Você está na página 1de 21

REPRODUÇÃO E MUDANÇA SOCIAL: DEBATES EM

TEORIA E CULTURA
SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO1
Fernando Tavares Júnior 2

Resumo
Dentre os argumentos centrais mobilizados pela Sociologia da Educação dedicados à análise das mudanças
sociais contemporâneas, duas vias se contrastam: de um lado a interpretação das mudanças como “aparentes”
e sem impacto sobre a estrutura das relações sociais, reiterando a tese reprodutivista e, de outro lado, as hipó-
teses de transformação gradual da sociedade, através de múltiplas mudanças cumulativas, capazes de induzir
alterações qualitativas com o amadurecimento do processo histórico. Observam-se limites conceituais, em
especial derivados da capacidade de operacionalizar categorias de análise adequadas a casos concretos. De
outro lado, é a sofisticação de tais conceitos e categorias que demonstra maior potencial para avançar modelos
mais ajustados tanto teórica quanto empiricamente.
Palavras-chave: Sociologia da educação; mudança social; igualdade

Reproduction and social change: discussions in sociology of Education

Abstratc
Among the central arguments discussed by the Sociology of Education about contemporary social change,
there are two perspectives: the interpretation that believes social changes hasn´t true impact on the social
structure, like reproductive thesis; and the other, those who believe that social changes are occur as a slow
transformation based on multiple cumulative changes in the historical process. Difficulty is more often on
operationalization of those theses to specific empirical cases. On the other hand, the improvement of such
concepts and categories is the best way to advance in theoretical and empirical models.
Key-words: ociology of Education; social change; equality

APRESENTAÇÃO
A utopia da igualdade, mesmo contra factual, e empírico. Os principais expoentes deste campo
sempre esteve no horizonte das sociedades mo- acabam por ocupar posição central e de destaque
dernas nos últimos séculos. Exatamente o des- em suas Ciências, como Pierre Bourdieu, Gary
compasso entre sua busca, através de políticas Becker, Amartya Sen, John Goldthorpe e tantos
públicas, movimentos sociais, estratégias de go- outros. Este artigo sintetiza o esforço de recupe-
vernos, revoluções/reformas et all, e os limites de rar uma parcela relevante deste debate.
sua realização tem marcado o debate sociológico
há séculos e instruído profundas discussões teó- O cerne do debate ao longo dos anos esteve
ricas, empíricas, políticas e de outras esferas, tan- primeiramente centrado na discussão em torno
to a partir da perspectiva da igualdade de opor- das concepções de igualdade. Se privilegiada a li-
tunidades quanto da igualdade de resultados. São berdade individual, importaria a defesa da igual-
poucos os campos teóricos cuja centralidade im- dade de oportunidades, onde todos partiriam de
põe traços tão transversais no grande escopo das um nível equivalente de condições de partida
Ciências Humanas e Sociais, afetando os mais para, a partir dele, perseguir seus objetivos pes-
diversos objetos, temas e debates. No entanto, soais e coletivos. Logicamente, como cada um
embora pareça diluído, este debate conceitual acabaria aplicando níveis diferentes de esforço e
permanece rigoroso e denso em seu core teórico trabalho, apresentando níveis diferentes de apti-

¹ O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), através de seu Edital Universal e do Programa Observatório da Educação, da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior – CAPES/Brasil, aos quais o autor reconhece o indispensável apoio e expressa sua gratidão
em prol do desenvolvimento científico e educacional do Brasil.
2
Professor adjunto do Departamento e do Programa de Pós Graduação de Ciências Sociais do Instituto de Ciências Hu-
manas da Universidade Federal de Juiz de Fora. Email: ftavares@caed.ufjf.br

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 23
dões, talentos e qualificações e mesmo sendo fa- me destaque. No entanto, a equalização social
TEORIA E CULTURA

vorecido por condições aleatórias diversas (“sor- não foi sempre um objetivo escolar prioritário.
te”), seriam justas as diferenças nos resultados. A escola começou a ser objeto das políticas de
Embora subliminarmente ainda muito difundi- equalização quando já consolidado o primeiro
da3, hoje são conhecidos os limites para efetiva estágio de construção de um modelo de escola
realização da igualdade de oportunidades uma única, e definido um conjunto de saberes e prá-
vez que as classes detentoras de qualquer privilé- ticas que forjariam a identidade e a unidade na-
gio operam sempre em reação e contrárias à di- cional. Essa escola única passa a ser, principal-
fusão de oportunidades iguais às demais classes mente depois da Segunda Guerra Mundial, uma
e mesmo suas frações. instituição vista como veículo de mobilidade e
promotora de equalização:
Mais do que um ideário mitológico e utópico
em torno de sua plena realização, muito se tem O tema das desigualdades ficou ausente do primei-
ro período da sociologia da educação, iniciada por
avançado, tanto teórico quanto empiricamente, Durkheim no final do século XIX. Seu problema era
na análise das condições de equalização, ou seja, a criação de uma consciência coletiva. A questão da
da diminuição das diferenças de origem social mobilidade social não era posta. Em compensação, ela
e da ampliação das oportunidades para aqueles encontra-se no centro da cronologia curta, que corres-
ponde ao projeto da escola única. (Derouet, 2002:5)
que partiram em condições de desvantagem.
Desde Jencks (1972), observa-se que difusão de
Mais radical que a igualdade de oportunida-
oportunidades indiretas, como o acesso à edu-
des, a expectativa de igualdade de resultados tam-
cação, tem alcance limitado na realização social.
bém merece consideração. Neste caso, importam
Importa o ganho social advindo com a dimi-
menos as trajetórias e os objetivos individuais e
nuição das desigualdades e com a ampliação da
mais a definição de elementos comuns a serem
equalização das oportunidades. Soma-se o clás-
garantidos a todos, a partir da partilha coletiva
sico argumento de A. Marshall (1996, original de
da produção social. Embora geralmente apenas
1890), focado no retorno econômico mais que
relacionada a experiências socialistas e comunis-
social, a partir de que:
tas, a igualdade de resultados também encontra
Precisamos procurar uma parte dos benefícios econô- expressões em regimes democráticos. Renda mí-
micos imediatos que a nação pode obter da melhoria nima, afirmação de direitos universais e públi-
da educação geral e técnica da massa da população. cos, garantias fundamentais de cidadania, dentre
Precisamos olhar não tanto para os que figuram nas
fileiras das classes trabalhadoras, mas aqueles que
outras políticas públicas de equalização, podem
se elevam, de um nascimento humilde, às categorias ser lembradas como decorrências da concepção
mais elevadas dos operários especializados, tornando- de igualdade de resultado.
-se contramestres e patrões, ampliando os domínios
da ciência, aumentando a riqueza nacional na arte e
Esse debate acerca de projetos de Socieda-
na literatura. As leis que governam o nascimento dos
gênios são inescrutáveis (...) mais da metade dos gê- de, seus desafios, limites e dilemas, não passou
nios que nasçam em um país (advenham) dessa classe: ao largo da Teoria Social. Embora nem sempre
e deles, a maior parte não se desenvolve por falta de ocupe o centro das discussões, é exatamente ele
oportunidade. (pp.267-8) que instrui os debates que acabam por ocupar
sazonalmente, e por vezes de maneira cíclica, a
Portanto, a desigualdade de oportunidades, atenção de Cientistas Sociais. Fundamentam tais
além de injusta, torna-se, até mesmo para os in- argumentos tradições sociológicas distintas e
teresses capitalistas, um desperdício perverso. também opções epistemológicas e metodológi-
Nesse sentido, ela é antieconômica. cas por vezes díspares. De um lado, há a tradição
francesa, com valorização de elementos culturais
Ao se debater a igualdade de oportunidades e coletivos, relevância do todo sobre as partes, os
no mundo moderno, o papel da educação assu- grupos e classes, produtos da divisão do trabalho
Exemplos são vastos em nossa tradição sócio-política e cultural, como o ditado popular que adverte para “não dar o
peixe a quem pede, mas ensiná-lo a pescar” ou “quem trabalha sempre alcança” ou “Deus ajuda quem cedo madruga” e
tantas outras assertivas morais.

24 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
social, como mediação entre o indivíduo e a so- aos limites dos mecanismos escolhidos (políticas

TEORIA E CULTURA
ciedade, com tendências a preservar estruturas, públicas) para tal realização. Neste caso, haveria
valores e modus operandi. De outro lado, há a espaço para reformas, melhorias e avanços nes-
tradição britânica, pouco estudada e por isso me- ta mesma estrutura social, embora a tendência
nos também conhecida no Brasil. Para destacar predominante seja mesmo a da manutenção das
elementos mais discrepantes, deve-se lembrar do estruturas, da inércia das posições sociais, da re-
individualismo metodológico, a defesa da liber- ação perene das classes privilegiadas na direção
dade como atributo fundamental do moderno, a da manutenção de seus privilégios, dentre outras
expectativa da fluidez social como indicador de ações mantenedoras do status quo.
desenvolvimento e realização das possibilidades
de mobilidade e justiça, a afirmação dos direitos Tal como citado anteriormente, este debate é
e uma percepção mais dinâmica e fluída das clas- extenso, denso e dinâmico. Optou-se aqui pela
ses, com ênfase na ação, seja individual, do pe- proposta de uma breve síntese de alguns dos ar-
queno grupo (i.e. família) ou coletiva (i.e. classe). gumentos que instruem este debate. Como toda
síntese, esta também se confessa limitada pela
De um lado e de outro, são apontadas (e de- opção em prol da parcimônia e da seleção ne-
nunciadas) evidências de claros limites da so- cessária de teses. Apresentar-se-á primeiramen-
ciedade capitalista na realização dos “sonhos te o argumento dos Limites Sociais, a partir da
modernos”. A partir disso torna-se possível con- obra de Fred Hirsch (1977). O autor desenvolve
figurar um quadro sintético para compreensão os argumentos em torno dos impedimentos so-
do debate que aqui se pretende ilustrar. O esforço ciais à expansão e equalização de bens, serviços
de parcimônia sempre é penalizado pelas limi- e benefícios. A igualdade, além de contra factual
tações e incompletudes derivadas. Ainda assim, e conflitante com a liberdade, seria também ope-
consegue vislumbrar de um lado as críticas aos racionalmente impossível. O máximo atingível
limites sociais que a estrutura assumida pelas seria um grau ótimo de igualdade, ainda assim
sociedades contemporâneas, a partir das imposi- imperfeito, limitado, com todos os constrangi-
ções capitalistas, enfrenta na materialização das mentos impostos pelos mesmos limites sociais
utopias que sustentam a crença neste modelo de que caracterizam a distribuição de bens. Daí a
sociedade, como igualdade, justiça, liberdade, crítica a políticas de equalização que desconside-
et all. De outro lado, há a esperança e a aposta ram o caráter posicional da economia.
neste mesmo modelo de sociedade como o me-
lhor mecanismo possível de realização social Embora partindo de premissas e concepções
até então conhecido. Tal defesa, principalmente teórico-metodológicas completamente distintas,
impetrada a partir da Ciência Econômica ou da Pierre Bourdieu desenvolve um argumento mui-
Economia Social como expressão da tradição so- to similar no horizonte. Os limites para Bourdieu
ciológica britânica, acredita nos mecanismos de não derivam da estrutura econômica, mas da es-
mercado e de regulação estatal como as melho- trutura de classes e sua dinâmica. São as classes
res criações históricas passíveis de implementar que operam na direção da Reprodução. Estariam
melhores condições de vida para a humanidade. então nos mecanismos sociais, e em sua dinâmi-
ca, os elementos para compreender as tendências
Vê-se, portanto, uma oposição entre crenças e os limites à realização dos ideais modernos. Por
liberais de um lado e suas críticas de outro. Tais fim, há os argumentos breves de Raymond Boun-
críticas, no entanto, não são homogêneas. Há um don (1973, 1981), sintetizados recentemente pela
conjunto de críticas que afirmam o impedimen- brilhante resenha de John Goldthorpe (2000,
to na realização da igualdade. Tais argumentos, 2010) acerca deste mesmo debate. Neste caso,
próprios do ao Reprodutivismo, tendem à defesa tenta-se superar os limites teóricos até então co-
mais fulcral de mudanças estruturais na socieda- locados no horizonte do debate. Se há caminhos
de. De outro lado, há argumentos mais ligados possíveis para superar tal ordem de desigualda-

