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Uma nova onda pedagógica percorre, de nante - ao menos no pensamento educacional

forma avassaladora, a educação brasileira, e no segmento de "vanguarda" da prática


ameaçando tornar-se a nova ortodoxia em educacional- uma análise do sistema educacio­
questões educacionais. Ela começa a se tornar nal e de seu funcionamento que se pode carac­
hegemônica nas faculdades de educação, nos terizar como crítica e progressista. Freqüente­
encontros científICOS e até mesmo no discurso mente, privilegiaram-se nessa análise os fatores
oficial sobre a educação. É fácil adivinhar que políticos e macrosociológicos, como o papel do
estamos falando do construtivismo. Com base Estado, a função de reprodução social da
nas teorias de Piaget, com reformulações e educação, seu papel na perpetuação da desi­
revisões tendo como fundamentação Vigotsky e gualdade social, seu envolvimento na transmis­
Luria e, no que tange à área específica da são de uma visão política cônservadora. A teoria
leitura e da escrita, a forte influência de Emilia e a análise caracterizaram-se, em geral, por
Ferreiro, o construtivismo tornou-se, de repente, privilegiar a crítica da situação existente, por
dominante. Nem bem tínhamo-nos refeito da descrever o sistema educacional e a escola
influência da agonizante "pedagogia dos conte­ como ela é e por tentar descobrir as causas
údos", vemo-nos às voltas com o predomínio dessa situação; em suma, por tentar descrever
crescente desse novo conjunto de idéias educa­ a situação existente como uma "distorção"
cionais e pedagógicas. daquilo que deveria ser a verdadeira educação
Como ocorre no campo intelectual, esta e o verdadeiro ensino e currículo.
predominância não se faz sem conflitos e dis­ Raramente esteve presente nos anos em
cussões. Entretanto, tanto quanto posso vislum­ que predominou esta orientação uma tentativa
brar, esses conflitos e discussões têm permane­ mais sistemática de desenVl!>lver uma teoria
cido no ãínbito interno dessa nova onda educa­ educacional e pedagógica "positiva", prescritiva,
cional. São conhecidas as discussões veicula­ uma teoria que tentasse expressar claramente o
das através de revistas como Cadernos de que caracterizaria uma prática educacional
Pesquisa e Educação & Realidade, para citar progressista, crítica. É verdade que a teorização
apenas duas das mais conhecidas. O que não de Paulo Freire teve um pouco esta preocupa­
tenho visto, entretanto, é uma análise das condi­ ção, mas que era precisa e detalhada apenas
ções sociais dessa predominância e influência numa área muito específica, a de alfabetização
do construtivismo, nem uma crítica realizada de de adultos, tendo aqueles que se dedicavam a
fora de seus pressupostos. É precisamente a outras áreas da prática educacional que se
esta tarefa que me proponho dedicar neste contentar com princípios muito gerais. Mais
trabalho, embora de uma forma limitada, limita­ recentemente, pode-se dizer que a chamada
ção advinda exatamente da falta de um debate "pedagogia dos conteúdos" se dirigiu especifi­
mais amplo e aberto, problema que pode ser càmente a essa necessidade de desenvolver
superado na medida em que mais pessoas se princípios que fundamentassem a prática peda­
dispuserem a contribuir para a discussão na gógica. Mas, de novo, estes princípios eram
direção aqui sugerida e iniciada muito genéricos para serem de utilidade para as
A entusiasmada adoção do construtivismo pessoas diretamente envolvidas na prática
como teoria educacional e pedagógica por um pedagógica. De qualquer forma, seu relativo
número crescente de educadores e professores sucesso, ao fornecer uma certa direção para a
deve ser entendida no contexto mais amplo da prática pedagógica, é um indicador dessa
discussão e análise da educação brasileira dos necessidade que veio a ser preenchida, agora,
últimos anos. Como se sabe, tem sido predomi- pelo construtivismo.

