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A ECONOMIA SOLIDÁRIA: PANACÉIA DO CAPITALISMO POST-MODERNO OU UM

CAMINHO PARA O SOCIALISMO

Carlos Schmidt*
1) Introdução
Em outro texto1 discutimos sobre as possibilidades de diversas práticas
econômicas e sociais conjugados as lutas dos trabalhadores e movimentos populares,
serem vetores de recomposição de um novo modelo de sociedade alternativo ao
capitalismo e ao socialismo real de matriz burocrática.
Uma das práticas arroladas é a economia solidária. Neste texto pretendemos
aprofundar esta questão, isto é, como e em que condições a economia solidária teria
potencial de contribuir para mudança da sociedade ou simetricamente em que medida
seria um paliativo, reproduzindo em níveis muito baixo uma parte do exército industrial de
reserva.
Efetivamente, segundo mapeamento realizado em 2005 (SIES, TEM, 2005)
participam de empreendimentos solidários no Brasil cerca de um milhão duzentos e
cinqüenta mil trabalhadores que fazem circular mais de quinhentos milhões de reais por
mês, isto significa uma média de quatrocentos reais por trabalhador, e em valor per capita
agregado abaixo desta cifra, portanto uma produtividade decorrente de uma renda
baixíssima. Considerando que este valor é uma média temos um número significativo de
trabalhadores de empreendimentos solidários abaixo da linha de pobreza.
Esta constatação não implica na desqualificação liminar da economia solidária,
muito pelo contrário, o que é notável é que ela sobrevive e cresce apesar da quase
indigência de amplos setores da mesma.
Uma economia nacional de baixo crescimento, a falta de capital destes
empreendimentos, o pouco apoio oficial que não percebe a necessidade de políticas
afirmativas para o setor, o seu caráter ainda incipiente e outros tantos fatores não
constituem um ambiente favorável ao seu crescimento e, no entanto cresce numa
dinâmica extensiva, mesmo porque é uma entre tantas estratégias de sobrevivência dos
pobres.
Os elementos que queremos trazer para a discussão são de outra ordem, embora
tenham forte interação com a superação deste estado de indigência da economia
solidária. A nossa percepção é que, na medida que o movimento social em torno da
economia solidária se assumir como um dos componentes do movimento pela mudança
radical da sociedade, o setor terá mais espaço para se desenvolver social e
economicamente ao mesmo tempo que ajuda na transformação social.
Para analisar esta questão, num primeiro momento vamos discutir as posições
presentes no debate intelectual sobre economia solidária.

*
Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com a
colaboração dos estudantes Beliza Stasisnki Lopes e Martim Andrés Moreira Zamora.

1
Especulações sobre os caminhos da mudança. in: Paula L. Antônio. “Adeus ao desenvolvimento, a opção do
governo Lula”. Belo Horizonte: Editora Autentica, 2003.
-1-
Sem esgotar o universo da produção sobre o assunto vamos procurar a maior
abrangência possível nos limites de tempo da elaboração deste texto. Na seqüência
vamos analisar a posição do movimento de economia solidária a partir do documento final
da 1° Conferência Nacional de Economia Solidária, para tentar estabelecer em que
medida este aponta para integração na ordem capitalista ou contém elementos de sua
superação.
Em seguida vamos discutir a luz dos elementos precedentes a hipótese que
formulamos acima. Finalmente concluiremos com questões para os engajados
(intelectuais ou militantes) na economia solidária.
Embora nossos exemplos tratem da situação da economia solidária no Brasil,
acreditamos que em vários aspectos este texto tem abrangência mais ampla.

