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Qual terceira guerra mundial?

: a da rebelião
da pobreza ou a do extermínio dos pobres?

Osvaldo Bastos Neto


osvaldo@fbb.br

Resumo
Desenvolve uma reflexão a respeito do desenvolvimento e da distri-
buição de riquezas, relacionando as formas de repressão à pobreza, no
sentido de mostrar que há uma tendência mundial de extermínio dos
pobres, legitimada através de discursos, ações de governo e multinacio-
nais.

Palavras-chave: Pobreza. Extermínio. Terrorismo. Corrupção.

Which third world war?: the rebellion of poverty or to the extermi-


nation of the poor?

Abstract

It develops a reflection about the development and distribution of wealth,


relating the forms of repression to poverty, to show that there is a world-
wide trend of extermination of the poor, legitimized through speeches,
government actions and multinationals.

Keywords: Violência. Ética. Natureza.

“Estamos todos no inferno [...] Não há solução


[...] Estamos no centro do insolúvel [...]. A morte
para vocês é um drama cristão [...]. A morte para
nós é o presunto diário desovado numa vala [...].”

Marcola

1 Introdução

1.1 Perspectivas do Estado

Aqui temos o antigo problema da (não)intervenção do Estado na di-


mensão socioeconômica. Talvez tenha sido um dos temas mais debatidos
nas últimas três décadas. Crise Fiscal, Déficit Público e Choque do Petróleo
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disputaram a largada. Logo, a Crise da Dívida nos anos 80, devastou
do que havia de chances para os países pobres e com possibilidades
de desenvolvimento tal como Brasil, México e Argentina. Nos anos 90, foi
o momento da Nova Gestão Pública ganhar bandeira. Porém, depois de ao
menos três décadas de debates, teorias e experiências a questão central não
foi respondida: como e quando intervir através do Estado em quaisquer das suas
dimensões?
Quando nos afastamos das reflexões sobre a ética e a moral, surgidas nas
origens e desenvolvimento do pensamento moderno, perdemos o conteúdo
dos paradigmas do nosso tempo. Desta forma, poderemos refletir também,
sobre as consequências da ênfase na razão desprovida dos fundamentos mod-
ernos ético-morais.
É nesse sentido que o papel das elites políticas e econômicas é destaque,
uma vez que, tanto o Estado quanto à dimensão econômica são duas pedras
angulares cujo modelo de relação determina os níveis de desenvolvimento e
bem-estar de uma população específica.
Os questionamentos que orientam este trabalho são vários e, infelizmente,
pouco autênticos, tais como: Em que medida a discrepância de renda interna
a cada país ou até quando ocorre de país para país é resultado de grupos
organizados que atuam estabelecendo relações fraudulentas entre Estado e
economia, tendo como resultado níveis e pobreza e calamidades insuperáveis,
ou como são comumente chamados, estruturais? Qual o papel das elites na
manutenção deste modelo, muitas vezes compondo o que já é possível con-
ceituar de crime organizado? Podemos afirmar que as lutas contra a pobreza
vêm sendo substituídas por políticas sistemáticas de extermínio dos pobres?
A partir destas temáticas mais amplas, serão salientados aspectos específi-
cos na busca de esclarecer o que trouxe de volta esse debate para a atualidade.
O estudo da relação entre Estado e economia não é assunto novo. Entretanto,
só recentemente a questão da corrupção vem ganhando projeção em novos
estudos.

2. A ‘questão-social’ como discurso politicamente correto

Mesmo com os novos jargões da Gestão Pública, a máquina administra-

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tiva do Estado não acompanha as inovações propostas no significado de cada
conceito. Aqui no Brasil, mesmo com reestruturações impostas pelos: Banco
Interamericano de Desenvolvimento, Banco Mundial e vigiadas pelo Fundo
Monetário Internacional, os resultados concretos em termos de bem-estar e
desenvolvimento socioeconômicos foram simplesmente pífios.
No Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, de 1987, as recomenda-
ções quanto aos direcionamentos que os países deveriam tomar estavam bem
claras:
Nos últimos anos, o Banco concedeu aos países em desenvolvimento
vários empréstimos para ajustes estruturais e ajuste setorial, apoiando
mudanças em suas políticas macroeconômica, comercial e industrial
[...]. A longo prazo, as economias industriais de mercado precisavam
aumentar sua flexibilidade econômica, diminuindo suas barreiras ao
comércio e lutando contra a rigidez em seus mercados de trabalho e
de produtos [...]. Os países deveriam passar a ter uma estratégia comer-
cial voltada para fora [...] reduzir os déficits orçamentários [...] inflação
baixa [...] e reforma das regulamentações do mercado de trabalho [...].
Os países que tentaram estas reformas estarão em melhor posição que
os que não tentaram [...]. Diferentes formas de intervenção terão efei-
tos diferentes na economia. Mas, na verdade, o que mais importa, com
frequência, não é se vai ou não haver intervenção, e sim como ela será.
(BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO 1987,
p. 2, 4, 5, 8).

A difusão bastante generalizada dos paradigmas destas instituições multi-


laterais, não costumaram levar em conta o prejuízo que muitas das medidas
aplicadas para economias cambaleantes ou simplesmente pré-capitalistas do
Terceiro Mundo terminaram por causar. Muito pelo contrário, tentam sem-
pre afirmar que os países mais carentes devem acompanhar suas receitas sem-
pre, reformando tais estruturas macroeconômicas no sentido de reproduzir o
modelo colonial, desta vez, de modo muito mais complexo.
Temos aqui apenas uma introdução teórica à temática em questão e, além
disso, fornecer elementos para o entendimento da má distribuição de riqueza
no Brasil, a partir da análise da relação entre Estado e sociedade no nosso
meio.
Apesar do tanto que já se escreveu sobre o assunto, inclusive no Brasil, e
sobre o Brasil, ainda não está muito bem explicado, porque um dos maiores

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produtores de alimentos do mundo possui um dos maiores índices de pobre-
za do mundo e o segundo pior Índice de Acesso à Alimentação da América
Latina e Caribe. Por que reformas e “ajustes” nunca acontecem no sentido
de beneficiar a maioria da população? Por que tanta necessidade de expor-
tar, principalmente alimentos, em meio a um mercado consumidor interno
muito grande, mesmo se só levarmos em conta a parcela da população que
tem alguma capacidade de consumo? Sendo assim, questionaremos alguns
mitos acadêmicos, difundidos também pela mídia, que tentam justificar a
manutenção do atraso brasileiro.
Nesse sentido, torna-se cada vez mais importante a análise da relação
entre a economia formal/lícita e a economia informal/ilícita. Aí, neste inter-
stício, encontraremos razões e respostas para explicar o enigma do subdesen-
volvimento e do atraso.
Na transição entre os séculos XX e XXI a “questão social” volta à cena
com características muito próprias de um momento no qual a palavra crise
está na ordem do dia.
Nesse contexto, podemos afirmar que o mundo apresenta dois níveis de
realidade, em parte antagônicas, ao mesmo tempo em que são decorrestes
uma da outra. Apesar das insistentes previsões em contrário, o antagonismo
entre riqueza e pobreza só fez aumentar nas últimas décadas do século XX,
entre países, regiões e no interior destes mesmos territórios. A concentra-
ção de riqueza foi um fenômeno antes de tudo mundial, mesmo levando em
conta os vários projetos de redução da pobreza exaltados por agências tais
como: FAO, ONU - PNUD, UNICEF, Banco Mundial, BID, etc.
Mesmo que muitos estudos venham mostrando que a principal causa da
concentração de renda seja o desemprego, isto parece não ser uma afirmação
inteiramente real. Ninguém pode negar a importância do emprego na distri-
buição de renda. Entretanto, o que vem sendo pouco enfatizado é a aplica-
bilidade complexa de fatores que envolvem a construção dos fundamentos e
reprodução que vem sendo chamado de qualidade de vida.
Na Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar que ocorreu entre
13 a 17 de novembro de 1996, em Roma – Itália, realizada por governantes
e representantes da comunidade européia, afirmou-se que:
Nós, chefes de Estado e de Governo, ou nossos representantes, reunidos

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na Cúpula Mundial da Alimentação reunidos a convite das Organiza-
ções das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), reaf-
irmamos o direito de todos terem acesso a alimentos seguros e nutritivos,
em consonância com o direito a uma alimentação adequada e com o
direito fundamental de todos a não sofrer a fome. [...] Comprometemo-
nos a consagrar a nossa vontade política e o nosso compromisso comum
e nacional a fim de atingir uma segurança alimentar para todos e á re-
alização de um esforço permanente para erradicar a fome em todos os
países [...]. A produção alimentar aumentou substancialmente, contudo,
dificuldades no acesso aos alimentos, a insuficiência do rendimento a
nível familiar e nacional, para a compra de alimentos, a instabilidade da
oferta e da procura, assim como as catástrofes naturais ou as causadas
pelo homem, têm impedido a satisfação das necessidades alimentares
básicas. (DECLARAÇÃO...,1996, p. 1).

Contudo, analisando o Relatório da FAO, de 1999 – O Estado de Inse-


gurança Alimentar no Mundo, três anos após a reunião da Cúpula Européia,
é possível observar que muito pouco mudou. As populações pobres, princi-
palmente dos países periféricos, continuam sofrendo do flagelo da fome que
tem como causas interesses de lucros e geopolíticos que envolvem três esferas
de poder: a indústria mundial de alimentos dominada por multinacionais
estrangeiras, governos dos países centrais e dos países periféricos. Estes sim,
são os verdadeiros causadores das tais catástrofes causadas pelo homem.
Segundo o Relatório:
Faz três anos, os líderes de 186 países se reuniram em Roma e fizeram
uma solene promessa: reduzir a mais da metade o número de pessoas
padecem da fome até chegar o ano de 2015. [...] As últimas estimativas
correspondem ao período de 1995/97 indicam que no mundo em de-
senvolvimento 790 milhões de pessoas não têm comida suficiente. Esta
cifra supera a população total da América do Norte e Europa, juntas.
[...] Este ‘continente’ formado pelos que passam fome compreende ho-
mens, mulheres e crianças que provavelmente nunca desenvolverão sua
capacidade física e psíquica cem por cento, pois não têm comida sufici-
ente, muitos deles inclusive chegaram a morrer por ter-lhes sido negado
o direito humano básico de alimenta-se.
Os avanços alcançados pela luta contra a fome no mundo são desiguais.
È evidente que não existe uma solução em escala mundial que garanta
bons resultados. [...] Se bem que o número de pessoas subnutridas con-
tinua decrescendo, se trata de uma diminuição lenta [...]. Mesmo que
os avanços sejam alentadores, há uma distância muito grande para ser

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satisfatório. Segundo análises mais detalhadas, o ritmo é muito lento
e o progresso é muito disperso [...]. Na realidade, em muitas partes
do mundo o número de pessoas afetadas pela fome vem aumentando.
(RELATÓRIO..., 1999, p. 4, 5, 6).

Em parte, essa pobreza é decorrente da exploração econômica, construí-


da historicamente, entre países cada vez mais ricos e outros, cada vez mais po-
bres, efetivadas pelas multinacionais estrangeiras, principalmente, nos setores
de alimentos e recursos naturais utilizados como matéria-prima, nos países
industrializados. A participação da famosa indústria de alimentos americana,
United Fruit Company é apenas um exemplo mais notório. Outrossim, este
fenômeno já não é o bastante para explicar a manutenção, até os dias atuais,
do subdesenvolvimento e atraso para quase dois terços da população mun-
dial. Outros problemas ganharam vulto e já se tornam destaque em debates,
estudos nacionais e internacionais. É preciso levar bastante consideração os
posicionamentos dos governos periféricos, frente à cobiça dos países industri-
alizados nos quais aqueles governos, se rendem a tais exigências, sacrificando
o desenvolvimento das suas respectivas economias e por isso, compromet-
endo o bem-estar destas populações.
Um outro exemplo da guerra contra os pobres está na matéria Esterilização:
uma arma política: sob o argumento de proporcionar planejamento familiar,
organizações estão decretando o controle da natalidade no país. Publicada
em: Cadernos do Terceiro Mundo, v. 141, p. 10, 11, julho de 1991. Nesta
matéria constata-se o seguinte relato:
Alcança índices dramáticos o número de mulheres brasileiras, em idade
fértil submetidas à cirurgia de esterilização [...]. Já em 1986, 41,8% das
brasileiras em idade de 15 a 54 anos, que recorriam a métodos contra-
ceptivos, haviam se submetido a cirurgia de ligadura de trompas, que
impede a fecundação. Este percentual equivalia a 6 milhões de mul-
heres, pelos dados do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE). Hoje
segundo cálculos do Ministério da Saúde, as mulheres que recorrem à
esterilização podem chegar a 25 milhões [...]. A resposta pode ser ob-
tida em um memorando especial do governo americano, divulgado pela
publicação Executive Intelligence Review [...]. O memorando revela a
existência de documentos, classificados como secretos nos Estados Uni-
dos até o ano passado, quando foram liberados à consulta. Os docu-
mentos, codificados como National Secutity Study Memorandum- 200,
determinam o controle da natalidade em 13 países do Terceiro Mundo,

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no Brasil em especial. Os outros 12 países são Índia, Bangladesh, Paqui-
stão, Nigéria, México, Indonésia, Filipinas, Tailândia, Egito, Turquia,
Etiópia e Colômbia. [...] O NSSM-200, oriundo do Conselho de Se-
gurança Nacional é datado de 1974 [...]. Tal política se daria através
de abundante financiamento de organismos oficiais norte-americanos,
como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID),
e entidades privadas, como o International Planned Parendhood Fed-
eration (IPPF), que tem sede em Londres mas foi fundada pelo pai de
George Bush. Prescott Bush, cuja subsidiária, no Brasil, é a Bemfam [...].
O documento justifica a política de controle de natalidade, no Terceiro
Mundo, como interesse estratégico dos Estados Unidos. ‘A localização
de reservas conhecidas de minérios de mais alto teor, da maioria dos
elementos, favorece uma demanda crescente de todas as regiões indus-
trializadas, em relação às importações dos países menos industrializados
[...].’ O documento ameaça ainda com ‘uma séria de desastres agrícolas,
que poderiam transformar alguns países menos desenvolvidos em casos
malthusianos clássicos, com a fome de milhões de pessoas [...].’ O docu-
mento orienta as agências multilaterais, no sentido de ‘evitar a expressão
controle de natalidade e utilizar planejamento familiar’ [...]. (ESTERIL-
IZAÇÃO, 1991, p. 10, 11).