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 18 (2):3-10, jul/dez. 1993


Parte da predominância atual do construti­ gias de governo, de modos de regulação, que
vismo deve-se, precisamente, à sua dupla se basearam na produção de uma população
promessa. De um lado, ele aparece como uma que se acreditava a si mesma livre e sem coa­
teoria educacional progressista, satisfazendo ções e que aceitaria a democracia burguesa em
portanto aqu�es critérios políticos exigidos por vez de optar pela rebelião. Esta última se con­
pessoas que, em geral, se classificam como de verteu numa patologia que devia ser corrigida.
·esquerda8. De outro, o construtivismo fornece A psicologia jOgou um papel central neste
uma direção relativamente clara para a prática processo e sua inserção no interior da educação
pedagógica, além de ter como base uma teoria proporcionou. as ferramentas. necessárias para
de aprendizagem e do desenvolvimento humano torná-lo possível" (Walkerdine, 1991, p. 21).
com forte prestígio científico. Comparem isto Em grande parte da história da escolariza­
com, de um lado, por exemplo, as teorias ma­ ção de massa do século XX, a história da Peda­
crosociológicas e políticas sobre a escola, tais gogia confunde-se com a própria história da
como as chamadas teorias da reprodução, Psicologia Educacional. Ainda hoje esta influên­
apenas para citar uma delas. Faltam aqui aque­ cia é bastante forte, como se pode verifICar, por
les ingredientes práticos, de direção para a exemplo, através de um exame dos currículos
·ação na sala de aula na segunda-feira de das escolas normais ou dos cursos de Pedago­
manhã8. E, por outro lado, coloquem o constru­ gia e licenciaturas. Os cursos de licenciatura, em
tivismo lado a lado com o tecnicismo, por exem­ geral, têm em seu currículo Psicologia Educacio­
plo. Obviamente, o tecnicismo tem toda aquela nal (várias) e Didática - esta tributária também
aura conservadora que nenhuma pessoa que se ela da Psicologia, mas não Sociologia ou Filoso­
considere como progressista quer - nesta altura fia da Educação, por exemplo.
do debate - carregar. Tem-se, em geral, reponhecido as bases
Um dos pontos centrais deste trabalho ideológicas deste predomínio da Psicologia na
consiste precisamente em argumentar que, em educação. Como bem demonstrou Foucault, a
certo sentido, a predominância do construtivis­ Psicologia, como as outras ciências de conheci­
mo constitui uma regressão conservadora. Isto mento do homem, está envolvida num processo
não implica em que os construtivistas sejam de individualização, vigilância e controle do
conservadores; o que estou dizendo é que a homem. Ela se insere no objetivo de conhecer
constituição social do construtivismo representa para melhor controlar, para produzir subjetivida­
uma tendência com efeitos conservadores. A des e identidades. Como dizem Julia Varela e F.
presente onda construtivista representa uma Alvarez-Uria (1991, p. 53), ·esta nova ciência se
regressão conservadora por mais de uma razão. encarregará de fabricar o mapa da mente infantil
A predominância do construtivismo tem para assegurar de forma definitiva a conquista
conseqüências conservadoras na medida, da infância. À colonização exercida pela escola
sobretudo, em que representa a volta do predo­ de crianças aprisionadas na carteira se acres­
mínio da Psicologia na Educação e na Pedago­ centará então uma autêntica camisa de força
gia. (Obviamente alguns de seus defensores psicopedagógica que inaugura uma neocoloni­
dirão que não se trata de uma Psicologia, mas zação sem precedentes que apenas começava·.
de uma Epistemologia. Sim, talvez, mas de uma
Epistemologia muito particular, muito restrita, Pode-se dizer que a história da educação
uma Epistemologia Psicológica). Como se sabe, de massasno século XIX e XX se caracteriza, no
a Pedagogia e a Educação moderna se desen­ front político mais amplo, externamente, por um
volveram, em grande parte, sob a égide da esforço de controle e regulação, de controle de
Psicologia. Foi esta que forneceu àqueles que uma população vista como potencialmente
planejaram e desenvolveram os sistemas escola­ perigosa e de conformação de uma força de
res de massa deste século o instrumento de trabalho às condições do trabalho capitalista Ao
Justificação científica e de gerenciamento do mesmo tempo, internamente, a escola de mas­
comportamento humano exigido por seus propó­ sas procurou ocultar esses vínculos com a
sitos de regulação e controle. Como diz Valerie política, ao adotar um tratamento ·científico· e
Walkerdine (1991, p. 21), 8desde o princípio [da ·psicológico· da aprendizagem e do ensino.
história de escolarização de massa) existiu uma Neste sentido, a psicologia educacional repre­
conexão entre um projeto de contenção e de senta um esforço de despolitização da educa­
governo das massas e um projeto psicológico ção, o que, na verdade, a torna ainda mais
de transformação da produção do 'indivíduo'8. eficaz do ponto de vista daqueles objetivos
·É, portanto, necessário, compreender-, prosse­ políticos mais amplos. Além disso, a ênfase na
gue Valerie, ·que surgiram uma série de estraté- Psicologia e nos seus tributários - Teoria do