³ “hiato de gênero (gender gap) na educação ocorre quando existem diferenças sistemáticas nos níveis de escolaridade
entre homens e mulheres”. (BELTRÃO; ALVES, 2004)

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 25
de, mesmo que não se alcance a igualdade plena (1977) investiga as bases conceituais da moderna
TEORIA E CULTURA

e perfeita, quais seriam tais mecanismos? Como economia política, tornando-se uma obra exem-
operariam? Quais seriam seus limites e potencia- plar pela maneira como se propõe o problema e
lidades? Esses seriam então alguns dos argumen- por sua metodologia e tratamento. O autor iden-
tos, autores, obras e teses que podem apresentar tifica dilemas conceituais na análise econômica e
a um estudante, ou neófito ao campo, elementos trata dos limites impostos pela própria expansão
em torno dos quais se baseia a produção acadê- econômica e sua distribuição social. Por conse-
mica referente a este objeto. quência, discutem-se os limites da adesão a uma
política econômica profundamente mergulha-
Nos próximos parágrafos, são apresentados da na lógica do crescimento e da redistribuição
os argumentos tal como dispostos nas linhas aci- de renda (i.e. keynesianismo). Segundo o autor,
ma. Mais do que um aprofundamento em cada o início do problema está exatamente na “com-
tese, importa sua originalidade, compreender plexidade e ambiguidade parcial do conceito de
sua contribuição ao campo, suas diferenças em crescimento econômico” (1977, p.13). A aceita-
relação às teses divergentes na Teoria Social e a ção do modelo keynesiano como a alternativa
possibilidade de incitar indagações, instruir no- mais adequada para aliar expansão e distribui-
vas pesquisas e novos argumentos para o desen- ção econômica é criticada em função de suas
volvimento do debate. premissas. Uma vez que suas bases conceituais
mostram-se equivocadas, logo todo seu coro-
FRED HIRSCH: OS LIMITES SOCIAIS
lário também seria portador daqueles vícios. A
IMPOSTOS PELA ECONOMIA
análise está então baseada em três temáticas: a
POSICIONAL
afluência material, a distribuição de renda e a
ação coletiva.
Colhidos os frutos da Era de Ouro do Capital
no pós guerra, descrito por Hobsbawm (1997) Para Hirsch, a preocupação com os limites do
como um dos mais expressivos períodos de pro- crescimento estava mal colocada, uma vez que
gresso econômico da história, o ocidente se viu focava limites físicos distantes e não se detinha
diante de crises. No final dos anos 1960s e início em limites imediatos que são de origem social e
dos 70s o cenário econômico apontava adiante não exclusivamente material. A análise volta-se à
um período de desenvolvimento complicado, o economia posicional e projeta uma estruturação
que veio a se confirmar na década de 80, tam- social distributiva limitada. A economia posicio-
bém identificada como uma “década perdida”. nal refere-se a produtos, bens, serviços, posições
O toyotismo japonês, e todo o modelo econômi- e outros atributos econômicos que são, por de-
co identificado como Pós Fordista ou derivado finição, escassos e seu valor é dado exatamente
da Reestruturação Produtiva, mostrava-se mais em função da disfunção entre sua demanda e
competitivo que o fordismo. A Social Democra- sua escassez. Um exemplo típico é uma obra de
cia perdia terreno para o Liberalismo e o Neo- arte ou uma casa numa posição privilegiada. É
liberalismo. As eleições de Tatcher e Reagan possível multiplicar as cópias da obra ou postais
demonstravam sinais de um desvio à direita com a vista dessa casa, mas não seus originais.
nos centros do capitalismo ocidental. Quando Quanto maior a procura pelo original, maior seu
Hirsch (1977) publica Social Limits to Growth, valor. Ao contrário de seus equivalentes mate-
em resposta ao Clube de Roma e seu relatório – riais (carros, TVs, etc), cuja elevação da procura
The Limits to Growth (MEADOWS et all, 1972), pode ser respondida com a ampliação da ofer-
estabelece-se a segunda face da crítica fulcral ta e em determinado momento tal bem pode
ao liberalismo tradicional e sua mão invisível, ser disseminado socialmente, no caso dos bens
somada à Teoria do Equilíbrio de John F. Nash, posicionais a elevação da procura não encontra
matemático que depois veio a ganhar o Nobel de resposta possível, o que gera um tipo específico
Economia em 1994. de inflação e deterioração das condições de uso.
O mesmo se aplica, por exemplo, ao trânsito e à
Em “Limites Sociais do Crescimento”, Hirsch ocupação de uma determinada avenida ou traje-

26 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
to mais curto e rápido. Se todos que pretendem plas camadas da população a determinados bens

TEORIA E CULTURA
realizar um trajeto optam pela mesma avenida, e serviços antes limitados, que representa para
ela se congestiona e o trajeto perde seu princi- a sociedade como um todo um desperdício de
pal benefício. Os exemplos são infinitos. Importa recursos, uma frustração de investimento, uma
perceber que a introdução do conceito de bem propaganda enganosa de elevação da posição
posicional altera a lógica de reflexão econômica social e, portanto, um efeito negativo. De forma
e incorpora elementos sociológicos aos modelos simplificada, ao ampliar o consumo e o acesso à
de equilíbrio. economia material, crescimento econômico gera
competição posicional, voltada para bens e ser-
Nessa perspectiva, uma sociedade atingiria viços regidos pela escassez, sendo essa competi-
apenas um grau ótimo de (des)igualdade. Ten- ção negativa para o conjunto da sociedade. Logo,
deria, na melhor das hipóteses, à ampliação de a própria sociedade impõe um limite ao cresci-
estratos médios (em losango), em detrimento à mento que diz respeito a sua forma de organiza-
estrutura piramidal clássica, caracterizada pela ção e a gestão de seus bens posicionais, devendo
pobreza em sua larga base. O problema estaria o crescimento ser planejado tendo em vista evi-
inicialmente no fato de o crescimento trazer con- tar a competição posicional, logo o desperdício, a
sigo efeitos colaterais. Um dos principais proble- frustração, a deterioração das condições de uso,
mas decorre da frustração perante as promessas a inflação dos bens escassos, o consumo defensi-
das políticas de crescimento de alcançar metas vo, a propaganda enganosa ou a “falsa promessa
na prática inatingíveis, logo uma propaganda de equalização”.
enganosa para a sociedade, e que traz consigo a
deterioração das condições de vida juntamen- A tese de Hirsch é que o ciclo econômico da
te com a capacidade potencial de ampliação de satisfação não é tão simples, sendo afetado pe-
consumo, incitando uma competição posicional las condições de uso, que, por usa vez tendem a
que representa, ao mesmo tempo, um desperdí- se deteriorar à medida em que o uso se genera-
cio de recursos, uma frustração de expectativas liza. A expansão da economia material forçaria
e um processo inflacionário sobre bens escassos, um consumo defensivo que faria com que a so-
fatores de manutenção da estrutura social. ciedade passasse por uma “série de transações
para a realização de desejos pessoais que deixa
O crescimento acabaria por anular alguns de cada indivíduo numa situação pior do que a
seus próprios benefícios. A análise é baseada nas existente quando a transação foi empreendida”
características da economia posicional derivada (HIRSCH, 1979, p. 18). Um caso importante é o
da escassez social, seja ela física (i.e. obras raras, investimento em educação no esforço de ampliar
produtos e serviços exclusivos) ou social (i.e. car- o acesso a níveis mais elevados de escolaridade
gos de comando). A lógica do crescimento eco- como forma de ascensão de camadas baixas na
nômico cria a falsa promessa de ampliação das expectativa de que, obtendo o diploma, obteriam
ofertas de qualidade de vida. O que pode ser ver- empregos melhores. Ao ver na educação uma
dadeiro na economia material se mostra ilusório forma de equalização simples, não se percebe
na economia posicional. Esse é o primeiro limite que os empregos melhores permanecerão escas-
social do crescimento. A crítica aponta que, em- sos enquanto os diplomas se universalizam, logo
bora o crescimento econômico ofereça a possi- elevar-se-ão a competitividade e os critérios de
bilidade de ampliação de bens e serviços para a seleção, exigindo-se mais escolaridade. De certa
economia material, ele é incapaz de fazê-lo para forma, o investimento feito se mostrará frustra-
a economia posicional, onde impera a escassez do em seus intentos pois não realizará seus ob-
e onde são travados os principais embates na jetivos econômicos, uma vez que concomitante
competição por melhores lugares na sociedade e com a ampliação do acesso dos trabalhadores
melhorias do padrão de vida. A competição po- aos níveis básicos, as camadas superiores reali-
sicional, por sua vez, gera um consumo defensi- zação um consumo defensivo para obtenção de
vo, executado na tentativa de manter a posição níveis mais elevados de escolaridade, preservan-
social em função da ampliação do acesso de am- do a diferença de escolaridade e das credenciais

