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A senilidade do capitalismo

(entrevista à Revista Princípios)

Samir Amin
Fevereiro de 2002

Primeira Edição: ....


Fonte: CITAR A FONTE
Transcrição: COLOCARNOME
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Samir Amin é um dos mais prestigiados pensadores marxistas da atualidade.


Intelectual e economista egípcio, diretor do Fórum do Terceiro Mundo em Dakar
(Senegal) e do Fórum Mundial das Alternativas, tem suas teses nos campos da teoria
do desenvolvimento econômico, história, sociologia, cultura e ciências sociais em
estudo e debate por todo o mundo.

Amin expressa uma crítica fundamentada à globalização neoliberal. Defende que se


contraponha à utopia reacionária da globalização neoliberal o projeto de um sistema
mundial policêntrico. Afirma que as políticas neoliberais fracassaram tanto no terreno
social quanto econômico. As políticas neoliberais, identificadas com o seu projeto de
globalização, estimularam a criação de blocos regionais sob a égide do grande capital
financeiro. Essa prática tem demonstrado que os problemas dos povos, em vez de se
resolverem, agravam-se – porque as políticas neoliberais fomentam o divisionismo e
ampliam as divergências entre os países periféricos.

Por outro lado, essa estratégia contribuiu para tornar mais evidente a necessidade de
uma globalização da unidade, da solidariedade.

As obras de Samir Amin estão traduzidas em muitos idiomas. Dentre elas destacam-
se: O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais do
capitalismo periférico; O Intercambio Desigual e a Lei do Valor; A
acumulação em escala mundial; Classes e nações no materialismo
histórico.

Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2002, durante o 2 ° Fórum Social Mundial
em Porto Alegre (RS), pela revista Príncipios. Manteve-se o tom coloquial a fim de
não prejudicar a autenticidade do discurso de Samir Amin, um intelectual
revolucionário habituado a expressar conceitos e idéias profundos em linguagem muito
simples.
Por Pedro de Oliveira

O neoliberalismo – a atual fase do capitalismo


Samir Amin – O capitalismo entrou em uma nova fase do
seu desenvolvimento – e o imperialismo (o estado supremo do
capitalismo) também. O caráter permanente do capitalismo
desde as suas origens e em sua expansão mundial é dividido
em fases sucessivas, com suas características próprias. Esse
processo inclui as relações entre o conteúdo universal e a
periferia, com suas funções específicas em cada uma das
etapas do desenvolvimento capitalista. Em todas as fases
anteriores dos imperialismos (pois o imperialismo sempre
esteve no plural) havia conflitos violentos que ocuparam, em
grande medida, todo o cenário histórico.

Atualmente há algo novo: há um imperialismo coletivo –


dos EUA, da Europa e do Japão. Esse processo se dá de tal
forma que – no entanto – nem o capital nem a burguesia se
tornam transnacionais, pois o capital transnacional e a
burguesia transnacional sempre tiveram raízes em um país do
centro. Não há nem mesmo um capital transnacional europeu
– há um capital transnacional britânico, francês, alemão, mas
não europeu. E, no entanto, há suficientes interesses comuns
para governar o mundo, no conjunto do sistema mundial, a tal
ponto suas contradições e seus conflitos se apresentam como
secundários.

Defendo a tese de que entramos numa fase de


um imperialismo coletivo . E por que existe esse imperialismo
coletivo ? A hipótese que levanto para provocar a discussão é
a seguinte: até há uns 30 anos, o grau de centralização do
capital era tamanho que uma grande empresa, para se firmar
como tal, deveria ser capaz de levar vantagem sobre a
concorrência oligopólica. Não estou falando da concorrência
que consta nos manuais do capitalismo imaginário e do
discurso dos líderes, mas num grande mercado nacional – quer
seja o mercado dos EUA, o maior, ou então os mercados da
Alemanha, da França, da Grã-Bretanha, talvez até do Mercado
Comum Europeu. O tamanho do mercado para o qual as
grandes empresas devem-se direcionar para entrar no jogo é
um mercado de centenas de milhões de compradores solventes
potenciais. Seja isso para uma nova marca de carro ou de outra
mercadoria, com exceção dos produtos de consumo mais
banais, mais comuns. E para que essas empresas consegam
impor-se num mercado desse tamanho passam por uma
espécie de “torneio”. Primeiro há o “torneio” nacional, do qual
sai um vencedor, que irá enfrentar o mercado internacional.