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Currículo, Didática, Metodologia - tem implicado, relações de sala de aula propriedades que
também, numa operação de isolamento da pertencem à esfera das relações econômicas e
educação de seu contexto social, de seus políticas mais amplas.
componentes políticos. Na medida em que se Esta tentativa de ·politizar" o construtivis­
transportam os pressupostos da Psicologia, mo é bastante interessante do ponto de vista da
como ciência, para um contexto social e político, operação de rec,ontextualização de uma teoria
como é a Educação, tende-se, exatamente, a pedagógica. É evidente que em sua formulação
separar o processo educacional de seu aparato original, no âmbito da Psicologia Cognitiva e do
social e político. A psicologização da educação Desenvolvimento, não existe esta pretensão
implica, necessariamente, na sua despolitização. política, na medida em que ai o que interessa é
E não é suficiente afirmar, a título de defesa - a aprendizagem individual, fora de um contexto
de forma simplista - que determinada psicologia social e institucional como é a escola. Ao trans­
leva em conta os fatores sociais. De qualquer portar esta Psicologia para um contexto em que
forma, está-se falando, neste caso, dos determi­ está presente um aparato social e político, como
nantes sociais do comportamento individual. O é o da escolarização, os adeptos do construtivis­
que importa, ao contrário, é destacar a existên­ mo procuram introduzir este componente político
cia de um aparato social e político, como é a - ausente no contexto original - através da
educação institucionalizada, e as implicações única possibilidade que um referencial psicológi­
disto. co pode proporcionar, o do comportamento
O advento do construtivismo não parece individual e interpessoal. Obviamente, o resulta­
que altere, em essência, estas conseqüências do de uma tal operação consiste em reduzir o
do predomínio da Psicologia na educação. Pelo político e o social a uma Psicologia Social, pelo
contrário, ele tende a acentuar suas conseqüên­ qual a democracia e a política tornam-se sinôni­
cias conservadoras, na medida em que o movi­ mos de relações interpessôais.
mento construtivista tem procurado se apresen­ Um exemplo interessante desse processo
tar como uma tendência progressista e demo­ de psicologização e conseqüente despolitização
crática, crítica e radical. Neste sentido, o cons­ é o proporcionado pela influência de Emilia
trutivismo representa a volta triunfal do predomí­ Ferreiro na área de alfabetização. Aqui, ao
nio da Psicologia no pensamento e na prática reduzir o problema do analfabetismo a um
educacional. problema de aquisição, isolam-se todos os
De certa forma, ao se apresentar como componentes sociais e políticos associados ao
progressista e radical, o movimento construtivis­ fenômeno e ao problema do analfabetismo. O
ta tem, paradoxalmente, implicações ainda mais analfabetismo deixa de ser uma questão social
regressivas que as tendências psicológicas e política, e cultural, para se tornar um problema
anteriores. Pois o construtivismónão apenas de aprendizagem, solucionável através da
isola, como as outras psicologias, a educação escola e de métodos que levem em conta uma
institucionalizada de seu aparato social e políti­ melhor compreensão da gênese da leitura e da
co. O construtivismo pretende se apresentar, escrita. Os construtivistas ligados à alfabetização
através de uma boa parte de seus adeptos, fariam bem em tomar conhecimento da vasta
como um substituto de uma teoria social da literatura histórica sobre a leitura e a escrita, a
Educação. De forma não diferente das preten­ qual coloca estes processos sociais e culturais
sões de movimentos como o progressivista nos numa perspectiva bem mais ampla.
Estados Unidos (John Dewey), o construtivismo Uma outra conseqüência do predomínio
se apresenta como a possibilidade de instaura­ de uma visão psicológica da Educação, como é
ção da democracia através da Pedagogia. o construtivismo - estreitamente relacionada
Segundo esta pretensão, o construtivismo traria com a que vimos analisando - é sua tendência
embutido, ao favorecer relações de aprendiza­ à biologização e à nàturalização. Com sua
gem mais democráticas, um potencial radical, ênfase na compreensão do processo de cons­
libertador, no sentido político. Crianças educa­ trução das estruturas mentais, o construtivismo,
das sob o construtivismo tenderiam a favorecer de novo, ajuda a construir a noção do conheci­
em sua vida adulta - este é o raciocínio - rela­ mento como um processo biológico e natural,
ções mais democráticas, tenderiam a não aceitar isolado das funções sociais e políticas da edu­
facilmente, em sua vida política e de trabalho, cação institucionalizada. A escola não é uma
relações autoritárias. É fácil ver a falta de funda­ instituição apenas - e talvez nem principalmente
mento de uma tal pretensão. Mais difícil será, - para a aprendizagem de conceitos. Como diz
talvez, compreender quanto esta posição está Valerie Walkerdine (1984, p. 185), a Pedagogia
imbuída de conservadorismo, ao atribuir às torna-se a observação e o registro do desenvol-

