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1 O recrudescimento das pautas autoritárias na Educação pública em Boa Vista-RR

2 Carlos Eduardo Ramos


3 Universidade Federal de Roraima
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5 O objetivo desta fala é apresentar e analisar alguns dados referentes ao estado atual
6 da educação pública municipal e estadual na cidade de Boa Vista-RR, articulando-os com
7 os apontamentos dos colegas Nivaldo e Cristina acerca dos desafios da educação no
8 cenário nacional atual. Pretendo expor alguns documentos oficiais do governo, projetos
9 de lei e notícias da mídia local, especialmente sobre as proibições de discussões referentes
10 à diversidade e direitos humanos em sala de aula, imposições religiosas nas escolas, e o
11 processo de militarização no âmbito estadual. Os principais elementos levantados para
12 esta discussão perpassam a utilização de métodos de ensino tecnicistas adquiridos de
13 empresas privadas; métodos autoritários presentes na gestão escolar; e a aprovação de
14 projetos de lei que vetam o ensino de questões relacionadas a gênero nas escolas. Esta
15 reflexão se estende para as consequências destas ações na educação da população local.
16 No contexto de Boa Vista, preza-se por uma educação essencialmente técnica e distante
17 dos Direitos Humanos, contrária à formação para a consciência. Os ataques
18 conservadores, contudo, também têm gerado resistência por parte da população,
19 representada pelos movimentos sociais e pelo meio acadêmico. Grupos feministas e de
20 professores intensificaram ainda mais a luta contra o avanço do autoritarismo no Estado,
21 gerando embates importantes e frentes que tentam barrar um movimento que parece se
22 estender por todo o país. Mesmo que amplamente repudiado pela categoria docente e
23 pelos movimentos sociais nos últimos anos, os rumos dessa educação parecem alinhados
24 com um projeto nacional que, ainda assim, segue irrefreável. O retrocesso no campo das
25 políticas educacionais força uma discussão sobre as possibilidades de garantia de uma
26 formação para a consciência e para a crítica da sociedade, bem como para uma reflexão
27 sobre o conformismo e a resistência da população geral e dos educadores. Os dados aqui
28 apresentados precisam ser fundamentados por conceitos presentes nas obras de T.W.
29 Adorno, e que são referentes à educação, formação do indivíduo e personalidade
30 autoritária.
31 Para Theodor W. Adorno, a finalidade da educação pode ser remetida, em última
32 instância, à “[...] produção de uma consciência verdadeira” (2003, p. 141). Isto implica
33 detectar tanto aquilo que a sociedade produz com demasiada eficácia – a extrema
34 adaptação dos indivíduos e a alienação social – quanto apontar aquilo que lhe falta. Nesse
35 caso, a função da educação deveria ser a de contribuir, na medida em que os indivíduos
36 se apropriam da cultura, para a construção de uma sociedade livre da barbárie, portanto,
37 uma educação de caráter emancipatório. Isto não significa negar os processos adaptativos,
38 tampouco a transmissão de conteúdos no âmbito educacional, uma vez que alguma
39 adaptação à sociedade é necessária para o processo de constituição do indivíduo, e
40 determinados valores e atitudes são inevitavelmente transmitidos aos alunos no processo
41 de ensino e aprendizagem. Entretanto, dada a tendência social geral para o conformismo
42 na sociedade do capital, Adorno sugere que a educação, seja pela família, seja pela escola,
43 teria “[...] muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação”
44 (2003, p.144).
45 A questão mais urgente que se impõe à educação é a de desbarbarização dos
46 indivíduos. A síntese do pensamento do autor sobre a educação se apresenta na sentença:
47 “A exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De
48 tal modo que ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário
49 justificá-la” (ADORNO, 2003, p. 118). Esta é uma questão imprescindível, de modo que
50 todos os outros objetivos educacionais deveriam voltar-se para esta questão, no sentido
51 de dar à educação alguma importância no processo de formação dos indivíduos e evitar a
52 regressão à barbárie e o horror a que está condicionada. Entendemos, assim, que a
53 educação é apenas uma parte do processo geral de formação, mas tentamos trazê-la ao
54 seu lugar de importância, sem, no entanto, confundi-la com o processo mais amplo de
55 apropriação subjetiva da cultura.