O capitalismo procedeu dessa forma durante séculos, até


há uns 30 ou 40 anos. Agora há uma fonte de informações
ditadas pelas escolas norte-americanas. É preciso, de vez em
quando, verificar o que preconizar para a gestão dos negócios
– não para se deixar impressionar pela inteligência ou pela
profundidade da análise, mas pelo tipo de raciocínio e de
informação que desenvolvem. E o que se descobriu? Uma
grande empresa deve ganhar a batalha num mercado
constituído de “n” compradores eventuais: mil milhões – mais
do que a população dos EUA e da Europa somadas. São todos
juntos que participam do Mercado Mundial. Dito de outra
forma, a multiplicação da centralização do capital deu um salto
qualitativo e o “primeiro torneio” – o das eliminatórias
nacionais – não existe mais.

Agora tudo acontece pela Internet. As grandes empresas


que surgem com novos produtos lançam-se diretamente no
mercado mundial pela Internet. Há a consciência de uma
guerra de negócios. Assim, sabe-se que a tarefa do capital e
da burguesia transnacionais, agora, é administrar
coletivamente esse Mercado Mundial, o que não os impede de
se destruírem entre si. Mas é a regra do capitalismo, seja no
mercado nacional ou em qualquer outro mercado. Essa é a
novidade. Vivemos sob esse imperialismo coletivo.

A senilidade do capitalismo e a nova direita

O que chamamos de uma nova direita compreende os


social-democratas e os socialistas que se formaram com o
neoliberalismo e a atual “globalização”. Defino essa nova
direita como a adesão coletiva ao Mercado Mundial, regida por
dois princípios: o neoliberalismo e o imperialismo.

Como se pode gerir coletivamente esse Mercado Mundial?


Nessa questão surgem dois aspectos: o caráter senil do
capitalismo e a necessidade de gerir o Mercado Mundial com
uma violência inédita e cada vez maior – devido à característica
senil do imperialismo coletivo.
Primeiramente, analisemos esse sistema, senilizado. Em
torno disso surgiram estudos, há uns 30 anos, a respeito do
capitalismo que apresentava características novas, e tardias.
Foram feitas boas análises, por exemplo, a respeito da crítica
à globalização atual, ou a leitura crítica da atual revolução
científica e tecnológica.

Há também um discurso dominante, do poder, a respeito


da revolução tecnológica, que se proporia a resolver todos os
problemas da humanidade, etc. Essa revolução tecnológica
decompõe de forma atual a organização do trabalho. Ela não
aboliu as classes, mas decompôs as formas internas da
organização das classes e as recompõe. Estamos num período
impreciso, de onde decorre a fraqueza, porque as classes
decompostas ainda não foram recompostas. Portanto, é um
momento favorável a uma ofensiva do capital. Houve o
financiamento (etc) com várias nuances. Acrescento as
características de senilidade, principalmente em dois níveis
mais importantes. Um relaciona-se a essa revolução científica
e tecnológica, pois todas as revoluções científicas e
tecnológicas internas, desde a primeira Revolução Industrial e
Têxtil, a construção de estradas de ferro, o petróleo, o
automóvel, o avião, a eletricidade, tudo deslocava o trabalho
direto e indireto da produção e da média da produção, o que
significa que tudo reduzia o emprego a uma posição relativa à
produção final, mas exigia maior relação informativa e do
emprego no setor forte, o que dava ao capital um meio de
tomar consciência da realidade.

O capital é a propriedade do capital , e a propriedade dos


meios de produção segue cada etapa da Revolução Industrial
e têxtil. O controle tornava-se cada vez mais forte e definido
pelos pedidos desse sistema de produção. A atual revolução
tecnológica e científica tem uma natureza nova, por se apoiar
em dois ramos novos: a informática e a genética. As duas
permitem um aumento gigantesco da produtividade. Deve-se
examinar essa revolução com todos os perigos que comporta,
pois suscita uma questão: produzir o quê? para fazer o quê?
Não podemos comemorar essa característica nova, que levou
a uma fase com um grau de conhecimento científico, que
permitiria estabelecer outras relações sociais, desenvolver
valores e riquezas, que permitiria pelo menos resolver todos os
problemas materiais da humanidade de uma forma bastante
conveniente. Não é o caso, porque permanecemos nas relações
da produção capitalista, o que, em princípio, leva a perguntar
quem é o dono desses meios. Mas o capital vale menos. Aquele
que controla para ter o controle de tudo significa pouca coisa,
pois pode ser um novo software, o que significa que entramos
na seriedade e na duração da crise.

