-se que a competição en-
beneficiários para que reiterem comportamen- tre escolas públicas e privadas pelas bolsas leve ao
tos que os levaram a essa condição. Assim, os aumento da qualidade.
desempregados tendem a permanecer desem- Na visão produtivista, o ensino público não
pregados, moças solteiras são estimuladas a atende, por falta de estímulo, as necessidades da
engravidar, famílias com muitos filhos tendem demanda por trabalho. A proposta que formula é
a se multiplicar. de que a rede escolar esteja sujeita às regras do mer-
cado, de modo que os diretores e os professores
> Ineficiência. O seguro social, para não
tenham interesse em formar ganhadores, pois esta
estimular a simulação de situações falsas de ne-
seria a melhor forma de eles próprios ganharem o
cessidade, requer um extenso aparelho de con-
jogo concorrencial. Cada escola seria julgada pelo
trole e acompanhamento, o qual acaba absor-
“mercado”, isto é, pelos alunos ou seus pais, em
vendo uma parcela desmedida dos recursos
função da qualidade de seu produto, avaliada pelo
destinados ao seguro. Além disso, a organiza-
maior ou menor êxito dos seus ex-estudantes na
ção de serviços sociais públicos não apresen-
vida econômica e social. E a escola avaliaria seus
ta qualquer incentivo ao aumento da produ-
professores pelos mesmos critérios.
tividade dos funcionários ou da eficiência no
Espera-se da implementação desse tipo de re-
uso dos recursos. Em conseqüência, os apare-
formas que o ensino escolar melhore de qualidade
lhos de prestação de serviços sociais apresen-
e baixe de custo, seja para os indivíduos seja para
tariam quase sempre excesso de empregados
o Estado. A visão produtivista não é contrária à
e desperdício de recursos.
universalidade da educação, mas prefere que ela
> Corporativismo. Os profissionais dos
resulte da livre preferência dos indivíduos em vez
serviços sociais do Estado têm interesse na am- de coerção legal, amparada em ampla oferta de va-
pliação dos aparelhos em que atuam e por isso gas gratuitas no ensino público. O que fundamen-
se aliam às clientelas desses serviços para pres- ta esse tipo de proposta é a idéia de que a competi-
sionar o poder público no sentido de ampliar ção em mercado é o melhor meio para promover a
os referidos serviços e aumentar as dotações
eficiência, ou seja, a combinação de qualidade com
orçamentárias que os sustentam. A crise fiscal baixo custo, com pleno respeito à liberdade de op-
do Estado, diagnosticada pelo neoliberalismo ção de cada indivíduo.
como raiz da estagflação, que tem afetado as
economias capitalistas nos últimos vinte anos, A crise do Estado de bem-estar social
seria o resultado de tais mazelas.
A visão produtivista propõe reformar o ensino Já é tempo agora de colocar esse debate, que
público seguindo-se linhas decorrentes dessas crí- é fundamental para os destinos da educação, em seu
ticas. O paternalismo seria o resultado da gratui- contexto. Como ficou claro, ele surge como resul-
dade do ensino: como o aluno e sua família nada tado da reviravolta neoliberal, que no campo do
pagam, eles não têm incentivo para melhorar o ensino passou a sustentar uma alternativa à escola
aproveitamento do primeiro e evitar que repita de pública gratuita e obrigatória, que até então (década
ano. A gratuidade também torna o aluno passivo de 70) só tinha contra si os que favoreciam o ensi-
perante a má qualidade do ensino. Para evitar es- no confessional. Coincidindo com essa reviravolta,
ses males, o ensino deveria se tornar pago ou ao o Estado de bem-estar social entrou em crise nos

