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Políticas de educação

emancipatórias: contribuições de
Paulo Freire e Alberto Memmi
Emancipative educational policies: contributions byc
Paulo Freire and Alberto Memmi
Telmo Marcon*

Assim como o colonizador é tentado a aceitar-se como colonizador,


o colonizado é obrigado, para viver, a aceitar-se como colonizado.
Memmi
A desumanização, que não se verifica, apenas, nos que tem sua
humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferen-
te, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais.
Freire

Resumo

O presente texto se propõe a dis- é ser mais. Nesse contexto, a leitu-


cutir Paulo Freire e Alberto Memmi ra de autores clássicos apresenta-se
com o objetivo de buscar elementos como uma possibilidade fecunda na
para a discussão sobre políticas educa- medida em que eles propõem questões
cionais numa perspectiva emancipa- fundamentais para a formulação de
tória. A reconstrução das idéias desses uma crítica consistente em relação à
dois autores nos ajuda a questionar as formação de sujeitos críticos e emanci-
tendências dominantes nas políticas pados e que contribuam efetivamente
educacionais de caráter instrumental na transformação das relações socioe-
e subordinadas ao mercado e também conômicas, políticas e culturais.
a pensar numa perspectiva crítica
e transformadora. As pesquisas e as Palavras-chave: opressor-oprimido, co­­
experiências vivenciadas por Memmi lonizador-colonizado, políticas educa-
e Freire colocam inúmeros questiona- cionais emancipatórias, transformação.
mentos em relação às tendências nas
políticas educacionais neste início de *
Doutor em História Social pela PUC/SP, pós-douto­
século, cada vez menos preocupadas rado em Educação Intercultural pela UFSC e
pro­fessor pesquisador junto ao Programa de Pós-
com a humanização, ou seja, com a Graduação em Educação da Universidade de Passo
vocação ontológica do ser humano que Fundo.

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Considerações iniciais multiplicam na atualidade. Quais as
possibilidades e limites dos processos
O presente texto tem por objetivo de emancipação? Ainda tem sentido
estabelecer um diálogo entre dois pen- falar em humanização e liberdade?
sadores que discutem, por diferentes Estamos vivendo um contexto
caminhos, a questão da emancipação. histórico extremamente desafiador do
Mais do que reconstruir o pensamento ponto de vista de horizontes e utopias.
desses autores, pretende-se criar as O discurso neoliberal buscou esvaziar
condições para que possam dialogar de sentido toda e qualquer ação em
com as principais idéias propostas pe- prol da transformação e da liberdade,
las políticas educacionais na atualida- exceto para a consolidação do merca-
de, que, de um modo geral, avançam do. A liberdade do mercado ascendeu,
na contramão da emancipação. Tanto dentro desse discurso, a um patamar
Paulo Freire quanto Alberto Memmi absoluto.1 Fundamentado num deter-
propõem-se pensar a emancipação, minismo, fragilizaram-se as potencia-
uma das maiores conquistas da huma- lidades humanas de intervenção, rea-
nidade, mas, ao mesmo tempo, ainda lidade que fortalece o pessimismo e a
um grande desafio para o presente apatia. O estudo da história nos ajuda
século. Se, para alguns, pode se cons- a entender como, em determinados
tituir numa questão de pouca relevân- períodos, aproximam-se o enfraque-
cia, para outros, a luta pela emanci- cimento das utopias com retrocessos
pação em todas as dimensões da vida políticos e a perda de força em relação
ainda continua sendo colocada como à ousadia, à inovação e às mudanças.
utopia e posta em pauta por diferentes No caso brasileiro, por exemplo,
sujeitos, por inúmeras organizações e não são poucas as razões que fortale-
movimentos sociais. cem esse argumento, especialmente
Essa questão tem sentido de ser nas últimas três décadas. Mais do que
posta porque estamos vivenciando isso, as tendências econômicas, polí-
neste momento histórico um horizonte ticas e educacionais que se tornaram
pouco promissor em termos de utopias. hegemônicas desde a década de 1990
A tendência predominante nas polí- apontam para uma acomodação em
ticas educacionais contemporâneas relação às estruturas estabelecidas.
é um enfraquecimento da dimensão O pensamento crítico está perden-
utópica e humanística em nome da do força ou sendo descaracterizado
eficiência e da produtividade. Os dois através de discursos que, por vezes,
autores em questão nos trazem in- se parecem críticos, mas que não têm
quietações a respeito e nos instigam qualquer implicação ou conseqüência
a recolocar a questão da emancipação prática efetiva. Para complicar ainda
como um dos desafios fundamentais mais esse quadro de apatia em rela-
para fazer frente aos processos de ção à utopia política,2 a expansão tec-
desumanização e de barbárie que se nológica apresenta-se como símbolo