O desemprego está se alastrando. O trabalho direto não é


deslocado para um trabalho indireto, mas para o desemprego.
Ou seja, o capitalismo, como um sistema em expansão – da
exploração, é claro – se expande de forma que seja aí que a
capacidade de produção se desenvolva. É o primeiro ponto
da senilidade. Eles trabalham como se toda a revolução
industrial tivesse ocorrido num mundo ideal, sem classes. O
mundo poderia trabalhar como num manual, mas não é o que
acontece.

A segunda característica da senilidade : em todos os


Estados considerados inferiores os imperialistas eram
agressivos, numa posição de conquistadores, e o capital
arrebanhado era exportado para fazer coisas que não fazia nos
países de origem: lançava as estruturas do centro para a
periferia. etc. Vieram construir estradas de ferro no Brasil,
portos marítimos etc. Exportar para lançar a estrutura material
da exploração do capitalismo-imperialismo. Se observarmos
como funciona o sistema imperialista de hoje, verificaremos
que é uma caricatura. O centro de tudo – os EUA – não exporta
capitais, só importa. É o único país do mundo que vive muito
acima de suas capacidades – o que leva à definição de parasita,
de um indivíduo senil –, que vive graças à pensão que recebe
do trabalho dos outros. Perante tamanha exploração ninguém
reclama. É a segunda marca da senilidade . Como há
um imperialismo coletivo , os outros parceiros o alimentam –
caso dos europeus e dos japoneses. Com essa sistemática,
cada país paga para manter esse cadáver ambulante.

Terceira característica de senilidade : no nível


ideológico, a burguesia, a cultura burguesa é portadora dos
valores universais de conquista, valores universais
terrivelmente corrosivos da relação de exploração, a relação de
classes, de trabalho, baseada na cultura das Luzes, com seu
racionalismo. O terceiro aspecto dessa senilidade é o abandono
dessa cultura universal. Se mantivermos a ideologia
dominante, o discurso dominante de hoje, teremos uma fonte
norte-americana, fabricada pelos norte-americanos. É uma
ideologia pobre, não é universalista, é uma mistura de
comunidade, de especificidade, de não sei mais o quê. O
capitalismo sempre exerceu a prática política fragmentada,
mas não ousou criar uma legislação ideológica e cultural para
colonizar, para senilizar, para universalizar a cultura.
Colonizar, na verdade, é explorar por explorar, mas a
legislação existe aí para nada.

Estamos sob essa ideologia, que eu classificaria de magra,


de uma magreza terrível, com um discurso vazio a respeito da
adversidade, da especificidade religiosa, cultural etc, um traço
incrível, um substituto dos valores universais, com um
empobrecimento da democracia, que chegou ao nível de
palhaçada com as eleições dos norte-americanos.