56 No texto “teoria de la seudocultura”, Adorno (1972) atenta para o conceito de
57 pseudoformação como forma dominante da consciência na sociedade atual. Podemos
58 começar a compreendê-la a partir da asserção: “A pseudoformação é o espírito
59 aprisionado pelo caráter fetichista da mercadoria” (ADORNO, 1972, p. 159). Os produtos
60 culturais afastam-se daquilo que é humano num processo de coisificação, a exemplo da
61 sociedade burguesa que, na medida em que contribuiu para o processo de autonomia da
62 arte, converteu-a em bens de consumo descartáveis. Wolfgang Leo Maar (2003) aponta
63 que este conceito remete ao caráter assumido pelo processo de formação na sociedade
64 capitalista atual, marcada pelo monopólio da Indústria Cultural, no processo de produção
65 e distribuição dos bens culturais. A pseudoformação não se reduz à esfera da arte,
66 estendendo-se também para o universo da informação e da propaganda. A relação entre
67 forma e conteúdo implica compreender o que é disseminado e quais os seus meios de
68 transmissão. Como principais veículos do conteúdo esvaziado, os meios de comunicação
69 de massa, mesmo com todas as possibilidades de disseminar informações de
70 esclarecimento, geralmente promovem a ideologia e guiam a consciência dos
71 espectadores/usuários num sentido contrário à emancipação. E quanto mais se
72 aperfeiçoam em termos de desenvolvimento tecnológico, tanto mais se intensifica a
73 deformação do conteúdo veiculado, bem como sua velocidade e seu alcance, haja vista as
74 notícias falsas compartilhadas sem qualquer mediação do pensamento nas redes sociais.
75 A facilidade do processo de compartilhar informações contribui para o imediato, relação
76 com o conteúdo torna-se direta e os compartilhamentos parecem ligar-se àquilo que há de
77 mais primitivo, e intensificar atos regressivos por parte dos usuários. As notícias falsas
78 prejudicam de modo avassalador a esfera do jornalismo e da informação, isso sem
79 mencionar mudanças drásticas nos rumos das campanhas políticas. Como resultado,
80 observamos o direcionamento da população geral para horrorizarem-se com a nudez das
81 obras de arte presentes nos museus e com a educação sexual nas escolas, ao passo em que
82 no senado são aprovadas a contrarreforma trabalhista, da previdência, e outras medidas
83 que esfolam o trabalhador brasileiro.
84 A partir dessas considerações iniciais, podemos avançar para o primeiro ponto a
85 ser discutido: a proibição da discussão sobre questões relacionadas a gênero ou
86 diversidade nas escolas. A lei 1.245/18, sancionada pela governadora Sueli Campos,
87 proíbe quaisquer orientações pedagógicas que afirmem que os sexos masculino e
88 feminino sejam considerados construções sociais. A isso a lei entende que se configura o
89 “conceito” de ideologia de gênero. Esse termo, bastante vago e impreciso, para não dizer
90 completamente equivocado, está sendo bastante disseminado pelo movimento Escola
91 Sem Partido. A lei ainda aponta que, mesmo que seja solicitado pelos alunos, o professor
92 e a administração escolar não podem se manifestar sobre o assunto, e o descumprimento
93 da lei prevê punições referentes à ética funcional dos servidores públicos. O principal
94 argumento apresentado, tanto pelo Escola Sem Partido, quanto pelos defensores dessa lei
95 é de que existem conteúdos que devem ser públicos e outros privados. Português,
96 matemática, geografia, história e biologia devem ser ensinados nas escolas. Orientação
97 sexual e questões de gênero são consideradas naturais, e que podem ser deturpadas ou
98 moldadas pelas instituições públicas no processo de formação das crianças, o que pode
99 desvirtuá-las. Esses temas, bastante discutidos na área de ciências humanas, não são
100 considerados parte do rol de conhecimentos científicos pelos conservadores. Aqui se
101 apresenta uma confusão, intencional ou não, acerca da dicotomia público/privado, que
102 discutirei em breve.
103 Em paralelo, temos o projeto de lei municipal 65/2017, também elaborado por
104 conservadores que defendem o Escola Sem Partido. Este projeto, recentemente aprovado,
105 propõe realizar todos os dias, antes do início das aulas, a leitura de trechos da bíblia cristã.
106 O argumento é que esse documento considerado sagrado para alguns, traz conhecimentos
107 culturais, geográficos, científicos e históricos, que são importantes e devem ser
108 assimilados por toda a sociedade. Os que se opuseram ao projeto afirmaram sua
109 inconstitucionalidade por ferir o princípio de laicidade. A resposta foi a de que transmitir
110 esses valores é dever da família e da escola. “Que mal faz ler a bíblia?”, perguntou o autor
111 do projeto, Pastor Jorge.