Mais recentemente, o cientista político americano Noam Chomsky


(2002), escreveu um artigo A Nova Guerra Contra o Terror, no qual denuncia
as manipulações que ocorrem e que de fato são também, as causadoras das
catástrofes causadas pelo homem.
Para este autor:
Todos sabem que as televisões mandam do mundo [...] comecemos pelo
imediato. Vou falar sobre a situação no Afeganistão [...]. De acordo com
o The New York Times, existem hoje no Afeganistão entre sete e oito
milhões de pessoas no limiar da inanição [...]. No dia 16 de novem-
bro de 2001, o Times noticiou que os Estados Unidos exigiram que
os paquistaneses pusessem fim aos comboios de caminhões que forne-
ciam grande parte dos alimentos e suprimentos para população civil
do Afeganistão. Pelo que pude averiguar não houve reação na Europa.
A ameaça de ataques militares já forçara a remoção dos funcionários
de agências internacionais, alijando os programas de ajuda humanitária
[...]. O Programa Mundial de Alimentação das Nações Unidas, de longe
o mais importante, pôde ser retomado três semanas depois, no início
de outubro, ainda que em níveis mais baixos, e a remessa de alimentos
foi parcialmente restabelecida. Mas não existem mais funcionários de
agências humanitárias dentro do Afeganistão, de modo que o sistema

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de distribuição, que fora suspenso logo depois que os bombardeios
começaram, está prejudicado. A Ajuda internacional foi restabelecida,
mas num ritmo bem mais lento, enquanto agências humanitárias de-
nunciavam com veemência que os pacotes de alimentos lançados por
aviões norte-americanos eram meros instrumentos de propaganda que
provavelmente estavam fazendo mais mal do que bem [...] segundo cál-
culos das Nações Unidas, haveria em breve 7,5 milhões de afegãos so-
frendo necessidades desesperadoras, sem terem sequer pão para comer.
(CHOMSKY, 2002, p. 5, 6).

O meio ambiente, é agora, a bola da vez, exatamente porque agrega os


universos das diversas carências que afligem populações inteiras por todos os
continentes. O acesso à água potável, cada vez mais complicado em várias
regiões do planeta e para um número crescente de pessoas, dá o tom da
questão. Enquanto o aumento da concentração de riquezas ocorre ao custo
da destruição da natureza, não há porque estranhar que o agravamento das
carências induza novos modelos de guerras, terrorismos, nacionalismos e
tudo o mais que o espírito humano em desespero possa elaborar.
As consequências da destruição da natureza não só trouxeram novos
problemas, mas, ao mesmo tempo, agravaram alguns já existentes, tais como
a quantidade e qualidade de terras agricultáveis. Questão que na sua versão
mais grave foi identificada como o fenômeno da desertificação de regiões an-
tes, habitáveis e cultiváveis.
É preciso notar, porém, que as origens e manutenção da pobreza estão
ligadas a muitos fatores convergentes e que, uma explicação do problema,
requer muito mais do que simplesmente reduzir tudo à exploração típica do
sistema capitalista. Quando assim direcionadas, as análises mais sofisticadas
a respeito da questão da fome, chegam facilmente a alguns impasses. Talvez,
o mais importante deles, seja o que podemos chamar do problema da fome
endêmica-estrutural. Usaremos esse conceito para sinalizar aquele nível de po-
breza que se mantém persistente a qualquer tipo de política pública e social.
Para o devido entendimento das populações e espaços geográficos que
têm como características este tipo de problema, seria preciso uma análise caso
a caso, tentando encontrar ao mesmo tempo, variáveis que possam ser co-
muns a todos eles. Ao mesmo tempo, o entendimento do problema não pode
prescindir da observação, da configuração e dinâmica das políticas públicas,
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seus aspectos normativos, a dimensão institucional-organizacional e, além de
tudo, a correlação de forças políticas como determinantes de projetos, que
tornam as ações do Estado viáveis, inviáveis ou simplesmente insuficientes.
O questionamento será então, necessariamente, direcionado também, para
o jogo de interesses que pode estar por trás desta “correlação de forças” que
impede que projetos e instituições cheguem a um bom nível de desempenho.
A polarização riqueza-pobreza traz um outro impasse acompanhado de
um questionamento ético-moral. Se para reduzir a pobreza é preciso aumen-
tar a riqueza, a fome endêmica-estrutural, não terá fim a menos que parte da
riqueza nacional flua através dos mecanismos chamados de políticas públicas
e sociais, com eficiência e eficácia.
Defendemos, aqui, a ideia de que para reduzir a pobreza não é necessário
abolir a riqueza, mas, muitos elementos parecem indicar que, principalmente
no caso brasileiro, a aceleração da acumulação terá que necessariamente di-
minuir devido às estruturas do tão debatido na literatura, modelo brasileiro
de desenvolvimento. E, cabendo lembrar que, desaceleração da concentra-
ção de riquezas, não é o mesmo que acelerar ou desacelerar o crescimento
econômico. Mas ainda falta algo muito importante. Como distribuir renda
sem clientelismo, ou seja, como distribuir renda proporcionando emancipa-
ção socioeconômica? Como evitar que assistência se transforme em assisten-
cialismo? Visto que a distribuição de renda é algo muito mais complexo do
que aumento nominal ou mesmo real de salário, o desafio implica o retorno
à ideia de planejamento e intervenção do Estado e não o seu contrário. A
questão então é quando, onde e como intervir.
Outra questão importante que compõe este quadro são os fundamentos
da riqueza no sistema capitalista hodierno. Não só as grandes fortunas, mas
muitas outras que dão garbosidade a novos-ricos são também de origem du-
vidosa. Em outras palavras, muitas das grandes e pequenas fortunas espalha-
das pelo mundo são de origem ilícita, no todo ou em parte.
As relações de produção no seu momento atual estão muito envolvidas
com a economia informal-criminosa, fenômeno também, próprio do sistema
produtor de mercadorias. O que vem sendo chamado de área cinzenta da
economia é exatamente o nível informal-criminoso que, em quase todos os
circuitos da produção de mercadorias e serviços, já é parte integrante da di-
visão do trabalho. Esta área cinzenta da economia, já faz muito tempo, não se
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restringe apenas àqueles setores “informais” que são consequência das movi-
mentações e ciclos das relações de produção, que têm elevado os níveis de
desemprego.
O papel da economia informal, no Brasil, ainda está para ser entendido.
E, num momento em que, o assim chamado crime organizado transita entre
o mercado formal e informal, com muita habilidade, analisar a dinâmica das
economias sem levar este fator em consideração reduz toda e qualquer análise
a um estudo parcial. Ao mesmo tempo, corrupção tanto no setor público
quanto privado, como vetor importantíssimo para a compreensão do fenô-
meno do atraso, não teve ainda devida atenção. Só recentemente, estudos
pontuais têm dado a devida importância ao problema, principalmente, no
sentido de inserindo-o na dinâmica das políticas públicas e seus resultados.
Tais contribuições podem nos ajudar a compreender as razões para explicar
o porquê de tanto fracasso nos resultados das políticas sociais no Brasil e nos
demais países subdesenvolvidos.
Todas estas questões nos remetem à análise e cruzamento de varáveis, tais
como: gastos sociais nas três esferas de governo, a arquitetura institucional
que determinará a qualidade das políticas públicas, e que conduz à ineficácia
da aplicação de tais recursos; a estruturação do orçamento público e seus efei-
tos na alocação de recursos; os possíveis traços de uma cultura da corrupção;
o abalo da corrupção nas reformas econômicas e políticas; as dificuldades
para uma justiça equitativa e a lavagem de dinheiro, fenômeno muito impor-
tante como forma de injeção de dinheiro na economia formal.
Desta forma, o ciclo da pobreza e do atraso, que se estabelece secular-
mente através de um modelo agrário-exportador, se apresenta sempre atrela-
do às transações e oscilações do mercado internacional, levando nossa econo-
mia e o conjunto das relações sociais a voltar-se para fora. Estes mecanismos
do subdesenvolvimento se tornaram sofisticados, acompanhando a evolução
do capitalismo nos países centrais e periféricos. Todavia, a necessidade de
exportar para manter algum equilíbrio no balanço de pagamentos induz e
mantém a pobreza, uma vez que este ciclo só pode se cumprir se o acesso
ao consumo for restrito para boa parte do mercado interno, gerando for-
çosamente excedentes de produção que se tornam mercadoria de exportação.
Mas o excedente de produção não é o suficiente. É fundamental a restrição à
renda e à propriedade privada para que este “sistema” se mantenha. Este ciclo

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só pode se cumprir se uma expressiva parcela da população for mantida entre
os níveis de pobreza e de miséria, que juntamente com outros mecanismos
regulatórios mais explícitos entre eles, uma estrutura tributária escorchante
que possibilita ao problema da dívida pública, tanto na sua versão interna
como externa, possa ser mantida sob algum controle.
Tudo isso está atrelado ao novo mito do equilíbrio dos gastos de governo.
Não há nada mais natural que num país de cultura perdulária como o nosso
que, também os governos, gastem muito e mal. O problema, então, volta-se
para a difusão da retórica de que a salvação de todos os males econômi-
cos e sociais que nos afligem particularmente os países periféricos está no
equilíbrio dos gastos de governo. Isso tem justificado a redução de despesas
para setores historicamente desassistidos o que só tem agravado as condições
de bem-estar de parcelas significativas de populações periféricas e subdesen-
volvidas.
No debate atual sobre os conceitos de liberdade, igualdade e justiça,
tornou-se quase que esvaziado, sem sentido objetivo, restringindo-se a um
grupo seleto de acadêmicos, restrito até mesmo neste ambiente. Ao mesmo
tempo, a vulgarização de tal debate, em meio ao qual o “politicamente cor-
reto” torna-se uma das faces perigosas do discurso alienante, tem reflexo e
origem muitas vezes no próprio meio acadêmico. Com isso, o emparelha-
mento de conteúdos cada vez mais semelhantes entre o discurso acadêmico
e o que se acostumou chamar de mídia e os próprios governos, demonstra a
pouca criatividade e disposição em refletir sobre possibilidades reais no rumo
à superação do subdesenvolvimento.
Os limites da propriedade privada, e quais os meios justos de adquiri-la
transitam a pelo menos quatrocentos anos entre uma tantas teorias que con-
tribuíram para dar corpo ao que chamamos de pensamento ocidental.
Na situação atual, burocracias que não funcionam e talvez, não seja ex-
agero afirmar que, em muitos casos, são criadas para não funcionar de acordo
com um organograma ou função social definida, podem ser apenas uma das
causas do problema. Dogmas e definições estatutárias ainda são privilegia-
dos, mesmo quando, o equilíbrio e méritos burocráticos disputam espaço ou
equilibram-se entre incompetência e corrupção.

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3 A ética e a moral na teoria política e econômica

O surgimento da ideia de intervenção do Estado e a evolução rumo ao


estado do bem- estar social está inteiramente relacionado com a própria
evolução dos modelos de produção e das idéias e dogmas que vigoraram de
tempos em tempos e de lugar para lugar. Já desde um período mais remoto,
entre os séculos XVIII e XIX, surgem as primeiras idéias a respeito do que
viria a ser chamado de mínimo social. Contudo, é a inexorabilidade do pro-
cesso de exclusão que se amplia e aprofunda com a formação histórica do
sistema capitalista, que chama atenção para a inviabilidade das promessas
de prosperidade típicas do discurso moderno. Os ajustes dos sentimentos e
desejos humanos às regas e valores do êxito social vão se transformar, grada-
tivamente, num novo modelo de relação de produção e manutenção da pro-
priedade no qual, o consumo, torna-se um objetivo de vida. Não por acaso,
a universalização dos valores civilizatórios ocidentais vão se transformar em
expansão econômica e quebra das tradições.
O discurso moderno orientando novas formas de comportamento e con-
trole foi moldando um conjunto de relações sociais, que deu origem ao
sistema capitalista e ao socialista. No conjunto, havia a crença de que se-
ria possível desenvolver um modelo de inserção e benefícios gerais. Por isso,
então, desde o século XVIII, a questão da relação entre Estado e sociedade já
se mostrava presente dentro de um contexto com problemáticas tipicamente
modernas. Entre outras, a que mais nos interessa é a que diz respeito à
propriedade. Ora vista como sinônimo de prosperidade e progresso humano,
ora como origem de todos os males sociais e humanos o debate acerca da
propriedade envolvia outra questão importante: a relação entre a moral, a
riqueza e a pobreza. Todas essas temáticas já vinham caminhando desde a
idade média, mas sempre discutidas a partir de um enfoque religioso.
A racionalidade moderna trouxe estas questões para um enfoque dire-
cionado pela perspectiva de autonomia humana, atribuindo à sociedade o
status de uma construção humana e, por isso mesmo, manipulável através de
técnicas e teoremas científicos. É nesse contexto que está em cena uma das
problemáticas mais caras à modernidade, pelo menos no que diz respeito ao
debate político-jurídico, qual seja, os níveis e possibilidades de racionalidade
e imparcialidade do Estado, na sua relação com a sociedade para a qual foi
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criado para ordenar.
Neste momento, uma indigência estrutural já era percebida e debatida
na Europa do século XVII e XVIII, inclusive como uma ameaça à ordem
social. Nesse contexto, cita Castel (1998, p. 221), tal preocupação que já
existia com o,
[...] risco da queda de um estado em outro, a passagem de uma po-
breza que não criaria problemas se permanecesse estabilizada para uma
forma de privação total que pode desembocar numa explosão de violên-
cia. A maioria dos trabalhadores está situada nessa linha de fratura. Os
responsáveis pela ordem pública não se inquietam mais, como sempre
o fizeram, só com a proliferação do número dos que não trabalham [os
vagabundos e os mendigos assistidos], mas com a precariedade da situa-
ção daqueles que trabalham.