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vimento naturalizado. A escola é uma instituição missores, adquirentes, competências e contex­
inserida numa teia de poder e controle, na qual, tos).
talvez, a aprendizagem de conceitos seja a Um exemplo recente talvez ilustre melhor
menos importante. A sala de aula - assim como o que estou tentando argumentar. A Secretaria
a escola e o sistema educacional - não é um de Educação do Município de Porto Alegre
laboratório. Como diz Popkewitz (1991, p. 183), anunciou recentemente (setembro de 1992) a
o construtivismo faz com que as distinções inauguração da primeira escola com arquitetura
sociais se tornem invisíveis, através de uma construtivista. Não importam aqui os detalhes
linguagem que faz com que escolhas curricula­ desta arquitetura. É fácil ver que os elementos
res pareçam problemas de raciocínio universal. de uma tal "arquitetura construtivista" não estão
Na medida em que pressupõe uma gênese presentes, nem poderiam estar, na Psicologia
mental, há uma naturalização da cultura e da (ou Epistemologia) construtivista. A arquitetura
história. Como bem demonstrou Aries (1973), a é um daqueles elementos do aparato institucio­
própria noção de infância - e acrescentaríamos: nal e material que constitui a educação institu­
também a de "desenvolvimento" - é histórica e, cionalizada e que a tornam algo mais que uma
mais do que isto, está ligada à própria história psicologia ou epistemologia. Ao adotar uma
.da escola. Ou seja, não se pode pensar a arquitetura "construtivista", a Secretaria constru­
infância e o desenvolvimento (humano, infantil) tivista da Prefeitura de Porto Alegre, com certe­
como noções "naturais", desligadas das condi­ za, de forma implícita, compreende que uma
ções históricas e das bases sociais de seu Educação ou Pedagogia construtivista é algo
aparecimento. Tudo isto é muito mais amplo e mais que a Psicologia ou Epistemologia constru­
profundo do que simplesmente "introduzir o tivista que lhe serve de base. O que ela não
social na aprendizagem". entende é, primeiro, que a educação institucio­
Há um outro aspecto importante deste nalizada é mais do que a àrquitetura da escola
processo de transporte da Psicologia à Educa­ ou da sala de aula. Ela inclui uma série de
ção, que deve ser considerado. Evidentemente, outros elementos constituintes de seu aparato
uma psicologia não é uma pedagogia, nem uma institucional e social que, talvez se prestem
teoria educacional. A Psicologia pesquisa o menos à operação de uma transformação
indivíduo. A Pedagogia diz respeito a como construtivista: seu caráter estatal, sua regula­
formar e controlar o indivíduo no contexto de mentação legal, o formato de sua divisão do
uma rede institucional de relações sociais. A tempo, etc. (remeto aqui, de novo, às lições
aplicação da Psicologia à Educação, à Pedago­ históricas de Aries). Em segundo lugar, o cons­
gia, necessita de um aparato pedagógico, de trutivismo da Secretaria de Educação porto-ale­
um aparato institucional, que torna a Pedagogia grense certamente não consegue extrair todas
algo mais que a Psicologia e, ao mesmo tempo, as implicações de sua semi-lucidez, a mais
diferente dela. (Uma outra concepção do desen­ importante delas sendo que dada a condição de
volvimento e da aprendizagem exigiria um outro aparato social da educação institucionalizada
aparato). Nesta passagem, neste transplante, nenhuma teoria de base psicológica pode se
isolam-se as características sociais, políticas, arvorar em teoria total da Educação, como
contextuais, institucionais que caracterizam a exatamente é a pretensão do construtivismo
escola. A Psicologia (ou Epistemologia) constru­ pedagógico.
tivista diz respeito a como se aprende. A peda­ Há uma outra pretensão implícita do
gogia construtivista tem que, necessariamente, construtivismo que desejo comentar. O construti­
dizer como se deve aprender. Ou seja, a Psico­ vismo, de certa forma, pretende passar a idéia
logia construtivista ao passar para o âmbito da de que, contrariamente às outras pedagogias,
Educação deve adquirir e acrescentar certos ele não está envolvido no processo de controle
componentes que não estavam presentes no e de poder, inerente ao processo educacional,
âmbito original de sua elaboração. Uma pedago­ mas num processo de liberação e democratiza­
gia deve dizer algo sobre a relação entre trans­ ção. Não vamos enfatizar demasiadamente aqui
missores e adquirentes, sobre o ritmo da trans­ a já referida contribuição de Foucault, segundo
missão, sobre o tempo e o espé!Ço da transmis­ a qual uma ciência de conhecimento do indiví­
são e sobre a ordem sociar da transmissão duo diz respeito essencialmente ao controle e
(Bernstein, 1992), ou seja, para usar as palavras ao poder sobre o indivíduo. Mas lembrar apenas
de Bernstein, uma pedagogia diz respeito não que o aparato pedagógico está envolvido, de
apenas a um discurso instrucional, mas a um qualquer forma, numa relação de controle e
discurso regulativo (o que regula e o que conta poder. O que distingue as diferentes pedagogias
como ordem legítima, as relações entre trans- é a maior ou menor visibilidade do processo,