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principais países do Primeiro Mundo. Embora pos- A crítica neoliberal explicitou uma crise que
sa parecer que essa crise tenha sido provocada pela a mudança econômica tinha causado. O fato é que
chegada do neoliberalismo ao poder na Grã-Bre- nos anos dourados o extraordinário dinamismo da
tanha (Tatcher, 1979), nos EUA (Reagan, 1981) e economia tinha tornado o encargo representado
em seguida em outros países, tudo indica que a cau- pelos serviços sociais bastante leve. O pleno empre-
salidade foi inversa. A crise do Estado de bem-es- go reduzira ao mínimo o gasto com auxílio aos de-
tar se manifesta antes, desde meados da década de sempregados. O peso das aposentadorias era con-
70, e foi ela que provavelmente preparou o terre- trabalançado pela entrada maciça de jovens da ge-
no para a ascensão do neoliberalismo. ração do baby boom (termo cunhado em referên-
O fato fundamental é que por volta de 1974, cia à alta das taxas de natalidade nas primeiras dé-
com o primeiro choque do petróleo, se encerrou um cadas de pós-guerra) no mercado de trabalho. A
período histórico conhecido como o dos anos dou- redução da jornada e a melhoria das condições de
rados do capitalismo, caracterizado por taxas ele- trabalho possivelmente reduziram os riscos à saú-
vadas, historicamente as mais altas, de crescimen- de e à vida, do que dá testemunha a persistente que-
to da produção e da produtividade, por pleno em- da da mortalidade no período.
prego e intenso aumento do consumo. Esse perío-
do se iniciou com o fim da Segunda Guerra Mun- Tudo isso mudou para pior, a partir de mea-
dial, e nele se operou, nos países capitalistas adian- dos da década de 70. O aumento do desemprego,
tados, uma transformação fundamental: as classes a redução do número de jovens e a enorme dificul-
trabalhadoras foram arrancadas de sua pobreza an- dade para encontrarem emprego, a piora das con-
cestral e passaram a usufruir níveis de consumo (in- dições de saúde, com o aumento da violência e do
clusive de escolaridade) comparáveis aos das clas- consumo de drogas, tudo isso expandiu fortemen-
ses até então privilegiadas. Obviamente os gastos te o gasto com os serviços sociais do Estado, agra-
e os investimentos sociais, que constituíam o Esta- vando o efeito deficitário da contração da receita
do de bem-estar social, foram extremamente impor- tributária. Dados interessantes são oferecidos por
tantes para esta transformação. S. Bodington, M. George e J. Michaelson (1986, p.
O encerramento dos anos dourados mudou 211), que citam resultados de pesquisas do dr.
tudo isso: o crescimento da produção e da produ- Harvey Brenner e equipe, da Universidade John
tividade caiu a níveis muito mais baixos, sendo pe- Hopkins em Baltimore: um aumento de 1% na ta-
riodicamente interrompido por recessões mais lon- xa de desemprego por seis anos está correlacionado
gas e severas; o desemprego voltou cada vez mais a um aumento de 36.887 mortes prematuras e ou-
até atingir níveis acima de 10% em grande núme- tros aumentos significativos de enfermidades. Pes-
ro de nações industrializadas. Finalmente, a piora quisa semelhante na Grã-Bretanha mostra que um
do desempenho econômico limitou a arrecadação milhão de desempregados a mais eleva em 50 mil
tributária; as reformas neoliberais, que reduziram o número de admissões em hospitais de doenças
impostos que recaíam sobre as camadas mais ricas, mentais num período de cinco anos e causa 50 mil
contribuíram para o crescimento dos déficits nas óbitos adicionais. Os custos públicos desses efeitos
contas públicas, ao mesmo tempo em que pressões somam cerca de um bilhão de libras.
inflacionárias, desconhecidas em épocas de paz nos É claro que a crise do Estado de bem-estar so-
países adiantados, levavam pânico aos meios em- cial, induzida pela piora do desempenho econômi-
presariais. E partiu desses meios e de seus intelec- co, foi em seguida fortemente agravada pelos cor-
tuais orgânicos a denúncia dos serviços sociais do tes de verbas para os serviços sociais (inclusive en-
Estado, caracterizando efetivamente a crise do Es- sino) que as políticas de ajuste estrutural passaram
tado de bem-estar social. a impor. Nos países com governos neoliberais, o