Os observadores da época já identificavam uma tendência do aumento


constante da mendicância. Começa, também, a se especular sobre a rela-
ção entre os novos modelos de organização do trabalho e o aumento da po-
breza. Na nascente sociedade moderna européia e pré-industrial, a pobreza
e a miséria vão ganhando uma dimensão cada vez mais coletiva. Dentre os
elementos que entram em cena, está o aumento da vulnerabilidade das mas-
sas trabalhadoras frente às novas relações de trabalho, cada vez mais liberais.
Ao mesmo tempo, as grandes epidemias e as guerras sempre foram ma-
neiras eficientes de regulação da proporção entre populações e meios de so-
brevivência. Se as guerras não se extinguiram, as epidemias foram ao menos
controladas. Se por um lado os rumos expansionistas da industrialização
capitalista já estavam tomados, os trabalhadores continuavam a procriar e a
tornarem-se cada vez mais pobres, tanto pela exploração, quanto pela escas-
sez de recursos para a alimentação. Por isso, “[...] uma pressão demográfica
que não é mais autorregulada pela morte pesa sobre o conjunto dos trabalha-
dores.” (CASTEL, 1998, p. 223).
A ideia que muito vigorou na Idade Média, de que o pobre, por ser pobre,
era um abençoado perante Deus, vai desaparecendo, proporcionalmente, ao
aparecimento da produção mecanizada e da fábrica. A perspectiva de uma
salvação individual e o conceito de liberdade passam a associar-se aos mod-
elos de produção assim como a noção de pureza do comportamento tornou-

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se mais vinculada à disciplina do trabalho e do consumo. E não por acaso,
a secularização das relações econômicas, sociais e políticas acarretou o que
podemos chamar de uma institucionalização das desigualdades.
Podemos afirmar então: “[...] as desigualdades que, manifestam-se nas
instituições sociais, perpetuadas através delas, têm primordialmente causas
históricas e sociais em vez de biológicas.” (MOORE JUNIOR, 1999, p.
194). Por isso,
Podemos perguntar que obstáculos os membros de uma sociedade civili-
zada deveriam transpor a fim de se estabelecer uma ordem social iguali-
tária e que problemas esta ordem teria de resolver para se manter [...].
Para estabelecer e manter uma sociedade igualitária seria necessário fazer
três coisas. Primeiro, superar ou pelo menos neutralizar os resultados
históricos da força e da fraude que criam privilégios especiais para os
elementos dominantes da sociedade... A segunda missão seria encontrar
métodos de coordenação social que não dependessem da autoridade ou
das relações comando-obediência [...]. O terceiro obstáculo a uma so-
ciedade igualitária deriva da divisão do trabalho [...]. A sociedade iguali-
tária séria tem que encontrar uma forma de recrutar, treinar alocar e
motivar cada uma destas diferentes espécies de trabalho sem recorrer a
diferenças de remuneração, ou, na melhor das hipóteses, utilizando dife-
renças muito pequenas. (MOORE JUNIOR, 1999, p. 193, 194, 195).

No século XVII, o conceito de liberdade esteve mais voltado para o nível


político, porém, não no sentido político-partidário. E, sim, na busca do es-
tabelecimento do que se passou a chamar direitos civis. Mas é evidente que
tais conquistas foram refletindo, antes de tudo, mudanças no significado do
conceito de soberania e consequentemente nos limites do poder do Estado
e suas autoridades. Nesse sentido, a liberdade política acarretaria a liberdade
econômica, porque a primeira possibilitaria o desenvolvimento das habili-
dades individuais em meio às relações de produção.
O século XVIII não foi tão diferente. A liberdade de acesso ao trabalho
teve que ser antecedida por um aprimoramento da liberdade política, ou seja,
do direito a ter direitos, como assim podemos chamar.
Adam Smith é um dos melhores exemplos para ser citado, ilustrando um
contexto no qual instituições medievais conviviam e às vezes se confronta-
vam com instituições modernas. Além disso, contrariando os princípios da

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liberdade moderna, a formação do capitalismo foi visivelmente acompan-
hada por uma apropriação do Estado por parte das classes dominantes e da
pequena burguesia em ascensão.
É nessa dominação e controle socioeconômico, a partir do Estado, que
está o problema moral da origem e manutenção das desigualdades sociais
e da pobreza em Adam Smith (1996). A partir desta problemática, Smith
analisa a questão da seguinte forma:
Três são as maneiras pelas quais a política européia provoca essas
desigualdades. Primeiro, limitando a concorrência, em que se tratando
de alguns empregos, a um número menor de pessoas do que o número
daquelas que de outra forma estariam dispostas a concorrer; segundo,
aumentando em outros empregos a concorrência, além da que ocorreria
naturalmente; terceiro, criando obstáculos à livre circulação de mão-
de-obra e de capital, tanto de uma profissão para outra como de um
lugar para outro. [...] Primeiramente, a política vigente na Europa gera
uma desigualdade muito ponderável no conjunto global das vantagens
e desvantagens dos diversos empregos de mão-de-obra e de capital, ao
restringir a concorrência, em algumas profissões, a um número menor
de pessoas do que aquelas que de outra forma poderiam estar dispos-
tas a participar dela. [...] Os privilégios exclusivos das corporações con-
stituem o meio principal de que se lança mão para atingir esse objetivo
[...]. O governo das câmaras municipais estava totalmente nas mãos de
comerciantes e artesãos, tendo evidentemente cada categoria deles in-
teresse em evitar que o mercado de cada tipo de mão-de-obra específica
ficasse saturado, o que na realidade significava sempre mantê-lo carente
de mão-de-obra. (SMITH, 1996, p. 164, 169).

Para Smith (1996), o desenvolvimento de uma nação é o resultado da


convergência de fatores, a começar pelo aprimoramento da habilidade e
destreza dos indivíduos e a proporção entre os que produzem e os que não
produzem através do trabalho. Desta forma, a divisão do trabalho poderia
dar-se com mais intensidade e expansão sendo limitada apenas pela expansão
e dinâmica do próprio mercado.
As diferenças entre os níveis de habilidade e destreza entre os indivíduos
foram vista, por isso, como algo natural. Mais ainda, as diferenças em tais
resultados são provenientes também, da história-de-vida e profissional de
cada pessoa e “efeito da divisão do trabalho”. Estas diferenças, além da per-
sonalidade de cada pessoa, tinham como causas, segundo Smith (1999, p.

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75), “[...] no hábito do costume [...]”, “[...] na educação ou formação [...].”
Smith (1999) reconhecia que há uma propensão à geração dessa diferença
de talentos entre as pessoas e ao mesmo tempo, salienta que, a divisão do
trabalho é algo fundamental à dinâmica do mercado e, até mesmo, que esta
divisão de funções, complementaria em certa medida as deficiências entre os
homens. Diante da tendência ao intercâmbio, as pessoas poderiam adquirir
bens que não podiam produzir e que suprem as suas necessidades.
No século XVII, anterior ao tempo de Smith, J. Locke já havia elaborado
no seu Dois Tratado de Governo uma teoria sobre a liberdade e a propriedade
privada. Este Tratado iria tornar-se obra inspiradora para todo liberalismo,
até pelo menos, o século XIX. De fato, A. Smith foi muito influenciado
por Locke. O seu liberalismo econômico está orientado pelas concepções de
liberdade e propriedade desenvolvidas no Tratado.
Como reflexo das preocupações de sua época, Locke, ao argumentar so-
bre o conceito de liberdade moderna, estava tentando antes de tudo, uma
saída para o problema trazido pelo Estado moderno, que vinha a ser, o limite
da autoridade. O conceito moderno de liberdade tornou-se atrelado ao de
propriedade, exatamente, porque o primeiro estava imbuído do significado
de independência. Daí, a necessidade de haver condições para o desenvolvi-
mento da propriedade e sua manutenção. Este seria não só testemunho do
desenvolvimento humano, como também instrumento importante para a
independência perante os ditames da autoridade e do Estado.
Esta problemática moderna envolvia também uma resignificação do con-
ceito de soberania. Como estaria resguardada a liberdade e a propriedade se a
soberania ainda estava associada à autoridade do governante? Torna-se típica
deste momento, marcadamente nas teorias de Locke, a argumentação em
favor da soberania da lei tal é o sentido que temos hoje.
Segundo J. Locke (1998, p. 403, 409)
A liberdade dos homens sob um governo consiste em viver segundo
uma regra permanente, comum a todos nessa sociedade e elaborada pelo
poder legítimo nela erigido [...]. Embora a terra e todas as criaturas infe-
riores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma proprie-
dade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem o direito algum além
dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se
dizer, são propriedade dele.

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A contribuição do pensamento liberal se estendeu para além dos temas


aqui referidos. Chegou mesmo a fundamentar a origem do Estado de Direito
e do que veio a ser chamado de Direitos Civis. As transformações históricas,
seguindo os rumos dos Direitos Naturais para os Direitos Civis, trouxeram
o problema da distribuição de deveres e direitos dentro da hierarquia social
moderna, crescentemente orientada pelos debates a respeito da relação entre
a moral e a propriedade privada.
É com o liberalismo que tanto a lei natural, quanto a lei civil, torna-se o
veio para a liberdade. Mas as questões entre poder e lei ou, de outro modo,
governo e direito tomou novos contornos.
A questão da distribuição de riquezas tornou-se tema de debates acir-
rados, quanto mais deixou de lado, os fundamentos morais da propriedade
e da liberdade. Como bem definiu Durkheim (1999), posteriormente, no
século XIX:
[...] a moral é o mínimo indispensável, o estritamente necessário, o pão
sem o qual as sociedades não podem viver [...] a moral nos obriga a
seguir um caminho determinado em direção a um objetivo definido – e
que obrigação diz, com isso, coerção [...] o domínio ético está longe de
ser tão indeterminado; ele compreende todas as regras de ação que se
impõem imperativamente à conduta e a que está vinculada uma sanção
[...]. A solidariedade social, porém, é um fenômeno totalmente moral,
que, por si, não se presta à observação exata, nem, sobretudo, à medida.
(DURKHEIM, 1999, p. 16, 18, 31).

Entretanto, a perspectiva já defendida por Adam Smith, estava longe de


ser unanimidade. Muito pelo contrário, era ferrenho o debate em torno da
propriedade e da sua função social, no sentido de ser ou não um mecanismo
mantenedor da coesão social.
Com posição contrária aos benefícios sociais da propriedade, podemos
citar Rousseau. Sabidamente, Rousseau (1958) defendia a crença da bon-
dade original do homem, que teria sido corrompida pela evolução da socie-
dade civil. Para Rousseau (1958) há dois tipos fundamentais de desigualdade:
a natural ou física e a moral ou política. Para este autor, o processo evolu-
tivo da sociedade civil fez aumentar a desigualdade entre os homens, tendo

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como questão decisiva a propriedade privada. A bondade humana estava
desta forma, corrompida pela sociedade civil e a propriedade. Daí, Rous-
seau mostra que existe uma relação entre desigualdade e modelo de relações
sociais. Sendo assim, modelo social e a desigualdade natural entre os homens
se complementam na composição de um modelo que só pode se reproduzir
aumentando as diferenças entre as classes sociais. Por isso ele afirma:
[...] a desigualdade natural insensivelmente se desenvolve junto com a
desigualdade de relações, e as diferenças entre os homens, desenvolvidas
pelas diferenças das circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais per-
manentes em seus efeitos e, em idêntica proporção, começam a influir
na sorte dos particulares. (ROUSSEAU, 1958, p. 197).

Se para muitos a propriedade privada seria sinônimo de moralidade, para


outros, muito pelo contrário. A lógica em questão era mais ou menos a mes-
ma só que elaborada em sentidos contrários. Para ter acesso e manter a pro-
priedade, seria necessária, disciplina, daí porque, aparece a questão da moral.
Por outro lado, exatamente a busca pela propriedade e sua manutenção é que
levaria à indisciplina e imoralidade. As palavras de Rousseau resumem muito
bem uma das tendências do pensamento de uma época.
Por fim, a ambição devoradora, o ardor de formar uma fortuna relativa,
menos por verdadeira necessidade do que para colocar-se acima dos out-
ros, inspira a todos os homens uma negra tendência a prejudicarem-se
mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para dar
seu golpe com maior segurança, frequentemente usa a máscara da bon-
dade; em uma palavra, há de um lado concorrência e rivalidade de outro,
oposição de interesses e, de ambos, o desejo oculto de alcançar lucros a
expensas de outrem. Todos esses males constituem o primeiro efeito da
propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente. (ROUS-
SEAU, 1958, p. 198).