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como tão bem destacou Bernstein. As pedago­ sim, falta a certas formulações do construtivismo
gias invisiveis, para usar sua terminologia, ao uma consideração dos aspectos sociais, mas
enfatizar uma maior exposição da intimidade do que elas podem ser facilmente introduzidas e,
sujeito, controlam de uma forma mais invisível, na verdade, certos autores até já o fazem. Não
mas nem por isso, menos eficaz - talvez até é a este tipo de objeção que se dirigem meus
mesmo de forma mais eficaz. argumentos. Não se trata de reconhecer ou não
O construtivismo também está envolvido os elementos r;ociais envolvidos no processo de
num entendimento restritívo do conceito de aprendizagem "puro", por assim dizer, mas os
Epistemologia, ao restringi-lo à gênese das elementos SQCiológicos e políticos presentes
estruturas mentais individuais - por mais que se numa situação de educação' institucionalizada,
considere a influência do meio, da história de os quais são ignorados na operação de simples
cada um, etc. Comparem isto, por exemplo, com transplante que se faz das teorias psicológicas
a concepção de epistemologia de Foucault, para (ou epistemológicas, isto não faz diferença,
o qual a epistemologia envolve o conhecimento trata-se sempre de epistemologias no sentido
-sobre o homem - construído historica e social­ psicológico) para a escola, como já tentei de­
mente e não apenas o conhecimento dentro do monstrar. O problema não consiste em introduzir
homem, como no construtivismo. Essa concep­ elementos sociais na cognição, mas em levar
ção restrita de Epistemologia tem implicações em consideração as bases sociais e políticas da
para a aplicação pedagógica do construtivismo, educação institucionalizada. Isto uma teoria
na medida em que naturaliza o processo de psicológica ou uma Epistemologia psicológica
conhecimento. O processo de transmissão evidentemente não podem fazer. Não há como
educacional não envolve apenas um ato psicoló­ acrescentar algo a uma teoria que, por definição
gico de aprendizagem de conceitos "naturais". e escolha, não se propõe a isto (a não ser na
O processo de conhecimento e de transmissão concepção equivocada de" seus transplantado­
do conhecimento (e de sua aquisição) é um ato res pedagógicos).
social e político, em que estão envolvidas rela­ A outra solução "fácil" consiste em reco­
ções de poder, de controle e interesse que os nhecer, num raro momento de humildade "epis­
tornam atos sociais e históricos. Para usar outra temológica", as limitações políticas e sociológi­
vez Popkewitz (1991, p. 179), o construtivismo cas da teoria construtivista e admitir, então, que
busca saber como o indivíduo conhece sem ela seja "complementada" com uma análise
levar em conta a constituição social do conheci­ política e sociológica da educação. O problema
mento (não confundir isto com "levar em conta com esta "solução" é que ela deixa de ver que
fatores sociais - dizer que o conhecimento é não se trata apenas de uma questão de "com­
constituído socialmente não é a mesma coisa plementação", mas de questionar globalmente
que dizer que o conhecimento individual é toda uma concepção que enfatiza a aprendiza­
influenciado pelo social, mas que o conhecimen­ gem, a psicologia e a pedagogia, ao invés de
to tem uma existência social, supra-individual). colocar no centro do debate os aspectos políti­
O mais interessante disto tudo é que o cos e sociais da educação. Não basta, por isto,
construtivismo, apesar de sua elisão dos aspec­ acoplar "abordagens" diferentes. Além disto,
tos políticos e sociais da educação, quer fazer esta formulação, ao deixar o construtivismo fora
se passar por uma teoria social. Ou seja, o da análise política e sociológica, esquece-se que
construtivismo, ao menos na visão dos seus o próprio construtivismo é que pode ser o
mais ardorosos defensores no âmbito da educa­ problema (do ponto de vista sociológico e
ção, pretende ser uma teoria abrangente de político).
compreensão da educação e sua prática. É Numa outra clave, o construtivismo faria
exatamente esta pretensão que - ao pretender bem em prestar atenção às bases sociais das
substituir uma teoria social da educação, igno­ diferentes pedagogias, como tão bem nos
rando ao mesmo tempo tudo aquilo que uma ehsinou Bernstein. Como destaquei antes,
verdadeira teoria social nos ensinou sobre os diferentes pedagogias implicam diferentes
aspectos sociais e políticos da educação - faz aparatos, diferentes arranjos, diferentes noções
com o I que o construtivismo, uma vez mais, de espaço e de tempo, diferentes regras de
tenha uma tendência regressiva, conservadora. ordem, controle e regulação. Pedagogias visí­
Não se deve confundir o que venho veis, por exemplo, têm uma noção de tempo e
argumentando aqui com certas soluções "fá­ de espaço clara e rigidamente marcadas, ao
ceis" com relação ao problema da falta de uma contrário das pedagogias invisíveis, como o
perspectiva política e sociológica do construtivis­ construtivismo. Pedagogias visíveis supõem um
mo. Uma delas consiste em reconhecer que, ponto de chegada clara e antecipadamente

