Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
emancipatórias: contribuições de
Paulo Freire e Alberto Memmi
Emancipative educational policies: contributions byc
Paulo Freire and Alberto Memmi
Telmo Marcon*
Resumo
107
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122 - jan./jun. 2006
Considerações iniciais multiplicam na atualidade. Quais as
possibilidades e limites dos processos
O presente texto tem por objetivo de emancipação? Ainda tem sentido
estabelecer um diálogo entre dois pen- falar em humanização e liberdade?
sadores que discutem, por diferentes Estamos vivendo um contexto
caminhos, a questão da emancipação. histórico extremamente desafiador do
Mais do que reconstruir o pensamento ponto de vista de horizontes e utopias.
desses autores, pretende-se criar as O discurso neoliberal buscou esvaziar
condições para que possam dialogar de sentido toda e qualquer ação em
com as principais idéias propostas pe- prol da transformação e da liberdade,
las políticas educacionais na atualida- exceto para a consolidação do merca-
de, que, de um modo geral, avançam do. A liberdade do mercado ascendeu,
na contramão da emancipação. Tanto dentro desse discurso, a um patamar
Paulo Freire quanto Alberto Memmi absoluto.1 Fundamentado num deter-
propõem-se pensar a emancipação, minismo, fragilizaram-se as potencia-
uma das maiores conquistas da huma- lidades humanas de intervenção, rea-
nidade, mas, ao mesmo tempo, ainda lidade que fortalece o pessimismo e a
um grande desafio para o presente apatia. O estudo da história nos ajuda
século. Se, para alguns, pode se cons- a entender como, em determinados
tituir numa questão de pouca relevân- períodos, aproximam-se o enfraque-
cia, para outros, a luta pela emanci- cimento das utopias com retrocessos
pação em todas as dimensões da vida políticos e a perda de força em relação
ainda continua sendo colocada como à ousadia, à inovação e às mudanças.
utopia e posta em pauta por diferentes No caso brasileiro, por exemplo,
sujeitos, por inúmeras organizações e não são poucas as razões que fortale-
movimentos sociais. cem esse argumento, especialmente
Essa questão tem sentido de ser nas últimas três décadas. Mais do que
posta porque estamos vivenciando isso, as tendências econômicas, polí-
neste momento histórico um horizonte ticas e educacionais que se tornaram
pouco promissor em termos de utopias. hegemônicas desde a década de 1990
A tendência predominante nas polí- apontam para uma acomodação em
ticas educacionais contemporâneas relação às estruturas estabelecidas.
é um enfraquecimento da dimensão O pensamento crítico está perden-
utópica e humanística em nome da do força ou sendo descaracterizado
eficiência e da produtividade. Os dois através de discursos que, por vezes,
autores em questão nos trazem in- se parecem críticos, mas que não têm
quietações a respeito e nos instigam qualquer implicação ou conseqüência
a recolocar a questão da emancipação prática efetiva. Para complicar ainda
como um dos desafios fundamentais mais esse quadro de apatia em rela-
para fazer frente aos processos de ção à utopia política,2 a expansão tec-
desumanização e de barbárie que se nológica apresenta-se como símbolo
108
108
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
Políticas de educação emancipatórias: contribuições...
109
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
como possibilidade ontológica, mas As análises feitas por Albert
também como realidade histórica. A Memmi3 têm outra base empírica em
história revela como a possibilidade relação a Freire e são baseadas em ou-
ontológica se defronta permanente- tras experiências históricas, embora
mente com a sua negação. “Mas, se toquem em questões muito similares.