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 27
na corrida de obstáculos para a seleção para os ao mercado e ao consumo. Como focadas no
TEORIA E CULTURA

melhores cargos. consumo como motor do processo (por motivar


a produção, aumento emprego, etc.) não iden-
Sendo assim, a competição posicional não tificavam que os custos sociais e as preferências
gera realização econômica de resultados (satis- individuais não tinham como ser imediatamente
fação), logo seria “antieconômica”. Entretanto, é repassadas aos produtores no que tange à gerên-
uma competição que apresenta aspectos positi- cia da economia posicional. Assim, a ação coleti-
vos ao elevar a eficiência da sociedade, como no va ficaria refém de uma moral social frágil e indi-
exemplo da educação que tende a elevar a pro- vidualista, que se torna incapaz de indicar o bem
dutividade, a qualidade e o desempenho. Não coletivo, que seria a cooperação e a abstenção da
cabe aqui entrar no debate específico dos ganhos competição posicional. Tal moral frágil acaba le-
sociais da elevação da escolaridade e da produti- vando à ação individualista, isolada e ao prejuízo
vidade. Importa destacar que a universalização coletivo. Dada a natureza dos bens posicionais,
da educação carrega em si um elemento de frus- eles não são passíveis de distribuição ampliada.
tração de sua capacidade econômica e social e de A desigualdade deixa de ser vista como anomalia
perda do poder de mercado da credencial edu- e passa a ser aceita no argumento como na rea-
cacional, o que em última instância corrobora o lidade o é: factual. Logo, seria melhor encontrar
argumento. um grau ótimo de desigualdade que favoreça ao
mesmo tempo a liberdade do que políticas dis-
O problema da competição posicional traz tributivas ilusórias que desencadeiam uma com-
consigo os dilemas da coordenação da ação co- petição negativa, baseada no consumo defensivo.
letiva (política) e a necessidade de uma moral
social para o bom funcionamento do mercado O equilíbrio entre o positivo e o negativo é
(ética). Segundo Hirsch, seria preciso acionar influenciado por outro equilíbrio: material e po-
mecanismos éticos e políticos para frear os ex- sicional. Entretanto, o crescimento da economia
cessos da competição posicional e regularizar a material leva sempre à ambição por bens posi-
sociedade rumo a um grau ótimo de desigualda- cionais, o que por sua vez leva à sua inflação e
de. Ou seja, uma vez aceito que certa parcela de perda de qualidade. Os bens posicionais passam
desigualdade é natural e benéfica a todos, seria a ser gerenciados pelo mercado como num lei-
necessário pensar uma política econômica que lão, o que tende por si só à elevação do preço
esteja voltada para o equilíbrio através de um relativo, uma dupla inflação que beneficia quem
grau ótimo de desigualdade, limitando os prê- já possuía tais bens e à consequente redução
mios (HIRSCH, 1977, p. 260-264), logo inibin- do percentual da população com acesso a esses
do a competição posicional. São criticadas, por- bens, logo à desigualdade – efeito contrário do
tanto, políticas distributivas que desconsideram esperado no início.
aspectos posicionais, baseadas no crescimento
aliado à distribuição de renda. Este tipo de es- Outro caso é a perda da realização econômica
tratégia seria enganosa e levaria a frustrações e de determinados bens, definida a partir da satis-
efeitos colaterais para toda a sociedade ao perse- fação que proporcionam. Tal perda seria decor-
guir um objetivo inatingível e inadequado. Hirs- rente da deterioração das condições de uso, como
ch mostra que o principal problema econômico se aplica ao exemplo dos congestionamentos de
enfrentado naquele contexto era uma necessida- carros em centros urbanos. A maior participa-
de estrutural de fazer recuar os limites do auto- ção, decorrente da ampliação do consumo, “afe-
-avanço econômico, uma vez que tal ciclo trouxe ta não apenas o número de participantes, mas o
consigo limitações e negatividades: como frus- próprio jogo” (HIRSCH, 1977, p.62), deterioran-
trações, desperdício, tensão e inflação. do a qualidade e reduzindo a atratividade. Logo,
envolve um “desperdício social potencial, na me-
As metas keynesianas de estabilização, distri- dida em que o resultado combinado da série de
buição e crescimento estavam baseadas em con- decisões individuais deixa todos os interessados
ceitos que obscureceram a dualidade adjacente em pior situação” (HIRSCH, 1977, p.64).

28 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
O caso da ampliação das ofertas educacionais o supérfluo torna-se necessário, a satisfação na

TEORIA E CULTURA
envolve um terceiro tipo de limite, relacionado economia material levaria a base da sociedade à
às barreiras de seleção. O exemplo da perda do busca de bens posicionais e, em contrapartida,
valor das credenciais educacionais já foi citado isso provoca uma atitude mais defensiva das ca-
anteriormente. Importa aqui destacar que, em madas superiores em proteger seu status.
qualquer das formas, o que os vencedores ga-
nham é o que os derrotados perderam. A com- A elevação do consumo material traria con-
petição posicional tende a se tornar “um jogo sigo a elevação da competição posicional que,
de soma negativa”. Um contraponto possível é por sua vez, faz com que o “progresso econômi-
que crescimento econômico pode provocar a co se pareça com uma dessas corridas simuladas
ampliação das posições e dos benefícios sociais, que deixam os participantes no mesmo lugar”
pela expansão da economia, logo uma expansão (HIRSCH, 1977, p.92). Daí a célebre metáfo-
absoluta e relativa das posições sociais “privile- ra da fila em movimento, também ilustrada na
giadas”. Tal fenômeno é claramente observado obra de Bourdieu (1979).Quanto maior o pa-
na aferição da mobilidade social estrutural, onde pel do consumo posicional, mais incisiva seria
a ampliação das posições nas classes mais al- a deformação do funcionamento econômico.
tas, provocada pela industrialização e expansão Embora se espere que com o tempo a economia
econômica, amplia consigo as oportunidades de material permita a extensão do acesso gradual
mobilidade ascendente. Além disso, no conjun- a bens de consumo (como eletrodomésticos), o
to, a mobilidade circular entre as camadas supe- mesmo não se aplica aos bens posicionais (como
riores, médias e inferiores tenderia a provocar, posições sociais privilegiadas ou de comando).
em longo prazo, uma equalização intergeracio- Tal disfunção sempre operará efeitos colaterais
nal maior, ampliada pelo agregado na economia como a frustração pela propaganda social enga-
familiar. Ainda assim, importa destacar o caráter nosa, o consumo defensivo e seu desperdício, a
amplo da análise. Ao se pensar a sociedade em manutenção ou acirramento das desigualdades,
seu conjunto, observa-se a deterioração das po- indicando que a “interação dinâmica entre os
sições de classe antes “privilegiadas”, em especial setores material e posicional torna-se negativa”
as médias. Além disso, os processos de mobilida- (HIRSCH, 1977, p. 103).
de são também limitados socialmente e apresen-
tam mecanismos que tendem à manutenção do Tais exemplos fazem parte dos efeitos negati-
status quo. vos da concorrência posicional para a socieda-
de em alusão à subsunção das relações sociais à
A competição posicional leva fatalmente a lógica capitalista. O mesmo se aplica ao tempo
desperdícios sociais e esse processo traz consigo e seu uso. Partindo do pressuposto da satisfação
um dilema de ação coletiva. A procura individu- e da qualidade de vida, quanto mais o trabalho
al no setor posicional é um “guia desorientador” exige tempo e dedicação dos trabalhadores, isso
daquilo que os indivíduos procurariam se pu- também se torna um limite à satisfação pesso-
dessem ver os resultados de suas escolhas com- al: “A redução do bem estar aumenta o incentivo
binadas e agir segundo essa visão, “pois a pro- para o trabalho, e o trabalho por dinheiro, mais
cura de bens posicionais busca o que não pode do que pela satisfação que ele possa proporcio-
ser oferecido. O produto econômico que pro- nar” e os incentivos a essa transferência, qual
voca sofre, portanto, de uma anomalia” (HIRS- seja, de um tempo voltado ao bem estar para um
CH, 1977, p.84). O consumo defensivo, derivado tempo de trabalho rentável, “não refletem neces-
principalmente de gastos com bens ou produtos sariamente uma vantagem social comparável
intermediários necessários (como educação para na forma de maior produtividade na economia”
se ocupar uma posição de prestígio), não realiza (HIRSCH, 1977, p.115).
imediata satisfação. Não seria então econômi-
co, embora registrado como insumo na medida Uma das decorrências principais para a so-
convencional do crescimento econômico como ciedade é a perda de valores sociais relevantes,
aumento do consumo. Dado que para o homem como cordialidade, vida associativa, agregação,

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 29
civismo, e a consequente deterioração moral. Isso ciais impostos ao crescimento, de forma a permi-
TEORIA E CULTURA

representaria uma perda de capital social, seja ele tir a procura de um grau ótimo de desigualdade
na forma de estoque ou de laços sociais. Admi- (com eficiência e produtividade) reconciliador
tindo a análise de Putnam (1996), essa perda do da “diferença entre o que os indivíduos desejam
estoque de capital social significa um limite so- e o que podem alcançar, e o que a sociedade não
cial mais grave em relação à perpetuação do pró- pode” (HIRSCH, 1979, p.155).
prio desenvolvimento econômico e o progresso
social a médio prazo, por corroer a sociabilidade Tal dilema moral, embora mais afeto à tra-
e essa erosão é aprofundada pela “influência da dição sociológica francesa do que britânica, é
publicidade e da ética do interesse individual do levado muito bem desenvolvido na crítica aos
mercado”, logo afetando bases importantes para pressupostos liberais clássicos e à mão invisível.
a dinâmica política. O resultado seria a elevação O liberalismo econômico sempre acreditou que
do consumismo como uma tendência em favor a liberdade de ação individual era capaz de pro-
dos bens materiais, obtendo satisfação não dos mover o bem estar social, como advogou A. Smi-
bens em si, mas das propriedades que encerram, th. A moral social capitalista é baseada no indiví-
o que agrava o fetichismo típico do capital. duo. O problema está no fato de “a ligação entre
a transformação observada nas características
O mercado, todavia, se mostraria sempre do sistema de mercado e o papel desempenhado
insuficiente para responder ao conjunto das nesse sistema pelas motivações individuais” ter
demandas dos cidadãos consumidores. É ne- recebido atenção insuficiente e a moral individu-
cessária uma esfera superior, que possibilite a al ter sido também afetada pelos limites sociais
organização de uma ação coletiva eficiente para do crescimento (HIRSCH, 1979, p.173). Na tran-
prover a satisfação social – logo é um problema sição do laissez-faire para o dirigismo econômi-
mais político do que econômico. Contudo, a ero- co keynesiano, um objetivo central foi o de criar
são da sociabilidade impede a solução dos pro- condições para que o cálculo individual continu-
blemas da ação coletiva sob bases conhecidas e a asse operando de forma socialmente positiva. O
saída individualista tende a agravar o problema enfraquecimento gradativo da moral social em
por possibilitar respostas no âmbito da concor- oposição ao fortalecimento do cálculo indivi-
rência posicional e, portanto, isoladas e que ten- dualista, incapaz de gerar soluções para a ação
dem à privatização da vida. Esse conjunto eleva coletiva, tende a enfraquecer o próprio mercado.
os custos inerentes à dinâmica social e não con-
segue satisfazer seus objetivos, logo não consti- A indução iluminista da relação direta entre
tui um meio eficiente de atender às preferências razão e ética mostrou-se equivocada e insufi-
individuais. O efeito desse processo é que a co- ciente para sustentar as bases morais que alicer-
mercialização da atividade afeta a qualidade do çavam o funcionamento adequado da sociedade
produto e a deterioração das condições de uso liberal. Só a articulação da ação coletiva poderia
derivadas da privatização afetam sua realização e gerar soluções viáveis socialmente em função
a consequente satisfação. do equilíbrio necessário ao próprio processo de
interação social, num paralelo interessante ao
Assim, esse processo tenderia à queda da argumente de C. Castoriadis (1992). A pressão
qualidade de vida de maneira geral, por motivos política orientada por interesses individuais,
físicos (ecológicos) e também culturais (sociabi- aliada à perda da internalização de valores éti-
lidade). Logo, a falha da afluência não está em cos, geraria um contexto político de obediência
seus falsos valores, mas em sua falsa promessa à lei por medo das penas, mas uma desobediên-
e na tensão dela decorrente. “A justaposição de cia ao espírito da lei, ou seja uma erosão mais
uma crescente economia material com um setor profunda dos elos de coesão social, importantes
posicional estático ajuda a levar o processo de inclusive para a celebração de contratos, aumen-
comercialização uma expansão dinâmica” que to da confiança, para o mercado. A produção
traz consigo a deterioração da qualidade de vida. de uma moral colaborativa, coletiva e pública
Importa então perceber e aceitar os limites so- seria benéfica primordialmente por razões prá-