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definido - centram-se nos resultados, ao contrá­ não seria dominante, diríamos nós. Se, como diz
rio das pedagogias invisíveis, mais preocupadas Bernstein, é verdade que as pedagogias invisí­
com o processo. No primeiro caso, o aprendiz veis exigem uma vida educacional longa -
sabe onde deve chegar. No segundo caso, o significando que as possíveis desvantagens de
professor é quem sabe quais elementos caracte­ uma pedagogia invisível numa idade precoce
rizam os diferentes estágios de desenvolvimento. podem ser ainda ser "compensadas mais tarde
- não estaríamos colocando as crianças das
Os diferentes discursos regulativos das classes trabalhadoras em desvantagem com a
diferentes pedagogias fazem com que elas adoção do construtivismo, ou, ao menos, com a
tenham diferentes exigências quanto às caracte­ adoção de um construtivismo que ignore as
rísticas com que o aprendiz chega à escola e, bases sociais e materiais da educação e da
portanto, quanto ao tipo de processo de sociali­ Pedagogia?
zação predominante na família. Quando há A aprendizagem institucionalizada não se
congruência entre a socialização familiar e a dá no terreno imaculado e neutro que os pres­
Pedagogia, como no caso das classes médias supostos intelectualistas e naturalistas do cons­
dedicadas ao campo simbólico (socialização trutivismo nos fazem crer. As condições mate­
aberta na família- pedagogia invisível na escola) riais de existência são uma pré-condição para a
não há interrupção no processo de transmissão aprendizagem de toda cultura legítima - e é
e, portanto, há sucesso escolar (e social), pois, disto que trata a educação institucionalizada -
como diz Bernstein, o currículo requer dois como bem demonstra Bourdieu (1984, p. 54).
locais de aquisição. Além disto, as diferentes ·Contrariamente ao que certas teorias mecani­
pedagogias também fazem diferentes exigências cistas sugeririam·, diz ele, ... a ação pedagógi­