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aumento da demanda pelos serviços sociais do Es- e, onde os novos governos municipais priorizaram
tado foi respondido com a restrição de recursos para tais serviços, eles puderam ampliar o atendimento
os mesmos, o que só podia resultar em déficits de e elevar a qualidade. Em muitas capitais estaduais,
atendimento, em congestionamentos dos equipa- o pessoal de educação e de saúde, quando empregado
mentos e finalmente em perda brutal de qualidade pela municipalidade, ganhava algo como o dobro do
dos serviços prestados. Ficou evidente para a opi- que era pago pelo Estado. Ficou claro que a dete-
nião pública que os serviços sociais do Estado es- rioração dos serviços sociais relacionava-se à depen-
tavam deixando de corresponder às necessidades e dência de níveis de governo em crise fiscal. Tal de-
portanto precisavam de ser reformados. E o neoli- terioração não atingiu, obviamente, os serviços so-
beralismo estava com propostas prontas de refor- ciais cuja base material pôde ser preservada.
mas, o que originou o presente debate na área de A despeito disso, a crise do Estado de bem-
educação e outros análogos em outras áreas. estar, no Brasil, bem como provavelmente em ou-
No Brasil, não chegou a se institucionalizar um tros países, não poderá ser resolvida apenas median-
“Estado de bem-estar social” no nível alcançado no te a restauração dos recursos que o financiam. A
Primeiro Mundo, mas os seus fundamentos estavam nova etapa em que entrou o capitalismo, com a Ter-
sendo desenvolvidos, desde a década de 30 até a ceira Revolução Industrial, criou novas circunstân-
década de 70, em ritmo crescente. Durante o “mi- cias e necessidades diferentes das que inspiraram os
lagre econômico” (1968-1976), sistemas abrangen- serviços sociais públicos, projetados e instalados no
tes, tendentes à universalidade, de ensino básico, período dos anos dourados. Além da forte desa-
saúde e previdência foram criados. A partir da reces- celeração do crescimento e do ressurgimento bru-
são de 1981-1983, a pior já registrada em nossa tal do desemprego, a atual etapa trouxe novas for-
história, todos esses sistemas entraram em crise. O mas de exclusão social, que tornam a crise do Es-
aumento brutal do desemprego levou finalmente à tado de bem-estar social de certa forma estrutural.
criação de um seguro-desemprego, mas com abran- Além da necessidade de reabilitá-lo materialmente,
gência tão restrita que ficou mais como testemunha ele terá de ser realmente reformado, ou no sentido
do esgotamento prematuro do modelo. O aumen- das propostas neoliberais ou em outro sentido, em
to da demanda por serviços de saúde pública, as- consonância com uma visão mais estrutural e co-
sim como de vagas escolares na rede pública, foi letiva da sociedade e da economia.
respondido com cortes sucessivos de verbas para
essas atividades. O que resultou não em encolhi- A exclusão social decorrente
mento da rede ou dos equipamentos que a com- da Terceira Revolução Industrial
põem, mas em arrocho brutal dos salários dos pro- e da globalização econômica
fissionais: professores, médicos, enfermeiras, etc.
Os acontecimentos dos últimos anos deixam A aplicação da tecnologia decorrente da micro-
claro que, sem a recuperação do crescimento econô- eletrônica suscitou a criação de novos ramos de pro-
mico e do equilíbrio orçamentário, nos três níveis de dução, na área de informática — hardware (equi-
governo, a solução da crise dos serviços sociais do pamentos) e software (programas) — e de telemá-
Estado fica impossível. Em 1989 entrou em vigor a tica, com significativa expansão de postos de tra-
Constituição de 1988, que transferiu recursos fiscais balho, dos quais alguns exigem habilidades especiais
da União a estados e sobretudo a municípios. Con- cuja obtenção se dá apenas em graus elevados de
seqüentemente, nos anos seguintes, os serviços so- escolaridade. Ao mesmo tempo, a aplicação dos
ciais dependentes de recursos federais e estaduais computadores ao projetamento e à produção eli-
entraram quase em colapso, ao passo que os que de- minou grande quantidade de postos de trabalho
pendiam de erários municipais foram preservados ocupados por operários semi-qualificados. A per-