2) O debate sobre a natureza da economia solidária


Os intelectuais que estudam a economia solidária têm em vários aspectos
convergências e ao mesmo tempo amplas divergências. Estas dizem respeito a questões
táticas, mas também estratégicas, ou seja, se referem ao tipo de transformação social
almejada.
As convergências se referem principalmente ao fato que no plano microeconômico
a economia solidária tem objetivos diferentes da empresa capitalista, cujo objetivo
principal é a maximização da taxa de lucro, enquanto que a primeira busca além da
geração de trabalho e renda, a participação de todos na gestão e o pleno
desenvolvimento pessoal e social dos participantes do empreendimento solidário.
Ao reconhecer estas qualidades na economia solidária, todos participantes do
debate sobre a mesma propugnam seu desenvolvimento e extensão. Nesta medida todos
apóiam o movimento social “economia solidária”, o que cria espaço para entendimento e
alianças que implicam em estudos e trabalhos conjuntos que possam auxiliar seu
desenvolvimento.
No que se refere às divergências, poderíamos estabelecer um recorte de três
posições sendo que dentro de cada uma delas existem variantes significativas. Como
dissemos na introdução, corremos o risco de cometer omissões. Na medida que este
texto tem o propósito de iniciar essa discussão, a eventual cobrança sobre lacunas, só a
aprofundará.
A primeira posição teria como representantes França Filho e Laville entre outros.
Percebe a economia solidária como portadora de uma racionalidade distinta daquela
maximizadora da utilidade do individuo associada a economia neoclássica.
Para estes “Não há um modo único de organização da economia que seria a
expressão de uma ordem natural, mas um conjunto de formas de produção e de
repartição que coexistem” (Laville 2006, pág 32), assim existe espaço para que “a
pluralização da democracia e da economia entrem em ressonância”. A democratização
recíproca da sociedade civil e da ação política é congruente com uma economia fundada
na pluralidade de princípios econômicos e das formas de propriedade. (idem, pág 37).
Certamente em relação a crítica da unicidade dos princípios econômicos, expresso
pela economia neoclássica há consenso, mas por outro lado o autor elide as contradições
entre os princípios econômicos e a dinâmica hegemonista da economia capitalista. Por
-2-
isso conclui que é necessário “escapar do imaginário de ruptura para continuar esta
paciente elaboração coletiva que é a invenção democrática”. (ibidem, pág 37).
O autor esquece ou não reconhece, aliás à semelhança da economia standart, a
existência de classes sociais e desta forma não considera o hegemonismo da classe
dominante que dispõe de meios materiais (dinheiro, mídia, etc) para sabotar a evolução
democrática. Esta no máxima tolera ou vê com bons olhos uma economia solidária
raquítica, convivendo na sombra ou em simbiose com o mercado, que reduz as tensões
sociais ou até se articula como sócio menor nos processos de terceirização da empresa
capitalista.
Não encarar as contradições de classe da sociedade capitalista e não colocar no
horizonte dos movimentos sociais a necessidade de rupturas significa retomar nos dias de
hoje a ilusão dos socialistas utópicos de que pelo efeito demonstração se chegaria à
mudança social.
Laville aliás, não propõe a transformação da sociedade na medida que pensa
numa economia plural onde empresa capitalista e empreendimento solidário convivem
harmoniosamente. O que não explica é como no caso da regressão nos direitos dos
trabalhadores assalariados, as condições de vida dos trabalhadores da economia
solidária não serão afetados, ou como caso de crise geral do sistema o setor solidária
seria preservado. Seria fechar os olhos para o que disse Marx: “a tirania da circulação não
é menos perversa que a tirania da produção” (in Novaes,2007).
A segunda posição representada pelo professor Paul Singer, que ao contrário de
Laville vê a economia solidária como resultado das contradições do sistema capitalista
que “cria oportunidades de desenvolvimento de organizações cuja lógica é oposta a do
modo de produção dominante” (Singer P. -2002, pág 212).
Para Singer a empresa de economia solidária é uma associação livre de
produtores que superam a subordinação do trabalho característica da relação assalariada
e praticam a autogestão. Esta empresa, no entanto, está inserida num mercado onde
concorre com empresas capitalistas e nesse sentido deve qualificar-se para competição.
Singer considera que “a economia solidária se desenvolve no Brasil, com dinâmica