quanto ao contexto pedagógico da família. O ca da família e da escola opera no mínimo tanto


fato de que as pedagogias invisíveis se centrem através das condições sociais e econômicas que
no processo, por exemplo, faz com que os pais são a pré-condição de sua operação quanto
das crianças da classe trabalhadora tenham através dos conteúdos que inculca" (Bourdieu,
dificuldade em ajudar seus filhos no processo 1984, p. 54). Faria bem ao construtivismo peda­
de aprendizagem, isto para não falar das condi­ gógico adotar uma noção menos asséptica de
ções de espaço, tempo, silêncio, inexistentes em ·ambiente", um dos elementos de sua famosa
suas casas. equação.
Também deve-se pensar nas exigências A manifestação mais perversa dessa
de ritmo e tempo das diferentes pedagogias. ignorância demonstrada por alguns pedagogos
Uma pedagogia invisível exige um ritmo muito do construtivismo dá-se através da proposição
mais lento e um tempo imprevisível que uma aparentemente progressista de que, sejam lá
pedagogia visível, com seus resultados e se­ quais forem as condições de pobreza e de
qüências claramente delimitados. Isto talvez miséria material, não existe nunca nenhum dano
explique por que as pedagogias invisíveis têm cognitivo irreversível e definitivo. Aqui a tendên­
se limitado aos níveis primário e pré-primário, cia naturalizante do pedagogismo construtivista
em que as famílias não chegam a se preocupar aparece na sua face política mais francamente
com os resultados. É universalmente conhecida reacionária. Por detrás de uma aparência benig­
a tendência à reversão a pedagogias visíveis na, não é possível deixar de ver nessa proposi­
quando se aproxima o secundário. Podemos ção uma justificação ingênua da pobreza.
dizer que no nível primário e pré-primário, as Com todas estas críticas, não se quer
pedagogias invisíveis predominam porque neste subtrair ao construtivismo sua especifICidade e
caso a Pedagogia está voltada para a família (de seu lugar no pensamento e na prática educacio­
classe média, simbólica), onde uma socialização nal. O problema surge quando o construtivismo
congruente é adotada. No nível secundário, o pretende se erigir numa perspectiva global da
referencial não é mais a socialização familiar, educação ou, ainda mais grave, numa teoria
mas as perspectivas da universidade e da social da educação sem os conceitos, constru­
estrutura ocupacional, que não podem, na tos e instrumentais para tal, numa teoria social,
competição, ficar sujeitas às incertezas de uma sem as bases de uma teoria social.
pedagogia invisível. O construtivismo faria bem Como já mencionei anteriormente, a
em refletir um pouco mais sobre as razões pelas própria noção de epistemologia adotada pelo
quais sua adoção não passa daqueles níveis. construtivismo parece bastante restritiva e
Como diz Bernstein (1992, p. 81), se todas as limitada. É uma noção intelectualista que, mais
crianças deixassem a .escola aos 14 anos, não uma vez, deixa de lado os aspectos de constru­
haveria pedagogias invisíveis. E o construtivismo ção social do conhecimento, enfatizados por