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da modernização e do progresso. Os p. 222-232). Conforme acenamos ante-


avanços e inovações tecnológicas que riormente, há um conjunto de questões
modernizam procedimentos estão emergentes no contexto atual, especial-
crian­do mais aparências de mudan- mente no âmbito das políticas educa-
ças do que transformações de fato. As cionais, que precisam ser discutidas e
tecnologias acabam, também, sendo aprofundadas. É fundamental romper
apresentadas como símbolos das no- com a linearidade nas interpretações
vas linguagens, dos novos valores, ou dos clássicos, e isso ocorre na medida
seja, são apresentadas como o “novo”. em que conseguirmos inverter a lógi-
Esse “novo”, no entanto, nem sempre ca que predomina na interpretação do
está articulado com propostas pedagó- passado, ou seja, as questões do tempo
gicas efetivamente transformadoras. presente nos remetem ao passado e nos
Sem desconsiderar a contribuição des- desafiam a novas interpretações. Caso
ses avanços, cabe questionar: até que contrário, faríamos simplesmente a
ponto as tecnologias estão de fato con- reconstrução do pensamento do au-
tribuindo para a construção de sujei- tor, das suas idéias, contestações etc.
tos críticos, criativos e emancipados? O que estamos propondo é que Paulo
Cotidianamente, ouvimos expressões Freire e Alberto Memmi nos ajudem a
que afirmam que tudo está se transfor- aprofundar as grandes questões con-
mando intensa e rapidamente. O que temporâneas, particularmente aque-
está se transformando e o que persiste las emergentes das políticas educacio-
nesses processos? Quais as principais nais. Na medida em que as políticas
resistências em relação às transfor- apontam para os rumos e perspectivas
mações socioeconômicas e culturais da educação como um todo, é possível
tanto pessoais quanto coletivas? Essas fazer essa viagem inversa e buscar
questões podem ser aprofundadas com nesses autores elementos críticos que
as reflexões e contribuições de Freire e nos ajudam a formular de modo mais
Memmi. claro os projetos, intenções e ações no
campo da educação. A questão central
diz respeito à contribuição desses au-
As contribuições de tores na formulação de políticas eman-
Freire e de Memmi cipatórias e humanizadoras. Num con-
texto de crescente massificação, beber
A leitura de textos clássicos não se em fontes que tematizam a liberdade,
faz sem a mediação de interrogações e a emancipação e a humanização é pro-
desafios formulados no tempo presen- fundamente gratificante e coloca-se
te. É do tempo presente que podemos como possibilidade para enfrentar as
questionar o passado em busca de ele- tendências desumanizadoras e de bar-
mentos que nos ajudem a compreender bárie.
de uma forma mais ampla as questões Para Freire (1981, p. 30), a desu-
presentes, conforme Benjamin, (1994, manização apresenta-se não apenas

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como possibilidade ontológica, mas As análises feitas por Albert
também como realidade histórica. A Memmi3 têm outra base empírica em
história revela como a possibilidade relação a Freire e são baseadas em ou-
ontológica se defronta permanente- tras experiências históricas, embora
mente com a sua negação. “Mas, se toquem em questões muito similares.
ambas são possibilidades, só a primei- Memmi tem como pano de fundo da
ra nos parece ser o que chamamos de sua obra a luta das colônias africanas
vocação dos homens. Vocação negada, pela libertação das metrópoles euro-
mas também afirmada na própria ne- péias. O título da sua obra – Retrato
gação. Vocação negada na injustiça, do colonizado precedido pelo retrato
na exploração, na opressão, na violên- do colonizador4 – discute as relações
cia dos opressores. Mas afirmada no entre colonizados (Freire fala de opri-
anseio de liberdade, de justiça, de luta midos) e os colonizadores (Freire fala
dos oprimidos pela recuperação de sua em opressores), ou seja, a presença do
humanidade roubada.” colonizador, segundo Memmi, produz
Freire reconhece que a opressão imagens nos colonizados. Freire define
desumaniza e nega a possibilidade on- esse processo como a incorporação do
tológica do ser humano que é de “ser opressor pelo oprimido. As diferenças
mais”. Mesmo se referindo a situações entre ambos parecem estar na forma
históricas concretas, Freire acentua como utilizam os conceitos. Para Frei-
um caráter mais amplo de opressão re, os conceitos de opressor e oprimido
quando se refere aos oprimidos. No são denominações concretas, mas, ao
seu pensamento a idéia motriz é de mesmo tempo, genéricas. Para Mem-
que a opressão se internaliza e assume mi o colonizador e o colonizado são
feições de normalidade na consciência personagens concretos e referem-se a
dos oprimidos. O movimento de liber- situações históricas nas quais partici-
tação do oprimido leva a que o opressor pou efetivamente dos embates na luta
também tome consciência do seu papel pela libertação. Segundo Corbesier
de desumanizar, tanto em relação ao (1989, p. 4), o livro de Alberto Memmi
oprimido quanto a si mesmo. é marcado pela clareza e pela simpli-
O grande problema está em como po- cidade. Contudo,
derão os oprimidos, que hospedam ao é também um testemunho humano, pois
opressor em si, participar da elabora- o drama do colonialismo ele não viveu de
ção, como seres duplos, inautênticos, da fora, na qualidade de mero espectador,
pedagogia da sua libertação. Somente mas o viveu na própria carne, na con-
na medida em que se descubram hos- tradição e no conflito que dilaceram a
pedeiros do opressor poderão contribuir consciência do colonizado que se recusa
para o partejamento de sua pedagogia a colonização. A experiência biográfica,
libertadora. Enquanto vivam a duali- interpretada e iluminada por uma ideo­
dade na qual ser é parecer e parecer logia revolucionária, converte a peripé-
é parecer com o opressor, é impossível cia individual em instrumento de pes-
fazê-lo (FREIRE, 1981, p. 32-33). quisa e de conhecimento sociológico...