própria, que se reforça à medida que ela atinge maiores dimensões e se diversifica
através da invenção de novas instituições de produção, troca e crédito” (Singer P., 2006,
pág 205).
Embora considere que a economia solidária se desenvolveria mesmo sem apoio
do Estado, vê nos fundos públicos a possibilidade de ampliar os avanços e de prover de
capital os setores desta que mais precisam.
Singer foi o idealizador e é o secretário atual da Secretária Nacional de Economia
Solidária (SENAES) que coordena a ação governamental para o apoio e fomento da
economia solidária, e acredita que este apoio tem sido efetivo. Nos parece no entanto que
tanto o volume de recursos como as instituições oficiais, principalmente as de crédito, tem
dado um apoio por demais mitigado à economia solidária. Se compararmos o aporte
financeiro dado pela Venezuela à economia solidária, que criou um fundo de um bilhão de
dólares (com uma população que é um oitavo da brasileira), os cerca de cem milhões de
reais gastos no primeiro mandato do presidente Lula fazem triste figura.
Ao longo de sua história, o Estado brasileiro mobilizou fundos públicos para o
processo de industrialização subsidiando as empresas privadas, foi e é um estado criador
-3-
de capitalismo e capitalistas. A transferência de empresas públicas para o capital privado,
desvalorizando os ativos destas, bem como o acesso a recursos do BNDS para compra
destas empresas foi a forma mais explícita do Estado a serviço da acumulação privada.
Os pretendidos benefícios sociais destas operações (redução de preços, melhorias dos
serviços prestados, investimentos) não aconteceram. Surgem nestes setores gargalos
que atingem o ponto de colapso, como no fornecimento de energia elétrica. A lógica
predominante é maximizar os dividendos dos acionistas em detrimento dos investimentos.
A legitimidade destes setores é sustentada pelo seu próprio poder econômico, pelo
grande capital em geral e, sobretudo pela mídia, beneficiária de polpudas verbas
publicitárias.
No contraponto poder-se-ia abrir espaço para exigir do Estado o apoio para outras
formas de fazer econômico que se traduzam em benefícios sociais mais amplos e em
desenvolvimento sustentado.
Discutiremos mais adiante o potencial da economia solidária nesta perspectiva.
Finalmente existem estudiosos da economia solidária que, em graus diversos e
sobre diferentes aspectos, a percebem como um elemento de mudança social,
evidentemente sob certas condições. Se demarcam da posição de Singer pelo fato de não
considerar o mercado a arena decisiva do embate da economia solidária com o capital.
As discussões abordam desde a natureza da autogestão na sociedade até as
articulações necessárias da economia solidária com os movimentos sociais para que esta
possa ter um papel determinante na transformação social, passando por aspectos mais
pontuais, que, no entanto convergem com as questões mais gerais, como tecnologia,
relações com desenvolvimento e meio ambiente, bem como as dificuldades de
implementação de autogestão.
Na linha de discutir de forma sistêmica a autogestão, Novaes questiona a
autogestão que se restringe à empresa e que se pensa estrategicamente compatível com
a regulação de mercado e que no limite propõe a constituição do socialismo de mercado.
Novaes contrapõe a este modelo, o planejamento democrático como forma de regulação
econômica e social. Reproduz as críticas de Mandel a Alec Nove onde aflora a idéia de
planejamento democrático como alternativa ao mercado e ao planejamento burocrático
(Novaes R., 2007).
Mesmo tipo de análise faz Samary, a partir de seus estudos sobre a Ioguslávia,
onde identifica os limites da autogestão macroeconômica em contextos distintos, na sua
articulação com planificação centralizada ou mercado. Tanto num caso como no outro o
partido único no poder geria grande parte do excedente produzido pela sociedade de
forma autoritária e burocrática o que combinado com a falta de democracia política
ampliava as desigualdades sociais e regionais, frustrando os trabalhadores, rompendo
solidariedades e provocando tensões, inclusive étnicas, que explodiram após a morte de
Tito, o dirigente carismático e consensual que mediava os conflitos (Samary, 1988).
Samary, próxima de Mandel politicamente, mesmo defendendo sua posição no
debate com Alec Nove, critica sua posição fundamentalista na rejeição ao mercado.
Mandel propõe mecanismos alternativos de decisões alocativas muito complexas com
elevados custos em tempo para produtores e consumidores. Trata-se de uma miríade de
assembléias que decidiram as características dos produtos nos seus mínimos detalhes
(Samary, 1999).