ambas são possibilidades, só a primei- Memmi tem como pano de fundo da
ra nos parece ser o que chamamos de sua obra a luta das colônias africanas
vocação dos homens. Vocação negada, pela libertação das metrópoles euro-
mas também afirmada na própria ne- péias. O título da sua obra – Retrato
gação. Vocação negada na injustiça, do colonizado precedido pelo retrato
na exploração, na opressão, na violên- do colonizador4 – discute as relações
cia dos opressores. Mas afirmada no entre colonizados (Freire fala de opri-
anseio de liberdade, de justiça, de luta midos) e os colonizadores (Freire fala
dos oprimidos pela recuperação de sua em opressores), ou seja, a presença do
humanidade roubada.” colonizador, segundo Memmi, produz
Freire reconhece que a opressão imagens nos colonizados. Freire define
desumaniza e nega a possibilidade on- esse processo como a incorporação do
tológica do ser humano que é de “ser opressor pelo oprimido. As diferenças
mais”. Mesmo se referindo a situações entre ambos parecem estar na forma
históricas concretas, Freire acentua como utilizam os conceitos. Para Frei-
um caráter mais amplo de opressão re, os conceitos de opressor e oprimido
quando se refere aos oprimidos. No são denominações concretas, mas, ao
seu pensamento a idéia motriz é de mesmo tempo, genéricas. Para Mem-
que a opressão se internaliza e assume mi o colonizador e o colonizado são
feições de normalidade na consciência personagens concretos e referem-se a
dos oprimidos. O movimento de liber- situações históricas nas quais partici-
tação do oprimido leva a que o opressor pou efetivamente dos embates na luta
também tome consciência do seu papel pela libertação. Segundo Corbesier
de desumanizar, tanto em relação ao (1989, p. 4), o livro de Alberto Memmi
oprimido quanto a si mesmo. é marcado pela clareza e pela simpli-
O grande problema está em como po- cidade. Contudo,
derão os oprimidos, que hospedam ao é também um testemunho humano, pois
opressor em si, participar da elabora- o drama do colonialismo ele não viveu de
ção, como seres duplos, inautênticos, da fora, na qualidade de mero espectador,
pedagogia da sua libertação. Somente mas o viveu na própria carne, na con-
na medida em que se descubram hos- tradição e no conflito que dilaceram a
pedeiros do opressor poderão contribuir consciência do colonizado que se recusa
para o partejamento de sua pedagogia a colonização. A experiência biográfica,
libertadora. Enquanto vivam a duali- interpretada e iluminada por uma ideo
dade na qual ser é parecer e parecer logia revolucionária, converte a peripé-
é parecer com o opressor, é impossível cia individual em instrumento de pes-
fazê-lo (FREIRE, 1981, p. 32-33). quisa e de conhecimento sociológico...
110
110
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
Políticas de educação emancipatórias: contribuições...
111
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
oprimidos, a tendência é reproduzir ses candidatos à sua semelhança, ja-
as relações de opressão, mesmo que mais lhes permitiu também realizá-la.
em níveis menos intensos aos quais é Vivem assim uma penosa e constante
ambigüidade; recusados pelo coloniza-
submetido. “Num primeiro momento dor, participam em parte da situação
deste descobrimento, os oprimidos, em concreta do colonizado, tem com ele
lugar de buscar a libertação, na luta e solidariedade de fato; por outro lado,
por ela, tendem a ser opressores tam- recusam os valores do colonizado en-
bém, ou sub-opressores” (1981, p. 33). quanto pertencentes a um mundo de-
A incorporação do ser opressor torna o cadente, da qual esperam escapar com
o tempo.
oprimido seu semelhante. Nesse caso,
continua Freire (1981, p. 35), Os processos de dominação de
os oprimidos, que introjetaram a som- uma cultura sobre outra exigem do
bra dos opressores e seguem suas pau- oprimido a afirmação daquilo que vem
tas, temem a liberdade, na medida em de fora (do colonizador ou do opressor),
que esta, implicando na expulsão desta concomitantemente ao menosprezo
sombra, exigiria deles que preenches- dos valores e costumes que fazem
sem o vazio deixado pela expulsão, com
parte da sua tradição. Esse domínio
outro conteúdo – o de sua autonomia.
O de sua responsabilidade, sem o que encontra um ponto alto com a incor-
não seriam livres. A liberdade, que é poração da língua do dominador e do
uma conquista e não uma doação, exi- desprezo da sua língua materna. Para
ge uma permanente busca. Memmi (1989, p. 97-98),
Ao analisar os processos históri- a posse de duas línguas não é apenas a
cos decorrentes das relações entre as de dois instrumentos, é a participação
metrópoles e as colônias africanas, em dois reinos psíquicos e culturais.