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É tensão entre a realidade de que dizem respeito à luta pela liber-


opressão e o desejo de liberdade que tação e pela superação da cultura de
conduzia a que setores e grupos colo- opressão. O objetivo final, no entanto,
nizados se rebelassem contra as me- parece ser o mesmo: a emancipação
trópoles européias. Nesses processos, como condição da humanização. Para
as colônias se emancipam e buscam chegar a tanto, são muitos os percur-
suas identidade. Daí o debate sobre a sos, resistências e obstáculos pessoais,
questão do pós-colonial, que, segundo coletivos e estruturais.
Hall, não é tão clara. A desumanização não é um fenô-
O objetivo principal deste ensaio é ex- meno isolado nas sociedades e nas re-
plorar os pontos de interrogação que lações sociais. São, por vezes, práticas
começam rapidamente a se aglutinar cotidianas que reproduzem relações
em torno da questão pós-colonial e da históricas e estruturais e criam as con-
idéia de uma era pós-colonial. Se o mo- dições para que a dimensão ontológica
mento pós-colonial é aquele que vem
após o colonialismo, e sendo este defi-
do ser humano seja negada tanto para
nido em termos de uma divisão binária aqueles que são submetidos quanto
entre colonizadores e colonizados, por para os que se submetem. Uma ques-
que o pós-colonial é também um tempo tão presente tanto nas reflexões de
de diferença? Que tipo de diferença é Freire quanto de Memmi é que as re-
essa e quais as suas implicações para lações desumanas não são, em geral,
a política e para a formação de sujeitos
na modernidade tardia? Essas ques-
determinadas apenas pelos grupos
tões têm assombrado cada vez mais o dominantes por si mesmos. Em cada
espaço de contestação no qual o con- contexto existem situações nas quais
ceito de pós-colonial opera hoje (2003, oprimidos ou colonizados se identifi-
p. 101). cam com a conduta dos opressores ou
O contexto de Memmi é o da rup- dos colonizadores, que delas usufruem
tura com as relações de dominação im- com algum tipo de interesse e às quais
postas por metrópoles européias sobre se adaptam. A respeito diz Memmi:
as colônias estabelecidas em vários Se o pequeno colonizador defende o
países, no caso, da África. A eman- sistema com tanto empenho, é porque
cipação é o início de um processo de é mais ou menos seu beneficiário. A
mistificação está no fato de que, para
construção que exige tanto ou mais do
defender seus interesses muito limita-
que a própria luta pela libertação. Es- dos, defende outros infinitamente mais
sas experiências são, em parte, distin- importantes, dos quais é, aliás, vítima.
tas daquelas vivenciadas e analisadas Mas, enganado e vítima, nisso encon-
por Freire que não se constituem em tra também suas vantagens (1989,
movimentos de luta nem têm a mes- p. 27).
ma dimensão da realidade analisada Freire usa a expressão “ade-
por Memmi.5 Ambas as análises pro- rência” para falar da forma como os
blematizam, sob diferentes ângulos e oprimidos se relacionam com os opres-
dimensões, questões muito próximas sores. Na descoberta da condição de

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oprimidos, a tendência é reproduzir ses candidatos à sua semelhança, ja-
as relações de opressão, mesmo que mais lhes permitiu também realizá-la.
em níveis menos intensos aos quais é Vivem assim uma penosa e constante
ambigüidade; recusados pelo coloniza-
submetido. “Num primeiro momento dor, participam em parte da situação
deste descobrimento, os oprimidos, em concreta do colonizado, tem com ele
lugar de buscar a libertação, na luta e solidariedade de fato; por outro lado,
por ela, tendem a ser opressores tam- recusam os valores do colonizado en-
bém, ou sub-opressores” (1981, p. 33). quanto pertencentes a um mundo de-
A incorporação do ser opressor torna o cadente, da qual esperam escapar com
o tempo.
oprimido seu semelhante. Nesse caso,
continua Freire (1981, p. 35), Os processos de dominação de
os oprimidos, que introjetaram a som- uma cultura sobre outra exigem do
bra dos opressores e seguem suas pau- oprimido a afirmação daquilo que vem
tas, temem a liberdade, na medida em de fora (do colonizador ou do opressor),
que esta, implicando na expulsão desta concomitantemente ao menosprezo
sombra, exigiria deles que preenches- dos valores e costumes que fazem
sem o vazio deixado pela expulsão, com
parte da sua tradição. Esse domínio
outro conteúdo – o de sua autonomia.
O de sua responsabilidade, sem o que encontra um ponto alto com a incor-
não seriam livres. A liberdade, que é poração da língua do dominador e do
uma conquista e não uma doação, exi- desprezo da sua língua materna. Para
ge uma permanente busca. Memmi (1989, p. 97-98),
Ao analisar os processos históri- a posse de duas línguas não é apenas a
cos decorrentes das relações entre as de dois instrumentos, é a participação
metrópoles e as colônias africanas, em dois reinos psíquicos e culturais.
Ora aqui, os dois universos simboli-
Memmi destaca a ambigüidade vivida zados, carregados pelas duas línguas,
pelos colonizados. De um lado, a ne- estão em conflito: são os do colonizador
cessidade de não perder totalmente os e do colonizado. Além disso, a língua
elementos da sua história, os costu- materna do colonizado, aquela que é
mes, os valores e as tradições, ou seja, nutrida por suas sensações, suas pai-
a cultura; de outro, a necessidade de xões e seus sonhos, aquela pela qual se
exprimem sua ternura e seus espan-
incorporar e reproduzir determinadas tos, aquela enfim que contém a maior
práticas e comportamentos oriundos carga afetiva, essa é precisamente a
dos colonizadores. Na tentativa de se menos valorizada [...]. No conflito lin-
parecer com o colonizador, nega sua güístico que habita o colonizado, sua
identidade. Daí o esforço, segundo língua materna é humilhada, esma-
Memmi (1989, p. 30), para gada. E esse desprezo, objetivamente
fundado, acaba por impor-se ao coloni-
esquecer o passado, para mudar de há- zado. De moto próprio, põe-se a afastar
bitos coletivos, sua adoção entusiástica essa língua enferma, a escondê-la dos
da língua, da cultura e dos costumes olhos dos estrangeiros e não parecer à
ocidentais. Mas, se o colonizador nem vontade senão com a língua do coloni-
sempre desencoraja abertamente es- zador.