-4-
No entanto Samary mostra que, num momento posterior em um artigo publicado
em 1990 na revista “Critique Comuniste” Mandel recoloca a mesma questão de outra
forma. “Neste debate (sobre plano ou mercado) não se trata de saber se, durante um
longo período de transição entre o capitalismo e o socialismo os mecanismos de mercado
podem ser utilizados... O debate deve tratar da seguinte questão: o mercado deve
determinar as escolhas fundamentais de alocação dos recursos raros?” (Mandel in
Samary, 1999, pag 167).
Se a sociedade se perder na gestão de detalhes que não são determinantes na
condução da vida econômica e na alocação dos recursos, vai ver a arvore e não enxergar
a floresta além de consumir um volume de tempo que é parte da riqueza que o socialismo
pretende distribuir, o tempo livre.
Por outro lado “está provado que (no capitalismo mundializado) as relações sociais
mais regressivas são facilmente as mais competitivas: elas vão pressionar toda a
sociedade que busca começar uma transformação socialista (Samary C., pág 169).No
caso a autora recomenda o uso criterioso de “protecionismo progressista” para gerir as
relações contraditórias com o capitalismo ainda existente.
Em suma, o que se sobrepõe, é uma dinâmica de planejamento que possibilita a
sociedade fazer as grandes escolhas e que significa também, tendo em vista os
problemas ambientais, a limitação do desenvolvimento das forças produtivas e uma maior
alocação de ganhos de produtividade na redução do tempo de trabalho.
Por outro lado, uma grande parte de bens e serviços considerados essenciais
numa sociedade socialista estarão no registro dos direitos da pessoa humana, em quanto
que outros bens e serviços poderiam ser distribuídos através do mercado e regulado por
este, mas subordinados na sua globalidade às escolhas democráticas da sociedade.
Destas escolhas, do que produzir, se deduzem tecnicamente as dimensões dos
meios de produção, por exemplo, através de uma matriz insumo e produto, cabendo a um
organismo de planejamento central, controlado pela sociedade a organização da
produção global e às unidades produtivas através da autogestão dos trabalhadores a
organização do trabalho para otimizar a produção que lhe é atribuída pelo organismo
central ou pelos mecanismos sinalizadores de mercado das necessidades sociais para
bens e serviços não essenciais.
Em outro trabalho que procura inserir a economia solidária na perspectiva
transformadora (Benini, Figueiredo, 2007) é explorada a divergência que Singer
estabelece com Rosa Luxemburgo a respeito das cooperativas. A conclusão que chegam
os autores é que a autogestão das cooperativas no capitalismo “...não é a rigor, um
controle de trabalho sobre o processo produtivo ou sobre os meios de produção latu
sensu, mas tão somente uma incipiente experiência de autogestão de qualidade restrita,
isto por ela estar fortemente limitada a uma unidade produtiva” (idem, pág. 70) pois se
entende que “a partir de sua realidade concreta, o modo de produção capitalista é um
sistema produtivo totalizante e sistêmico”. (ibidem, pág 7)2; conclusão semelhante a
Novaes. Acrescentam no entanto que sendo uma dimensão de alienação atacada através
da economia solidária esta pode se constituir num dos vetores de enfrentamento do
capitalismo.
2
O excedente produzido na empresa, mesmo auto-gerida, dentro do sistema capitalista é apropriado por
diversas frações do capital como Marx mostra no livro III do Capital. A construção de redes de empresas de
sistemas financeiros e comerciais próprios da Ecosol embora diminua nunca dentro do mercado capitalista vai
permitir a apropriação plena pelos trabalhadores das empresas solidárias do valor por eles criado.
-5-
Nós partilhamos desta perspectiva, consideramos a economia solidária, a
depender da identidade que assume e das articulações que constitui com os demais
movimentos sociais, uma das formas de resistência ao capitalismo e de transformação
sistêmica. Falaremos destas questões posteriormente.
Outros textos trabalham os limites e possibilidades da economia solidária, em