O avanço do industrialismo fez mudar paulatinamente a concepção so-


bre o trabalho e a sua função na engrenagem das relações sociais. A mudança
apontada por Weber (1975) em função da filosofia de vida oriunda da re-
forma protestante, como este mesmo autor afirma não se fez presente em
todo lugar. Na França, por exemplo, a evolução do capitalismo manteve uma
concepção pejorativa, a respeito do trabalho como “quinhão dos pobres”,
“antídoto contra a ociosidade” ou “corretivo para os vícios do povo” e, apesar
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do reconhecimento do valor econômico do trabalho, coercitividade disci-
plinar e trabalho permaneceram quase sinônimos (CASTEL, 1998).
Paralelo às transformações das relações de produção e do trabalho está
presente também o debate sobre a assistência aos pobres. Este debate é antigo,
toma força e adquire estratégias definidas de ação já com a Igreja, a partir da
Idade Média, mas retoma seu lugar na modernidade onde a ociosidade não é
mais uma ameaça à salvação da alma e sim, ao conjunto das relações sociais
e de produção.
Prosseguindo no percurso destas ideais para entender o nosso tempo é
possível antes de tudo questionar: é possível afirmar que Malthus morreu, ou
melhor até, por que Malthus não morreu?
A teoria de Malthus (1996), elaborada no início do século XIX, durante
muito tempo foi mal interpretada, reduzida simplesmente à relação na qual,
o crescimento populacional e de alimentos seriam incompatíveis.
Com o aparecimento dos alimentos processados e industrializados, ten-
tou-se jogar uma pá-de-cal na obra de Malthus, sem que fosse tentada uma
reflexão madura a respeito da pobreza e da fome, na era do alimento indus-
trializado e geneticamente modificado.
A obra de Malthus, além de ilustrar as preocupações de um contexto,
chama atenção para as dificuldades de se manter coesa e estável, uma
sociedade fundamentada na propriedade privada porém, desprovida de
qualquer preocupação ético-moral. Segundo ele:
[...] estando novamente a situação dos trabalhadores regularmente sat-
isfatória, as restrições ao povoamento são, em certa medida, afrouxadas
e se repetem os mesmos movimentos, retrógrados ou progressistas, com
relação à prosperidade. [...] Este tipo de oscilação não será percebido
por observadores superficiais e pode ser difícil, mesmo para as men-
tes mais perspicazes, precisar seus períodos [...]. Há muitas razões pelas
quais, essa oscilação tenha sido menos óbvia e menos resolutamente
confirmada pela existência do que naturalmente se poderia esperar. [...]
A principal razão é que os conhecimentos sobre a história da humani-
dade que nós possuímos são referentes às classes mais altas. (MALTHUS,
1996, p. 252, 253).
Entre “movimentos retrógrados e progressistas” a tendência predomi-
nante foi à manutenção da pobreza e da fome, uma vez que, alcançado al-
gum nível de prosperidade a negligência abre espaço para a volta dos fatores
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que orientam para o retorno da pobreza e do atraso. A miséria proveniente
da falta de alimento e em função do crescimento exacerbado da população
seria e ainda é uma relação facilmente alcançável e visível dentro de certos
contextos. Mas tudo não se restringe às leis naturais. Apesar de ter afirmado
que “[...] a miséria, é uma consequência absolutamente necessária da lei [...]”
(MALTHUS, 1996, p. 247), muito pelo contrário, o autor está se referindo
à tendência do ser humano à procriação. Por isso então, a questão da moral
perpassa toda a obra de Malthus no seu Ensaio Sobre a População. A questão
moral está direcionada para dois problemas inter-relacionados. Primeiro, a
moral que permeia as relações sociais, uma vez fragilizadas, principalmente
em meio às classes trabalhadores, geraria o aumento populacional e alimen-
taria o ciclo entre aumento da pobreza, miséria e vícios. Segundo, a imorali-
dade do homem no que tange à aquisição da riqueza também contribui para
a geração e manutenção da pobreza e da fome. E nesse sentido, ele afirma:
[...] embora os ricos através de desonestos conluios contribuam fre-
quentemente para prolongar o período de miséria ente os pobres, até
agora nenhuma forma aceitável de sociedade pôde impedir a quase per-
manente atuação da miséria sobre uma grande parcela da população [...].
(MALTHUS, 1996, p. 254).

Esse argumento nos remete, outra vez, para a questão da fome-endêmi-


ca-estrutural. A saída de Malthus está no controle da população para que
se torne equivalente à produção de alimentos. Mas como já foi comentado
antes, no século XX, o surgimento da indústria de alimentos processados
parecia ter ampliado as possibilidades de resolver o problema da despropor-
ção entre alimento e população. Porém, como o próprio Malthus já tinha
observado no início do século XIX, o problema não era somente este; pro-
duzir mais alimentos. Há algo mais, principalmente em termos de distri-
buição. Os conluios desonestos entre os ricos apontados por Malthus já indicam
outras variáveis que podem explicar o problema da pobreza e da fome. Ao
mesmo tempo, ele observou um declínio sensível das populações no que
ele chamou de “[...] os principais estados da Europa moderna [...]” (MAL-
THUS, 1996, p. 25) e chega à conclusão que este fenômeno é resultado do
que hoje podemos chamar de um controle de natalidade voluntário. A partir
do momento em que é possível reconhecer as dificuldades de manter uma
família numerosa evita-se assim a procriação. Contudo, de um modo geral

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a população com menor poder aquisitivo é a menos atenta a estes questões
sobre a manutenção do lar, ao mesmo tempo em que, é neste estrato da
população que ocorrem os mais altos níveis de mortalidade infantil por falta
de alimentação adequada ligada, por sua vez, diretamente à incapacidade
destas famílias de autossustentar-se.
Ao prosseguir sua análise das causas da pobreza e da fome, Malthus se de-
para com problemas, para nós, inteiramente atuais, principalmente quando
falamos em pobreza e fome na América Latina e no Brasil. Leis existem, es-
trutura institucional também, mas não funcionam a contento. Por não ser
um problema novo, já na sua época, Malthus observa que:
[...] as leis dos pobres que foram instituídas na Inglaterra para reme-
diar a frequente miséria do povo a intensidade da miséria individual,
provocam um dano geral numa escala muito maior [...] não obstante
a enorme quantia que é anualmente arrecadada para os pobres na In-
glaterra, ainda exista tanta miséria no meio deles. Alguns pesam que o
dinheiro deva ter sido desviado, outros que os mordomos de igreja e os
provedores dos indigentes da paróquia gastam a maior parte deles em
jantares. Todos concordam que, de uma outra forma, o dinheiro deve ser
muito mal administrado. (MALTHUS, 1996, p. 268).

A partir desta questão, para Malthus (1996) o problema do abastecimen-


to e da eficácia dos mecanismos de proteção à pobreza, estão associados à
oferta e a procura de produtos que compõem a produção de um país. Au-
mentar os recursos financeiros para reduzir a pobreza de nada adianta, uma
vez que, na condição dos limites da oferta dos produtos básicos o aumento
da procura por parte dos mais pobres, com a ajuda financeira, levaria ao
aumento dos preços dos produtos que, por sua vez, faria se repetir o ciclo da
pobreza e da fome. Sendo assim, sempre os recursos estariam insuficientes
para a resolução do problema. Por isso, ele afirma:
Creio ser verdade que não posso, mediante recursos monetários, elevar
o padrão de vida do pobre e possibilitar-lhe viver melhor do que ante-
riormente, sem abaixar proporcionalmente o padrão de vida dos outros
membros da mesma classe [...] se dou a ele somente dinheiro, admitin-
do-lhe que o produto do país permanece o mesmo, dou lhe o direito a
uma parcela deste produto maior do que a do produto anterior, parcela
essa que ele não pode receber sem diminuir a dos outros. (MALTHUS,
1996, p. 268).

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Contraditoriamente, no nosso tempo, em que a produção de alimentos


mantém-se em níveis crescentes, o trabalho, enquanto principal forma de
distribuição da riqueza ou diminuiu ou desvalorizou-se para muitas categori-
as trabalhadoras. O crescimento das economias capitalistas não foi acompan-
hado por uma crescente ampliação das relações de exploração do trabalho.
Nas últimas três décadas, do século XX, quando muitas vezes, populações
inteiras permaneceram entre os níveis da pobreza e da miséria, sem nem mes-
mo terem sido “exploradas”, a questão social volta a ser discutida em função
de problemas muito semelhantes aos que Malthus encontrou na sua época.
Retomamos estes debates a respeito em busca de soluções, mas, de fato,
atuamos através de estratégias de manutenção e reprodução da pobreza com
retóricas de solidariedade. Neste aspecto, a questão se torna muito mais de
ordem institucional, ou seja, quais as possibilidades do Estado desenvolver
uma Arquitetura Institucional capaz de distribuir riquezas?
Seguindo estas ideias, o aspecto normativo pode ser tomado em certa
medida como princípio da análise institucional, uma vez que, segundo Mal-
thus (1996) as leis dos pobres na Inglaterra tendiam a agravar a condição de
vida desta camada da população: “[...] a lei cria os pobres que mantêm [...]”
(MALTHUS, 1996, p. 270). Sendo assim, as leis de proteção aos pobres
eliminam o espírito de independência. O que Malthus identifica é a necessi-
dade do acesso ao consumo acompanhado do crescimento total da riqueza de
um país. Ao abordar o aspecto “institucional” nos referimos ao conteúdo es-
trutural do problema. Sem tais análises a cultura da dependência permanece,
sendo mesmo, reproduzida pelas próprias políticas estabelecidas para reduzi-
la, nos fazendo lembrar, também, do que já havia dito Josué de Castro (1980,
p. 12) “[...] um flagelo só é inevitável quando permanece um mistério [...].”
Ao descrever o clima, o relevo, a fauna e a vegetação quando articulados
ao fenômeno da fome, ele constrói uma Geografia da Fome. Considerando
o Nordeste brasileiro, região de poucos recursos alimentares, deste o perío-
do colonial, foi possível compreender que quando elementos econômicos e
políticos são articulados pode-se entender o mistério da fome. Sendo assim,
Pelo Brasil afora se tem a idéia apressada e simplista de que o fenômeno
da fome no Nordeste é produto exclusivo irregularidade e inclemência
de seu clima. De que tudo é causado pelas secas que periodicamente

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desorganizam a economia da região. Nada mais longe da verdade [...].
São causas mais ligadas ao arcabouço social do que aos acidentes nat-
urais [...]. A luta no Nordeste não deve, pois, ser encarada em termos
simplistas de luta contra a seca, muito menos de luta os efeitos da seca
[...]. Ao arcaísmo da estrutura agrária está intimamente ligado o prob-
lema do desemprego que é sem dúvida um dos fatores condicionantes
da alta prevalência de fome no Nordeste. (CASTRO, 1980, p. 259, 260,
261, 262).

4 Velhos problemas em novos cenários

O século XX passou longe de ser palco das realizações cujos planos e ob-
jetivos já haviam sido traçados desde ao menos o século XVII. Foi mais um
tempo de frustrações quanto aos resultados da ideia de progresso. Regiões
de fome endêmica, já demarcadas no século XIX como: Nordeste brasileiro,
a maior parte do continente africano e a Índia, não mostraram, no século
XX, resultados significativos, quando levamos em consideração os avanços
tecnológicos que envolvem a produção de alimentos.
As experiências espalhadas pelo mundo durante o século XX, possibili-
taram a convicção de que o problema está nas estruturas e dinâmicas de
produção e distribuição de alimentos. Já não podemos falar apenas em uma
Arquitetura Institucional, uma vez que a estrutura e dinâmica do comércio
exterior de alimentos foi, principalmente no pós-guerra, constituída para
beneficiar meia dúzia de multinacionais de alimento. O brasileiro Josué de
Castro (1980) mostrou que muitos dos paradigmas usuais, estabelecidos
pelas agências internacionais, muito pouco explicavam o fenômeno da fome
e do subdesenvolvimento.
Quando o IBGE traçou o perfil sobre a Segurança Alimentar, no Brasil,
referente ao ano de 2006, o próprio termo técnico também logo se inver-
teu para Insegurança Alimentar. Tal relatório levou em consideração estudos
específicos de anos anteriores, conceitos pouco difundidos tais como: Es-
cala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), Segurança Alimentar, In-
segurança Alimentar Leve, Moderada e Grave. Respectivamente: (IA Leve),
(IA moderada), (IA grave) (IBGE, 2006). Este mesmo relatório aborda a
evolução temporal da indigência e da pobreza no Brasil. Em 1977, o Brasil