30 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
ticas (econômicas e sociais), e não por motivos da droga miraculosa acaba enfraquecida por

TEORIA E CULTURA
religiosos ou culturais, ajudando a implementar seus efeitos colaterais” (HIRSCH, 1979, p.226).
uma política coletiva necessária para “minimizar
os efeitos adversos sobre o incentivo ao trabalho, Interessante na reflexão de Hirsch é também
(contribuindo...) para o objetivo mais modesto e sua preocupação em vislumbrar possíveis cami-
limitado de manter algumas das bases-chave de nhos para essa crise. O primeiro passo é situar
nossa sociedade existente, contratual e mercan- devidamente o contexto como pertinente às eco-
til” (HIRSCH, 1979, p.202). nomias avançadas, com uma desigualdade rela-
tivamente pequena, expressa na distribuição da
O problema que se impõem é manter um cer- população por faixas de renda tendendo a um
to nível necessário de obrigação social através da losango ou elipse ovalada. Para esse contexto, a
reconciliação entre essa responsabilidade social e compulsão distributiva exige do Estado mais do
a corrente principal adversa da ética do mercado. que ele pode dar, atuando ao lado da ampliação
Essa cooperação voluntária depende de um sen- do consumo material e da ambição fetichista,
so internalizado da obrigação social, e não de in- como uma força geradora de concorrência posi-
centivos e punições externas, operadas pelo Es- cional com amplos efeitos negativos. Dado que a
tado. A retração do individualismo é necessária desigualdade é factual, o possível para a socieda-
em função do limite social imposto à ação coleti- de seria evitar a competição posicional e minorar
va de perder sua capacidade de satisfazer as pró- o hiato temporal em que o crescimento promove
prias preferências individuais. O retorno à mo- o acesso de amplas camadas da população a bens
ral social é necessário porque agir socialmente é dos setores materiais. Ao mesmo tempo, importa
menos oneroso num ambiente social, logo mais gerar laços de ação coletiva que proporcionem a
eficiente e mais produtivo economicamente, ao gerência dos bens escassos de forma que a am-
gerar mais satisfação a menor custo. A sociabili- pliação do consumo não deteriore a qualidade,
dade é benéfica ao impor perdas e ganhos distri- como é o caso da vida nas cidades e a perda do
buídos por todos o que em si favorece a coope- valor das credenciais educacionais.
ração e o funcionamento do mercado. A política
keynesiana baseada no crescimento acabou não Hirsch percebe que o crescimento tem limi-
conseguindo “provocar maiores modificações na tes sociais intrínsecos e a experiência individual
distribuição de renda” (HIRSCH, 1979, p.224). A de consumo tem proporções ainda limitadas. O
compulsão distributiva em si merece tais críticas resultado de continuar ignorando esses limites
por se converter em uma força com motivação sociais e propagando os objetivos consumis-
individualista e deformadora da moral social, tas em escala é a “frustração das exigências in-
efeitos inversos e perversos em relação aos ob- dividuais e o aparecimento de efeitos colaterais
jetivos originais. Mesmo organizações de classe onerosos e incontrolados sobre a infra-estrutura
são incluídas neste conjunto de ações deforma- social” (HIRSCH, 1979, p. 242). A natureza da
doras que tendem a atuar na concorrência posi- competição posicional sinaliza uma “procura
cional e na geração de inflação relativa dos bens. de desigualdade de um tipo mais direto do que
A sociedade se ressente da moral social, fragili- a existente nas reivindicações do produto ma-
zada pela própria ação do individualismo decor- terial, (e...) certas desigualdades ou diferenças
rente do processo de competição advindo com o de recompensa podem ser consideradas como
crescimento. A ação social permaneceria sem so- funcionais”. Na medida em que as desigualdades
lução dirigida, uma vez que o Estado continuaria contribuem para ampliar a economia e promo-
incapaz de captar informações satisfatórias sobre ver o crescimento material, contribuem também
preferências individuais e também se mostraria para beneficiar a todos, logo deve ser encontrado
ineficiente na transmissão de incentivos para sa- “um grau ótimo de desigualdade”, e não buscada
tisfazê-las. Com o enfraquecimento das normas uma igualdade falaciosa e com caminhos reple-
de cooperação deliberada e da contenção social, tos de efeitos colaterais (HIRSCH, 1979, p.250).
“o uso desse recurso como dominante provoca A crítica de Hirsch contra a compulsão distribu-
um sistema instável, com o tempo. A eficiência tiva, e os demais efeitos colaterais do crescimen-

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 31
to em função da ignorância de seus limites, se principais escolas fundadoras, herdeiras de
TEORIA E CULTURA

dirige para o fundamento da economia. Segundo Durkheim, Weber e Marx, e em oposição à tra-
ele, as crises se devem a uma pressão que sola- dição britânica, seja em suas vertentes liberais ou
pava a força e o equilíbrio do sistema, exercida via economia social. A devida compreensão de
pelas “forças internas deflagradas pelo capitalis- seu pensamento só é possível no contexto deste
mo liberal, em favor da justificativa consciente debate. Ele reforça a tese da produção e da repro-
da distribuição das recompensas econômicas” dução social, principalmente de suas estruturas
(HIRSCH, 1979, p.251). de poder, partindo, entretanto, não da análise
tradicional dos meios de produção, mas pers-
Para inibir a competição posicional, maior crutando a intimidade do habitus e dos estilos
vilã neste processo, o remédio seria primeira- de vida que reiteram a estrutura social desigual e
mente a aceitação dos limites sociais, dentre eles seus mecanismos de distinção. Tais mecanismos
os limites da (des)igualdade,como factuais da so- operariam em sintonia com o modo de produ-
ciedade moderna capitalista. Outra medida é a ção, mas para além de seus movimentos inter-
diminuição dos prêmios, como a diminuição das nos, como a mobilidade circular. De uma forma
diferenças salariais e do acesso a bens e serviços original, Bourdieu inscreve a reprodução num
exclusivos, no intuito de inibir a motivação da lócus especial da cultura, onde os hábitos e estilos
busca por bens posicionais. De outra parte, o au- de vida moldam o consumo e as práticas cotidia-
tor advoga em favor do investimento público em nas a tal ponto de assegurar a preservação da es-
bens de uso geral, tornando seu acesso menos trutura. A produção e a reprodução derivam de
possível com o dinheiro e mais sem ele, ou seja, uma síntese sofisticada entre “infra” e “super” es-
tornando-os públicos e gratuitos, disponíveis em trutura, que reforça o modus operandi da manu-
bases não mercantis. Ao evidenciar os dilemas tenção de uma determinada organização social4.
da economia posicional e marcar a relação en-
tre a escassez social e a ação coletiva através dos O ponto de partida da análise é a contextua-
efeitos colaterais da competição posicional e da lização da tomada de decisões em um momento
fragilização da moral social, Hirsch abre cami- inscrito histórica-sócio-culturalmente: a reafir-
nho para uma série de debates sobre os limites mação da estrutura de poder através das opera-
da modernidade e as promessas políticas apoia- ções de distinção. Não seria possível entender
das nela. Na mesma época, argumento similar foi as disposições que orientam as escolhas de con-
desenvolvido sob bases teóricas completamente sumo sem inseri-lo na unidade do sistema de
distintas. Tal como indicado anteriormente, as disposições culturais estruturado socialmente. O
teses de Hirsch encontram similitudes (e tam- mercado das trocas simbólicas, embora afetado
bém contrapontos) com algumas das mais im- por leis de oferta e procura, produz dinâmica di-
portantes, centrais e inovadoras produções na versa. A oferta e a procura são determinadas e
Sociologia contemporânea: a Reprodução de controladas socialmente, numa estrutura de dis-
Pierre Bourdieu, teórico que exerce maior in- posições e distinções piramidais que preservam
fluência sobre o Pensamento Social Brasileiro a macro estrutura social, sua hierarquia e seus
(MELO, 1999). Para aprofundar estes nexos, o mecanismos de poder.
texto debate avança na direção da construção do
argumento a partir de uma de suas obras semi- O argumento da distinção em Bourdieu en-
nais: A Distinção. contra paralelos com competição posicional de
Fred Hirsch (1979). Dentre eles, a concepção de
BOURDIEU: A SÍNTESE DA REPRODUÇÃO
que o consumo, assegurada a subsistência, é um
ESTRUTURAL
movimento na direção da distinção, e não da sa-
Bourdieu inscreve-se de maneira singular tisfação, como um conjunto articulado de atos
na tradição sociológica, influenciado por suas para se diferenciar socialmente, tendendo cole-

4
Excertos deste trecho foram inspirados na resenha do próprio autor sobre “La Distinction: critique sociale de jugement”,
publicada originalmente na Revista Praia Vermelha, v.1, n.1 (1997).