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da líquida de empregos é mais do que compensada A globalização do capital tem efeitos semelhan-
pela multiplicação de unidades prestadoras de ser- tes. Esforços persistentes das nações capitalistas
viços, desde redes de fast food, videolocadoras, lo- adiantadas, lideradas pelos EUA, ao longo dos últi-
jas de conveniência, agências de viagem (dada a mos cinqüenta anos conseguiram revogar os con-
enorme expansão do turismo) até academias de gi- troles governamentais sobre a movimentação inter-
nástica, clínicas alternativas, centros de cultos e o nacional tanto de mercadorias como de capitais.
que mais se possa imaginar. Criaram-se assim, aos poucos, mercados verdadei-
A contração de postos de trabalho é apenas ramente globais tanto de produtos como de transa-
aparente. O que está desaparecendo é o emprego ções financeiras. Só a movimentação do trabalho
padrão de antes, com carteira assinada, seguro saú- continuou cerceada, pois continuam em vigor as res-
de e perspectiva de carreira. São as relações de pro- trições erguidas desde a crise da década de 30 à mi-
dução que estão mudando. Nas grandes empresas gração internacional. O Primeiro Mundo, que seria
o emprego se contrai em termos absolutos e se dife- o alvo natural de vastas correntes migratórias vin-
rencia entre um núcleo vital de empregados altamen- das do Leste europeu e asiático, do Sudoeste latino-
te qualificados, estáveis, bem remunerados e com americano e do Sul africano, continua cerrado e cer-
perspectiva de carreira e uma grande periferia de rando-se cada vez mais ao que este mundo privile-
empregados pouco qualificados, facilmente subs- giado enxerga como hordas de bárbaros.
tituíveis, que pode ser ocupada por mulheres e es- Mas a lógica mostra que se o capital e os pro-
tagiários em tempo parcial e sem registro ou por dutos do capital dispõem de mercados globais, nada
pessoal subcontratado de empresas fornecedoras de pode impedir de que se estabeleça também um mer-
mão-de-obra. Nas pequenas empresas, que se mul- cado global de trabalho virtual. Só que nesse mer-
tiplicam inclusive pela difusão do franqueamento, cado, estando a oferta imobilizada, é a procura que
o núcleo é formado pelo dono ou pelos sócios e a se movimenta. E é ao que estamos assistindo. O
periferia por trabalhadores terceirizados, com o sta- capital em quantidades crescentes percorre o mun-
tus de prestadores de serviços ou de empregados sem do inteiro à procura de condições vantajosas de in-
registro. De uma forma geral, uma massa crescente versão, o que significa acima de tudo mão-de-obra
de empregos está mergulhando na informalidade, capacitada e barata. O capital abandona os países
escapando dos efeitos da legislação do trabalho. e as regiões em que os trabalhadores estão fortemen-
O resultado dessa evolução é o crescimento in- te organizados, têm direitos reconhecidos em lei e
cessante da exclusão social. A massa de autônomos, recursos para fazê-los serem respeitados pelos em-
pretensos ou verdadeiros, não está sujeita à limita- pregadores. E penetra nos países e regiões em que
ção da jornada de trabalho fixada pela legislação e o desemprego estrutural é grande e a organização
pelos acordos coletivos de trabalho. Como em ge- sindical é débil, onde a legislação do trabalho é par-
ral ganham por tempo de serviço ou por produção, ca ou pode ser ignorada.
eles têm todo incentivo para prolongar ao máximo A globalização livrou o capital industrial da
o seu trabalho, o que evidentemente agrava o desem- necessidade de se localizar perto dos grandes mer-
prego. Marx já escrevia há 130 anos que muitos dei- cados para seus produtos. E o progresso técnico
xavam de ter trabalho porque o capital obrigava aos barateou o transporte, permitindo que bens produ-
outros a trabalhar demais. Ele julgava que a limita- zidos nos antípodas possam competir com outros
ção legal da jornada de trabalho poderia ao menos produzidos na vizinhança. Como resultado, surge
atenuar essa contradição. Mas como as relações de forte tendência à homogeneizição das condições de
produção, estimuladas pela nova etapa tecnológica, compra e venda de força de trabalho em âmbito
não se sujeitam à legislação, o mercado de trabalho mundial. No mundo industrializado, o emprego
retorna às condições do século passado... manufatureiro se contrai e os salários dos trabalha-