112 Durkheim, no livro “Educação e Sociologia”, defende que a escola não deve ser
113 coisa de um partido, e sua função remete àquilo que é dever público: transmitir os
114 conhecimentos gerais e necessários a todos os cidadãos, e esses conhecimentos devem
115 ser os científicos. A moral e os costumes religiosos cabem ao âmbito privado, e são
116 relegados à família e instituições religiosas. Para contornar o dilema público/privado,
117 chama-se a bíblia de científica, e os conhecimentos sobre sexualidade, construídos pelas
118 ciências humanas e da saúde, de engodo. A isso não podemos dar outro nome senão
119 cinismo, oportunismo e mau-caratismo na relação público/privado na educação, bem
120 como uma apropriação inadequada, torta e desonesta das reflexões do funcionalista
121 Durkheim.
122 Em relação ao peso da família, da indústria cultural e da grande mídia no processo
123 de pseudoformação dos indivíduos, a escola parece frágil e incapaz de resistir a este. Mas
124 o seu frágil potencial formador parece assustar, e muito, os conservadores, reacionários e
125 autoritários, demandando a aniquilação de qualquer possibilidade de pensamento crítico
126 nos processos educativos. Neste sentido, entendo que discutir temas como gênero e
127 diversidade na escola, e neste caso especificamente a diversidade sexual, torna-se uma
128 questão urgente para a educação, uma vez que tornar consciente aquilo que é inconsciente
129 contribuiria para o processo de desbarbarização, ou ao menos para a produção de algum
130 esclarecimento. Na educação escolar, discussões sobre esse tema poderiam contribuir de
131 forma significativa para a redução da LGBTfobia, do preconceito, da discriminação e
132 exclusão dos indivíduos.
133 Uma das sugestões de Adorno (2003) seria justamente considerar uma educação
134 voltada para a autorreflexão crítica e que deveria se concentrar já na primeira infância.
135 Uma vez que a educação básica também compreende a educação infantil, entendemos
136 que dedicar nossa atenção para o início da educação formal se faz urgente. Temas como
137 gênero, orientação sexual, dentre outros, não são conceitos dados ou fenômenos naturais,
138 e sim construídos socialmente e introjetados desde antes da idade escolar. Mesmo quando
139 não são apresentados e discutidos em sala de aula, estes se apresentam no universo da
140 escola na fala dos professores e das crianças e, quando expressados e utilizados sem a
141 devida reflexão, podem contribuir para a propagação do sexismo, termo que inclui
142 também o machismo e a LGBTfobia. Como ilustração, podemos citar a denúncia de
143 Montserrat Moreno (1999) pela presença do pensamento androcêntrico enraizado nos
144 conteúdos de ensino desde o momento da alfabetização pelos livros didáticos a partir de
145 frases como “a mãe espera em casa; o pai está viajando” (p.41) e que são determinantes
146 para a constituição de representações de masculino e feminino em nossa sociedade.
147 O segundo ponto, igualmente aterrador, é o da militarização das escolas estaduais.
148 Roraima conta, atualmente, com 18 escolas estaduais militarizadas em 7 municípios, e
149 atende cerca de 20 mil alunos, o que corresponde a 25% do alunado do Estado. O Estado
150 segue, pareado com Goiás, como o que mais avançou nas políticas de militarização da
151 educação pública. As escolas têm como principal gestor algum militar da reserva, mas
152 mantém o corpo docente e de administração pedagógica entre civis. Elas seguem o
153 modelo das escolas militares, que se gabam de ter ótimos rendimentos no que tange os
154 conhecimentos básicos dos sistemas de avaliação.
155 Os alunos devem comparecer todos os dias na escola, com uma farda que custa
156 aproximadamente R$ 500,00. Ao mesmo tempo que o custo da farda já estabelece um
157 primeiro recorte de classe no público que frequentará a escola, há um projeto que visa
158 investir cerca de 10 milhões da verba destinada a educação pública, para a
159 disponibilização gratuita, tanto da farda diária, quanto das de gala e de formatura para os
160 alunos. As meninas devem prender os cabelos e não podem usar maquiagem ou pintar as
161 unhas. Os meninos devem usar um corte de cabelo militar, e não podem usar qualquer
162 tipo de tintura. Como relatado na fala de um tenente-coronel de uma escola em Goiás:
163 “Rapaz, você pode ser homossexual, mas tem de manter a postura. Dentro da
164 razoabilidade, o que a gente cobra é o mínimo de moral” (Patrick Camporez, para a revista
165 Época).
