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Retranca

Ensinar é
também um ato
político

Um discurso ideológico não aceita


nada que o contradiga. Se tudo pode
se tornar objeto de disputa, então por Marina Feferbaum e
nada neutro restará no mundo Guilherme Forma Klafke

A
superação das fases mais agudas da pandemia de covid-19
no Brasil e no mundo concluiu o acontecimento histórico
de maior magnitude da era digital, responsável por dividir o
cotidiano social em duas normalidades distintas: o velho e o
novo normal, respectivamente aos cotidianos anterior e posterior às
medidas mais rígidas de saúde pública para conter a transmissão do
vírus. A realidade emergiu transformada, não apenas pela presença
constante de máscaras, mas também pelo uso político do sars-cov-2: ao
invés do mundo se unir para combater o inimigo comum, ele se dividiu,
levando a batalha para o discurso, contrapondo ciência e anticiência
sob bandeiras partidárias.

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A polarização em torno da pandemia não foi da comunidade. Nós, educadoras e educadores, te-
inédita nem inesperada. Não foi inédita pois a ma- mos um papel fundamental para o futuro do país, e
nipulação da informação para uso ideológico sem- isso não deve ser ignorado em nossa prática.
pre existiu. Não foi inesperada pois as tecnologias Muitos professores, porém, se recusam a ad-
digitais (em especial as redes sociais) fomentam a mitir que a docência é uma atividade política. Di-
reprodução de todo tipo de ideologia, criando con- zem que seus posicionamentos são neutros, que
dições ótimas para a formação de bolhas. Some-se evitam emitir juízos políticos em aula, que não
a isso o oportunismo político para todo tipo de di- trazem discussões políticas e que ensinam maté-
vergência se tornar uma questão de posicionamen- rias que não são políticas. Paradoxalmente, quan-
to político, por mais objetivo e superado que seja, to mais as universidades se afastam da política,
como o formato esférico do astro que habitamos. mais favorecem a percepção de espaços tecnocra-
Em formas extremas, um discurso ideológico tas e elitistas. Quanto mais se aproximam da polí-
não aceita nada que o contradiga. Se tudo pode se tica, favorecem uma percepção de serem espaços
tornar objeto de disputa, então nada neutro res- partidários e dominados por uma ideologia.
tará no mundo. Se o ensino da não neutralidade Argumentamos que não há como escapar da
é condenável, então o ensino, em si, deve ser eli- política no ensino superior. Como dizia o mes-
minado. O totalitarismo não gosta do pensamen- tre Paulo Freire, educar é um ato político; não há
to crítico: tudo se torna um dogma, uma crença, neutralidade, ao contrário do que comumente se
a ser obedecida conforme a ideologia dominante. acredita. A política, como arte de tomar decisões
A possibilidade de escolha deixa de existir, assim coletivas ou decisões individuais na arena públi-
como o modelo democrático. ca, permeia totalmente a docência. Seis manifes-
Várias teses procuram explicar a ascensão de tações exemplificam essa relação.
regimes que colocam em xeque o modelo de de- 1. A política nas decisões pedagógicas.
mocracia liberal. Jan-Werner Muller, em sua obra O ofício de ensinar exige a realização de esco-
What is Populism? menciona como possibilida- lhas a todo momento: o que ensinamos, como
des uma enorme frustração das pessoas com go- ensinamos, por que, para quem e para quê.
vernos cada vez mais distantes e tecnocratas, um Isso envolve o currículo, o conteúdo, os mé-
sentimento de rancor ou vingança de grupos que todos, os objetivos de aprendizagem, a biblio-
se sentiram colocados de lado nos últimos anos, grafia, a organização da sala de aula, entre ou-
seja por conta dos efeitos da globalização, seja por tros aspectos de um curso. Por trás da escolha
conta de movimentos de inclusão que procuram do que é “fundamental” que um aluno apren-
confrontar privilégios, ou o fracasso das demo- da, existe uma percepção do que a comunida-
cracias de cumprir as suas promessas. de política precisa e de como ele será impor-
Nesse cenário, o ensino superior carrega uma tante para ela;
enorme responsabilidade para a promoção do que 2. A política nos conteúdos de aula. Até
Konrad Hesse chama de “vontade da Constitui- mesmo os conteúdos que parecem mais her-
ção”, ou seja, o desejo das pessoas de seguirem e méticos e “blindados” à política escondem
respeitarem os compromissos fundamentais da uma agenda ou interesses políticos de quem
sociedade escritos na Constituição. É vocação das desenvolve as pesquisas. Conta-se que a esco-
universidades ser um espaço de confronto de ideias, la pitagórica lutou contra o estudo dos núme-
no diálogo, na liberdade de expressão, na tomada de ros irracionais pelo fato de que, para ela, esses
posição, na manifestação pública de ideias, contri- números comprometiam a relação harmônica
buindo para a formação de cidadãos e a construção entre as coisas no mundo;