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dores de linha despencam, ao passo que, nos paí- siderada mundial. Para os diretamente envolvidos,
ses chamados recém-industrializados (dos quais o principalmente educadores e educandos, a crise pa-
Brasil foi um dos primeiros), a atividade industrial rece, provavelmente, ser causada pelo corte de ver-
para a exportação se multiplica, assim como o em- bas, baixa dos salários, perda conseqüente do pes-
prego industrial, possivelmente com tendência as- soal melhor qualificado e declínio da qualidade do
cendente do nível salarial. ensino. E não há dúvida de que esses fatos existem
É preciso advertir que a globalização é bastan- e tornam a crise tão profunda e destrutiva como ela
te recente e suas potencialidades recém começaram está se revelando.
a ser exploradas. (Por exemplo: a grande reserva de Mas se o diagnóstico ficar limitado a isso, um
força de trabalho barata está nos gigantes asiáticos aspecto fundamental da crise deixa de ser exami-
— China, Índia, Indonésia — e mal começou a ser nado, o que fragiliza de maneira fatal os que se po-
integrada na nova economia global.) Mas já foi su- sicionam em defesa da escola pública gratuita e de
ficiente para ocasionar sensível perda de empregos acesso universal. Esse aspecto é a alienação do en-
industriais no Primeiro Mundo, onde a massa sa- sino escolar das novas características tanto do mer-
larial se polariza visivelmente entre uma minoria de cado de trabalho como do panorama político e so-
posições muito bem pagas e uma maioria de novos cial. Que tipo de pessoa nossas escolas estão for-
pobres. A projeção dessas tendências para o futu- mando e para que tipo de sociedade? Se a democra-
ro lança uma luz sinistra sobre as perspectivas de cia é uma conquista irreversível — e quero crer que
progresso social e aprofundamento da democracia é —, qual é o modelo de cidadão consciente que
nessas nações. inspira nosso ensino? Será que os nossos currículos
E a América Latina vai se lançando grada- correspondem adequadamente ao desejo natural de
tivamente ao vértice globalizador: primeiro foi o aprender dos jovens, motivando-os a participar ati-
Chile de Pinochet, em seguida o México, que aca- vamente do processo educativo?
bou se integrando ao NAFTA (North America Free Há motivos para acreditar que o cerne da cri-
Trade Agreement) e mais recentemente a Argenti- se do sistema de ensino está nessas questões, embo-
na. Das grandes economias do continente, o Brasil ra, repito, a degradação material do sistema não
foi o último, mas tudo leva a crer que agora che- permita que isso aflore. É notório que, já há mui-
gou nossa hora. Sendo uma economia semi-de- to tempo, o forte crescimento de matrículas no en-
senvolvida, o Brasil será menos afetado de imedia- sino público e privado não tem sido correspondido
to do que países que estão nos extremos. Mesmo por crescimento análogo de resultados, tanto em
assim, a abertura do mercado interno às importa- termos de número de formados como de grau de
ções, no último ano, já afetou sensivelmente diver- adestramento destes. É como se a desejável massi-
sos ramos industriais. Apesar dos baixos salários ficação do ensino, que ao cabo de tantos anos de
pagos aqui, várias de nossas indústrias não conse- luta acabou sendo lograda, tivesse reduzido a efi-
guem concorrer no mercado nacional com as im- ciência do sistema. A abertura das portas da esco-
portações asiáticas. A continuar a abertura comer- la à massa dos menos afortunados não produziu os
cial irrestrita e a debilidade das políticas industriais, efeitos esperados e desejados, ou seja, o encami-
é provável que essas indústrias fechem ou mergu- nhamento daqueles a melhores oportunidades de
lhem na informalidade. inserção econômica, política e social. Em vez de a
escola elevar os filhos dos marginalizados, foram
A crise do sistema escolar aparentemente estes que degradaram a escola ao
multiplicar as repetências e a evasão, ao introdu-
É no contexto dessas mudanças que se insere zir nas salas de aula seu cotidiano de violência e
a atual crise do sistema escolar, que pode ser con- alienação.