Ora aqui, os dois universos simboli-
Memmi destaca a ambigüidade vivida zados, carregados pelas duas línguas,
pelos colonizados. De um lado, a ne- estão em conflito: são os do colonizador
cessidade de não perder totalmente os e do colonizado. Além disso, a língua
elementos da sua história, os costu- materna do colonizado, aquela que é
mes, os valores e as tradições, ou seja, nutrida por suas sensações, suas pai-
a cultura; de outro, a necessidade de xões e seus sonhos, aquela pela qual se
exprimem sua ternura e seus espan-
incorporar e reproduzir determinadas tos, aquela enfim que contém a maior
práticas e comportamentos oriundos carga afetiva, essa é precisamente a
dos colonizadores. Na tentativa de se menos valorizada [...]. No conflito lin-
parecer com o colonizador, nega sua güístico que habita o colonizado, sua
identidade. Daí o esforço, segundo língua materna é humilhada, esma-
Memmi (1989, p. 30), para gada. E esse desprezo, objetivamente
fundado, acaba por impor-se ao coloni-
esquecer o passado, para mudar de há- zado. De moto próprio, põe-se a afastar
bitos coletivos, sua adoção entusiástica essa língua enferma, a escondê-la dos
da língua, da cultura e dos costumes olhos dos estrangeiros e não parecer à
ocidentais. Mas, se o colonizador nem vontade senão com a língua do coloni-
sempre desencoraja abertamente es- zador.
112
112
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
Políticas de educação emancipatórias: contribuições...
113
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
encontram na colônia inesperadas Memmi (1989, p. 78), “o retrato mítico
possibilidades de expansão. Vi, como do colonizado conterá uma inacreditá-
estupefação, pacíficos funcionários, vel preguiça. A do colonizador o gosto
professores, corteses e bem falantes,
aliás, transformarem-se subitamente,
virtuoso da ação. Ao mesmo tempo, o
por pretextos fúteis, em monstros voci- colonizador sugere que o emprego do
ferantes (MEMMI, 1989, p. 66-67). colonizado é pouco rendoso, o que o
autoriza os salários inverossímeis”.
A necessidade de legitimar as re-
A manutenção das relações de
lações de dominação fundamenta-se
opressão reproduz as práticas de de-
em argumentos não apenas econômi-
sumanização. Dessa forma, diz Mem-
cos como, às vezes, algumas interpre-
mi (1989, p. 81), “se destroem, uma
tações economicistas querem explicar.
após outra, todas as qualidades que
Não são apenas razões econômicas
fazem do colonizado um homem. E a
que legitimam a ação do colonizador
humanidade do colonizado, recusada
ou do opressor, embora o lucro e a ex-
pelo colonizador, torna-se para ele,
ploração econômica sejam motivações
com efeito, opaca”. Tanto Freire quan-
fundamentais para os colonizadores.
to Memmi chegam à conclusão de que
Para Memmi (1989, p. 71), a legitima-
a opressão desumaniza e nega a vo-
ção da colonização encontra seu ponto
cação do homem de “ser mais”. Para
alto no racismo.
Freire, a relação opressor-oprimido
Nesse sentido mobilizam-se todos os
desumaniza ambos e a possibilidade
esforços do colonialista; e o racismo
é, a esse respeito, a arma mais segu- de humanização está na superação
ra: a passagem torna-se, com efeito, dos dois pólos, não apenas na destrui-
impossível, e toda revolta absurda. ção de um deles. Aponta para o diálogo
O racismo aparece, assim, não como como possibilidade de superação da
pormenor mais ou menos ocidental, opressão. A análise feita por Memmi
porém, como elemento consubstancial mostra que a superação das relações
do colonialismo. É a melhor expressão
do fato colonial, e um dos traços mais
colonialistas ocorre com a tomada de
significativos do colonialista. Não ape- consciência pelos colonizados das rela-
nas estabelece a discriminação funda- ções que lhes são impostas e pela ação
mental entre colonizador e colonizado, revolucionária.
condição sine qua non da vida colonial, Nada mais terrível para os opri-
mas funda sua imutabilidade. Somen- midos do que perderem totalmente as
te o racismo permite colocar na eterni-
esperanças de liberdade. No entanto,
dade, substantivando-a, uma relação
histórica que começou em data certa. diz Memmi, quando o domínio pare-
ce totalmente consolidado, criam-se
A produção de certas representa- as possibilidades para a tomada de
ções por parte do colonizador em rela- consciência sobre as condições reais e
ção aos nativos (colonizados) é funda- abrem-se caminhos para a emancipa-
mental para justificar a continuidade ção. Esse processo não é simples, visto
das relações de dominação. Assim, diz que os opressores buscam de todas as
114
114
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
Políticas de educação emancipatórias: contribuições...