Quarto aspecto da senilidade : nós, que sofremos tudo


isso, parecemos uma excrescência da própria natureza, porque
eles acham que somos diferentes porque somos muçulmanos,
hindus, negros, porque somos não sei o quê. Ou seja, é o
abandono da referência universalista o quarto elemento da
senilidade. E foi Pablo Casanova quem percebeu isso primeiro,
há alguns anos, levando-nos a refletir a respeito de seu estudo
da nítida transformação do tipo de ser que é o burguês. Mas as
classes dominantes, na história do capitalismo, quer seja o
burguês empreendedor, industrial, da Provence, da Alemanha,
da Inglaterra ou da velha aristocracia luso-brasileira do
Nordeste, o conjunto dessas classes constituem as classes
exploradoras, as classes dominantes, claro, mas elas tinham
um quadro de referência, que na ideologia burguesa se
chamava de direito burguês, de Estado de Direito. Eles tinham
também uma hegemonia cultural, que proporcionava uma
espécie de legitimidade ao seu poder. Eram ladrões,
usurpadores, concordo, mas não tinham a ousadia observada
junto a todas as classes dirigentes dos EUA, do México, de
qualquer país da Europa ou da África. A burguesia sempre teve
seu domínio na política, com seus bandidos, mas dominava os
acontecimentos e, eventualmente, punia. Mas, agora, é o que
se chama de degradação da democracia, de escândalo
permanente. Não estou falando apenas do pequeno escândalo,
da pequena corrupção de ordem política, mas, do
comportamento mafioso, sem respeito pelo Estado de Direito.
Isso vem dos grandes capitalistas. Provavelmente, espero, vão
estourar em alguns dias os escândalos dos grandes banqueiros,
dos grandes financistas. E o presidente dos EUA está incluído.
Bush está envolvido na trapaça que as classes médias
detectaram. É ótimo. Mas é também o caso da máfia na Rússia.
A burguesia americana tornou-se mafiosa, isso generalizou-se.
Quando se examinam até mesmo suas teses de classes
dirigentes, atualmente, em relação às gerações anteriores da
burguesia, pode-se verificar a sua pobreza, com o abandono
das referências e isso quer dizer também que é uma crise
hereditária, que passa de uma geração a outra. São bandidos,
como os da Máfia, de forma que o seu momento de glória
desapareceu. Portanto, o que pode esse capitalismo senil
oferecer ao mundo? Vocês percebem o caso de Tony Blair, que
abriu a Grã-Bretanha à “concorrência” a tal ponto que agora há
firmas coreanas que se instalaram na Escócia, porque
encontram ali um mercado melhor do que na Coréia. Isso
significa que a social-democracia, que remonta à aristocracia
de ontem, defende uma classe operária num quadro
imperialista. É aí que entram os defensores da aristocracia
operária britânica. E como gerir as periferias industrializadas,
como no Brasil, em Duque de Caxias (RJ), por exemplo? O que
o capitalismo tenta fazer é simplesmente subalternizar a
indústria, por meio de uma política que não é qualificada, pois
o discurso é legitimador de uma abertura à concorrência, de
proteção do monopólio pelo reforço da propriedade intelectual
e industrial, etc. E é assim, pela subalternização completa das
indústrias da periferia. Portanto, quanto mais morta for a
região, mais marginalizada, isto é, não tem mais a função de
se integrar, não tem mais utilidade para o sistema de
exploração capitalista, o que significa que o sistema capitalista
não pode mais atender – nem falo das necessidades, mas da
expectativa – a enorme massa de pessoas. É por esse motivo
que passaram a usar, cada vez mais, os meios violentos. Mas
essa também é uma característica de senilidade do sistema,
que passa a produzir, seguindo sua lógica interna, de forma
massificada, relativizando, isto é, tendo uma hegemonia
política suficiente para as coisas se reproduzam por si mesmas
e, assim, prolifera cada vez mais a violência. Quem é o
responsável por essa reviravolta? O candidato de direito é os
EUA, pois desde 1945 a vantagem comparativa absoluta se
acentuou em relação a todos os outros, não militarmente, não
tomando como referência a tradição militar dos exércitos
europeus – mas numa nova tradição de como matar, de como
massacrar. E eles são eficientes nisso. Portanto, estão na
liderança da violência, do imperialismo coletivo. Quando se
examinam as séries de Guerras – como a do Golfo e outras. –
verifica-se que são guerras sem fim, que são guerras para
instalar uma relação de força contra os povos, com a escolha
de planos estratégicos, de controle militar. Eles não
bombardearam a França ou o Canadá, mas utilizam de uma
maneira diferente e mais ampla os meios policiais – mesmo
entre eles – recorrendo ao novo macartismo. A novidade no
discurso de Bush e dos outros, ultimamente, é que acabaram
convencendo os cidadãos norte-americanos de que os
terroristas estão entre eles. Quem se manifestasse
contrariamente aos neoliberais, às economias mundiais, seria
um terrorista. Acabou se instalando uma super-direita, cujo
programa é demagógico, próprio de uma super-direita, e seus
alvos principais são o aborto, os homossexuais e não sei mais
o quê. E o resto pode ser bombardeado, pois o que importa são
os aspectos de ordem moral. E, assim, os EUA adquiriram uma
força enorme com essa superdireita, que é a base policial do
novo macartismo. Quando se toma como referência um país
como a Itália, onde sobe ao poder um primeiro ministro como
Berlusconi, dizem que é necessário tomar medidas mais
rígidas, por causa do terrorismo. Bem, esse é o plano, a
estratégia, a lógica do funcionamento.

Com a necessidade de o sistema aplicar a violência


não há o perigo de que se instale algum tipo de
neofascismo?