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Essa experiência não é apenas nossa. Demer- sino público, ao menos no Brasil, continua sendo
val Saviani apresenta o seguinte quadro do ensino direcionado a uma classe média, para a qual o cer-
público nos EUA: tificado escolar é instrumento de diferenciação so-
cial. O que significa que o ensino escolar tem por
[..] escolas mal equipadas, drop-outs, falta de
finalidade básica (embora não admitida) proporcio-
professores e um número enorme de diplomados do
nar aos filhos de pais educados a oportunidade de
2º grau que continuam sem saber ler, escrever e fazer
sucedê-los em posições econômicas e sociais que têm
contas, que não passariam no mais tolerante dos tes-
determinados níveis de escolaridade como pressu-
tes de aptidão. O índice de evasão relativo aos alunos
posto. Esta era indubitavelmente a situação quan-
que freqüentam a escola secundária se aproxima dos
do apenas uma minoria tinha acesso ao ensino bá-
30%. Mas o sintoma mais alarmante do fracasso da
sico e uma minoria muito menor aos níveis mais
escola pública talvez não esteja nos que pulam fora,
elevados. A hipótese aqui é que o espírito do ensi-
e sim nos que permanecem dentro e não aprendem
no jamais foi adaptado à sua universalização.
nada. Os especialistas chamam-nos de “analfabetos
Esse ensino diferenciador e implicitamente eli-
funcionais”: embora possuam diplomas, isto é, sejam
tista preocupava-se em dotar o aluno de conheci-
nominalmente alfabetizados, na prática são incapazes
mentos que ele dificilmente poderia adquirir fora da
de entender, por exemplo, como funciona o metrô, e
escola. Toda “cultura inútil” que costuma entupir
não conseguem consultar uma lista telefônica ou ler
nossos currículos teria precisamente essa função. Ela
uma bula de remédio. Em Nova York, segundo as úl-
daria ao escolarizado acesso a um universo cultu-
timas pesquisas, há 2 milhões de indivíduos nessas
ral privado, do qual o não-escolarizado estaria ex-
condições.1 (Saviani, 1992, p. 10).
cluído. O vocabulário assim adquirido funcionaria
Considerei necessária essa longa transcrição como senha que permitiria aos membros da elite
para deixar claro que a crise do ensino não é ape- reconhecer seus iguais e discriminar os “outros”. Ao
nas nossa. Saviani, no mesmo texto, informa que se abrir aos “outros”, a escola pública não se re-
também na Argentina, no Uruguai e no Chile o en- pensou, continuando a competir com a escola pri-
sino está em crise. Convém considerar que a crise vada na formação de uma elite educada. Se assim
resulta não apenas da fragilização da escola públi- foi, não seria de surpreender que a matrícula dos
ca pelas políticas de ajuste estrutural, mas também filhos dos marginalizados questionasse a escola, já
do fato de que a sociedade civil, ou ao menos os que ela jamais se reformulou para acolhê-los.
alunos ou seus pais, tampouco acorrem em sua de- É costumeiro ouvir que os filhos dos pobres
fesa. De alguma forma a escola, mesmo antes de sua não têm em suas casas um ambiente que os estimule
degradação material, já não correspondia plena- e ampare no enfrentamento das tarefas escolares,
mente às necessidades ou expectativas dos educan- o que seria a principal causa de seu freqüente fra-
dos e essa inadequação provavelmente se tornou casso, evidenciado pela elevada repetência princi-
muito maior com a massificação do ensino, ou seja, palmente no primeiro ano e pela evasão subseqüen-
quando a escola passou a atender a uma nova clien- te. Essa constatação parece-me quase uma confis-
tela, de extração social distinta. são de que a escola pública — e falo só dela por-
O que quero expor daqui em diante tem ca- que é a única acessível ao pobre — não se adaptou
ráter hipotético, mas pode sugerir, quem sabe, for- nem pretende se adaptar à nova realidade de que
mas alternativas de pensar a crise do ensino. O en- agora ela está oferecendo um serviço universal, ou
seja, para todos. Ela continua preparando uma mi-
noria e naturalmente expulsa como corpo estranho
1 A fonte citada por Saviani é Sala de Aula, 1990, os descendentes da maioria não escolarizada. Em
nº 21. outras palavras: se a escola necessita que os alunos