115
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
contra os colonizadores se dá por meio dispensando tal atenção aos velhos
da luta armada com ações de guerri- mitos, rejuvenescendo-os, revivifica-os
lha. Da afirmação absoluta do colo- perigosamente. Recuperam uma for-
ça inesperada que as faz escapar aos
nizador passa-se para o pólo oposto, desígnios limitados dos chefes coloni-
que é a negação total. Essa negação é zados. Assiste-se a um verdadeiro re-
condição para que a emancipação seja nascimento religioso. Acontece mesmo
posta como condição efetiva. Memmi que o aprendiz feiticeiro, intelectual
(1989, p. 112) faz as seguintes consi- burguês liberal, a quem o laicismo
derações a respeito: parecia a condição de todo progresso
intelectual e social, retome gosto pelas
Mas, doravante, o colonizador torna-se suas tradições desdenhadas.
principalmente negatividade, quando
era sobretudo positividade. Principal- Memmi e Freire partilham dos
mente, decide-se que é negatividade processos vivenciados pelos oprimidos
por toda a atitude ativa do colonizado. quando da tomada de consciência e
A todo instante é posta em questão na
do reconhecimento da capacidade de
sua cultura e na sua vida, e com ele,
tudo o que representa, metrópole com- ação e de criação, desqualificada pe-
preendida, é claro. Ele é suspeitado, los opressores durante anos, décadas
contrariado, combatido no menor dos ou séculos. Memmi (1989, p. 117-119)
seus atos. O colonizado põe-se a prefe- identifica três momentos de reação dos
rir com raiva e ostentação os carros ale-
colonizados em relação à colonização.
mães, os rádios italianos e os refrigera-
dores americanos; priva-se de fumo, se Ele diz que a reação é clara, embora
traz a estampilha colonizadora. o conteúdo de reação nem sempre seja
tão objetivo, visto que se interpõem
A consciência do papel desempe-
muitos interesses e privilégios e, por
nhado pelo colonizador ou pelo opres-
isso, não se pode falar dos coloniza-
sor tende a uma reação, em geral,
dos como bloco homogêneo. Num pri-
mais impulsiva do que através de uma
meiro momento, diz que, ao aceitar a
ação racional e planejada. Assim, a
exclusão, “o colonizado se aceita como
tendência é da negação em bloco dos
separado e diferente, mas sua origi-
colonizadores e, às vezes, também dos
nalidade é delimitada, definida pelo
nativos que se assemelham a eles,
colonizador”. Num segundo momento,
ou que partilhem dos seus valores e
torna-se negatividade, que é um dos
privilégios. No entanto, com o passar
elementos essenciais da sua recupera-
do tempo, o colonizado reconhece-se
ção e do seu combate, e vai afirmá-la e
e assume-se como sujeito histórico,
glorificá-la até o absoluto. Finalmente,
portanto, capaz de romper com as re-
em relação ao terceiro momento, diz:
lações de dominação, e tende a voltar
ao passado em busca das suas raízes, Tudo isso, o colonizado o pressente,
o revela na sua conduta, o confessa
muitas vezes destruídas ou descarac-
algumas vezes. Percebendo que suas
terizadas. Nessa volta, diz Memmi atitudes são essencialmente de reação,
(1989, p. 115), é atingido pela maior parte das pertur-
116
116
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
Políticas de educação emancipatórias: contribuições...
117
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
A palavra inautêntica, por outro lado, lhes impõe, terão, a nosso ver, simples-
com que não se pode transformar a mente, a impressão de que chegaram
realidade, resulta da dicotomia que ao poder” (FREIRE, 1981, p. 148). A
se estabelece entre seus elementos
constituintes. Assim é que, esgotada a
respeito da necessidade da emancipa-
palavra de sua dimensão de ação, sa- ção dos sujeitos da condição de oprimi-
crificada, automaticamente, a reflexão dos, continua Freire:
também, se transforma em palavreria, Renunciar ao ato invasor significa,
verbalismo, blá-blá-blá. Por tudo isto, de certa maneira, superar a dualida-
alienada e alienante. É uma palavra de em que se encontram – dominados
oca, da qual não se pode esperar a de um lado; dominadores, por outro.