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Para Freire, o medo da liberda- situação e de sua própria personalida-


de é uma das razões que justificam de [...]. Enfim, aceita que tudo mude,
a aceitação da condição de opressão. faz votos pelo fim da colonização, mas
recusa-se a admitir que essa revolução
Essa situação, por sua vez, cria uma possa acarretar um transtorno de sua
ambigüidade: o oprimido perde a li- situação e do seu ser.
berdade, mas cria uma situação de
Uma perspectiva de totalidade
aparente segurança. A liberdade, em
não pode deixar de trazer à tona as
contrapartida, exige sair da condição
contradições inerentes tanto aos pro-
de oprimido para se assumir como su-
cessos subjetivos quanto às relações
jeito. A respeito diz:
estruturais. O opressor não existe
Os oprimidos, contudo, acomodados
sem que o oprimido subsista, nem o
e adaptados, imersos na própria en-
grenagem da estrutura dominadora, colonizador existe sem o colonizado,
temem a liberdade, enquanto não se expressa Memmi na frase: “Para que
sentem capazes de correr o risco de possa subsistir como colonialista, é
assumi-la. E a temem, também, na necessário que a metrópole perma-
medida em que, lutar por ela, significa neça eternamente metrópole” (1989,
uma ameaça, não só aos que a usam p. 63); ou, ainda, na expressão: “A situa-
para oprimir, como seus proprietários
exclusivos, mas aos companheiros
ção colonial fabrica colonialistas, como
oprimidos, que se assustam com maio- fabrica colonizados” (1989, p. 59). Daí
res repressões [...]. A libertação, por a necessidade de mecanismos gerais
isso, é um parto. E um parto doloroso. que assegurem a sobrevivência desses
O homem que nasce deste parto é um pólos, embora a sua subsistência ne-
homem novo que só é viável na e pela gue a possibilidade de humanização.
superação da contradição opressores-
É evidente que existem mecanismos
oprimidos, que é a libertação de todos
(1981, p. 35-36). intermediários que se apresentam
como condição para a sobrevivência
Colocar a possibilidade de liberta- dos sistemas. O colonizador, ao mes-
ção significa assumir-se como sujeito. mo tempo em que desqualifica o colo-
O sujeito é sempre aquele que age com nizado, não pode negá-lo por completo.
consciência própria, não determinado Pode desprezar as suas festas, os seus
por terceiros. O colonizado, diz Mem- ritos, as vestimentas, os modos de ca-
mi (1989, p. 48), pode até sonhar com minhar, mas precisa dele.
mudanças, contanto que não lhe exi-
Mas o colonialista se dá conta de que
jam mais do que mudanças externas sem o colonizado, a colônia não teria
nem o desacomodem. sentido algum. Essa insuportável con-
Quando lhe acontece sonhar com um tradição o enche de furor, de ódio, sem-
amanhã, com um estado social inteira- pre prestes a desencadear-se sobre o
mente novo onde o colonizado deixaria colonizado, causa inocente porém fatal
de ser um colonizado, não considera de de seu drama. E não apenas porque é
modo algum, em compensação, uma um policial ou um especialista de au-
transformação profunda da sua própria toridade, cujos hábitos profissionais

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encontram na colônia inesperadas Memmi (1989, p. 78), “o retrato mítico
possibilidades de expansão. Vi, como do colonizado conterá uma inacreditá-
estupefação, pacíficos funcionários, vel preguiça. A do colonizador o gosto
professores, corteses e bem falantes,
aliás, transformarem-se subitamente,
virtuoso da ação. Ao mesmo tempo, o
por pretextos fúteis, em monstros voci- colonizador sugere que o emprego do
ferantes (MEMMI, 1989, p. 66-67). colonizado é pouco rendoso, o que o
autoriza os salários inverossímeis”.
A necessidade de legitimar as re-
A manutenção das relações de
lações de dominação fundamenta-se
opressão reproduz as práticas de de-
em argumentos não apenas econômi-
sumanização. Dessa forma, diz Mem-
cos como, às vezes, algumas interpre-
mi (1989, p. 81), “se destroem, uma
tações economicistas querem explicar.
após outra, todas as qualidades que
Não são apenas razões econômicas
fazem do colonizado um homem. E a
que legitimam a ação do colonizador
humanidade do colonizado, recusada
ou do opressor, embora o lucro e a ex-
pelo colonizador, torna-se para ele,
ploração econômica sejam motivações
com efeito, opaca”. Tanto Freire quan-
fundamentais para os colonizadores.
to Memmi chegam à conclusão de que
Para Memmi (1989, p. 71), a legitima-
a opressão desumaniza e nega a vo-
ção da colonização encontra seu ponto
cação do homem de “ser mais”. Para
alto no racismo.
Freire, a relação opressor-oprimido
Nesse sentido mobilizam-se todos os
desumaniza ambos e a possibilidade
esforços do colonialista; e o racismo
é, a esse respeito, a arma mais segu- de humanização está na superação
ra: a passagem torna-se, com efeito, dos dois pólos, não apenas na destrui-
impossível, e toda revolta absurda. ção de um deles. Aponta para o diálogo
O racismo aparece, assim, não como como possibilidade de superação da
pormenor mais ou menos ocidental, opressão. A análise feita por Memmi
porém, como elemento consubstancial mostra que a superação das relações
do colonialismo. É a melhor expressão
do fato colonial, e um dos traços mais
colonialistas ocorre com a tomada de
significativos do colonialista. Não ape- consciência pelos colonizados das rela-
nas estabelece a discriminação funda- ções que lhes são impostas e pela ação
mental entre colonizador e colonizado, revolucionária.
condição sine qua non da vida colonial, Nada mais terrível para os opri-
mas funda sua imutabilidade. Somen- midos do que perderem totalmente as
te o racismo permite colocar na eterni-
esperanças de liberdade. No entanto,
dade, substantivando-a, uma relação
histórica que começou em data certa. diz Memmi, quando o domínio pare-
ce totalmente consolidado, criam-se
A produção de certas representa- as possibilidades para a tomada de
ções por parte do colonizador em rela- consciência sobre as condições reais e
ção aos nativos (colonizados) é funda- abrem-se caminhos para a emancipa-
mental para justificar a continuidade ção. Esse processo não é simples, visto
das relações de dominação. Assim, diz que os opressores buscam de todas as