32 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
tivamente para manter uma estrutura desigual. hábitos identitários. Os capitais, como conjuntos

TEORIA E CULTURA
Para Bourdieu, essa estrutura seria reprodutivis- articulados de atributos distintivos de poder e ca-
ta e reacionária. Para Hirsch, a reprodução seria pacidade de reprodução através de mecanismos
decorrência de um limite socialmente imposto, de troca, estão imbricados na articulação do pro-
aceito como natural/moral/normal, o qual im- cesso de reprodução social através do estabeleci-
pede equalização além do que seria admitido mento de fronteiras, barreiras, comércios e va-
como um grau ótimo de desigualdade. A saída lores. Não importaria, então, pensar apenas nos
para o impasse seria “pelo meio”, via expansão capital de origem e de chegada, na tentativa de
das classes médias, e o equilíbrio de capitais de mensurar o movimento. É o efeito de trajetória
diferentes espécies em inversões não competiti- que importa. Bourdieu defende que a correlação
vas, através da imposição de controles ao merca- entre uma determinada prática e a origem social
do posicional. é resultante também dos efeitos de inculcação,
exercidos pela família e condições materiais de
Bourdieu, por sua vez, insere as eleições de existência, e de trajetória social, que incorpora
consumo na estrutura de classe, como elemento disposições e opiniões sobre a vontade (ou não)
integrador da cultura, dos capitais (econômico, de ascender socialmente.
cultural e social) acumulados, dos campos de
atuação e das práticas decorrentes. A classe se- Para se considerar a trajetória e seus determi-
ria caracterizada por um processo de tomadas de nantes, um espaço social poderia ser definido,
decisão frente à definição de consumos cotidia- de acordo com três dimensões do capital: sua
nos que se articulam para formar um conjunto de estrutura, seu volume e sua evolução, entendida
preferências que configurariam o estilo de vida, como as mudanças processuais das outras duas
resultado das decisões e de seus condicionantes, propriedades ao longo do tempo. As diferenças
ou determinantes, segundo uma lógica repro- de volume dissimulariam as diferenças secundá-
dutivista. As eleições acabariam por configurar rias dentro de cada classe, que separam distintas
habitus, que se amalgamam às classes. As classes frações, definidas por estruturas diferentes de
seriam então definidas não só por sua posição distribuição de capital global entre as espécies di-
nas relações de produção, mas, como síntese es- versas. Assim, há frações que dependem mais do
trutural, também por outros fatores que tendem capital econômico para se reproduzir enquanto
a funcionar como princípios de seleção, inclusão outras dependem mais do capital cultural. Logo,
ou exclusão social (Bourdieu: 1979). frações de classe com estruturas de capital di-
ferentes produziriam estratégias e trajetórias
Numa perspectiva histórica, “A Distinção” diversas. Em ambos os casos, mesmo aceito lo-
reconstrói os determinantes dos movimentos gicamente que as estratégias de reprodução são
entre as posições, revendo as diferenças visíveis diversas, o estilo de vida e os hábitos incorpo-
na classe média onde as mesmas posições de ori- rados pelas frações de classe visam à garantia da
gem, ou em uma mesma família, derivam diver- ampliação de capital social, que poderia ser re-
sos destinos. Outro ponto importante é a consi- vertida em apoios úteis para efetivação do poder
deração de efeitos de ajustamento de aspirações representado pelo volume de capitais acumula-
às oportunidades objetivas, similar ao debate de dos. O capital social seria assim um mecanismo
satisfações sociais e ajustamentos ligados à po- de reforço que garantiria o poder de realizar
breza arraigada (SEN, 2001). A inserção em uma apropriação e acumulação em relação a um de-
classe estabelecer-se-ia num processo de (re)de- terminado grupo social.
finição de sua identidade pessoal em direção a
sua identidade social. As posições nas relações A escolarização teria não só a função de acu-
de produção impõem a todos um conjunto de mular capital cultural como também (e, muitas
práticas cotidianas, comuns a pares inter classes, vezes, principalmente) de ampliar o capital so-
tão mais forte quanto os mecanismos que regem cial de um grupo (família), obtendo através da
o acesso a diferentes posições na pirâmide social escolarização uma distinção (título e círculos
e por isso produzem este conjunto específico de de amizades exclusivos) e uma diferenciação de

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 33
espaços sociais. Este conceito de capital social é cada vez mais intensa poderia apenas garantir a
TEORIA E CULTURA

completamente diverso de tantos outros, como manutenção na mesma posição social, configu-
Coleman (1966), Putnam (1996) e Heyneman rando um consumo defensivo. Tais movimentos,
(2000). Seu debate inscreve-se no debate com as por mais que produzam alterações individuais,
formulações anteriores acerca do Capital Huma- assegurariam a manutenção (reprodução) do
no [cf. Schultz (1961) e Becker (1964)], em opo- conjunto da estrutura. Escapar desse processo
sição/crítica a seus argumentos basilares. de dominação implicaria na produção de novas
formas de vida social. No entanto, um movimen-
As frações de classe tenderiam a se reproduzir to coletivo, por classes ou suas frações, como a
e distinguirem-se. Isso depende em primeiro lu- expansão das matrículas, tende a gerar desvalo-
gar do volume e da estrutura do capital que deve rização geral dos bens e sua consequente perda
se reproduzir. Em segundo lugar, do estado do de poder. Um título superior, que ao início da
sistema dos instrumentos de reprodução, que se trajetória tinha valor elevado, acaba por se en-
relacionam com o rendimento diferencial que os quadrar, ao final do percurso (formatura), numa
diferentes instrumentos de reprodução oferecem posição social inferior e um cargo (emprego)
como poder de inversão entre espécies de capital menos rentável, levando à frustração, tanto indi-
e sua trajetória histórica. Este argumento mais vidual quanto coletiva, o que representa a anula-
uma vez encontra paralelo com a lógica de com- ção do movimento de ascensão e inviabiliza gra-
petição posicional de Hirsch (1979), em que di- dualmente aquele caminho como estratégia de
ferentes propriedades gozam de poder social de mobilidade ascendente. Ao mesmo tempo, esse
acordo com seu valor atribuído pela sociedade, caminho passa a ser obrigatório para a preserva-
principalmente por seu poder de singularidade. ção de status (consumo defensivo).
Este caso se aplica especialmente à educação.
Quanto mais se democratiza, menos as creden- A criação de novos habitus e novos estilos de
ciais educacionais são capazes de inversão de ca- vida implicaria em mudanças sociais que, no en-
pital, i.e. em relações a postos de trabalho de alto tanto, afetariam mais suas formas de expressão
nível, ou seja, oferecem menor poder de repro- e realização do que sua estrutura em si. A ten-
dução. Sendo assim, acirra-se a competição por dência é que ocorram “mudanças conservado-
novos diferenciais, mais elevados e mais caros, ras”. Na medida em que não seria possível con-
e que gradativamente também tendem a perder servar seu status se não operassem mudanças,
seu poder social, ainda que seu poder material, reativas a atitudes de outros grupos / classes, as
em termos de produtividade, qualidade, rendi- transformações seriam principalmente “conser-
mento, esteja em elevação. Logo, as titulações vadores” no sentido de preservar sua posição
escolares tendem a sofrer uma desvalorização social. A mudança visaria aparentemente à as-
social, ainda que elevem seu poder de transfor- censão social, mesmo que esta signifique a sim-
mação material ou econômica. Esse processo se ples manutenção da posição relativa, através da
converteria em uma espiral descendente, elevan- preservação de símbolos distintivos, incluindo
do o número de pessoas escolarizadas sem em- salários e cargos, ou o acesso ao ensino superior.
prego e rebaixando historicamente o salário rela- Utilizando mais uma vez a metáfora da fila, à
tivo a um nível de escolarização ou título, ainda medida que ela anda, todos nela precisam tam-
que se registre elevação da produtividade, como bém avançar, ainda que este movimento repre-
observaram Pryor & Schaffer (1999). sente apenas a manutenção da posição relativa.
Ao estático, restaria a exclusão. Classes e frações
Para garantir a reprodução, as frações de clas- tenderiam sempre a se fechar, criando normas
se veem-se obrigadas a inversões de capital em identitárias ligadas a hábitos, consumos, estilos,
outras formas. A diferenciação de capitais mos- títulos, padrões de vida, tanto para si, como para
trar-se-ia cada vez mais relevante em situações seus pares, e principalmente para outras classes.
de equalização de uma das formas, como é ca- O habitus produz práticas e as distingue, por um
racterístico do processo de expansão das classes sistema de signos distintivos e ligados a diferen-
médias que marcou o século XX. Uma inversão tes classes. Funciona assim como estrutura es-

34 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
truturante e estrutura estruturada: pois produz duzir.

TEORIA E CULTURA
práticas e também é produzido pelas condições
de existência. Este habitus agiria como princípio Em todos os gostos também aparecem as
gerador de práticas coletivas e de um sistema de marcas externas de definição de preconceitos,
distinção e inserção ou “enclassamento”. de discriminação e das imposições mais comple-
xas para impedir a mobilidade social. Assim, a
Importa que, a partir desses sistemas, a iden- transformação social não é só travada pela estru-
tidade social passa a se definir pela distinção, tura material, mas pelo controle desta por uma
que se expressa pelas eleições pessoais e coletivas rede de relações culturais que dificultam o aces-
de estilos de vida, que por sua vez se manifesta so a espécies de capitais importantes tanto para
nas definições de gostos. Uma classe ou fração a mobilidade quanto para a criação de formas
encontra similaridades de habitus (e de capitais inovadoras de produção social. A cultura e seus
a eles ligados) entre seus membros e se distin- modos de perceber o mundo proporcionam de-
gue de outras pelas mesmas características, num cisões, opções e gostos diversos, ou seja modos e
formato vertical e hierarquizado de disposições, estilos de vida que são interpretados não só por
que disciplina o movimento social. Os gostos es- sua classe mas pelas outras, registrando compor-
tariam então vinculados a estruturas e volumes tamentos de maior inserção ou exclusão dos me-
de capital e acabam por ajudar a preserva-los, canismos de acesso aos diversos capitais. Sobre
num movimento de reprodução em que o capital os estilos de vida, sobre os modos de pensar e
social, ou seja, a rede de relações que se estabele- articular pensamentos e ações, sobre as visões
cem a partir da posição de classe, ajuda a acessar de mundo não existe um ponto de vista neutro,
padrões de recursos, consumo e poder que ten- são todos inscritos socialmente e distintivos, sob
dem a preservar o próprio grupo, para além das o crivo do poder e do controle social, exercidos
disposições aparentes de igualdade e mobilida- através de múltiplos mecanismos que limitam ou
de. Assim, duas frações de classe apresentariam reforçam o acesso a formas de acumulação de di-
gostos diversos, mas conversíveis em paralelos ferentes espécies de capital.
de estrutura de capitais, sempre atrelados a di-
ferenciações de estrutura, por exemplo, a inversa Dessa forma, para compreender as lutas de
relação entre capital econômico e capital cultu- reprodução, tanto individuais como coletivas, é
ral. Bourdieu examina detidamente três manei- preciso antes perceber que a luta pela inclusão
ras de expressar gostos, como manifestações de em uma classe determinada e todas as lutas den-
estilos de vida com efeito distintivo: alimentação, tro da mesma classe, principalmente as que se
cultura e apresentação pessoal. Nesses gostos se desenvolvem no seio da classe dominante, são
percebe a distinção entre as classes populares e inseparáveis dos conflitos de valores que deter-
as demais, sendo aquelas a própria base, ou obje- minam toda a visão de mundo e toda a arte de vi-
to primário para se derivar a distinção. Entre as ver, e o gosto se encontra na base de todas as lu-
classes médias estão as etapas de transformação tas simbólicas. Se para Hirsch a determinação da
de gostos, em que como numa coluna em mar- luta de ascensão social tinha limites diretamente
cha, o acesso a alguns bens passam pela elite e sociais e se processavam na esfera tipicamente
gradativamente atingem outros níveis sociais, econômica (posicional mais do que material),
exemplo citado também por Hirsch (1979). As para Bourdieu esta luta se dá no controle dos
classes médias têm seus gostos orientados pela gostos e estilos de vida que se encontra atrelado
elite e principalmente distinguidos dos mais po- ao controle, não só financeiro, mas de diversas
bres. Percebe-se também a diferenciação de es- formas de acumulação de capitais, sendo mais
tratégias de aproximação com gostos de acordo importantes aqueles que mais proporcionam in-
com a estratégia de trajetória pretendida, ligada versões satisfatórias em poder social, pois, para
a um tipo de investimento e a uma espécie de ca- além das determinações econômicas, há deter-
pital que, para a fração de classe, parece propor- minações engendradas pelas dinâmicas das pró-
cionar maior retorno em relação ao montante de prias classes dominantes. Não é só a estrutura
capital acumulado e sua capacidade de se repro- interna das frações dominantes, mas também