166 Esta conduta também é exigida nas escolas em Roraima. Os alunos recebem
167 patentes, os mais aplicados comandam o batalhão escolar. Cada turma possui um chefe e
168 um subchefe para coordenar e ajudar a fiscalizar os próprios colegas. Alguns recebem o
169 “Alamar”, peça de uniforme militar formada por cordões entrelaçados, uma condecoração
170 pelo rendimento nas disciplinas e pelo comportamento. Ao adentrarem os portões do
171 quartel-escola, os alunos ficam sob o sol em posição de sentido por quase uma hora.
172 Alguns professores relatam que alunos que não estão bem-alimentados desmaiam e não
173 conseguem cumprir com os exercícios. Este é um segundo recorte que a escola realiza.
174 Os alunos que não se adaptam às normas ou ao rendimento escolar mínimo realizam a
175 limpeza da escola e, caso não corrijam os comportamentos indesejados e melhorem as
176 notas, são “convidados a se retirarem da escola”, e direcionados a uma escola não-
177 militarizada. Neste terceiro recorte, a escola separa os melhores e mais adaptados. Não é
178 difícil entender o que leva ao aumento significativo nos índices do IDEB (índice de
179 desenvolvimento da educação básica). Há relatos de alunos que sofrem violência
180 psicológica, maus tratos e constrangimento pelos militares. Esses relatos costumam ser
181 abafados pela instituição escolar, que não se manifesta publicamente a respeito dessas
182 denúncias.
183 No texto “Tabus acerca do magistério”, Adorno atenta para a existência de uma
184 dupla hierarquia observável nas escolas: “[...] a hierarquia oficial, conforme o intelecto,
185 o desempenho, as notas, e a hierarquia não-oficial, em que a força física, o "ser homem"
186 e todo um conjunto de aptidões prático-físicas não honradas pela hierarquia oficial
187 desempenham um papel. O nazismo explorou esta dupla hierarquia inclusive fora da
188 escola, na medida em que incitou a segunda contra a primeira, tal como incitaria o partido
189 contra o Estado na macropolítica” (ADORNO, 2003, p. 111). Na escola militarizada há
190 uma fusão entre as hierarquias, e elas facilitam, em muito, a dinâmica sadomasoquista,
191 no sentido de submissão ao superior e, no mínimo, um sentimento de superioridade em
192 relação aos que estão abaixo. Se há solidariedade entre os alunos com patentes mais
193 baixas, estes ainda são considerados superiores aos que foram expulsos. A presença
194 constante de uma figura de autoridade militar contribui para a percepção do engodo do
195 respeito à figura do professor. A real autoridade está em posse de uma arma de fogo na
196 escola. Isso se torna visível no caso de uma professora de uma escola de Boa Vista que
197 interferiu em uma abordagem violenta de um militar para uma aluna que estava com a
198 camisa para fora da calça. A professora disse que a aluna estava sob sua responsabilidade,
199 e quando o militar engrossou a voz e se tornou mais violento, a professora o chamou de
200 “palhaço”. O militar deu voz de prisão à professora, a prendeu em uma sala aos empurrões
201 e de lá ela foi colocada em uma viatura policial, à vista de todos, e encaminhada para a
202 delegacia.
203 O único poder efetivo para agir contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia,
204 o desenvolvimento de um indivíduo capaz de refletir criticamente sobre si próprio e sobre
205 a sociedade. Esta vem sendo completamente destruída no sistema escolar público de Boa
206 Vista. Nos primeiros anos da vida escolar as crianças estão sob responsabilidade do
207 município. Ali elas recebem os conhecimentos básicos de uma apostila criada por uma
208 empresa privada (Instituto Alfa e Beto), que se resume apenas a conteúdos de português
209 e matemática. Recebem os conteúdos “científicos” da bíblia cristã, excluindo qualquer
210 outra religião como possível fonte de aprendizagem sobre moral, ética, etc. e são
211 proibidas de aprender sobre desigualdades entre homens e mulheres e sobre diversidade.
212 Quando chegam no segundo ciclo do ensino fundamental, existe a educação militarizada
213 para solapar qualquer possibilidade de desenvolvimento de autonomia de pensamento e
214 resistência à violência representada pela hierarquização da sociedade.
215 O projeto autoritário de sociedade parecia algo pioneiro em Roraima, mas as
216 últimas eleições nos mostraram que este projeto é nacional, e as poucas condições que a
217 educação possui para combate-lo estão sendo cada vez mais reduzidas. Se uma sociedade
218 verdadeiramente democrática só pode existir em uma sociedade de emancipados, e o
219 projeto de educação visa pseudoformar indivíduos adaptados e heterônomos, então não é
220 um exagero afirmar que no contexto atual nos encontramos à beira do fascismo.
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