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formas descaracterizar e enfraquecer às relações de dominação. Memmi


a capacidade de reação dos coloniza- (1989, p. 107) diz que “a recusa de si
dos, especialmente no campo da ação mesmo e o amor do outro são comuns
política. Diante do domínio dos coloni- a todo candidato à assimilação. E os
zadores, não resta aos colonizados se- dois componentes dessa tentativa de
não duas opções: continuar aceitando libertação estão estritamente ligados:
a condição de opressão e submeterem- subjacente ao amor do colonizador há
se à cultura e a ação dos colonizado- um complexo de sentimentos que vão
res, ou partir para a reação. Para o da vergonha ao ódio de si mesmo”. Na
colonizador, numericamente inferior, tentativa de afirmar-se como o coloni-
os riscos de reação são constantes. Daí zador, o colonizado despe-se de si mes-
a insuficiência do domínio simbólico- mo e assume o outro como se fosse ele
cultural. A respeito desses processos mesmo. Na tentativa de se identificar
vivenciados pelas colônias em rela- com o colonizador, exemplifica Mem-
ção às metrópoles, diz Memmi (1989, mi, “as negras se desesperam alisando
p. 106): os cabelos, que anelam sempre, e tor-
Se nos propomos compreender o fato turam a pele a fim de embranquecê-la
colonial, devemos admitir que é instá- um pouco”.
vel, que seu equilíbrio está incessante- Ao chegar a esse nível de compor-
mente ameaçado. Podemos transgredir tamento, os colonizados precisam ne-
com todas as situações e o colonizado
gar sua identidade histórica, seus va-
pode ter a esperança de viver muito
tempo. Mais ou menos rapidamente,
lores, rituais, costumes, vestimentas.
porém, mais ou menos violentamente, Na ausência de identidade própria e
pelo movimento de toda personalidade de auto-estima, buscam-se nos valores
oprimida, um dia se dispõe a recusar externos a afirmação. Dessa forma,
sua insuportável existência. As duas conclui Memmi (1989, p. 108), “como
saídas, historicamente possíveis, são muita gente evita andar com seus pa-
então tentadas, sucessiva e paralela-
mente. O colonizado tenta tornar-se
rentes pobres, o colonizado em vias
outro, ou reconquistar todas as suas de assimilação, esconde seu passado,
dimensões, das quais foi amputado suas tradições, todas suas raízes [...]”.
pela colonização. Para superar essa postura, é fun-
Para efetivar esse processo de li- damental a afirmação de uma identi-
bertação, o colonizado precisa reconhe- dade própria, mas de caráter nacional,
cer-se como sujeito com amor próprio. enraizada no passado e na cultura an-
Essa condição é fundamental para que cestral, ou seja, na tradição. Em deter-
haja uma ruptura com a cultura e os minadas circunstâncias a afirmação
valores impostos pelos colonizadores. da nacionalidade se apresenta como
Tanto Memmi quanto Freire partilham possibilidade para fazer frente à ação
do princípio de que o oprimido carrega dos colonizadores. As circunstâncias
dentro de si a capacidade de reação analisadas por Memmi evidenciam
que a primeira reação dos colonizados