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tantos autores, de tantas perspectivas diferen­ para alguma teoria de currículo. Que o construti­
tes. De uma perspectiva mais abrangente de vismo tem a nos dizer sobre o que deve ser
Epistemologia, o próprio construtivismo pedagó­ ensinado, por que deve ser ensinado, etc., além
gico e educacional deveria ser visto como uma de vagos e ingênuos apelos ao valor do conhe­
prática discursiva, nos termos de Foucault. Sob cimento universal? Que tem a dizer sobre as
esta perspectiva o construtivismo seria visto complexas relações ehtre currfculo e cultura?
como aquilo que realmente é: uma prática Outra vez, uma teoria da aprendizagem ou uma
discursiva que tem efeitos práticos sobre a epistemologia psicológica diz respeito ao -como
formação de subjetividades e de identidades, de se aprende-, .não ao -que se deve aprender".
produção de sujeitos, uma prática discursiva Esta última questão exige conSiderações éticas,
que produz efeitos sociais. A própria Epistemolo­ filosóficas e políticas que estão além do alcance
gia construtivista necessita urgentemente de epistemológicodoconstrutivismo, considerações
uma operação de desconstrução epistemológica que não podem ser simplesmente derivadas de
que a coloque no centro daquilo que deve ser teorias psicológicas (Popkewítz, 1987, p. 16).
questionado. Deste ponto de vista, o construti­ É possível que o construtivismo tenha se
vismo pedagógico e educacional talvez seja o instalado tão decisiva e confortavelmente na
problema, não a solução. Ademais, se concorda­ cena educacional brasileira, passando-se por
mos com Popkewtiz e pereyra (1992, p. 23), um projeto educacional de esquerda, devido
segundo os quais, -as práticas reguladoras do exatamente à falta de formulação - por parte
ensino não são apenas resultantes do jogo dos educadores mais politicamente orientados
social, constituindo um lugar de produção social - de um tal projeto. Foi neste vácuo que entra­
do ponto de vista de formação da sociedade-, ram os pedagogos e pedagogas de visão
então precisamos ver o presente predomínio do estreita, munidos, para esta tarefa, de todo um
construtivismo pedagógico não apenas como aparato discursivo que apehas parece progres­
mais uma onda, como mais um inocente modis­ sista, mas que é, na sua própria estreiteza e
mo, mas corno uma prática discursiva que pode miopia política, regressivo e retrógrado. Este
estar agindo regressiv$lmente sobre todo nosso projeto educacional progressista, naturalmente,
esforço para ver a educação institucionalizada ainda está por se construído. Ele deveria, na
como um campo político e social onde se tra­ minha opinião, recuperar diversos dos elemen­
vam batalhas decisivas pelo controle cultural e tos que, nos últimos vinte anos, têm caracteriza­
simbólico da sociedade. É por isto que nenhu­ do a teorização crítica em educação, assim
ma perspectiva intelectualista, psicológica, como os princípios que, desde Marx, têm sido
epistemológica (no sentido psicológico) pode centrais a um projeto socialista de educação,
substituir uma boa perspectiva política, histórica como, por exemplo, a vinculação entre educa­
e sociológica de análise da escola Uma pers­ ção e trabalho. Evidentemente, ainda há muito
pectiva política, histórica e sociológica também· por ser feito em relação a isto. Está claro, entre­
não pode ser construída como mero acréscimo tanto, por tudo que hoje sabemos sobre as
a uma teoria psicológica ou a uma epistemolo­ relações entre a educação institucionalizad;;t e
gia psicológica da educação. Se quisermos ver as estruturas polítiças, sociais, econÔmicas, que
a educação de forma política, é exatamente est� este projeto não pode ter por centro uma teoria
perspectiva que deve estar no centro de nossas da aprendizagem ou uma teoria pedagógica ou
análises. Proceder de outra maneira é esquecer uma epistemologia psicológica, por mais -pro­
as lições aprendidas sobre o papel político da gressistas- que estas pareçam. um projeto
educação institucionalizada progressista e socialista de educação deve estar
Entretanto, mesmo como teoria meramen­ baseado, centralmente, numa lúcida e crítica
te pedagógica, o construtivismo se apresenta economia política da educação e não numa
bastante· deficiente para unia teoria que se alieRada, despolitizada e auto-suficiente psicolo­
pretende globalizante e inClUSiva Não existe na­ gia/epistemOlogia das aprendizagens.
da no construtivismo, por exemplo, que aponte

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Referências bibliográficas

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Tomaz Tadeu da Silva é professor do Departamento de Ensino e Currfculq


da Faculdade de Educação da UFRGS.

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