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tinha 16,8 milhões de indigentes e 40,7 milhões de pobres. Dezenove anos
depois, em 1998, o número de indigentes havia aumentado para 21,4 mil-
hões e o de pobres para 50,1 milhões de pessoas. Segundo a Organização
Panamericana de Saúde (OPS), no início dos anos 90, o Brasil apresentou
algo em torno de 18 mil casos de contaminação de cólera espalhados pelo
país e em toda a América Latina, algo como 572.300 casos de cólera espal-
hados pelo continente no mesmo período (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2006). Um termômetro da miséria que
sempre assolou o continente.
Em matéria publicada em Cartacapital, n. 452 de julho de 2007, Pla-
nos Frustrados: ONU mostra que o mundo continua distante das metas de
redução significativa da miséria proposta, em 2000, o repórter Antonio Luiz
M. Costa, afirma que:
A porcentagem de pessoas passando fome do mundo deveria ser redu-
zida pela metade em relação a 1990. Houve algum progresso entre 1990
e 2000: principalmente em razão do crescimento econômico da China,
da Índia e dos Tigres Asiáticos, a porcentagem de crianças abaixo do
peso com menos de 5 anos – indicador destacado pelo relatório anual
de acompanhamento da ONU de 1º de julho – caiu de 33% para
27%. [...]. O número de pessoas subnutridas nos países periféricos, se-
gundo a FAO, caiu em 26 milhões de 1990 para 1996, mas voltou a
aumentar em 23 milhões até o início do milênio. No mundo inteiro,
o número de famintos era de 800 milhões em 1996, 852 milhões em
2005 e 854 milhões em 2006 [...]. O relatório da ONU comemora uma
aparente redução numérica da miséria absoluta: em 1990 afirma, havia
1,25 bilhões de pessoas recebendo menos de 1 dólar por dia, enquanto
em 2004, esse número teria caído para 980 milhões, o que significaria
uma redução de 31,6% em 1990 para 23% em 1999 e 19,2 em 2004,
o que faz a meta global de reduzir o percentual de 1990 à metade [...].
Mas há razões para pensar que o que está encolhendo não é a pobreza e
sim a régua para defini-la [...]. Resultado: o poder aquisitivo dos pobres
é superestimado, e cada vez mais. A renda de Bangladesh ou Ruanda
aumenta aos olhos do Banco Mundial e da ONU [...]. Parece provável
que a pobreza real tenha estagnado ou crescido [...]. Na Ásia Ociden-
tal ou no Oriente Médio, a miséria cresceu (1,6% em 1990, 2,5% em
1999, 3,8% em 2004), o que não é de surpreender, dada a demolição
sistemática da economia e infra- estrutura de comunidades inteiras no
Afeganistão, Iraque, Líbano e Palestina, entre outros [...]. Nas regiões
onde a redução da pobreza pareceu mais notável e há razões para crer
que nem tudo é ilusão estatística, isso foi acompanhado por um notável
aumento da desigualdade [...]. Mesmo assim, a promessa de dobrar a

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ajuda da África até 2010, anunciada pelo G-8 em 2005, já se mostra
vazia [...]. Mas a ênfase na insuficiência dessa ajuda também obscurece
que muitos dos piores casos de estagnação ou agravamento do quadro
social e econômico dos países mais pobres ocorreram durante a im-
posição, pelo Banco Mundial e pelo FMI, de políticas de privatização e
de abertura comercial e financeira a países frágeis demais para resistir ou
se adaptar. (COSTA, 2007, p. 34, 35).

Outros episódios podem ser relatados como reveladores da guerra contra


os pobres. Segundo matéria publicada em Cartacapital n. 376 de janeiro de
2006, assinada por Leandro Fortes, A Tragédia Indígena, afirma que:
[...] O Conselho Indígena Brasileiro (CIMI) produziu um documento,
no mínimo, constrangedor para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O texto é intitulado Inventário de uma infâmia -Violência contra os
povos indígenas no Brasil - 2005. Montado em setembro do ano pas-
sado e atualizado, agora, em janeiro de 2006, o documento revela que
o número de índios assassinados no País pulou de sete casos, em 2002,
para 38, em 2005. Apenas nos três primeiros anos do governo, foram
106 mortes violentas. Quase o dobro dos 58 óbitos indígenas ocorridos
em todo o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Car-
doso. [...] Ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
o Cimi também contabilizou a morte de outros 136 índios, em 2005,
vítimas, segundo o relatório da entidade, da falta de atendimento médi-
co, fome e desleixo do poder público. Entre eles, 86 crianças: 44 das
quais por desnutrição, 32 apenas no estado de Mato Grosso do Sul.
Além disso, o número de suicídios entre os índios subiu de 18, em 2004,
para 29, em 2005. Quase todos os casos estão relacionados à degradação
cultural dos guaranis Kayowás, resultado de um interminável conflito
de terras também em Mato Grosso do Sul, na região de Dourados. Área,
aliás, onde ocorreu a maioria dos assassinatos de indígenas, no ano pas-
sado [...]. O conselho missionário aponta, entre outras razões, o fato
de a base governista no Congresso Nacional ter sido montada com ad-
versários históricos dos interesses indígenas, sobretudo na Região Norte.
‘Foi feito um acordo no Congresso e Lula usou as terras indígenas como
moeda de troca política, exatamente como os governos anteriores. Foi
um decepção.’ (FORTES, 2006, p. 22).

Em 1989, Cadernos do Terceiro Mundo n. 121, publicou matéria com


o título: Afronta à Humanidade, cujo subtítulo, um tanto extenso, define a

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questão: mais de meio milhão de crianças morreram, no último ano no Terceiro
Mundo, 350 mil delas no continente africano, em conseqüência direta da guerra,
da dívida externa, da instabilidade econômica e da recessão. Segundo o repórter
Antônio Carlos Cunha, (1989, p. 10, 11):
Em 50 países, a morte infantil decorre não apenas da subnutrição, de
doenças imunopreveníveis ou de desidratação diarréica, mas também,
de conflitos armados [...] são crianças que sofrem atualmente as mais
graves consequências tanto das crises militares como econômicas, prin-
cipalmente dívida externa e recessão, que se abateram sobre os países em
desenvolvimento [...]. Em muitas nações, os pobres pouco se beneficia-
ram dos bilhões de dólares, que foram, em geral, irresponsavelmente
emprestados. Agora, ao final da festa e com a chegada das cobranças é
aos pobres que se apresenta a conta [...]. [...] O Terceiro Mundo se viu,
em grande parte, obrigado a adotar políticas de ajustes, numa tentativa
de corrigir os desequilíbrios da balança de pagamentos e, ao mesmo
tempo honrar os compromissos da dívida, manter importações e reto-
mar o crescimento. [...] A África, atormentada por guerras, secas deteri-
oração ambiental e ainda pela dívida externa e a recessão, é o continente
que, de maneira mais dura, tem sido atingido pelos programas de ajustes
econômicos.

Em matéria publicada em Cartacapital, nov. de 2003, n. 267, Dinheiro


no Escuro: os gastos sociais aumentam e os resultados não melhoram. Falta
eficiência. Por Adriana Carvalho (2003, p. 46, 47, 48).
Entre 1995 e 2001, os gastos sociais do governo federal alcançaram
R$ 430 bilhões, de acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea). Somem-se a esse valor o montante aplicado
por estados e municípios e o dinheiro destinado à Previdência Social e
o valor total de gastos sociais no período chega a R$ 1,7 trilhão, cifra
que ultrapassa com folga o PIB brasileiro de um ano inteiro. O número
de pessoas que vivem na pobreza e na indigência no País, entretanto,
não diminuiu no período. Tampouco a desigualdade resultante da má
distribuição de renda. [...] O problema não é falta de dinheiro e sim de
organização, integração de programas nas esferas federal, estadual e mu-
nicipal, focalização das políticas na população mais carente e avaliação
do impacto dos programas. [...] Para começar, não se sabe nem quantos
programas públicos sociais existem no Brasil, já que não há uma lista-
gem de políticas. [...] Outro motivo apontado para a manutenção do ín-
dice de 33% de cidadãos abaixo da linha de pobreza e de 14% em estado
de indigência, além dos conhecidos problemas estruturais, históricos e
econômicos do Brasil, é o foco das políticas sociais. De todo o dinheiro

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aplicado pelo governo em políticas sociais, apenas 20% chega aos mais
pobres. O resto vai para a classe média. [...] Há uma tradição no País
de não medir o impacto dos programas sociais. O que se costuma fazer
é apenas uma contabilidade do fluxo financeiro para mostrar, por ex-
emplo, que em X anos foram construídas X creches com um volume X
de dinheiro. [...] Mas não se avalia de que maneira a construção dessas
creches contribuiu para a melhoria de vida das crianças daquela locali-
dade.

Num país marcado pela corrupção, miséria e má aplicação de recursos,


nada mais ilustrativo do que disse Florestan Fernandes (2007): “É um País
das bananeiras enfeitadas com lantejoulas.” E como mais um exemplo de tal
afirmação temos a matéria de Cartacapital de jul. de 2004, n. 301, A ONU
Verde-Amarela: as agências das Nações Unidas operam com dinheiro do Bra-
sil e cobram para administrar estes recursos. Por Flavia Pardini e Luiz Alberto
Weber (2004, p. 22):
PNUD, UNESCO, OIT, CEPAL, o alfabeto que forma o sistema da
Organização das Nações Unidas (ONU) no país ficou conhecido dos
brasileiros nos últimos dez anos, período em que essas agências aumen-
taram sua atuação, em parceria com o governo e o setor privado, em
áreas críticas como saúde, educação e segurança. O que pouca gente
sabe é que o grosso do dinheiro que move o sistema no Brasil, assim
como a maioria dos países latino-americanos, é do governo. Ou seja, a
grife é da ONU, mas a grana é do Brasil. [...] O sistema ONU tem 19
agências operando no Brasil, com 318 programas em andamento, que
correspondem a um orçamento de US$ 260 milhões, ou R$ 780 mil-
hões. Somente o orçamento do Programa das Nações Unidas para o De-
senvolvimento (PNUD) somou cerca de US$ 1,8 milhão nos últimos
dez anos. [...] Segundo a Agência Brasileira de Cooperação, órgão do
Ministério das Relações Exteriores que centraliza as informações sobre
a ação dos organismos das Nações Unidas no País 92% dos recursos
para os 318 projetos gerenciados pela ONU provêem dos cofres públi-
cos brasileiros e de empréstimos levantados pelo Brasil com instituições
como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Bando
Mundial (Bird). O restante – 8%- é levantado pelas agências da ONU.
[...] Boa parte dos recursos é utilizada na contratação de consultores,
que já foram cerca de 10 mil e hoje beiram os 3,2 mil. Nos últimos dez
anos, época em que o Estado brasileiro se empenhou em enxugar a sua
máquina, muitos dos consultores da equipe de base da ONU no Bra-
sil ocuparam as funções de funcionários públicos, em geral com fartos
salários).

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Ainda, sobre as contas públicas, retratando uma apenas um universo
muito mais amplo e complexo, matéria de Cartacapital, nov. de 2003, n. 266,
Irregularidades a Varejo: uma força tarefa da Controladoria-Geral da União
mapeia a utilização de verbas federais em pequenos e médios municípios. Por
Luiz Alberto Weber (2003, p. 42-43).
Como cartógrafos, eles mapeiam os desvios de dinheiro público em
regiões remotas do Brasil. Desde abril, cerca de 680 analistas de finan-
ças da Controladoria-Geral da União (CGU) esmiúçam a aplicação de
dinheiro federal transferido para municípios com até 300 mil habitantes.
[...] No total, 131 localidades selecionadas por sorteio foram fiscalizadas
[...]. Eles estão no rastro de uma montanha de 60 bilhões de reais, que
é a quantia média repassada pela União para Estados e Municípios. [...]
Ao vasculhar os hábitos e costumes da administração [...] os analistas
localizam indícios de fraudes que parecem gravadas no DNA dos 5.656
municípios brasileiros [...] A tradição brasileira mostra que grupos fa-
miliares que dominam economicamente a região acabam por se tornar
espécies de sócios do poder constituído local [...] O mundo das licita-
ções parece ignorar o que lhe dá essência – o público.

Mas é no livro Confissões de um Assassino Econômico, escrito por John


Perkins, que vamos encontrar a verdadeira dimensão do problema da guerra
contra os pobres. Onde se faz realidade minha afirmação em Hermenêutica
do Crime: “Nada é o que aparenta ser.”.
Segundo este autor:
Jaime Roldós, presidente do Equador, e Omar Torrijos, presidente do
Panamá. Ambos acabavam de morrer em acidentes aéreos. A morte deles
não foi acidental. Eles foram assassinados porque se opunham àquela
fraternidade de chefes de corporações, de governos e de bancos cuja
meta é o império mundial. Nós, os AEs, fracassamos no nosso trabalho
de cooptar Roldós e Torrijos, e outros matadores, os chacais, a serviço da
CIA que vinham imediatamente depois de nós, entraram em ação. [...]
Meu trabalho era encorajar os líderes mundiais a tornar-se parte de uma
vasta rede de relações de trabalho que promove os interesses comerciais
americanos. No final, esses líderes estarão completamente enredados
numa teia de débitos que garante a sua lealdade. Podemos manobrá-
los como quisermos – para satisfazer as nossas necessidades políticas,
econômicas ou militares. Eles por sua vez, sustentam as suas posições
políticas oferecendo ao povo parques industriais, usinas energéticas e
aeroportos. Os proprietários de empresas de engenharia e construção
americanas tornam-se fabulosamente ricos. [...] Hoje vemos os resul-

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tados desse sistema revoltar-se contra a sociedade. Os executivos das
nossas mais respeitadas empresas contratam pessoas com base em remu-
nerações que beiram o trabalho escravo para jornadas escorchantes em
condições de trabalho desumano em fábricas com as piores condições
trabalho nos países asiáticos. As companhias petrolíferas não fazem out-
ra coisa a não ser bombear toxinas nos rios das florestas tropicais matan-
do conscientemente pessoas, animais e plantas e cometendo genocídio
entre culturas seculares. A indústria farmacêutica nega medicamentos
para salvar as vidas de milhões de africanos infectados com o vírus HIV.
[...] Se falharmos no nosso trabalho, uma forma de matador ainda mais
maligna, o chacal, entra em cena. E se o chacal falha, então a tarefa recai
sobre os militares. (PERKINS, 2004, p. 9, 12, 14).