Revista Brasileira de Educação 13


Paul Singer

tenham pais escolarizados, ela obviamente não se sores. O sistema combina engenhosamente gratui-
ajustou à tarefa de educar os filhos dos que nunca tidade, e portanto universalidade, com a privatiza-
puderam freqüentar a escola. ção do ensino, pois mesmo as escolas municipais
Se a escola pública quiser ser fiel à sua origem acabam se portando como as escolas privadas.
e vocação democrática, ela terá de se ajustar ao no- Se esse sistema realmente maximiza a eficiên-
vo papel de educadora universal e principalmente cia e proporciona elevada produtividade aos que
das crianças de famílias socialmente excluídas. O por ele passam é dificil saber. A informação que o
que significa repensar-se por inteira e recolocar o candidato à matrícula e seus pais possuem sobre
conteúdo da instrução, a metodologia didática, a cada escola é insuficiente para que possam fazer
formulação de regras de conduta e o disciplinamen- uma escolha racional pelo tipo de educação que
to dos participantes do processo educativo. Chego preferem. E a livre escolha da escola pelo aluno pode
a pensar que a reforma requerida pode beirar uma afrouxar os laços que deveriam ligar o educando à
revolução, à medida que exige de professores, que comunidade em que se forma, ou seja, uma relação
provavelmente sempre se enxergaram como dife- que deveria ser de compromisso e de identificação
renciadores, a conquista de uma nova identidade. pode correr o risco de se reduzir a uma transação
É um desafio bem-vindo o de pensar a educação não de compra e venda, em que o cliente insatisfeito
como antídoto da exclusão social, o que está além tende meramente a mudar de fornecedor.
de seu alcance, e sim como formação de cidadãos Mas se a reforma produtivista (representada
ameaçados de exclusão mas que podem dispor de pelo modelo chileno) apresenta esses prováveis de-
recursos sociais e políticos para enfrentar a ameaça. feitos, é preciso reconhecer que a competição entre
as escolas pode ser um estímulo para que adminis-
De volta ao grande debate tradores e docentes procurem aumentar a eficiên-
cia e elevar a qualidade do ensino que oferecem. No
Retornemos então ao nosso tema inicial. O Brasil, as escolas privadas que oferecem ensino de
ensino, no Brasil e fora do Brasil, está em crise e esta qualidade costumam ser bem caras, talvez porque
já deu lugar a um impasse. De um lado, a posição a presença de uma clientela rica viabilize essa op-
produtivista propõe reformas que são consistentes ção. No caso de uma rede de escolas públicas que
com a concepção liberal da sociedade. Do outro, a recebem um valor limitado por aluno, a possibili-
posição civil democrática clama pela preservação da dade de que a competição baste para fazê-las supe-
escola pública em nome do direito universal à edu- rar suas atuais deficiências é duvidosa. Não obstan-
cação e enfatiza a necessidade de restaurar a base te, acredito que esse tipo de reforma traria melhoras
material indispensável para que a escola possa cum- em relação ao atual status quo do ensino público.
prir sua missão. Melhor que uma reforma produtivista, que
A posição produtivista mais consistente pare- mercantilizasse o sistema educativo, seria uma re-
ce estar concretizada hoje no sistema escolar chile- forma civil democrática que o politizasse. Seria uma
no. As escolas públicas naquele país foram todas reforma que democratizasse o processo educativo,
municipalizadas e o governo se responsabiliza pelo reconhecendo que ele deve ter por agentes educa-
pagamento de um valor mensal a qualquer escola, dor e educando e, no caso deste ser menor, a famí-
pública ou privada, por aluno matriculado. Os alu- lia (se ele a possui) ou quem preencher o papel. Isso
nos ou seus pais têm portanto a chamada “livre significa que a escola se responsabilizaria integral-
escolha” da escola que desejam utilizar. As escolas mente pelo aluno e, no caso de ele não ter um lar
é que competem entre si pela preferência dos alu- adequado, trata de arranjar um para ele. O que po-
nos e pode-se supor que as escolas mais bem-suce- de significar algum tipo de educação em tempo in-
didas terão recursos para melhor pagar seus profes- tegral ou parceria entre escola e outras instituições