Samir Amin – Talvez, não sei, depende da luta. Apesar de


estar preocupado – eu não sou um especialista na perspectiva
da cultura – não creio que mesmo nos EUA, com todas as
limitações deles, se chegue a esse ponto. Quanto à Europa, sou
mais otimista, pois há tradições político-culturais do partido,
da esquerda, que não permitiriam que as coisas resvalassem
assim.
A democracia quase se torna uma piada com as eleições, e
pode gerar uma ditadura odiosa, que as pessoas receberiam
com prazer, pensando: “vamos massacrar”. Mas, ao mesmo
tempo, essa democracia da tradição radical inscreve-se
totalmente no neoliberalismo. O resultado: a Argentina de
hoje. Qual é a saída? Há duas: uma ruim e outra boa. A ruim
é o restabelecimento de uma ditadura violenta, para chegar à
mesma coisa: ao neoliberalismo. Na verdade, é o que os
americanos e os europeus querem. E, provavelmente, é o que
quer a classe dirigente argentina, seja ela ex-peronista ou ex-
radical. Percebe-se, assim, que todos os discursos sobre o
mercado, sobre a democracia, podem levar a uma ditadura,
não necessariamente militar, mas policial. Essa é uma saída
possível. A segunda saída, à esquerda, passaria pela
convergência muito ampla de forças políticas e sociais,
englobando as classes populares – o principal setor – e as
classes médias usadas pelo neoliberalismo. Elas poderiam
impor a democracia, com uma conotação social – não diria
socialista. Ou seja, com a redistribuição, a retomada da
produção, com a proteção ao mercado interno, aspectos
necessários na Argentina. Isso seria remar contra a maré,
porque as forças políticas argentinas foram tão massacradas e
assassinadas pela ditadura, que para as forças democráticas
que emergiram dela não será fácil construir um futuro
diferente, humanizado. Não digo que seja impossível. É difícil,
e desejo que consigam. Isso significa que chegamos a um
ponto em que a democracia burguesa, sem conflitos sociais, ou
se torna social – com o socialismo –, atendendo às
necessidades reais das pessoas, de forma objetiva, o que não
significa que será construída em dois tempos – mas há gestões
burguesas possíveis – ou, de outra forma, será construída pela
violência.

Talvez fosse bom destacar a cumplicidade europeia.