Seguindo esta perspectiva, na qual o subdesenvolvimento periférico é


resultado do antigo “pacto colonial”, podemos citar André Gunder Frank e
Celso Furtado que nos ajudam a compreender melhor a questão.
Para o primeiro:
A situação da atual crise mundial, na qual há uma transferência da
produção industrial do centro para a periferia, não só é diferente, como
também – exagerando um pouco - é precisamente o oposto. Como a
produção industrial destina-se agora cada vez mais à exportação, e a
produção de matérias-primas continua para a exportação, os produtores
já não são os consumidores daquilo que produzem. Portanto, não in-
teressa ao capital que a classe operária desses países tenha uma renda
bastante grande para criar uma procura local efetiva destes produtos;
pelo contrário do ponto de vista do capital, os produtores são apenas
isso e não consumidores. São um custo, um custo salarial sendo do
interesse do capital mantê-lo o mais baixo possível. Se os produtores
não podem comprar mercadorias com seus salários, isso não importa,
porque essas mercadorias não são para ser vendidas no mercado nacio-
nal. A promoção das exportações elimina a assim a base econômica de
uma aliança entre o capital local, a classe operária e os sindicatos nesses
países, havendo uma pressão econômica para reduzir a taxa salarial tanto
quanto possível [...]. Assim, não é por acaso que praticamente todos os
países da América Latina estão hoje nas mãos dos militares (GUNDER
FRANK, 1983, p. 56, 57).

Seguindo uma perspectiva semelhante, para Celso Furtado (1984, p. 10,


11, 13).
O Brasil é um caso exemplar disso que os economistas chamam de mau

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desenvolvimento: os recursos destinados ao supérfluo crescem entre nós
com rapidez, enquanto aqueles destinados a atender às necessidades
básicas da população apenas se movem... Tudo se passa como se a com-
posição da oferta comandasse a distribuição de renda e a alocação final
de recursos... A nova classe média em rápida expansão foi vista como
simples fator de ampliação do mercado, sem vinculação maior com a
esfera política [...]. Como os interesses dos que procuram impor deter-
minados padrões de oferta se confundem com os da minoria de con-
sumidores beneficiados pela concentração de renda disponível para o
consumo, configura-se uma estrutura de dominação social voltada para
o ‘desenvolvimento econômico’, mas destituída de toda sensibilidade
para os problemas sociais. Esse sistema não tem possibilidade de sobre-
vivência sem o amparo de um regime autoritário. Basta que os excluídos
possam organizar-se politicamente para que as fundações da construção
comecem a ceder.

Além de tudo isso, qual é então, o mistério da fome no mundo, e particu-


larmente no Brasil?
Josué de Castro (1980) em Geografia da Fome apontou para questões
que se tornaram verdadeiros desafios para os dias atuais, mas que, entretan-
to, foram repetidas, 30 anos depois, nos anos 70, pelo Relatório Clube de
Roma, publicado no Brasil sob o título: Limites do crescimento: um relatório
do Clube de Roma sobre o dilema da Humanidade, de 1972.
A relação entre produção de alimentos, crescimento populacional e
capacidade do planeta, apontada por Josué de Castro (1980), não deveria se
tornar um impasse. Muito pelo contrário, enfatizou o autor, a necessidade de
se entender porque, já em meados do século vinte, o mundo produzia muito
mais alimento de que havia proporcionalmente em população e o flagelo
da fome, ainda assolava inclusive os países desenvolvidos. Josué de Castro
julgava quase ilimitada a capacidade do planeta de produzir alimentos. Daí
porque numa outra publicação posterior este autor vai discordar das teorias
mathusianas.
O objetivo do autor foi analisar a fome endêmica ou epidêmica, ou seja,
o fenômeno coletivo da fome que atinge grandes massas humanas. Também a
fome parcial ou fome oculta, um tipo de fome que leva à morte, mas que está
diretamente correlacionada e hábitos alimentares. Por isso, poder falar de
vários tipos de fome. Muitas vezes apesar de haver comida não há nutrição.

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31
Para ele, fome e subdesenvolvimento são a mesma coisa. Josué apontou para
uma questão sempre atual, porém como raízes antigas. Ele mostrou o quanto
a questão da terra e sua exploração determinam o subdesenvolvimento. O
modelo do latifúndio e da monocultura voltada, por sua vez, para a exporta-
ção, perpetrou-se e chega ao nosso tempo deixando um rastro de pobreza e
atraso. A fome é então muito mais um fenômeno socioeconômico e também
influenciado por fatores culturais do que um problema meramente climáti-
co e geográfico. Nesse sentido, o autor esteve preocupado com a extensão
do problema e não somente se ela é permanente ou transitória, endêmica
ou epidêmica respectivamente. Além disso, o povoamento predatório, sem
planejamento, contribuiu bastante para que populações inteiras tenham
dificuldade em criar uma estrutura que suporte nos períodos de crise, assim
como, a concentração de terra e os seus resultados, seja na agricultura ou na
pecuária, resultando num regime alimentar insuficiente mesmo diante da
abundância de certos alimentos.
Podemos afirmar então, que o latifúndio e outras formas de concentração
de terra, no Brasil, impediram a passagem para outras formas de produção
agrícola que, por sua vez, vão se refletir no desemprego e na pobreza tanto do
campo quanto nas grandes cidades.
Temos como resultado, realidades expostas denunciando que, por exem-
plo, a necessidade de controlar as populações pobres e miseráveis através da
força e violação de direitos é uma questão Latina, não é nada pontual de um
país ou região específica. O controle dos “morros” e favelas é um problema
latino. As violações sistemáticas das Garantias Individuais destas populações
fazem parte também da dinâmica à qual nos referimos no decorrer deste
estudo.
Além dos problemas estruturais legados à economia, pobreza e atraso, o
tráfico de armas, drogas e prostituição encontram caminho aberto diante
destas condições contextuais.
Não por acaso não é de causar espanto, quando Yuri Orlov personagem
central do filme Senhores das Armas afirma:
Existe mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação no mundo,
isso equivale a uma arma para cada doze pessoas no planeta. A única
pergunta é como podemos armar as outras onde? [...] Não há nada mel-
hor para um negociante de armas do que soldados descontentes e um

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32
almoxarifado cheio de armas [...]. Aqueles 45 anos de ódio recíproco
entre o Leste e o Oeste tinham gerado o maior acúmulo de armas da
história [...]. O fim da Guerra Fria foi o começo da era mais quente de
venda de armas, o bazar das armas estava aberto [...] eu tinha rivais [...]
32 bilhões em armas foram roubados e revendidos só da Ucrânia. [...]
O mercado principal foi a África. Um dos grandes conflitos envolvendo
32 países em menos e uma década. O sonho dos mercadores de armas.
Na época o Ocidente não dava a mínima. Eles tinham uma guerra de
brancos do que sobrava da Iugoslávia. [...] Eu fechei muitos negócios
na Libéria [...] “Terra dos Livres” [...] A pátria dos ex- escravos livres
americanos acabou escravizada por um ditador ou outro desde então
[...]. Cada facção da África chama a se mesma por estes nomes ignó-
beis [...] República Democrática de alguma coisa [...]. Muitas vezes, as
atrocidades mais bárbaras ocorrem quando nos dois lados combatentes
ocorrem chamarem a se mesmos como lutadores da liberdade [...].

Um grande estoque de armas sem inimigos e uma indústria de cocaína


sem consumidores foram os pontos de partida para que, nas três últimas
décadas do século XX, um novo modelo de crime já existente, porém cada
vez mais imiscuído nas dimensões legais do Estado e da burocracia capitalista
tomasse o perfil atual. Tudo começou, marcadamente, nos anos 70, mas só
a democratização e modernização tecnológica dos anos 80, 90 é que podem
nos fazer entender o novo século XXI e o que esperar dele.
Paralelo ao mais explícito Terrorismo de Estado, tal como se observa no
modelo de contenção das populações insubordinadas, ocorreram há muito
tempo e ainda ocorrem verdadeiras políticas de extermínio. Geralmente, aco-
bertadas por slogans e discursos oficializados por porta-vozes de governo e re-
spaldados por um imenso e concentrado poder público e privado midiático,
desenvolvem versões que funcionam de maneira eficaz, como uma cortina
de fumaça, para o entendimento do problema pela grande maioria da popu-
lação.
Já, no início do século XX, atrocidades de toda sorte foram cometidas às
populações andinas em função do lucro por conta da exploração de alguma
riqueza, tal como acontece até os nossos dias, em todos os continentes que
compõem o imenso espaço geográfico do Terceiro Mundo. Em meados da
década de 80, já ecoava pelas publicações da impressa de esquerda, denúncias
sobre cobaias humanas ou populações inteiras como usuárias de remédio

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estragado. Precisamente, em 1986, verificou-se a publicação na imprensa es-
crita, jornais e periódicos, problemas como: “A política de venda de medica-
mentos” veiculada na época aqui no Brasil por Cadernos do Terceiro Mundo,
agosto de 1985, p. 15, n. 92.
O Senado norte-americano aprovou recentemente uma decisão que
proíbe a venda de numerosos medicamentos no país e, ao mesmo tem-
po, autorizou sua exportação. Cerca de 61% dos remédios na América
Central são perigosos para a vida humana. [...] A denúncia foi feita pelo
médico e químico farmacêutico hondurenho Pedro Portillo, catedrático
da Faculdade de Medicina de seu país [...]. Para Portillo, a decisão do Se-
nado norte- americano representa uma ‘violação dos direitos humanos’.
Lembrou que desde 1967 a OMS vem denunciando a introdução de
medicamentos não- examinados, ineficazes e perigosos nas nações sub-
desenvolvidas. Como exemplo citou o caso de uma vacina contra saram-
po que foi aplicada maciçamente em seu país entre 1969 e 1970, antes
de o seu uso ser aprovado nos Estados Unidos. [...] Um caso parecido
aconteceu em países africanos, onde a ‘cimetidina’, um citostático que
provocou vítimas fatais, foi experimentado em hospitais. Atualmente
em Honduras se vende o ‘Falutal’, um anti-conceptivo de ação pro-
longada proibido nos Estados Unidos. (A POLÍTICA..., 1985, p. 15).

Entre os muitos e diversificados exemplos de uma política de extermínio


dos pobres, estão questões que se unem ao grande capital multinacional, com
os interresses de governos locais e estrangeiros.
A assim chamada Indústria Farmacêutica tem um passado moralmente
comprometido, bastando observar do pós-guerra até este início de século
XXI, com muita história para contar. Estas tragédias vão desde testes de no-
vos medicamentos em seres humanos de grupos afastados dos centros urban-
izados, até a venda de medicação estragada ou remédios rejeitados nos países
centrais, pelos órgãos federais.
Talvez a grande questão seja como fazer o homem-massa e massas huma-
nas inteiras entenderem que a Terceira Guerra Mundial já está aí. Talvez, o
contrário também seja até mais verdadeiro e, até, prioritário: não permitir
que a grande maioria das massas humanas entenda o que acontece, ao menos,
atualmente. Como as Garantias Individuais terão que conviver com uma
permanente e sistemática violação de tais direitos por parte de instituições do
Estado, que foram criadas, para proteger tais direitos? Além do mais, o que se

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vê, são catástrofes humanas como fato cotidiano, ainda que, exacerbada pela
mídia como algo necessário. Muitas vezes reduzidas a uma relação de causa
e efeito dentro do universo da Nova Geopolítica mundial e local. Desde que
apontadas como fracasso de políticas públicas até resquícios históricos, talvez
o mais verdadeiro seja, aceitar não só uma convergência de variáveis, mas ao
mesmo tempo uma conivência criminosa.
Entre as reflexões sobre o tema, Negri (2006, p. 80) se destaca quando
afirma que:
[...] o grande problema de hoje em dia é requalificar a guerra num contexto
imperial. Como é possível fazer a guerra hoje? Contra quem se entra na guerra hoje?
Que defendemos hoje? E qual a diferença entre uma operação policial mundial [...]
e aquilo que os jornais chamam de “guerra”? Tudo isso está diante dos nossos olhos.

Como redefinir o que é guerra e no seu contrário o que é paz social? E,


principalmente, as chamadas guerras de baixa-intensidade? Talvez a guerra
já não seja mais um meio político entre duas ou mais nações, e sim, o meio
econômico para a conquista de objetivos. Isto nos confunde ao percebermos
que, para além de um meio político ou econômico a guerra tem se tornado
uma condição permanente. Temos, então, que voltarmos nossa atenção para
a questão do direcionamento dos interesses corporativos multinacionais as-
sociados ao complexo industrial-militar. A guerra não é inevitável, senão a sua
perspectiva causal para uma intensa e, nunca vista, acumulação do capital,
frequentemente, chamada de indústria de armamentos, agora associada a tan-
tas outras.
Talvez, um fato que exemplifique bem esta questão tenha sido o homicí-
dio do brasileiro na Inglaterra, Jean Charles, em julho de 2005. Pouco mais
de um ano depois novas manifestações de protesto, em Londres, ocorreram
por conta de que os agentes envolvidos no homicídio de Jean mataram outra
pessoa, desta vez, suspeita de envolvimento com roubo de armas. Novamente
os agentes da unidade armada CO19 da Scotland Yard davam apoio a uma
equipe do Serviço de Inteligência. Na verdade, estes grupos armados, para
a execução de missões “especiais” sempre existiram e continuam existindo
em todos os países, inclusive nos que proclamam obediência ao Estado de
Direito. São grupos como estes que eliminam os Inimigos de Estado, ou seja,
que fazem o chamado, serviço sujo.

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O que estes eventos denunciaram foi o fato de que o Estado tem também
os seus grupos de extermínio. Já que se faz lugar comum, no mundo inteiro,
apontar a pobreza e as variáveis sobre pobreza vinculadas estritamente a ela
mesma. Em outras palavras, a pobreza e suas consequências é culpa dos po-
bres. Mas a questão que continua buscar respostar e também incomodar é:
por que a pobreza se reproduz em meio à abundância?
De fato, elites corruptas sempre caracterizaram o Terceiro Mundo. Atu-
almente parece novidade vincular pobreza, subdesenvolvimento e corrupção.
Mas não há nada tão novo assim, quando se trata de estabelecer tais relações.
As populações muitas vezes pedem, mas dificilmente toleram o Terror-
ismo de Estado à luz do dia. O homem-massa clama pela execução daqueles
que são colocados como iminente ameaça, mas não pode ter diante de si,
fatos que comprovem a sua responsabilidade nesta tragédia. O sistema precisa
exercer, vez por outra, o assassinato seletivo daqueles que por suas idéias e/ou
ações lhes fogem ao controle. O problema é quando erra o alvo. Aí, tudo que
sempre ficou nas sombras das informações e relatórios confidenciais, vem à
luz, só restando à mídia a possibilidade de distorção e omissão dos fatos.