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 35
a estrutura das relações, entre as frações domi- Para ingressar em níveis mais pormenoriza-
TEORIA E CULTURA

nantes e as frações dominadas, tende a transfor- dos de análise, a relação entre atitudes e ação
mar-se profundamente quando uma parte cada social (individual ou coletiva) é, dentro do es-
vez mais importante da fração dominante deve, copo da mobilidade e do ensino, marcada por
senão seu poder, pelo menos a legitimidade de desigualdades de origem muito difíceis de serem
seu poder, mais diretamente ao capital escolar. transpostas. Além do reprodutivismo de Bour-
Reitera-se então a reprodução como síntese eco- dieu, a Teoria da Desigualdade Maximamente
nômica e simbólica, operando um mecanismo Mantida (MMI) também aponta para mecanis-
sofisticado de dominação que se manifesta na in- mos perversos que impedem o avanço de polí-
timidade do indivíduo através do habitus, sendo ticas eqüitativas, como é o caso da expansão do
muito complexa sua transformação. acesso à educação:

Tanto quanto há a relação entre excedente e (The hypothesis is) within the class structure of indus-
consumo distintivo nas frações dominantes, há trial societies, inequality of opportunity will be grea-
relações entre privação e resignação nas classes ter, the greater inequality of condition – as a deriva-
tive, that is, of the argument that members of more
dominadas. O efeito próprio do “gosto de ne- advantaged and powerful classes will seek to use their
cessidade”, limitado à subsistência, sobreviveria superior resources to preserve their own and their fa-
ao desaparecimento das condições das quais é milies’ position. (Erikson & Goldthorpe, 1993, p.396)
produto. Esse habitus restritivo acabaria por se
perpetuar tanto no consumo, como no modo de A determinação das regras sociais também
pensar (limitando a ambição, rebaixando a auto não é socialmente igualitária. Logo, os grupos
estima) e no agir social. A resignação à necessida- mais favorecidos e que ascendem a posições so-
de é a própria base do “gosto de necessidade”, em ciais privilegiadas não produzem regras que vão
linha com Sen (2001). Limitado objetiva e subje- de encontro às suas possibilidades de manuten-
tivamente, sem produção simbólica própria (se- ção no poder. Ainda que seja possível aceder a di-
não a resignação à necessidade), não restaria ao reitos que melhorem a sociabilidade e, com isso,
dominado outra alternativa senão o esforço para diminuam as desigualdades, tais avanços sempre
assimilar o ideal dominante, mesmo contrário encontrarão o limite das regras sociais que viabi-
à própria ambição de uma recuperação coletiva lizam a manutenção do status quo. Limite este só
da identidade social: a adaptação a uma posição quebrado por uma mudança política:
dominada implica uma forma de aceitação da
dominação. A escola ou a titulação não propor- Thus, in discussing the relationship between educa-
tion and occupation among blacks and whites, Lie-
cionam os meios necessários para a emancipa- berson emphasizes the need of recognize that this
ção cultural ou uma transformação rumo a uma relationship ‘is affected by its own consequences for
nova estrutura social. A cultura popular con- the dependent variable’; it must be seen as ‘holding a
tinua a se limitar a fragmentos de uma cultura form and having a magnitude of consequences whi-
ch is partially a consequence of what is consequences
erudita e nunca uma contracultura. A tomada de are’ (1985/1987:166-7). In other words, what the rela-
consciência política deveria ser acompanhada de tionship is will be affect by what is implied by it for the
uma reflexão da práxis cotidiana, da cultura ime- interests of the dominant group, the whites; it will not
diata e do conjunto de hábitos inscritos no estilo be what it is independently of their power of influence
it. Or, Lieberson concludes: ‘Those who write the ru-
de vida, como um empreendimento de reação às les, write rules that enable them to continue to write
“regras do jogo” e não somente à partida em si. rules? (1985/1987: 167; emphasis in original). (opcit:
Daí a consciência que a escola submete-se a va- p.394)
lores dominantes, inculcando através também de
mecanismos de violência simbólica, o reconheci- No que concerne à relação entre mobilidade
mento de hierarquias ligadas à estrutura social. social e o papel da educação, em específico às de-
sigualdades educacionais, como já citado, Gol-
BOUDON E GOLDTHORPE: ELO MICRO- dthorpe (2000) posiciona-se contrário à pers-
MACRO SOCIOLÓGICO E A ESCOLHA pectiva de Bourdieu, uma vez que a expansão
RACIONAL educacional não reproduziu as desigualdades

36 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
anteriormente verificadas. Sobre o tema, ainda geral) na seleção de novos trabalhadores; e de

TEORIA E CULTURA
posiciona-se em alinhamento com a perspectiva Jackson, Goldthorpe e Mills (2002), que reitera-
de Boudon, precisamente em relação a dois pon- ram a diminuição da importância das qualifica-
tos específicos: “first, in starting form the ‘structu- ções educacionais em processos de mobilidade,
ral’ theory of aspirations of Keller and Zavalloni são exemplos de potenciais limites sociais da
(1964) and, secondly, in regarding the process that educação na contemporaneidade e da alteração
generate class differentials as operating in two di- dos canais clássicos de realização social do “di-
fferent stages” (p.169). O ponto central é o gap ploma”, que precisam, portanto, ser investigados
entre a projeção de mobilidade e a realização efe- e aprofundados.
tiva, uma vez que o interstício entre os dois mo-
mentos é muito grande. Enquanto as preparações A crítica à expansão educacional como sim-
para o ingresso em uma determinada carreira ples indutora de “inflação de credenciais” é uma
acadêmica começam por volta da puberdade ou crítica direta à Teoria do Capital Humano. Em-
até antes, sua realização efetiva dar-se-á entre 7 e bora tal crítica seja instrumentalizada a partir
10 anos depois, tempo mais que suficiente para de múltiplas matrizes, como os debates acerca
mudanças significativas. Daí a importância da de competição posicional com resultado zero
projeção de mobilidade tendo em vista aspectos Hirsch (1979) ou da tentativa nula de distinção
mais estáveis, como características históricas da (Bourdieu: 2000), é a ineficácia de seus mecanis-
carreira, estrutura ocupacional, macro tendên- mos pela inibição das camadas subalternas em
cias econômicas, possibilidades em áreas contí- acessar as oportunidades criadas o argumento
guas, redução das expectativas mais elevadas, e que melhor analisa o processo de produção e
muitos outros elementos. Dadas as suas carac- reprodução das desigualdades, junto com a se-
terísticas, esse tipo de raciocínio é articulado paração da economia material e posicional, em
muito em função das crenças estabelecidas e dos função de processos de tomada de decisão em
habitus de classe. função do “risco” e projeções de “custo-benefí-
cio-probabilidade” (Boudon: 1977 e 1981; Olson:
Também devem ser considerados dois outros 1970). Tal contraponto soma-se a outras análises,
fatores. O primeiro é a deterioração da estratégia predominantemente macro sociais. A primeira
pelo simples afluxo inflacionado de indivíduos. se refere à justificação da TCH como ideologia
Boudon (1981, 1977) analisou bem este fenôme- para produção de exército de mão-de-obra de
no ao descrever os efeitos da ordem social. Tam- reserva, alimentando o desemprego qualificado.
bém podem ser citados o consumo defensivo e a Isso concorreria para diminuição das chances de
inflação de credenciais de Hirsh (1979). Os re- mobilidade social via educação uma vez que a
sultados são a menor realização socioeconômica ampliação da competição posicional favoreceria
quando da obtenção do diploma. Outro resulta- quem detém outras formas de capital acumulado
do é a necessidade de investir ainda mais para se previamente.
atingir a mesma realização anteriormente obtida
com a mesma credencial. Em outro prisma, os Não adiantaria também qualificar trabalha-
empregadores também alteram suas estratégias. dores para empregos que não existem. Os argu-
Uma vez niveladas as credenciais escolares, para mentos da TCH seriam válidos em economias
obter o mesmo efeito seletivo eles podem elevar em crescimento, com pleno emprego e outras
as qualificações demandadas, exigir qualifica- variáveis conjunturais da Era de Ouro, época
ções diversas das obtidas nos sistemas amplos em que foi formulada. Três outras ponderações
de ensino (cursos de informática ou línguas es- sobre prognósticos da TCH são importantes.
trangeiras) ou selecionar a partir de outros ele- A primeira é a de que os dados individuais não
mentos, como a instituição na qual se obteve o necessariamente permitem a extrapolação para
diploma. Os já citados trabalhos de Michelle Ja- contextos maiores, como nacionais ou interna-
ckson (2001), que apontou a importância, entre cionais. A segunda é a de que a relação medida
empregadores ingleses, de critérios não merito- pela TCH é uma referência de estratificação e
cráticos (educacionais ou ligados à qualificação não de causalidade. Ou seja, a relação entre es-

