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ADRIANA F. MARTINEZ
PUC-SP. Doutoranda em Ciências Sociais. Apoio da agência financiadora CNPq.
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Hayek foi professor em Chicago por 12 anos, de 1950 a 1962.
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meios de produção, não apenas é perfeitamente legítima, como tem direito à proteção e ao
incentivo do Estado”, ou seja, aprova-se, no congresso, uma economia de mercado onde haja
condições viáveis para essa prática. Abdicar dos programas de partidos socialistas, ou melhor,
do socialismo marxista externava a adesão ao “jogo da governamentalidade”. O último passo
seria rachar com o keynesianismo inglês e isso, como mostra Foucault, foi realizado em 1963,
novamente pelas mãos de Schiller, que considerou toda planificação um perigo “para a
economia liberal” (FOUCAULT, 2008: 119-121).
Já, o desenvolvimentismo da década de 1950, também denominado de nacionalismo
terceiro mundista, avançou na América do Sul, em especial, na Argentina, no Brasil, no Chile
e no Uruguai, por meio da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL). A
CEPAL é um órgão regional criado em 1948 ligado ao Conselho Econômico e Social
(ECOSOC) da ONU. Trata-se da reunião de especialistas que, nos primórdios da CEPAL,
promoveram estudos para superar o atraso econômico nesta região. Esta Comissão é integrada
por “todos os países da América Latina e do Caribe, junto com algumas nações da América do
Norte [EUA e Canadá], Europa e Ásia, que mantêm vínculos históricos, econômicos e
culturais com a região. No total, os Estados-membros da Comissão são 46 e 14 membros
associados, condição jurídica acordada para alguns territórios não independentes do Caribe 2”.
Foi a partir de uma crítica frontal realizada pelos economistas da CEPAL à economia
agroexportadora que este organismo começou a assinalar como única saída a industrialização,
andando em paralelo com o nacionalismo econômico. O lema era não mais crescer para fora,
mas crescer para dentro, portanto, desenvolver o mercado interno do ponto de vista do consumo
e produção, delegando ao Estado o papel regulador. Em linhas gerais, as medidas propostas
eram: melhorar a distribuição de renda, a reorganização administrativa e fiscal, o
planejamento econômico, estabelecer a reforma agrária e formas locais de colaboração, a fim
de remover deficiências concorrenciais no mercado internacional. Dessa maneira, os técnicos
da CEPAL pretendiam demonstrar a necessidade de formular uma teoria que se adequasse às
condições estruturais de desenvolvimento econômico e social latino-americano. Segundo eles,
havia na região a especificidade de um modo de produção capitalista condicionando as
formações sociais a uma relação de dependência tanto de uns países a outros, quanto de
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Disponível em: <https://nacoesunidas.org/agencia/cepal/> Acesso em: 20 de fevereiro de 2020.
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Fundada em 1947.
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O golpe atuou em duas frentes simultâneas. Uma delas, gerida pelos militares e
apoiadores, exterminou o governo de Allende, enquanto a outra exterminou toda posição
contrária aos Chicago Boys. Previamente, “os Garotos de Chicago mandaram para o almirante
que comandava a Marinha o resumo em cinco páginas de seu programa econômico. A força
naval deu sua aprovação, e daí em diante os Garotos de Chicago trabalharam com afinco para
ter seu programa pronto assim que ocorresse o golpe” (KLEIN, 2008: 87). Segundo Klein,
“oito dos dez autores principais” das quinhentas páginas do programa econômico enviado à
junta militar “tinham estudado economia na Universidade de Chicago” (Ibidem).
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Num Chile democrático milhares de servos das forças armadas foram convocados para
conter cerca de um milhão de pessoas participantes dos protestos de rua iniciados em outubro
de 2019. O estopim foi o aumento da tarifa de metrô em Santiago. No entanto, o milagre
econômico e as estatísticas tão elogiadas pelo Banco Mundial ou pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI) foram cunhadas em cima de um sistema de saúde para poucos, uma
educação que endivida os estudantes por quinze ou vinte anos depois de formados, uma
aposentadoria em mãos de empresas privadas, as quais investem os fundos recolhidos no
mercado internacional “e fazem as perdas registradas serem pagas pelos aposentados”
(SEPÚLVEDA, 2019). Outras pautas estiveram nas manifestações, como a recusa do controle
de toda a água do Chile por algumas multinacionais e o combate às empresas de exploração
agrícola, florestal ou de extração de recursos marinhos em território Mapuche, que, desde a
colonização espanhola, é alvo sistemático das políticas de extermínio. Mas, que nas últimas
três décadas, tal etnia vem realizando uma série de recuperações territoriais enfrentando o
Estado chileno. Em todos os casos mencionados, o Estado deu sempre o mesmo revide:
golpes de cassetete e tiros para defender o milagre econômico chileno. Muitos não
recuaram, a resistência a essas práticas corriqueiras das forças armadas veio como resposta
excepcional diante dos decretos do toque de recolher ou do estado de emergência,
instrumentos esses que legitimam a violência do Estado e, em decorrência, o extermínio. A
bandeira “menos Estado, mais liberdade de empreender” escancara a farsa: é na ponta do
fuzil que se garante a paz social e a continuidade do livre mercado.