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contra os colonizadores se dá por meio dispensando tal atenção aos velhos
da luta armada com ações de guerri- mitos, rejuvenescendo-os, revivifica-os
lha. Da afirmação absoluta do colo- perigosamente. Recuperam uma for-
ça inesperada que as faz escapar aos
nizador passa-se para o pólo oposto, desígnios limitados dos chefes coloni-
que é a negação total. Essa negação é zados. Assiste-se a um verdadeiro re-
condição para que a emancipação seja nascimento religioso. Acontece mesmo
posta como condição efetiva. Memmi que o aprendiz feiticeiro, intelectual
(1989, p. 112) faz as seguintes consi- burguês liberal, a quem o laicismo
derações a respeito: parecia a condição de todo progresso
intelectual e social, retome gosto pelas
Mas, doravante, o colonizador torna-se suas tradições desdenhadas.
principalmente negatividade, quando
era sobretudo positividade. Principal- Memmi e Freire partilham dos
mente, decide-se que é negatividade processos vivenciados pelos oprimidos
por toda a atitude ativa do colonizado. quando da tomada de consciência e
A todo instante é posta em questão na
do reconhecimento da capacidade de
sua cultura e na sua vida, e com ele,
tudo o que representa, metrópole com- ação e de criação, desqualificada pe-
preendida, é claro. Ele é suspeitado, los opressores durante anos, décadas
contrariado, combatido no menor dos ou séculos. Memmi (1989, p. 117-119)
seus atos. O colonizado põe-se a prefe- identifica três momentos de reação dos
rir com raiva e ostentação os carros ale-
colonizados em relação à colonização.
mães, os rádios italianos e os refrigera-
dores americanos; priva-se de fumo, se Ele diz que a reação é clara, embora
traz a estampilha colonizadora. o conteúdo de reação nem sempre seja
tão objetivo, visto que se interpõem
A consciência do papel desempe-
muitos interesses e privilégios e, por
nhado pelo colonizador ou pelo opres-
isso, não se pode falar dos coloniza-
sor tende a uma reação, em geral,
dos como bloco homogêneo. Num pri-
mais impulsiva do que através de uma
meiro momento, diz que, ao aceitar a
ação racional e planejada. Assim, a
exclusão, “o colonizado se aceita como
tendência é da negação em bloco dos
separado e diferente, mas sua origi-
colonizadores e, às vezes, também dos
nalidade é delimitada, definida pelo
nativos que se assemelham a eles,
colonizador”. Num segundo momento,
ou que partilhem dos seus valores e
torna-se negatividade, que é um dos
privilégios. No entanto, com o passar
elementos essenciais da sua recupera-
do tempo, o colonizado reconhece-se
ção e do seu combate, e vai afirmá-la e
e assume-se como sujeito histórico,
glorificá-la até o absoluto. Finalmente,
portanto, capaz de romper com as re-
em relação ao terceiro momento, diz:
lações de dominação, e tende a voltar
ao passado em busca das suas raízes, Tudo isso, o colonizado o pressente,
o revela na sua conduta, o confessa
muitas vezes destruídas ou descarac-
algumas vezes. Percebendo que suas
terizadas. Nessa volta, diz Memmi atitudes são essencialmente de reação,
(1989, p. 115), é atingido pela maior parte das pertur-

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bações da má-fé. Incerto de si mesmo, o meio. Paulo Freire concebe o homem


entrega-se à embriaguez do furor e da não só no mundo, mas com o mundo. O
violência. Incerto da necessidade desse homem é apenas um ser localizado no
retorno ao passado, reafirma-se agres- mundo, mas é o localizador do próprio
sivamente. Incerto de poder convencer mundo; em outros termos, é na rela-
os outros, provoca-os [...]. ção do homem-mundo que o sentido
aparece. O mundo como sentido para
As transformações iniciam, por- o homem e o homem dando sentido ao
tanto, com a tomada de consciência, mundo.
ou seja, à medida que as contradi-
ções começam se explicitar e quando A conscientização e a transforma-
o medo da liberdade, segundo Freire, ção implicam vários processos, entre
é superado pelos sujeitos. “Não são os quais a ruptura com o medo e a
raras as vezes em que participamos consciência das contradições. Freire
destes cursos, numa atitude que ma- diz que “a realidade social, objetiva,
nifestam o seu medo da liberdade, se que não existe por acaso, mas como
referem ao que chamam de perigo da produto da ação dos homens, também
conscientização” (1981, p. 19). Freire não se transforma por acaso. Se os
discute em vários momentos que a homens são os produtores desta reali-
conscientização não é obra de algum dade e se esta, na inversão da práxis,
iluminado que leva as luzes da cons- se volta sobre eles e os condiciona,
ciência para os outros. Esse é um pon- transformar a realidade opressora é
to duramente questionado por Freire tarefa histórica, é tarefa dos homens”
nas suas obras. A conscientização é (1981, p. 39). Enquanto os oprimidos
um ato que exige a participação efe- ou colonizados não se colocam como
tiva dos sujeitos. Essa é a tese central sujeitos, não é possível pensar em
da obra Ação cultural para a liberda- transformação nem em emancipação.
de, conforme Freire (1987). A tomada “A pedagogia do oprimido que, no fun-
de consciência não é, por sua vez, um do, é a pedagogia dos homens empe-
processo meramente subjetivo. A aná- nhando-se na luta por sua libertação,
lise feita por Mühl (1998, p. 297-298) tem suas raízes aí. E tem que ter, nos
destaca as duas dimensões sobre as próprios oprimidos que se saibam ou
quais deve incidir uma prática peda- comecem criticamente a saber-se opri-
gógica transformadora: a dimensão midos, um dos seus sujeitos” (1981,
subjetiva e a realidade objetiva.6 p. 43).
Um dos passos importantes é o
A ação conscientizadora deve ter, pois,
reconhecimento de que a linguagem
projeção social, política, econômica, re-
ligiosa e cultural; deve compreender a (palavra) não é apenas um conjunto
transformação do homem no seu todo, de letras ou sons. Tanto Freire quanto
dele mesmo e da realidade onde ele se Memmi insistem na necessidade dos
acha inserido. A transformação deve oprimidos de reconhecerem a sua lín-
ocorrer tanto nas relações intersubjeti- gua e a linguagem como elemento fun-
vas quanto nas relações objetivas com damental de emancipação. Diz Freire:

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A palavra inautêntica, por outro lado, lhes impõe, terão, a nosso ver, simples-
com que não se pode transformar a mente, a impressão de que chegaram
realidade, resulta da dicotomia que ao poder” (FREIRE, 1981, p. 148). A
se estabelece entre seus elementos
constituintes. Assim é que, esgotada a
respeito da necessidade da emancipa-
palavra de sua dimensão de ação, sa- ção dos sujeitos da condição de oprimi-
crificada, automaticamente, a reflexão dos, continua Freire:
também, se transforma em palavreria, Renunciar ao ato invasor significa,
verbalismo, blá-blá-blá. Por tudo isto, de certa maneira, superar a dualida-
alienada e alienante. É uma palavra de em que se encontram – dominados
oca, da qual não se pode esperar a de um lado; dominadores, por outro.
denúncia do mundo, pois que não há Significa renunciar a todos os mitos
denúncia verdadeira sem compromisso de que se nutre a ação invasora e exis-
de transformação, nem este sem ação tenciar uma ação dialógica. Significa,
(1981, p. 92). por isto mesmo, deixar de estar sobre
Nessa mesma linha, podem-se ou dentro, como estrangeiros, para es-
tar com, como companheiros. O medo
destacar as palavras de Fiori na apre-
da liberdade, então, neles se instala.
sentação da obra Pedagogia do opri- Durante esse processo traumático, sua
mido. “Com a palavra, o homem se faz tendência é, naturalmente, racionali-
homem. Ao dizer sua palavra, pois, o zar o medo, com uma série de evasivas
homem assume conscientemente sua (1981, p. 183).
essencial condição humana” (FIORI, O processo de emancipação impli-
1981, p. 7). ca transformações pessoais e estrutu-
A transformação, segundo os au- rais. Como seres históricos os homens
tores, não se processa apenas com a têm essa capacidade de mudar. Para
alteração de personagens no poder, tanto, é fundamental a elaboração de
senão por meio de uma profunda mu- uma pedagogia que valorize os sujeitos
dança cultural, o que implica uma e que seja capaz de superar a opressão.
transformação objetiva da realidade, Freire propõe a pedagogia do oprimido
mas também da consciência, ou seja, como possibilidade real, pois, por meio
da subjetividade. Freire fala em afas- do diálogo, possibilita a emancipação.
tar o hospedeiro instalado em cada su- Segundo Balbinot (2006, p. 129-130),
jeito para que não haja simplesmente “para superar o verticalismo pedagó-
uma inversão nas relações de domina- gico, a ação educativa tem de funda-
ção e que o oprimido passe a ser opres- mentar-se em uma relação de sujeitos
sor. “Se são levados ao processo como que se reconhecem mutuamente como
seres ambíguos, metade elas mesmas, tais. E o fato de reconhecerem-se mu-
metade o opressor hospedado nelas e tuamente exige que tenham identida-
se chegam ao poder vivendo esta am- de própria e sejam diferentes”.
bigüidade, que a situação de opressão

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Considerações finais As questões problematizadas por


Freire e Memmi ajudam-nos a com-
Ao concluir essas reflexões ficam preender a complexidade inerente
muitos desafios para as práticas edu- aos processos emancipatórios. Se já
cativas e para as políticas educacio- é difícil crer na capacidade de reação
nais. As duas obras principais aqui diante da realidade de opressão, espe-
discutidas tematizam questões cen- cialmente através de ações isoladas,
trais da humanidade, que são a liber- muito mais complexo é pensar na re-
dade e a autonomia. A liberdade tem o construção de experiências emancipa-
seu preço visto que implica responsa- tórias após a superação das relações
bilidade social, que, por sua vez, exige de opressão impostas pelos coloniza-
criatividade, iniciativa e capacidade dores. Não basta destronar o coloni-
de discernimento. Somente faz op- zador. É fundamental a construção de
ções quem tem capacidade de decidir. novas experiências, que sejam capa-
Quando pensamos em políticas educa- zes de fazer frente às novas formas de
cionais na perspectiva da cidadania, opressão que se recriam. Esse parece
de imediato somos forçados a pensar ser um dos grandes ensinamentos dos
na autonomia e na capacidade de pen- mestres discutidos no presente texto.
sar, argumentar e decidir perante as A luta contra o opressor se constitui,
possíveis opções. na realidade, num ponto de partida.
Tanto a análise feita por Memmi A efetivação de experiências demo-
quanto por Freire acentuam a neces- cráticas e emancipatórias continua
sidade de os oprimidos se assumirem sendo um desafio para qualquer ação
como sujeitos. Essa possibilidade, por revolucionária. Freire e Memmi nos
sua vez, traz um conjunto de impli- alertam sobre os riscos da reprodução
cações culturais e sociais. Somente de práticas opressoras quando da che-
é sujeito quem se assume pessoal e gada ao poder, ou seja, sem uma efeti-
coletivamente nas decisões visando à va emancipação, a tendência é de que
definição de ações para transformar novos líderes surjam e se tornem tão
as realidades. Para tanto, é funda- ou mais opressores que os destituídos
mental o envolvimento, a dedicação e do poder.
a responsabilidade ético-social. As in- Um dos grandes desafios emer-
tervenções dos grupos e classes domi- gentes dessas reflexões é de que as
nantes trabalham, de um modo geral, múltiplas formas de assistencialismo
na perspectiva da instrumentalização que existem hoje na sociedade, inclu-
das pessoas para que se adaptem às sive na escola, pouco contribuem para
condições objetivas existentes, ou a emancipação. Muitos espaços de
seja, em nada contribuem para um educação formal estão praticamente
pensar crítico. Mais do que nunca, o descaracterizados da sua função es-
pensamento crítico se faz necessário sencial. É evidente que as condições
no contexto atual. sociais e econômicas exigem, por ve-