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 37
colaridade e rendimentos dá conta do padrão de tervenções mais diretas, através de políticas de
TEORIA E CULTURA

similaridade entre as estratificações educacionais distribuição de renda, ao invés de expansão de


e de renda, mediadas pela estrutura ocupacional. matrículas. Collins (1979) observou a fragilida-
As taxas de retorno, portanto, não expressam de da relação entre diploma e emprego fora da
causalidades, como abstraem e sugerem alguns estruturação fordista de produção. A expansão
teóricos. São apenas correlações. À medida que das matrículas acabaria por gerar uma inflação
as pirâmides se descolam, essas relações se tor- de credenciais que por sua vez provocaria uma
nariam mais fluidas, o que parece ocorrer em depreciação natural das credenciais, que não
várias economias no século XXI, em função da mais conseguiriam produzir o retorno espe-
Reestruturação Produtiva e do desemprego es- rado. Além disso, a elevação da produtividade
trutural. A terceira ponderação trata da necessi- tende a diminuir a demanda por funcionários, o
dade de investigar as mediações entre educação que afeta negativamente o diploma. Foi Thurow
e o retorno social proporcionado, como já anali- (1975) que melhor analisou os limites da lógica
sado anteriormente (TAVARES JÚNIOR: 2000). de paridade entre filas de empregos-credenciais-
Observa-se que a educação não realiza seus -salários, em função dos limites metodológicos
efeitos de forma direta, mas depende de outras e suas expectativas de equalização a partir dos
modelos de job-competition e de random-walk.
estruturas, como a ocupacional e a tecnológica,
Em oposição a um modelo individualista de aná-
para garantir retornos sociais. Essas “estruturas
lise, Thurow mostra evidências sistêmicas para a
de mediação” são mais (ou menos) capazes de
desigualdade que limitam a força de elementos
extrair melhor proveito dos conhecimentos in-
isolados, como a expansão da matrícula. Pes-
dividuais desenvolvidos em larga escala duran- quisando desigualdades entre salários e com-
te a escolarização e, portanto, têm condições de parando com dados educacionais (fundamento
oferecer também maiores taxas de retorno aos da TCH), observou-se que as diferenças entre as
indivíduos, através de melhores empregos e sa- médias de salários em diferentes níveis educacio-
lários. De outra forma, o mercado de trabalho nais tendem a aumentar na medida em que se
opera com relações de oferta e procura, sendo reduzem as desigualdades educacionais, ou seja,
diretamente afetado pelas taxas de desemprego, a inflação educacional tenderia a anular os efei-
que rebaixa as médias salariais e eleva as exigên- tos econômicos da estratificação educacional. A
cias de seleção. Andersen (1961) já havia se mos- mediação da estrutura ocupacional é o elemen-
trado cético em relação à expansão educacional to chave para compreensão adequada da relação
no mesmo período da formulação original de entre salário e escolaridade. Há fila por empregos
Schultz. Bluestone & Harrison (1982) impetrou e não uma fila entre qualificações ou salários. A
uma consideração mais ideológica à TCH ao cri- investigação de ocupações ou classes é capaz de
ticar o fato de ela imputar a culpa da desigual- explicar melhor as diferenças de salários do que
dade e da pobreza nos pobres, uma vez que eles o nível de escolaridade. Um exemplo simples é
seriam culpados por serem menos educados. A o que aconteceu no Brasil, nas últimas décadas,
economia não gerar bons empregos, o Estado quando a elevação da produtividade industrial
não garantir acesso à educação e a sociedade não levou ao desemprego e à diminuição da média
equalizar oportunidades seriam as causas reais salarial, apesar da elevação das qualificações.
de desigualdades que estariam sendo ideologica-
Extrapolando o argumento, ao invés de se
mente ocultadas pela TCH, que objetivaria justi-
inferir a correlação entre escolaridade e rendi-
ficar desigualdades, e não equalização.
mentos da primeira para o segundo, poder-se-
-ia percorrer o caminho inverso. Pode o cresci-
Em Blau & Duncan (1967), a educação apa-
mento econômico levar à elevação dos salários,
rece como um importante elemento produtor de
ao aumento das oportunidades (que tendem a
mobilidade, dentro de seu padrão esquemático diminuir desigualdades), à ampliação da arreca-
de análise. Este padrão veio a influenciar depois dação e receita estatais, que proporciona maiores
a obra de Jencks (1972), quando mostrou os li- investimentos em educação, além de investimen-
mites das políticas educacionais em promover tos privados (familiares) em busca de melhores
diminuição de desigualdades e defendeu in- ocupações, o que, no conjunto, tenderia a gerar
38 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
a mesma correlação. Deve-se atentar fundamen- acesso aos melhores postos de trabalho e nem

TEORIA E CULTURA
talmente para as estruturas de mediação, pois a oferece as mesmas taxas de retorno antes auferi-
educação não realiza seus potenciais de produ- das, mas é uma “garantia” contra o desemprego,
ção social através de meios próprios, mas sempre como registrado por Shavit e Müller (1998). Esse
dependente de outras estruturas sociais, como o argumento também é bem analisado por Pryor
mercado de trabalho, as políticas de desenvol- & Schaffer (1999), em que é explicada a espiral
vimento, as leis laborais, a organização sindical descendente do desemprego dos Estados Unidos
etc. Logo, importa mais observar tais estruturas em função também da relação com a expansão
de mediação do que focar apenas a organização da escolaridade e a substituição (elevação) de
interna do sistema. Além disso, é preciso dis- exigências para ocupação de postos. Isso pode
tinguir “inteligência” (habilidades, cognição ou ser encontrado nos dados através da alteração na
QI), qualificação, dedicação (esforço, trabalho, relação entre ocupação e escolaridade ao longo
concentração, etc), outros talentos inatos (como do tempo no Brasil, embora careçam de investi-
habilidades não cognitivas, inteligência emocio- gação empírica.
nal ou social, capacidade política, etc) e a escola-
ridade em si, aferida em anos de estudo ou cre- David Lam (1992) constatara a diminuição
denciais específicas. Essas categorias podem ser das desigualdades educacionais no Brasil como
relacionadas à meritocracia, mas não podem ser indicador de desenvolvimento social, mas não
resumidas apenas à escolaridade e menos ainda extrapolou seus dados para desigualdades so-
codificadas como idênticas. Credenciais são um ciais. Griffin e Edwards (1993), ao incluir vari-
dos elementos diferenciadores no mercado de áveis de controle nas equações Mincerianas para
trabalho, por representar potencial econômico o Brasil, observaram que o preditor relativo aos
com treinamentos ou facilidade para certificação anos de escolaridade perde poder explicativo até
de qualidade. As credenciais educacionais são se tornar menos expressivo do que outras carac-
um tipo, mas há outras e muitas delas não me- terísticas do próprio mercado de trabalho, como
ritocráticas. acesso ao emprego formal. Além disso, a relação
não é propriamente linear, mas convexa. Jim Al-
Fred Hirsch (1979) sistematiza melhor os ris- len (1997) investigou em sua tese o efeito da edu-
cos da lógica da TCH ao dimensionar tais políti- cação em salários e evidenciou a importância da
cas como produtoras de escore social zero. Como composição setorial para analisar esta relação.
dito, as melhores ocupações e salários traduzem
bens posicionais e a competição por eles, atra- Para a persistência das desigualdades, uma
vés também da educação, geraria efeitos perver- interpretação plausível se adequa à Teoria da De-
sos pelo consumo defensivo (dispendioso e não sigualdade Maximamente Mantida (Maximally
gerador de retornos na economia material), pela Maintained Inequality – MMI). Silva e Hasenbalg
inflação de credenciais e pelas frustrações so- (2000, 2002) observou também no Brasil a per-
ciais, derivada da ilusão da obtenção de postos sistência das desigualdades educacionais (e de
não mais possíveis depois da desvalorização das oportunidades sociais) entre estratos até que o
credenciais. Esse circuito descreve um dilema grupo em vantagem tenha chegado ao ponto de
de ação coletiva e a necessidade de intervenção saturação no aproveitamento de tais oportunida-
e equilíbrio, para corrigir equívocos das ações des. Hout e Raftery (1993) alertam que o grupo
individuais, destacado por Boudon como efeitos em vantagem está em melhores condições de
perversos lógica de ação individual em ambiente aproveitar as novas oportunidades que surgem
de desacordos coletivos: a mão invisível não gera derivadas muitas vezes de políticas públicas com
sempre efeitos positivos. caráter igualitário. Isso levaria à persistência de
desigualdade em contextos de não saturação das
Outro contraponto que merece consideração melhores oportunidades. Ayalon e Shavit (2001)
é o efeito da educação sobre sociedades já esco- investigaram a hipótese da MMI em Israel e
larizadas. Embora possa ter, no conjunto, efeito perceberam evidências importantes para consi-
zero, é melhor individualmente ser educado do deração de sua plausibilidade, considerando-a
que estar sem estas credenciais. O nível superior, adequada como preditora de resultados educa-
em muitos países, não mais consegue garantir cionais em longo prazo.

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 39
CONSIDERAÇÕES FINAIS Tais características da modernidade ociden-
TEORIA E CULTURA

tal encontrariam, no Brasil, ainda outros limites.