Em outubro de 2019, os dados oficiais anunciaram a morte de vinte pessoas no Chile.
O veículo de notícias France 244 informou que, no final de novembro do mesmo ano, ao
menos 230 manifestantes haviam sofrido feridas oculares por impactos de balas de borracha
disparados pela polícia, provocando cegueira parcial ou total. Isso não amainou os protestos,
ao contrário os reforçou, como foi possível constatar nas mensagens escritas em faixas: “até
que viver no Chile não custe um olho da cara”. O jornal Le Monde diplomatique5 acrescenta
centenas de mutilados, milhares de feridos (84 por arma de fogo), torturas, agressões
sexuais, entre tantas outras atrocidades cometidas pela polícia e pelas forças armadas.
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Disponível em: <https://www.france24.com/es/20191129-protestas-en-chile-lesiones-oculares-una-epidemia-
sin-precedentes-en-el-mundo> Acesso em: 23 de fevereiro de 2020.
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Disponível em: <https://diplomatique.org.br/chile-o-oasis-seco/> Acesso em: 25 de fevereiro de 2020.
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Além desses dados, contabilizaram-se até novembro de 2019, 2.643 pessoas presas conforme
o Instituto Nacional de Direitos Humanos6, sem contar as 35.000 detenções e os 23.449 de
processos em andamento7. Contudo: nunca é inútil revoltar-se.
A ditadura civil-militar chilena atingiu seus objetivos e os registrou numa
Constituição, promulgada na ditadura civil-militar (1973-1990) comandada por Augusto
Pinochet (1915-2006), cujo texto consagrou a racionalidade neoliberal. A Constituição foi
remendada pelos governos de esquerda, centro e direita, preocupados em manter intacto o
exemplo econômico. No entanto, nas manifestações recentes, começaram a crescer os gritos
que exigem uma assembleia constituinte para mudar a Carta Magna. A expectativa de muitos
chilenos em acabar de vez com essa Constituição foi interrompida, em março de 2020, por
outra crise: a do novo coronavírus. Sob decreto de calamidade, o presidente em exercício
Sebastián Piñera (2010-2014 e 2018 -) não perdeu a oportunidade de restringir a circulação
de pessoas, determinando, novamente, a intervenção militar. O adiantamento do plebiscito,
marcado para abril de 2020, equalizou diferentes setores políticos que respaldaram a
decisão de Piñera. O mandatário, que atualmente tem baixo índice de aprovação, conta com
o apoio de representantes da saúde para se fortalecer no jogo político. Prorrogar o
calendário incumbido de mudar a Constituição acarreta a possibilidade de cancelar
definitivamente o processo constituinte.
Caso haja prosseguimento, certamente serão realizados alguns ajustes na tentativa de
apaziguar algumas vozes, prática recorrente na racionalidade neoliberal. Antes da suspensão,
Piñera, para atender às demandas de uma parcela dos manifestantes, preparou um plano de
reformas na Constituição. Sua antecessora, a socialista Michelle Bachelet (2006-2010 e 2016-
2018), deixou um projeto constitucional pronto que, segundo o atual presidente, pode ser
aproveitado8. Bachelet, apesar de ter ocupado a presidência por seis anos, não implantou essa
mudança, mas instaurou a lei antiterrorista em 2010, a mesma que hoje criminaliza ações
contrárias ao Estado e lutas contra os empreendimentos capitalistas. Tal lei fortaleceu o poder
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Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/10/numero-de-mortos-devido-a-protestos-no-
chile-chega-a-15.shtml> Acesso em: 23 de fevereiro de 2020.
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Disponível em: <http://aradio.blogsport.de/2020/01/15/a-radio-auf-spanisch-chile-entrevista-con-la-
coordinadora-18-de-octubre-sobre-los-presxs-politicxs-de-la-revuelta/> Acesso em: 23 de fevereiro de 2020.
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Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/10/numero-de-mortos-devido-a-protestos-no-
chile-chega-a-15.shtml> Acesso em: 23 de fevereiro de 2020.
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Referências bibliográficas