denúncia do mundo, pois que não há Significa renunciar a todos os mitos
denúncia verdadeira sem compromisso de que se nutre a ação invasora e exis-
de transformação, nem este sem ação tenciar uma ação dialógica. Significa,
(1981, p. 92). por isto mesmo, deixar de estar sobre
Nessa mesma linha, podem-se ou dentro, como estrangeiros, para es-
tar com, como companheiros. O medo
destacar as palavras de Fiori na apre-
da liberdade, então, neles se instala.
sentação da obra Pedagogia do opri- Durante esse processo traumático, sua
mido. “Com a palavra, o homem se faz tendência é, naturalmente, racionali-
homem. Ao dizer sua palavra, pois, o zar o medo, com uma série de evasivas
homem assume conscientemente sua (1981, p. 183).
essencial condição humana” (FIORI, O processo de emancipação impli-
1981, p. 7). ca transformações pessoais e estrutu-
A transformação, segundo os au- rais. Como seres históricos os homens
tores, não se processa apenas com a têm essa capacidade de mudar. Para
alteração de personagens no poder, tanto, é fundamental a elaboração de
senão por meio de uma profunda mu- uma pedagogia que valorize os sujeitos
dança cultural, o que implica uma e que seja capaz de superar a opressão.
transformação objetiva da realidade, Freire propõe a pedagogia do oprimido
mas também da consciência, ou seja, como possibilidade real, pois, por meio
da subjetividade. Freire fala em afas- do diálogo, possibilita a emancipação.
tar o hospedeiro instalado em cada su- Segundo Balbinot (2006, p. 129-130),
jeito para que não haja simplesmente “para superar o verticalismo pedagó-
uma inversão nas relações de domina- gico, a ação educativa tem de funda-
ção e que o oprimido passe a ser opres- mentar-se em uma relação de sujeitos
sor. “Se são levados ao processo como que se reconhecem mutuamente como
seres ambíguos, metade elas mesmas, tais. E o fato de reconhecerem-se mu-
metade o opressor hospedado nelas e tuamente exige que tenham identida-
se chegam ao poder vivendo esta am- de própria e sejam diferentes”.
bigüidade, que a situação de opressão
118
118
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
Políticas de educação emancipatórias: contribuições...
119
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
zes, ações imediatas para matar a é fundamental uma formação que seja
fome, tratar um dente etc. O problema capaz de pensar os sujeitos de forma
é que essas práticas acabam se tor- integral.
nando corriqueiras, e o papel específi-
co da escola, que é de formar sujeitos
críticos, emancipados e responsáveis Abstracts
ética e socialmente, fica em segundo
plano. Com base nas reflexões desen- This texts presents a discussion
volvidas, não resta alternativa a não on Paulo Freire and Alberto Memmi
ser o enfrentamento das questões so- with the aim of searching for elements
ciais, políticas, econômicas e culturais for discussion on educational policies
por meio de um processo qualificado from an emancipative perspective.
de reflexão. Isso não ocorre, segundo The reconstruction of those authors’
Freire (1987, p. 42-64), sem uma pe- ideas helps us question the dominant
dagogia que seja capaz de fazer frente tendencies in educational policies of
à opressão e que seja capaz de “pro- instrumental character and subordi-
duzir” sujeitos emancipados e huma- nated to the market and also to think
nizados. of a transformative critical perspecti-
A luta pela emancipação exige, ve. The research and the experiments
portanto, que sejam levadas em con- carried out by Memmi and Freire
sideração as realidades que envolvem have posed several questions regar-
os sujeitos com as suas contradições. ding trends in educational policies
A pedagogia do oprimido, com base na in the beginning of this century, less
relação dialógica, apresenta-se em con- and less worried with humanization,
dições de fazer frente aos grandes de- i.e., with the human being’s ontologi-
safios propostos pelo desenvolvimento cal vocation to be more. Within that
econômico atual, que não mais se limi- context, the reading of classic authors
ta ao seu campo peculiar. A lógica do becomes a fertile possibility as long as
mundo econômico está tomando conta they propose fundamental questions
do campo educativo e definindo princí- to the formulation of consistent criti-
pios, procedimentos pedagógicos e fins cism with regard to the formation of
para a educação. No contexto desses critical and emancipated subjects who
processos não podemos esperar sujei- can effectively contribute to the trans-
tos críticos, criativos e emancipados. formation of socio-economic, political
O enfrentamento desses desafios, no and cultural relations.
entanto, é possível se nos colocarmos
como sujeitos da história e comprome- Key-words: oppressor-oppressed, colo-
tidos com a humanização. Para tanto, nizer-colonized, emancipative educa-
tional policies, change.