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Retranca ENSINAR É TAMBÉM UM ATO POLÍTICO

3. A política no projeto institucional. Os pessoas convivem. As recentes faculdades cor-


documentos institucionais são projetos políti- porativas (como a Faculdade XP), por exem-
co-pedagógicos porque revelam escolhas polí- plo, mostram uma clara decisão por um tipo de
ticas sobre como a comunidade estudantil será desenvolvimento e de profissional que precisa
formada, quais objetivos serão perseguidos pe- ser formado para a economia brasileira.
la instituição e como as relações sociais se darão Todas as escolhas refletem, portanto, valores,
naquele espaço. Toda universidade é um em- normas e interesses de quem está dando aula. E,
preendimento político por natureza, por cons- por trás dessas decisões, individuais ou institu-
tituir uma comunidade que é representativa, cionais, sempre há uma ideologia. É ela quem es-
em alguma medida, de parte da sociedade, e trutura e orienta a prática pedagógica, justamente
tentar coordená-la em busca de fins comuns; por esses valores, desejos ou interesses políticos.
4. A política na relação com o restante da Ao saber qual é o posicionamento do docente, não
sociedade. Os relacionamentos que o espaço há espaço para uma eventual comunicação mani-
da universidade cria com as pessoas que não es- puladora. Isso faz com que todos contem com um
tão no ensino superior também revela uma pos- diálogo aberto e democrático.
tura política. Das instituições que se voltam mais O espaço da universidade é, desse modo, indis-
para a formação de profissionais – dialogando sociável de sua natureza política. Se o aprendizado
com o mercado de trabalho – para aquelas mais se dá de forma ativa, o exercício democrático da
comunitárias – dialogando com o entorno pró- cidadania também deve se dar em sala de aula, na
ximo –, o que se vê é uma escolha mais ou menos voz que se dá para diferentes atores nas discussões
consciente de como posicionar-se no mundo; e em todas as atividades acadêmicas. A oportuni-
5. A política na composição da institui- dade de trazer o debate público para a sala de au-
ção. A decisão sobre quem ocupa o espaço da la é não somente uma relevante oportunidade de
universidade também é política. A agenda das aprendizagem, seja de habilidades técnicas, seja de
ações afirmativas, confirmada pelo Supremo competências interpessoais, seja da prática da tole-
Tribunal Federal e afirmada em uma lei que rância, mas fomenta sobretudo o desenvolvimen-
completa 10 anos em 2022, é uma clara esco- to de profissionais e, especialmente, de cidadãos
lha política por mais inclusão e pela alteração Ensinar é, portanto, um ato político.Trabalha-
de que corpos podem estar em uma sala de au- mos em prol de quê, senão pela liberdade de pen-
la de ensino superior; samento, evolução do conhecimento científico e
6. A universidade como meio para a po- construção de uma sociedade melhor? É, contu-
lítica. Por fim, não podemos esquecer que tu- do, condição que discutamos de forma coletiva o
do, absolutamente tudo, o que a universidade futuro almejado e os meios para que esse ideal se-
proporciona gera impactos para uma propos- ja atingido, pautados na pluralidade e diversidade
ta de comunidade e para a maneira como as de sujeitos e desejos.

Marina Feferbaum Coordenadora do Centro


Todas as escolhas refletem de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e da área de
metodologia de ensino da FGV Direito SP, onde também é

valores, normas e interesses professora dos programas de graduação e pós-graduação.


Guilherme Forma Klafke Professor da pós-
de quem está dando aula. graduação lato sensu da FGV Direito SP, onde também
é líder de projetos no Centro de Ensino e Pesquisa em
Inovação (CEPI).

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