14 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Poder, política e educação

que cuidam de jovens sem família. O mais impor-


PAUL SINGER é Professor Titular da Faculdade de
tante aqui é que a escola deixa de exigir que o alu-
Economia e Administração da Universidade de São Paulo,
no se adapte a ela, optando por um relacionamen- fundador e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e
to em que o aluno constitui a prioridade. Planejamento (CEBRAP), foi Secretário de Planejamento da
A democratização do processo educativo de- Prefeitura de São Paulo no período 1989-1992 (gestão Luiza
veria ir além, tratando de construir em cada escola Erundina). Escreveu entre outros livros: O que é economia?
uma verdadeira comunidade de todos os envolvi- (1989) e Um governo de esquerda para todos (no prelo).

dos, em que a natural superioridade dos professo-


res e administradores fosse compensada por respeito
pela vontade e pelos sentimentos dos outros mem- Referências bibliográficas
bros, sobretudo dos mais jovens e mais fracos. A
reforma democrática deveria se preocupar com as BODINGTON, S., GEORGE, M., MICHAELSON, J.
críticas neoliberais aos serviços sociais do Estado, (1986). Developing the socially useful economy. Londres.

pois, mesmo discordando das propostas produti- SAVIANI, Demerval. (1992). Neo-liberalismo ou pós-libe-
vistas, é preciso reconhecer que as críticas têm base ralismo? Educação pública, crise do Estado e democra-
cia na américa latina. In: Estado e educação. Campinas:
na realidade. A reforma democrática teria de ter
Papirus.
engenhosidade suficiente para combinar um proces-
so educativo não-mercantilizado com o combate ao
paternalismo, à ineficiência e ao corporativismo. Formar grupos em compreensões das duas posições
Acredito que ensino público gratuito de aces- apresentadas no texto:
so universal pode ser salvo da crise em que se en- 1. posição de civil democrática e
contra, desde que seus defensores o submetam a 2. posição produtivista
uma autocrítica radical, a partir da qual sua refor- a) Definição;
ma possa ser proposta. Uma parte dessa proposta b) Características;
c) Fundamentos;
terá, provavelmente, de ser a descentralização do
d) Função da escola;
sistema, para que mil flores de experimentos diver- e) Explicam a crise no ensino público;
sos possam florescer, dando espaço a muitas voca- f) Ideologia política e econômica;
g) Como propõem a reforma no ensino;
ções educacionais que hoje não têm como se reali- h) Relações com o texto “Estado, política educacional e direito à
zar. Esse é um aspecto positivo da proposta pro- educação no Brasil: “O problema maior é o de estudar”. Como
que as posições compreendem relações entre:
dutivista que os adversários deveriam incorporar. a) Estado, escola e política pública;
O grande debate sobre a crise educacional po- b) Políticas educacionais e Direito à Educação;
c) Universalização do ensino público.
de dar frutos, se os que defendem a tradição demo- h) o que quiser acrescentar ao debate.
crática e igualitária conseguirem passar à ofensiva,
com propostas tão audazes e imaginosas quanto
seus oponentes. E sobretudo se conseguirem imple-
mentar essas propostas, abandonando uma postu-
ra meramente defensiva de conquistas pretéritas.

Revista Brasileira de Educação 15

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