120
120
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
Políticas de educação emancipatórias: contribuições...
clusão na educação e no trabalho. Buenos realidade neste início de século. O discurso neo-
Aires: Clacso, 2000. liberal, na medida em que absolutiza o mercado,
tende a ofuscar qualquer outra possibilidade. No
GENTILI, Pablo; SILVA, Tomaz Tadeu da âmbito das políticas educacionais esse esvazia-
(Org.). Neoliberalismo, qualidade total e mento utópico parece se traduzir em propostas
educação: visões críticas. 5. ed. Petrópolis: imediatistas e utilitárias. Os valores do mercado
Vozes, 1997. e de um discurso economicista baseado no pre-
121
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006
texto da globalização não responde aos grandes
desafios existenciais e estruturais na atualidade.
São muitas as produções que vão nessa direção. A
respeito, podem-se referir alguns trabalhos, como
os de Schmied-Kowarzik (2005), Casassus (1995),
Frigotto (1998), Gentili (1995), Gentili e Frigotto
(2000), Gentili e Silva (1997), Torres (1998), Teo-
doro (2003).
2
A utopia nunca é isolada de contextos e de proje-
tos, ou seja, não é uma ação individual.
3
Albert Memmi é um autor não muito conhecido
entre nós. Nasceu em Tunis em 1920 e, em 1943,
conheceu os campos de trabalho forçado na Tuní-
sia. Após a independência da Tunísia fixou-se em
Paris (1956) como professor e trabalhou com psi-
quiatria social na Escola Prática de Altos Estudos
(MARZOUKI, 2006). Manteve contatos pessoais
com Paulo Freire, conforme biografia elaborada
por Ana Maria Araújo Freire (2006), quando faz
o seguinte comentário a respeito do marido, Pau-
lo Freire: “Não há como negar na sua maneira
própria de pensar porque reinventa e supera em
parte ou no todo muitos dos seus mestres, a in-
fluência do marxismo, do existencialismo, do per-
sonalismo ou da fenomenologia. São presenças na
sua leitura de mundo tanto Marx, Lukacs, Sartre
e Mounier quanto Albert Memmi, Erich Fromm,
Franz Fanon, Merleau-Ponty, Antonio Gramsci,
Karel Kosik, Marcuse, Agnes Heller, Simone Weill
e Amilcar Cabral” (grifo nosso). De Memmi, Pau-
lo Freire recebeu uma carta enviada de Paris, em
1987, com o seguinte texto: “Caro Senhor: Pro-
blemas de saúde me impediram de vos agradecer
por ter aceitado fazer parte do comitê de honra no
trigésimo aniversário do “Retrato do colonizado”.
A confiança de um lutador como vós me tem sido
muito reconfortante. Com os meus melhores votos.
Albert Memmi. Paris, 16/01/87” (FREIRE, 2006).
Paulo Freire faz menção à obra de Memmi no livro
Cartas à Guiné-Bissau, quando sugere em nota de
rodapé a leitura das obras de Fanon e de Memmi
(FREIRE, 1984, p. 20).
4
A obra foi publicada, inicialmente, na França em
1957, e a apresentação foi feita pelo tradutor Ro-
land Corbesier para a edição brasileira data de
1967. A segunda edição foi publicada em 1977.
5
Em Cartas à Guiné-Bissau, conforme Freire
(1984), há referências às condições de vida em paí-
ses africanos.
6
Às vezes, dá a impressão de que certas leituras ali-
geiradas de Freire privilegiam uma dimensão sub-
jetiva, ou seja, uma relação pedagógica superficial
entre sujeitos. O mesmo parece ocorrer em relação
aos conceitos de diálogo e de amor.
122
122
REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 13, n. 1, Passo Fundo, p. 107-122, jan./jun. 2006