5 Sobre uma possível conclusão: rebelião da pobreza, guerra e terrorismo


de Estado como controle

A rebelião das massas resulta agora, exatamente de uma exploração sem


consenso. A desilusão leva à violência e ao terror. Quando classes subalternas
ou membros delas percebem que nada irá mudar, rebelião e agressão tornam-
se os únicos caminhos possíveis para a subsistência.
Nesse sentido é muito significativa a análise feita por Marco Willians
Herbas Camacho, o Marcola, apontado como líder da facção terrorista Pri-
meiro Comando da Capital (PCC), cumprindo pena no Presídio de Presi-
dente Bernardes. Numa entrevista para João de Barros, em Caros Amigos,
junho de 2006, ele afirma:
O crime está lá fora. Vão combater lá fora o crime do colarinho branco,
o crime dos sanguessugas, o crime dos mensaleiros. Olha, eu não quero
faltar ao respeito com os senhores, mas estou aqui pagando pelo que fiz,
ou pelo que dizem que fiz. E deputados mensaleiros, sanguessugas, es-

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tão aí, todos absolvidos. Os políticos nunca são responsabilizados pelos
seus erros, pelas suas falhas, enquanto no meu caso sou responsabilizado
(CAMACHO, apud, BARROS, 2006, p. 27). [...] Não é porque eu
cometi um erro que tenho que ser tratado como um monstro, porque o
(juiz) Lalau cometeu um erro e não é tratado como eu sou tratado. E o
erro dele leva ao meu erro, porque ele rouba do povo e deixa todo mun-
do na miséria. Eu sou um pé- rapado, pé-de-chinelo. (CAMACHO,
apud BARROS, 2006, p. 26).

Em outra entrevista, inclusive anterior, que circulou pela Internet a partir


do site de O GLOBO, Marcola sinalizou para o que podemos chamar de
uma nova rebelião das massas: “Vocês intelectuais não falavam em luta de
classes, em ‘seja marginal, seja herói’? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha...
Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né?”
Sobre a mesma questão, o governador de São Paulo em entrevista à Folha
de São Paulo, afirmou: “Na crise do PCC, figuras da minoria branca queriam
a lei do talião. Queriam que se matassem todos, para preservá-los.” (apud
LEMBO, 2006, p. A11).
A repressão aos novos modelos de rebelião das massas parece ocorrer à
parte dos pré- requisitos fundamentais estabelecidos pelo Estado de Di-
reito. E ainda, continuando o problema, em matéria de capa da revista
Fórum, n. 40, julho de 2006, sobre a ação do Estado frente os ataques ter-
roristas do PCC, constata-se a seguinte afirmação: “Operação barbárie: em 9
dias, 492 mortos. Novos fatos apontam para um massacre sem precedentes.”
No corpo da referida matéria encontramos a seguinte afirmação: “O pro-
fessor da Unicamp Ricardo Molina diz que os laudos do IML são mal feitos,
principalmente quando as vítimas são pobres.” (FORUM, 2006, p. 10).
Tudo isso é reflexo também, da dimensão política que se traduz através
do jogo repetitivo de votações ritualísticas e eleições nominais, repetindo
um modelo político-jurídico e econômico que vai reduzindo sua própria
capacidade de ordenamento, não sem a crescente possibilidade de constantes
subversões. Os resultados das lutas pelos direitos se tornam possivelmente
distantes, enquanto o uso e abuso da força, por parte de todos que estão en-
volvidos neste pós-moderno conflito de classes é visivelmente próxima.
Os custos da tolerância inflacionam a democracia, na proporção em que

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as oportunidades de participação e contestação são cobradas, mas quase sem-
pre frustradas. Logo, as porções de interesses a serem levados em consid-
eração nas decisões da dimensão política, aumentaram proporcionalmente,
perante uma crescente incompetência do Estado em ampliar, para além das
questões de renda e classe, a judicialização dos conflitos.
Em outras palavras, quanto mais sofisticada for a “arquitetura institucio-
nal” do Estado, no sentido de proteger os interesses individuais e coletivos
legítimos, maior a possibilidade de um modelo competitivo que resulte no
aprimoramento das partes e do todo. Por outro lado, se eliminar o conflito
pela via da informalidade-ilegal é menos oneroso do que conquistar objeti-
vos através, da tramitação formal-legal, a democracia e o Estado de Direito
acabam por ser reduzidos a ritos e formalidades. Não obstante, a exemplo do
Brasil e da América Latina, a função do voto, no bojo do processo democráti-
co é completamente distorcida. O voto, que é um dos pontos de partida do
processo democrático, torna-se o fim, o objetivo a ser alcançado.
A pobreza no Brasil e na América Latina é tão funcional quanto qual-
quer outro setor da economia. A parcela empregável serve ao mercado formal
de trabalho, os demais, o novo lupemproletariado, presta serviços ao setor
informal-criminoso, pois, contribui para os mercados criminosos das armas,
da prostituição infantil, das drogas e das mortes por encomenda, etc. Essa
criminalidade investe dinheiro no capitalismo formal, exercendo a lavagem
de dinheiro, que sustenta e enriquece setores inteiros da economia formal,
tanto nos países centrais quanto nas economias periféricas.
Tanto matar o pobre quanto manter o pobre, tornou-se um lucrativo
negócio. Tanto a indústria de armamentos quando a indústria da pobreza
administradas principalmente pelas OGNs, estão muito bem, graças a toda
essa tragédia humana. Daí, então, é possível sugerir o questionamento do
conceito de excluído.
Bem ilustrativa de, o quanto é lucrativo no Brasil manter pobres e ig-
norantes, é a matéria de A Tarde, publicada em 17/08/2007 cujo título, já
resume o problema: “MEC afirma haver ‘indícios claros de fraude’ em con-
vênios realizados com sete organizações não- governamentais da Bahia, local-
izadas nas cidades de Camaçari, Salvador e Santa Inês.” Em seguida, “ONGs
investigadas por desviar 3,7 milhões de reais.” (A TARDE, 2007, p. 1). Já no
corpo da matéria temos as seguintes informações:
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Foram nove convênios com casos graves de irregularidades (sete na
Bahia e dois em São Paulo) [...]. Os contratos integram o programa
Brasil Alfabetizado, que tem como objetivo alfabetizar jovens e adultos.
Na Bahia as instituições deveriam ensinar a ler e escrever a 49.573 ci-
dadãos [...]. A suspeita de que algo não ia bem, na parceria com ONGs,
começou há dois meses em são Paulo, quando a imprensa denunciou o
Centro de Educação, Cultura e Integração de São Paulo (Ciesp) [...]. A
relação de ONGs vinculadas ao MEC sob suspeita e indícios de fraude
traz os seguintes nomes: Associação de Inclusão Social da Bahia/BA. As-
sociação de Desenvolvimento dos Jovens da Bahia/BA. Força Jovem da
Bahia/BA. Educar.com/BA. Fundação Humanidade Amiga/BA. Funda-
ção Movimento Cultural Camaçari/BA. Fundação Cultural Ca e Ba/BA.
Centro de Educação, Cultura e Integração de São Paulo/SP. Núcleo
Direito do Saber/SP. (A TARDE, 2007, p. 2).

Neste contexto, no qual a própria sociedade civil, quando se organiza é


para, muitas vezes, seguir os rastros da mesma elite que tanto criticam, como
podem vigorar as Garantias Individuais, sustentáculo do Estado de Direito
e da democracia? Como podemos alcançar menores níveis de desigualdade
socioeconômica se muitos dos que põem a mão no dinheiro público o fa-
zem em causa própria? Temos então a reprodução do modelo colonial num
teatro novo com atores novos, mas com personagens e enredos tão antigos
como o nosso próprio país. Sendo assim, o modelo autoritário e corrupto
se reproduz quase que como mágica neste paraíso tropical. O uso da força é
então justificado para a proteção de uma elite que não conhece outra forma
de ação senão, seguir tais tradições e como a rebelião dos pobres já é um fato,
o uso da força e a interpretação das leis atuam como mecanismos seletivos
de classe. Daí porque afirmamos que, aqui no Brasil, polícia e judiciário são
almas gêmeas que legitimam o autoritário Estado brasileiro.
O problema é que a polícia apanha mais da opinião pública, porque ne-
cessariamente, é uma instituição mais visível aos olhos do povo. Tem que sair
da toca e cair no mundo da rua. Se o cidadão comum passasse a ter real con-
hecimento do sistema, das prisões e condenações de pobres, negros e mulatos
por suposição, da violação grosseira e permanente da maioria dos artigos da
Lei de Execução Penal, diante de todos os operadores de direito deste país,
poderia entender o que significa aqui, almas gêmeas.
O terrorismo de Estado no Brasil é sofisticado. É institucional e por isso a

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necessidade de, principalmente nos momentos de crises e escândalos recorrer
ao jogo das culpabilidades. É reflexo da nossa crise de consciência e institu-
cional. Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada, a culpa foi do assessor ou,
melhor ainda: o problema sempre está na outra instituição... Num país de
tantos bem-feitores é estranho que somente através de propagandas seja pos-
sível renovar e sustentar o mito do paraíso tropical e da esperança.
Um exemplo do que significa a expressão: O terrorismo de Estado no Brasil
é sofisticado, está bem ilustrado no depoimento de Hélio Bicudo (2006) sobre
a chacina da polícia paulista travestida pela imprensa nacional como política
de Segurança Pública.
Em resumo:
Nos primeiros dias de maio de 2007, a polícia de São Paulo executou
no pedágio da rodovia que liga Castelo Branco a Sorocaba 12 pessoas
que, supostamente, iriam assaltar um avião que aterrissaria no aero-
porto daquela cidade, com avultada soma de dinheiro. Posteriormente,
apurou-se que há anos não aportavam naquele aeroporto aviões com
grandes somas [...]. Contudo, um exame mais acurado dos fatos veio a
demonstrar que a chamada ‘Operação Castelinho’ fora uma das maiores
farsas da polícia paulista. [...] É que a polícia estava desprestigiada aos ol-
hos da opinião pública... Esta situação reclamava que se fizesse algo para
[...] restabelecer o prestígio da polícia e a sua confiança por parte da pop-
ulação. [...] Um órgão que funcionava junto ao gabinete do secretário da
Segurança, que responde pela sigla de GRADI (Grupo de Repressão e
Análise dos Delitos de Intolerância), tendo recrutado, com autorização
[ilegal] dos juízes da Corregedoria dos Presídios, alguns detentos conde-
nados por delitos graves, passou a armar, com a ajuda destes delinqüen-
tes, um evento que denotasse a eficiência da polícia. Recrutaram 12 pes-
soas com o objetivo de realizar o aludido assalto. [...] Proporcionaram
armas e a munição, estas sem efeitos letais, e, por fim, um ônibus que os
conduzisse para o local do assalto. [...] Esses homens foram surpreendi-
dos na praça daquele pedágio e sumariamente executados. Ato contínuo,
tratou-se de limpar o local do crime, enviando as vítimas, já mortas,
para a Santa Casa de Sorocaba, e alterando o conjunto do cenário em
que os fatos se deram [...]. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de
São Paulo determinou o arquivamento do inquérito por insuficiência de
provas [...]. O relator, dentre outras jóias que podem ser lidas no voto
vencedor, observou [...] que o fato de os juizes terem violado a lei se
constitui numa atitude compreensível na luta contra o crime organizado.
Quer dizer: pode-se cometer crime para combater crime! [...] Em con-
clusão: o lamentável episódio não terminou, pois devemos esperar
que os fatos que não sensibilizaram o corporativismo da Justiça paulista,

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encontrem seu reconhecimento, primeiro pela comissão e depois pela
Corte Interamericana, cujas decisões são de cumprimento obrigatório
em nosso país. (BICUDO, 2006, p. 1, 2).

Ainda sobre o mesmo caso Castelinho, a Anistia Internacional declarou


que:
Após as revelações sobre o caso do Castelinho, as investigações descobri-
ram provas de um grupo de extermínio que estaria trabalhando dentro
da Secretaria de Segurança Pública do Estado, disfarçado como unidade
especial criada para investigar delitos de intolerância. As investigações
da unidade especial criada pelo Grupo de Repressão e Análise dos Deli-
tos de Intolerância-GRADI, revelaram um esquema em que os detentos
eram soltos ilegalmente da prisão e depois forçados, alega-se sob tortura,
a se infiltrar em grupos criminosos, especificamente o PCC. Uma vez
infiltrados, eles ajudavam os policiais a armarem uma cilada e executá-
los. (RELATÓRIO..., 2007, p. 12).

Neste mesmo Relatório da Anistia Internacional também denuncia que:


Em outubro de 2006, a Polícia Militar ocupou por duas semanas o
grupo de favelas do Complexo do Alemão, no norte da cidade, com
carros blindados e helicópteros. Durante a invasão, a polícia ordenou
que fosse cortado o abastecimento de água e eletricidade em algumas
comunidades. Os moradores reclamaram das ameaças, intimidação, es-
pancamentos e dos danos à sua propriedade [...]. Durante este período,
os moradores não puderam ir para o trabalho, as crianças foram obriga-
das a ficar em casa em vez de ir à escola e outros serviços sociais foram
impedidos. (RELATÓRIO..., 2007, p. 17).