Samir Amin – Sim, até agora é um fato, e se acentuará se


o projeto europeu for tomado ao pé da letra, pois as burguesias
européias vivem desse projeto de construir a grande Europa, a
maior potência econômica, sobre uma base de tradição
democrática, etc e tal. Eu uso o termo retraimento do projeto
europeu. Atualmente, eu chamo o projeto europeu de vôo
europeu com um projeto americano. Não existe mais distinção,
seja no nível econômico, com o controle de todas as
instituições econômicas, e agora o principal é o Mercado
Comum Europeu. Eu chamo o Banco Mundial de Ministério da
Propaganda, pois se encarrega de fazer discursos do tipo:
“vamos cuidar dos pobres, da pobreza, da saúde”. O
fomentador, como não administra a relação dólar, euro, marco
e iene, é uma autoridade monetária colonial exercida sobre os
outros. O outro fato é o Clube de Capital Transnacional, com
um único Estado por trás: os EUA. A gestão econômica agrada
aos europeus, como vimos no episódio do Comitê Europeu, que
convocou os fundos europeus, e associou-se aos americanos
para pressionar o Terceiro Mundo. E agiu de forma européia.
Os governos europeus, incluindo-se aí os governos socialistas,
preocupam-se com a política da gestão econômica, sob o
comando americano, o que é uma posição que pode lhes
proporcionar um capital transnacional europeu. No domínio
político-comunitário temos a OTAN, que se tornou a expressão
da comunidade internacional. E o que é a OTAN? É uma aliança
assimétrica de governo. Não se concebe a OTAN intervindo sem
a bênção americana. É inconcebível! No entanto, aceita-se o
pacto. Será durável? Eu, que sou otimista, acho que não. Não
porque o capital transnacional europeu entre em conflito com
o americano. Essa é uma ilusão, mas uma ilusão alimentada
pelo nacionalismo europeu, que quer fazer valer o euro e a
futura força armada européia. E a diferença entre o euro e o
dólar é a fragilidade do projeto europeu. Atrás do dólar há um
Estado: o Estado americano. Há um Tesouro, que é o Tesouro
americano. Há um presidente, que é o presidente dos EUA, que
toma as decisões. E o que há por trás do euro? Um
conglomerado de banqueiros irresponsáveis, mesmo perante
seus próprios governantes, mesmo diante do governo europeu,
que não existe. Portanto, não é nada. Parece piada. Mesmo as
pessoas de esquerda da Europa, mais precisamente da França,
defenderam idéias européias e não francesas. É claro que os
europeus podem constituir-se numa força militar comum
européia, pois eles têm a tradição militar, mas não é preciso
aprender o francês ou o alemão quando se entra numa guerra.
Nisso, eles podem ser melhores do que os americanos e
fabricar uma força militar européia. Mas a questão não é essa.
A quem obedeceria esse exercito europeu? Um general pode
ser francês ou alemão, pois eles têm uma boa tradição, mas
não é esse o problema, e sim o comando político: o vôo
europeu dos americanos. Na minha opinião, uma mudança não
pode ocorrer a partir de um credo ingênuo e, infelizmente, ele
se manifesta até na esquerda na Europa. O capital
transnacional europeu tem seus interesses próprios. Eles têm
interesses comuns com o capital transnacional americano e
sabem disso. Eu havia dado o exemplo de Tony Blair, que fez
de sua aristocracia operária o que antes haviam feito com os
hindus. O francês não caminha com os americanos na mídia,
reivindica a exceção cultural, assumindo interesses intelectuais
que não entram em contradição frontal com o capital. Mas a
Europa não é só o capital europeu. Na minha opinião, o sucesso
do Attac como movimento social assinala a diferença. O partido
socialista e o governo socialista fazem uma política neoliberal
hegemonista, em sentido único, e neste momento em que o
partido comunista aceita o governo socialista e mesmo se
teoricamente, na retórica, há alguma reticência verbal, ele está
no governo, aceitando a mesma política neoliberal hegemônica
americana. Attac atua politicamente fora do partido de
esquerda, das forças da esquerda e, em alguns meses, recebeu
o apoio de milhões de militantes reais, mais do que os do
partido comunista ou de outro partido qualquer, a tal ponto que
são os outros que lhe vão fazer a corte, com todo o perigo que
isso comporta. É só um exemplo, pois sabemos que eles não
farão uma revolução. Mas nós sabemos que na Europa há um
potencial de rejeição real ao neoliberalismo americano. Na
minha opinião, vai acontecer algo. Como e quando, não sei. A
priori não quero dizer que serão os partidos comunistas que
irão se regenerar e salvar a sociedade, ou se serão os outros.
Não quero dizer nada nessa linha, porque não tenho uma bola
de cristal, mas talvez nem um lado nem o outro faça nada, o
que seria uma catástrofe. E isso pode acontecer na nossa
história, mas acho que há um potencial real na Europa, que
conserva a esperança.

Qual é o papel da China?

Samir Amin – Faz um ano que não disponho de muita


informação nova a respeito da China. Li um artigo, em várias
línguas, com um ponto de interrogação a respeito do
“socialismo de mercado”, que é a expressão oficial e as
alternativas não são finais, mas são como etapas ou uma
transição. Li a colocação das condições que poderiam ser
aceitáveis ou não uma solução definitiva, uma última etapa
como o momento atual, com a condição de que o socialismo de
mercado seja uma combinação da produção capitalista e de
regulamentação social – não socialista, social – e natural, isto
é, assegurar pelo menos o direito da regulamentação da
distribuição da renda em grande escala, com

1. Uma redistribuição das redes de abastecimento de


água, para atender as populações desfalcadas pela história
e pela geografia;
2. Assegurar a solidariedade nacional;
3. Um grau de controle das relações com o exterior, que
permitiria impedir ser subalternizado pelo capital
internacional dominante.

Quando examinamos esses três elementos, na realidade


chinesa nos últimos vinte anos, o efeito é discutível, pois não
é nem zero nem 100, fica nos 50, isto é, há uma dimensão
desse peso político de regulamentação real e forte. É o motivo
pelo qual há quem não esteja satisfeito com a China. Os
americanos estão berrando a troco do quê? Se não estivesse
acontecendo nada, não se incomodariam, mas muitos chineses
dizem – com todo o direito e com razão – que é muito pouco,
principalmente em nome da democracia comunista. É uma
democracia que não renunciou ao utopismo comunista. Quem
pensa dessa maneira? A classe dirigente, o establishment
chinês pensa poder concretizar esse sonho sem necessidade de
falar.

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