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zes, ações imediatas para matar a é fundamental uma formação que seja
fome, tratar um dente etc. O problema capaz de pensar os sujeitos de forma
é que essas práticas acabam se tor- integral.
nando corriqueiras, e o papel específi-
co da escola, que é de formar sujeitos
críticos, emancipados e responsáveis Abstracts
ética e socialmente, fica em segundo
plano. Com base nas reflexões desen- This texts presents a discussion
volvidas, não resta alternativa a não on Paulo Freire and Alberto Memmi
ser o enfrentamento das questões so- with the aim of searching for elements
ciais, políticas, econômicas e culturais for discussion on educational policies
por meio de um processo qualificado from an emancipative perspective.
de reflexão. Isso não ocorre, segundo The reconstruction of those authors’
Freire (1987, p. 42-64), sem uma pe- ideas helps us question the dominant
dagogia que seja capaz de fazer frente tendencies in educational policies of
à opressão e que seja capaz de “pro- instrumental character and subordi-
duzir” sujeitos emancipados e huma- nated to the market and also to think
nizados. of a transformative critical perspecti-
A luta pela emancipação exige, ve. The research and the experiments
portanto, que sejam levadas em con- carried out by Memmi and Freire
sideração as realidades que envolvem have posed several questions regar-
os sujeitos com as suas contradições. ding trends in educational policies
A pedagogia do oprimido, com base na in the beginning of this century, less
relação dialógica, apresenta-se em con- and less worried with humanization,
dições de fazer frente aos grandes de- i.e., with the human being’s ontologi-
safios propostos pelo desenvolvimento cal vocation to be more. Within that
econômico atual, que não mais se limi- context, the reading of classic authors
ta ao seu campo peculiar. A lógica do becomes a fertile possibility as long as
mundo econômico está tomando conta they propose fundamental questions
do campo educativo e definindo princí- to the formulation of consistent criti-
pios, procedimentos pedagógicos e fins cism with regard to the formation of
para a educação. No contexto desses critical and emancipated subjects who
processos não podemos esperar sujei- can effectively contribute to the trans-
tos críticos, criativos e emancipados. formation of socio-economic, political
O enfrentamento desses desafios, no and cultural relations.
entanto, é possível se nos colocarmos
como sujeitos da história e comprome- Key-words: oppressor-oppressed, colo-
tidos com a humanização. Para tanto, nizer-colonized, emancipative educa-
tional policies, change.

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1

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Vozes, 1997. e de um discurso economicista baseado no pre-

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texto da globalização não responde aos grandes
desafios existenciais e estruturais na atualidade.
São muitas as produções que vão nessa direção. A
respeito, podem-se referir alguns trabalhos, como
os de Schmied-Kowarzik (2005), Casassus (1995),
Frigotto (1998), Gentili (1995), Gentili e Frigotto
(2000), Gentili e Silva (1997), Torres (1998), Teo-
doro (2003).
2
A utopia nunca é isolada de contextos e de proje-
tos, ou seja, não é uma ação individual.
3
Albert Memmi é um autor não muito conhecido
entre nós. Nasceu em Tunis em 1920 e, em 1943,
conheceu os campos de trabalho forçado na Tuní-
sia. Após a independência da Tunísia fixou-se em
Paris (1956) como professor e trabalhou com psi-
quiatria social na Escola Prática de Altos Estudos
(MARZOUKI, 2006). Manteve contatos pessoais
com Paulo Freire, conforme biografia elaborada
por Ana Maria Araújo Freire (2006), quando faz
o seguinte comentário a respeito do marido, Pau-
lo Freire: “Não há como negar na sua maneira
própria de pensar porque reinventa e supera em
parte ou no todo muitos dos seus mestres, a in-
fluência do marxismo, do existencialismo, do per-
sonalismo ou da fenomenologia. São presenças na
sua leitura de mundo tanto Marx, Lukacs, Sartre
e Mounier quanto Albert Memmi, Erich Fromm,
Franz Fanon, Merleau-Ponty, Antonio Gramsci,
Karel Kosik, Marcuse, Agnes Heller, Simone Weill
e Amilcar Cabral” (grifo nosso). De Memmi, Pau-
lo Freire recebeu uma carta enviada de Paris, em
1987, com o seguinte texto: “Caro Senhor: Pro-
blemas de saúde me impediram de vos agradecer
por ter aceitado fazer parte do comitê de honra no
trigésimo aniversário do “Retrato do colonizado”.
A confiança de um lutador como vós me tem sido
muito reconfortante. Com os meus melhores votos.
Albert Memmi. Paris, 16/01/87” (FREIRE, 2006).
Paulo Freire faz menção à obra de Memmi no livro
Cartas à Guiné-Bissau, quando sugere em nota de
rodapé a leitura das obras de Fanon e de Memmi
(FREIRE, 1984, p. 20).
4
A obra foi publicada, inicialmente, na França em
1957, e a apresentação foi feita pelo tradutor Ro-
land Corbesier para a edição brasileira data de
1967. A segunda edição foi publicada em 1977.
5
Em Cartas à Guiné-Bissau, conforme Freire
(1984), há referências às condições de vida em paí-
ses africanos.
6
Às vezes, dá a impressão de que certas leituras ali-
geiradas de Freire privilegiam uma dimensão sub-
jetiva, ou seja, uma relação pedagógica superficial
entre sujeitos. O mesmo parece ocorrer em relação
aos conceitos de diálogo e de amor.

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