Como se não bastasse, o noticiado roubo de armas de um quartel do


Exército, levou 1.200 soldados a invadirem dez favelas sob o pretexto de res-
gatar tal armamento. Fato denunciado pela Anistia Internacional ao afirmar
que:
O Exército agiu sob jurisdição de um único mandado de busca
fornecido por um juiz militar, efetivamente colocando sob suspeita
dezenas de milhares de moradores. [...] Nem o governo federal, nem
o estadual haviam requisitado a operação, tampouco questionaram o
direito do Exército de assumir um papel para o qual não tem mandato,

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treinamento ou supervisão. A única contestação à operação veio dos
promotores públicos federais, que afirmaram que ela era inconstitucio-
nal. (RELATÓRIO ..., 2007, p. 22).

Por fim, conclui o Relatório da Anistia Internacional (2007, p. 5), sa-


lientando quatro aspectos fundamentais:

• a polícia mal treinada, sem recursos e com pouca capacidade para ativ-
idades de inteligência, o que a torna ineficaz e também vulnerável a
ataques;
• a negligência do Estado com relação aos bairros mais pobres, que se tor-
nam zonas sem lei, onde os moradores sofrem de forma desproporcional
com a violência, tanto do crime quanto da polícia;
• a falta de uma política coerente de segurança pública para longo prazo,
focalizada nas causas básicas da violência e da exclusão social;
• sistema penitenciário à beira do colapso, em que a superlotação, os
maus- tratos dos detentos, a corrupção e o crime organizado estão ar-
raigados.

Nesta era em que vivemos, onde cada um escolhe as regras de comporta-


mento que melhor lhe convém, sem nenhuma ou muito pouca relação com a
dimensão pública, não pode ser no campo político que as exigências de mais
equilíbrio moral irão acontecer. As corriqueiras mudanças e adaptações para
não mudar as estruturas do sistema, fantasiadas de resolução de problemas,
não podem deixar revelar uma reprodução das ilusões para a sedução do
homem-massa.
Ao refletir sobre a Guerra nos dias atuais e como podemos defini-la nas
suas diversas formas de expressão, Enzensberger (2002) nos fala de uma
guerra molecular que se alastra pelo mundo, caracterizada pela ausência de
uma ideologia, aparentado muito mais uma ânsia da agressão vazia. Daí ele
argumenta que:
Há muito que a guerra civil penetrou nas metrópoles. Suas metástases pertencem
ao cotidiano das grandes cidades, não só de Lima a Johannesburg, de Bombaim e
Rio de Janeiro, mas de Paris e Berlim, Detroit e Birmingham, Milão e Hamburgo
[...]. A guerra civil não vem de fora [...]. É sempre desencadeada por uma minoria.
(ENZENSBERGER, 2002, p. 15).

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O autor tenta estabelecer uma relação que caracteriza o atual modelo
de guerra civil que se espalha pelo mundo de maneira indistinta no que diz
respeito a região, classe, renda ou desenvolvimento econômico.
Como consequência, particularmente nos países periféricos, a algo que
nos articula. As guerras moleculares adaptadas a cada lugar. Uma guerra sem
ideologia que torna seus participantes incapazes de distinguir que, muitas
vezes, tudo pode ser reduzido a uma luta de perdedores contra perdedores. A
estes participantes, Enzensberger, chama de autistas, aqueles que, envolvidos
diretamente nesta trama, são incapazes de discernir o que estão fazendo.
Segundo este autor:
O que nos chama atenção em todas elas é o caráter autista dos crim-
inosos, assim como sua incapacidade de distinguir entre destruição e
autodestruição.Nas guerras civis do presente esvaiu-se a legitimidade. A
violência libertou- se completamente de fundamentações ideológicas
[...]. Os guerrilheiros latino-americanos não se incomodam em chacinar
os mesmos camponeses em cuja luta por libertação eles estariam supos-
tamente engajados; conluios com os barões da droga ou com agentes
secretos não lhes parecem problemáticos, mas naturais. O terrorista ir-
landês utiliza-se aposentados como bombas vivas e manda para os ares
carrinhos de bebês... Quem não possui uma pistola é considerado um
verme. (ENZENSBERGER, 2002, p. 16, 17).

No mesmo sentido, Luiz Mir (2004) efetiva uma análise que traduz a
crueza da democracia brasileira, tentando vasculhar os meandros dos discur-
sos que correlacionam Estado e Sociedade de tal forma que o resultado é o
fenômeno das “[...] cidades balcanizadas em guetos irreconciliáveis.” Exata-
mente porque a nossa “República não consegue se dissociar de sua genealogia
[...] o fenômeno ocorre em todo o Brasil, mas agrava-se nas Regiões Metro-
politanas de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba.” (MIR, 2004, p.
35, 60, 82).
Mas é através de John Pilger (2004) que nós voltamos ao cenário mun-
dial e buscamos encontrar uma relação de extermínio dos pobres sobreposta
por valores econômicos, encabeçados pelas multinacionais e governos dos
países desenvolvidos e as espalhafatosas elites periféricas.

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O autor concorda com a tese de que a democracia está sendo reduzida a
um ritual eleitoral e que os interesses econômico-financeiros das multinacio-
nais estão acima de qualquer valor em defesa da dignidade humana. Admite
também, a prostituição intelectual do meio acadêmico quando afirma:
Aqueles que dispõem de recursos sem precedentes para compreender esta prob-
lemática, entre eles tantos professores e pesquisadores das grandes universidades,
omitem publicamente este conhecimento; é provável que nunca antes tenha feito
tamanho silêncio. (PILGER, 2004, p. 13).
Agora, o conceito de guerra ao terrorismo criado pelo subsecretário de
Estado americano, Paul Wolfowitz, conduz metade do mundo a um clima
de terror e insegurança, que só beneficia aos donos do poder. A atual guerra
ao terrorismo substitui o anterior conceito do perigo vermelho nos tempos da
União Soviética e, em seguida, o conceito de guerra contra as drogas, lá pelos
idos dos anos 80.
O extermínio dos pobres, nos países periféricos, pode adotar estratégias
sofisticadas. De acordo com o Comitê de Sanções das Nações Unidas o for-
necimento de óxido nitroso pode ser proibido sob a suspeita de uso bélico,
quando, de fato, é comumente usado em partos cesarianos para deter as
hemorragias das mães e salvar-lhes a vida. Temos então um infanticídio mas-
carado de políticas de sanções da ONU, que têm como suposto objetivo, des-
tituir ditadores. Se os números pudessem vir à tona revelariam que este tipo
de política, das grandes potências, baseadas em retaliações a governos dita-
toriais, jamais tiveram o resultado oficial esperado. É de se suspeitar sobre a
insistência em políticas fracassadas que mais parecem, ações de extermínio
aos pobres e insatisfeitos do Terceiro Mundo.
É neste mesmo contexto, que devemos comparar os índices de crimi-
nalidade e violência infanto-juvenil na América Latina e Caribe. Qualquer
rápida comparação irá demonstrar vários índices com semelhanças de país
para país, principalmente o de vítimas de homicídio por arma de fogo entre
a população jovem e pobre.
Com isso, podemos falar de um modelo estrutural de desenvolvimen-
to socioeconômico e político próprio da região. As tão debatidas teorias a
respeito sucessos e fracassos do desenvolvimento e subdesenvolvimento da
região são apenas parte do problema.
A idéia de um modelo concentrador e excludente, tão exploradas nos estu-
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dos de Celso Furtado, parece ainda conceitualmente inteiramente plausível.
Segundo o Relatório da Anistia Internacional (2007):
Governos poderosos e grupos armados estão deliberadamente instigan-
do o medo para corromper os direitos humanos e criar um mundo cada
vez mais polarizado e perigoso, afirmou a Anistia Internacional no lan-
çamento de seu Informe 2007, a avaliação anual que a Organização faz
dos direitos humanos em todo o mundo. [...] No Brasil, os problemas
nos sistemas judicial, prisional e de segurança pública, entre os quais,
violações sistemáticas dos direitos humanos, contribuem para os níveis
elevados e persistentes de violência criminal. Além disso, o Relatório
aponta a tortura, o acesso à terra e o trabalho escravo como questões que
ainda assolam a população brasileira.

A questão do Estado de Exceção como paradigma de governo (AGAM-


BEN, 2004), é antes de tudo, uma maneira de Interpretar o Estado Policial
que se instalou na América Latina, historicamente constituído.
Em toda a América Latina, terrorismo e guerrilha urbana, traços de uma
guerra civil que se mistura à difusa, variada e complexa “violência urbana”
estimulou enquadramento deste amplo e quase inexplicável contexto na dis-
puta ente o Estado de Direito e o os novos modelos e interpretações sobre o
Estado de Exceção.
Já parece insustentável, a longo prazo, este modelo de Estado no interior
do qual, patrimonialismo, burocracia corrupção e ineficiência funcionam de
forma eficaz para manter tal modelo de geração e acumulação de proprie-
dade e de poder. Oligarquias se transformaram em partido político em toda
a América Latina. Abraçaram o discurso: republicano- democrático-liberal,
fachada para a reprodução de um modelo de produção, cujas ditaduras civis-
militares, das décadas anteriores, haviam salvaguardado pela força do
Estado de Exceção e Terrorismo de Estado.
O próprio conceito generalizado de Direitos Humanos, criado pela
ONU, perde um pouco o sentido quando observado que, a difusão do con-
ceito, não foi acompanhada por uma evolução institucional e axiológica da
própria idéia de “dignidade humana”.

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Para efeito do desenvolvimento da presente abordagem sobre o tema ado-
taremos a expressão “garantias individuais” como referência a tantas tendên-
cias e conceitos que formam o universo dos “direitos humanos”.
A manutenção de um terço da pobreza da América Latina e Caribe está
no Brasil, relativamente pacificada e ordeira, mostra a eficiência das elites em
manter via, principalmente propaganda, a imagem coletiva o “bom-pobre”,
“pobre-honesto” e do “pobre- feliz”. A falência no modelo produtor de mer-
cadorias neste continente nunca teve a capacidade de estar voltado para a
distribuição, porque não foi para isso constituído. O “bom- pobre” torna-se
uma espécie em extinção, as políticas de extermínio dos pobres tornam-se,
cada vez mais sofisticadas, porque à proporção que a pobreza bélica ameaça
a propriedade privada, mesmo que, muitas das quais, de origem ilícita, as
ações de paz, lei e extermínio tornam-se sofisticadas porque ganham apoio
Jurídico-Estatal.
A questão do Estado de Exceção como paradigma de governo, é antes
de tudo, uma maneira de Interpretar o Estado Policial que se instalou na
América Latina cada vez mais eficiente.
É bem pouso usual a compreensão do que J. Rawls (2000, p. 32) fez sig-
nificar e afirmar: “Portanto, numa sociedade justa as liberdades da cidadania
igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não
estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo dos interesses sociais.”
Já não é em todo o aparelho repressor do Estado, até mesmo nas insti-
tuições armadas, que vigora a idéia de autoritarismo e repressão, tal como
foi doutrinado e ficou de herança, aos nossos dias, através da Doutrina de
Segurança Nacional.
Temos o desafio da distribuição para um modelo político-jurídico e
econômico concentrador perante o qual, as sempre liberdades ameaçadas,
vão ganhando roupagens novas, assim como, ações de governo ou mercado,
ações placebo, vendidas como remédios prodigiosos.
A necessidade de tornar o Estado mais vigilante, o seu poder de polícia au-
mentado, esbarra diretamente na redução dos limites do que é culturalmente
chamado de intimidade.
Começa aí, a nova reflexão sobre a liberdade. Não é mais sobre como
ter propriedade. E ainda cabe uma reflexão do significado político-jurídico
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de liberdade, a partir da reflexão ética e moral. Quando os modernos desen-
volveram a diferença entre ética e moral, estava clara a preocupação entre o
que é e o que poderia ser o comportamento humano na sociedade ocidental.
Princípio inclusive fundamental de todo movimento Iluminista.
Mas o Estado precisa desenvolver o seu poder de polícia e adaptá-los aos
novos tempos. Como estabelecer novos limites, redistribuindo os deveres e
direitos por toda hierarquia social? Este grande dilema moderno está muito
atual e se faz presente em nosso país. O próprio discurso Rousseauniano que
envolve o conceito de vontade geral não anula necessariamente a perspectiva
de povo como massa a ser conformada. Para aquela época é notório o seu
conteúdo revolucionário. Mas atualmente em que medida, podemos ouvir o
grito de uma vontade geral numa sociedade bastante fragmentada e dinam-
izada por um universo virtual de informações, que torna difícil pensar em
maioria, ou sociedade civil organizada com senso crítico apurado.

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OSVALDO BASTOS NETO

Bacharel em Ciências Sociais, UFBA. Mestre em Sociologia, UFBA. Pro-


fessor Assistente de Ciência Política da UCSal. Professor Assistente de
Sociologia da Faculdade Batista Brasileira (FBB). Professor de Sociologia
Criminal da Academia de Oficiais da Polícia Militar da Bahia. Profes-
sor de Sociologia Criminal de Pós-Graduação do Curso de Especializa-
ção em Segurança Pública da PM/BA CESP. Professor de Sociologia do
Curso de Direito da FBB. Professor de Antropologia Jurídica do curso de
Direito da Faculdade de Artes, Ciências e Tecnologia (FACET). Membro
diplomado do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IGHB).

Artigo recebido em 24 de agosto de 2008 e aceito para publicação em


03 de setembro de 2008.
DOMUS ON LINE: Rev. Teor. Pol. Soc. Cidad., Salvador, v. 5, p. 1-49, jan./dez. 2008

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