Observou-se que o crescimento econômi- Isso se fundamenta no argumento do funciona-
co típico da Era de Ouro, tendeu a gerar tanto mento idiossincrático das sociedades capitalistas,
o aumento do consumo material, seu objetivo mesmo após “vencidos” os processos estruturan-
e motor, quanto novas demandas por bens po- tes, como a democratização e a industrialização.
sicionais, que geraram inflação e frustração de Num primeiro movimento, a institucionalização
realizações, dados os limites impostos pela es- de uma sociedade moderna e industrial subsu-
cassez social. Isso intensificou a pressão por uma miria as antigas estruturas e acabaria por gerar
capacidade aquisitiva adicional, manifesta na dinâmicas sociais próprias de um padrão mo-
compulsão distributiva. Tal processo não reali- derno clássico. Concomitante e em soma a este
zou seus objetivos e gerou pressão inflacionária movimento, ocorre uma ação social tipicamente
subjacente, o que representou um desperdício diferenciadora, que também subsumi as estru-
social e tendeu a produzir um efeito inesperado, turas capitalistas e as faz operar de uma forma
colateral e perverso, ao contribuir para a repro- peculiar, adaptada ao modus operandi de cada
dução e aprofundamento da desigualdade. Logo, sociedade, ou de cada estilo societário, preser-
restaria à teleologia moderna ser guiada por “um vando funcionamentos e lógicas de acumulação
grau ótimo de (des)igualdade”. e poder pré-modernos. Próximo ao processo da
modernização conservadora, aqui a ação social
De outro lado, e por caminhos diversos, produz um híbrido, com um fator predominante
Bourdieu também aponta os limites sociais da típico do capitalismo moderno e outro fator liga-
educação através da crítica reprodutivista. Para do ao estilo societário que se reproduz sob novos
garantir a reprodução, as frações de classe veem- formatos. Isto representa uma dupla adaptação
-se obrigadas a uma inversão de capital econô- mutuamente favorável às classes dominantes. O
mico em outras formas, principalmente cultural, capitalismo consegue instalar-se com menos re-
pelo capital social agregado. Os capitais cultural sistências e melhor assimilando as formas sociais
e social mostrar-se-iam relevantes na diferen- anteriores. A sociedade se modernizaria sem
ciação entre casos nos quais se nivelaria um dos deixar de operar alguns de seus funcionamentos
capitais, mas o outro manteria a distinção. Essa anteriores típicos, logo, se reproduzir.
inversão cada vez mais intensa poderia apenas
garantir a manutenção na mesma posição social, Em relação à produção social da desigualdade
configurando um consumo defensivo. A mobili- escolar, observou-se que o Brasil melhorou mui-
dade social seria um fenômeno com característi- to seus indicadores nas últimas décadas, tanto
cas ilusórias pelo efeito de trajetória, geralmente em relação a sua situação pregressa, quanto em
individuais, e rapidamente incorporado pelas relação a outros países da América Latina. No
frações superiores, o que tende a reformar a es- entanto, ocupa ainda uma posição inferior no
trutura social e com isso, reproduzi-las. Quando cenário educacional. Observa-se que tanto no
o movimento é coletivo, por classes ou frações acesso à escola quanto na qualidade da educa-
inteiras, como o fenômeno de expansão das titu- ção, operam muitos mecanismos produtores de
lações, ocorre uma desvalorização geral dos bens desigualdades. A expansão das matrículas não
e sua consequente perda de poder de distinção. cumpriu a expectativa de que ela seria capaz de
O título mais elevado, que quando se iniciou a diminuir as desigualdades sociais. A ampliação
trajetória tinha valor também elevado, acaba por da escolarização tendeu a diminuir a pobreza
se enquadrar, ao final do trajeto, numa posição e as desigualdades educacionais, mas de forma
social inferior e num cargo (emprego) menos limitada. Nem a diminuição das desigualdades
rentável, levando à frustração, tanto individual educacionais, nem a elevação da escolaridade
quanto coletiva, o que representa a anulação do média, foram capazes de afetar significativamen-
movimento de ascensão, e inviabilizando grada- te a desigualdade social.
tivamente aquele caminho como estratégia de
mobilidade ascendente. Ao mesmo tempo, esse No entanto, a realização de mobilidade social
mesmo caminho passa a ser obrigatório para a mostrou-se efetiva no Brasil, mesmo decres-
preservação de status (consumo defensivo). cente ao longo do tempo. A estrutura de classes

40 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
também se altera (TAVARES JÚNIOR: 2012). BELTRÃO, K.I., ALVES, J.E.D. A reversão do

TEORIA E CULTURA
Verificam-se barreiras à mobilidade entre classes hiato de gênero na educação brasileira no século
rurais e urbanas, entre classes manuais e não ma- XX. Anais do XIV Encontro da ABEP.Associação
nuais, e entre o conjunto das classes e os estratos Brasileira de Estudos Populacionais, Caxambu,
superiores. A mobilidade descendente dos es- 2004.
tratos superiores é muito baixa, sendo os fatores
estruturais os principais responsáveis pela ascen- BLAU, Peter Michael & DUNCAN, Otis Du-
são de diferentes origens aos estratos superiores. dley. The American occupational structure. Nova
A mobilidade de longo percurso é rara, mas, York: John Wiley & Sons, 1967.
neste caso, o acesso ensino superior cumpriu pa-
pel relevante, mesmo com declínio de seu poder BLUESTONE, Barry; HARRISON, Bennett.
ao longo do tempo. Observa-se que não houve The deindustrialization of America: plant closings
mera reprodução social, mas transformações community abandonment, and the dismantling
sociais (mesmo pequenas) que se acumulam e of basic industry. New York: Basic Books, 1982.
tendem a gerar mudanças mais estruturais ao
longo do tempo. A compreensão desses mecanis- BOUDON, Raymond. L’inégalité des chances:
mos transformadores é a chave para interpretar la mobilité sociale dans les société industrielle.
o avanço dúbio que se observa no Brasil. Neste Paris, Armand Colin, 1973.
caso, os argumentos micro e macro sociológicos
derivados das teorias de escolhas e efeitos sociais BOUDON, Raymond. A desigualdade de
revelam-se instrumentos analíticos pertinentes oportunidades: a mobilidade social nas socieda-
para investigações empíricas das transformações des industriais. Brasília. Ed. UnB, 1981.
sociais no Brasil, em especial no século XXI.
BOUDON, Raymond. Effets pervers et ordre
REFERÊNCIAS social. Paris, PUF, 1977

ALLEN, Jim. “Sector Composition and the BOURDIEU, Pierre. La Distinction: Critique
Effect of Education on Wages: an International Sociale de Jugement. Paris, Minuit, 1979.
Comparison”. International Sociological Asso-
ciation (ISA), Research Committee 28 on Social CASTORIADIS, Cornelius et all. A Criação
Stratification and Mobility (http://www.soc.duke. Histórica. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1992.
edu/~rc28/). Amsterdam: Thesis Publishers (ICS
dissertations, #47), 1997. ISBN 90-5170-409-7 COLEMAN, James S. The concept of equality
of educational opportunity. Baltimore MD, Jo-
ANDERSEN, C. Arnold. “A skeptical note on hns Hopkins University, 1966.
education and mobility”. In: HALSEY, A. H. et
al. (eds), Education Economy and Society. Nova COLLINS, Randall. The credential society : an
York: The Free Press, 1961. historical sociology of education and stratification.
Nova York: Academic Press, 1979.
AYALON, Hanna e SHAVIT, Yossi. “Matri-
culation Reforms and Inequalities in Israel: The DEROUET, Jean-Louis. A sociologia das de-
Mmi Hypothesis Revisited”. International Socio- sigualdades em educação posta à prova pela
logical Association (ISA), Research Committee 28 segunda explosão escolar: deslocamento dos
on Social Stratification and Mobility (http://www. questionamentos e reinício da crítica. Revista
soc.duke.edu/~rc28/). Conference Paper, Berke- Brasileira de Educação. ANPED, Set/Out/Nov/
ley, 2001. Dez, nº21, pp 5-16, 2002.

BECKER, G. S. Human Capital: a theoretical ERIKSON, Robert e GOLDTHORPE, John


and empirical analysis, with special reference H. The constant flux: a study of class mobility in
to education. New York: Columbia University industrial societies. Oxford, Oxford University
Press, 1964. Press, 1993. GOLDTHORPE, John H. On socio-
logy: numbers, narratives, and the integration of

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 41
research and theory. Nova York : Oxford Univ. America. New York, Basic Books, Inc., 1972.
TEORIA E CULTURA

Press, 2000.
LAM, David. Intergenerational educational
GOLDTHORPE, John H. Class analysis and mobility in Brazil. Rio de Janeiro: IPEA, 1992.
the reorientation of class theory. The British
Journal of Sociology, Volume 61, Supplement 1, MARSHALL, Alfred. Princípios de Econo-
January 2010 , pp. 311-335(25). mia: Tratado Introdutório. Vol. 1 (Coleção Os
Economistas). São Paulo: Nova Cultural, 1996.
GRIFFIN, P. e EDWARDS, A. C. Rates of Re-
turn to Education in Brazil: Do Labor Market MEADOWS, Donella H.; MEADOWS,
Conditions Matter?. Economics of Education Re- Dennis; RANDERS, Jorgen and BEHRENS III,
view, vol. 12, nº 3, pp. 245-255. 1993 William W. The Limits to Growth. New York:
Universe Books, 1972.
HIRSCH, Fred. The Social Limits to Growth.
London: Routledge & Kegan Paul, 1977. MELO, Manuel Palacios Cunha. Quem expli-
ca o Brasil. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 1999.
HIRSCH, Fred. Limites Sociais do Cresci-
mento. Trad.: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, OLSON, Mancur. The logic of collective ac-
ZaharEditores, 1979. tion : public goods and the theory of groups. Nova
York, Schocken, 1970.
HEYNEMAN, Stephen. From the Party/State
to Multi-Ethnic Democracy: Education and So- PRYOR, F. L. & SCHAFFER, D. L. Who’s not
cial Cohesion in the Europe and Central Asia Re- working and why. Cambridge, Cambridge Uni-
gion,” Educational Evaluation and Policy Analy- versity Press, 1999.
sis, “ vol. 21 No. 4 (Summer, 2000), pp. 173 – 191
PUTNAM, Robert D. Comunidade e Demo-
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O cracia. A Experiência da Itália Moderna. Rio de
breve século XX 1914-1991. São Paulo, Cia. das- Janeiro, Editora FGV, 1996.
Letras, 1997, 2ª ed
SHAVIT, Y. e MULLER, W. From school to
HOUT, Michael and RAFTERY, Adrian. Ma- work: a comparative study of educational quali-
ximally Mantained Inequality: Expansion, Re- fications and occupational destinations. Oxford,
form and Opportunity in Irish Education, 1921- Clarendon Press/Oxford Univ. Press, 1998.
75. Sociology of Education, 66: 41-62, 1993.
SILVA, Nelson do Valle; HASENBALG, Car-
JACKSON, Michelle. “Meritocracy, Educa- los. Recursos familiares e transições educacio-
tion and Occupational Attainment: What Do nais. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 18,
Employers Really See As Merit?”. International supl. p. S67-S76, 2002.
Sociological Association (ISA), Research Com-
mittee 28 on Social Stratification and Mobility SILVA, Nelson do Valle; HASENBALG, Car-
(http://www.soc.duke.edu/~rc28/). Conference los. Tendências da desigualdade educacional no
Paper, Mannheim, 2001. Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 43, n. 3, p. 423-
445, 2000.
JACKSON, Michelle; GOLDTHORPE, John
H. e MILLS, Colin. “Education, Employers and SCHULTZ, Theodore W. Investment in hu-
Class Mobility”. International Sociological Asso- man capital. The American Economic Review, v.
ciation (ISA), Research Committee 28 on Social LI, n. 1, p. 1-17, march.1961.
Stratification and Mobility (http://www.soc.duke.
edu/~rc28/). Conference Paper, Oxford, 2002. SEN, Amartya Kumar. Desigualdade Reexa-
minada. Trad. Ricardo Doninelli Mendes. Rio de
JENCKS, Christopher. Inequality: A Reasses- Janeiro, Record, 2001.
sment of the effect of family and Schooling in

42 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
TAVARES JUNIOR, Fernando. Saber fazer ou

TEORIA E CULTURA
saber pensar. Dissertação de Mestrado em Edu-
cação, Juiz de Fora, FACED/UFJF, 2000.

TAVARES JÚNIOR, F. et all. Indicadores de


fluxo escolar e políticas educacionais: avaliação
das últimas décadas. Estudos em Avaliação Edu-
cacional, São Paulo, v. 23, p. 48-67, 2012.

THUROW, Lester C. Generating inequality.


Nova York, Basic Books, 1975.

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 11 n. 1 jan/junh. 2016 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 43

Você também pode gostar