particular a questão da autogestão ( Vieitez, DalRi, 1999) no plano microeconômico sem
deixar de considerar o contexto. Temos ainda os trabalhos sobre tecnologia que
questionam os limites da base de apropriação sócio-técnica pelas empresas auto-geridas
(Dagnino, Novaes...).
3) O Movimento Social e economia solidária
No momento que ressurge a economia solidária nos anos 90, surgem articulações
com o objetivo de discuti-la, fortalece-la e apóia-la. Não é nosso objetivo retraçar a
história do movimento social, economia solidária, que passou por diversas
transformações, envolvendo crescentemente os sindicatos e ampliando sua abrangência.
O nosso foco nesta secção será a análise das posições assumidas pelo
movimento no seu fórum mais abrangente até então, a primeira conferência nacional de
economia solidária realizada em Brasília de 26 à 29 de junho de 2006 cujo tema foi
“Economia Solidária como Estratégia e Política de Desenvolvimento”.
O documento final do encontro que nos serve de base para análise oscila entre firmes
declarações anti-capitalistas e propósitos de construção de uma nova sociedade sem
classes e socialista (pto 12), e o reconhecimento da ação governamental na promoção da
economia solidária, ainda que vista como insuficiente. Não é problematizada a
contradição entre este apoio mitigado e a política econômica neoliberal claramente pró
capital.
O próprio reconhecimento da centralidade da economia solidária num modelo de
desenvolvimento inclusivo, sustentável e com justiça social, não é acompanhado de
propostas políticas afirmativas onde a economia solidária disputaria de forma decisiva
com o capital os recursos públicos, por exemplo.
Uma política com este corte, como a que existe na vizinha Venezuela, um marco legal
que reconheça precedência das empresas solidárias no fornecimento para as instituições
do Estado (com alteração do artigo 37 da constituição como menciona o documento da
conferência) são imprescindíveis para que a economia solidária saia da condição de
semi-indigência que se encontra.
Um outro ambiente econômico de crescimento com distribuição de renda, pode
criar espaço para a economia solidária, desde que acompanhado por políticas afirmativas
mencionadas anteriormente. Para isso outra política macroeconômica distinta do
malthusianismo atual se faz necessária. A contraposição do documento da conferência se
reduz a uma vaga referência ao neoliberalismo.
Em resumo, faltam mediações entre os objetivos estratégicos e as tímidas
referências à necessária mudança das políticas em relação a economia solidária. Não se
critica o fato de ter transcorrido quase quatro anos de mandato do governo Lula à época
da conferência e nenhuma das mudanças propostas terem sido implementadas, bem
como o baixo grau de prioridade da economia solidária.
Embora o documento reivindique a herança histórica das lutas dos trabalhadores e
faça referência aos direitos conquistados, não estabelece o eixo estratégico da aliança
-6-
entre os trabalhadores do setor público e privado, os movimentos sociais do campo e da
cidade com o movimento social economia solidária para lutar contra o capital, hoje
hegemonizado pelo capital financeiro que imprime um curso regressivo na economia e na
sociedade para as classes populares.
Há portanto um enorme hiato entre as posições expressas pelo documento para o
presente e seus objetivos estratégicos, como se a economia solidária tivesse o condão de
pelo seu exemplo, se transformar em referência, sem necessidade de enfrentar desde já,
e de forma autônoma, uma luta tenaz contra o capital hegemonista que só lhe tolera
porque não lhe ameaça.

4) O potencial do movimento economia solidária para a transformação social


Concordamos com autores citados que a economia solidária pode ser uma das
frentes de luta contra o capitalismo e um dos elementos essenciais para a recomposição
de um modelo de sociedade socialista. Afirmamos também que isto só será possível na
medida que a economia solidária se articular com os demais movimentos sociais que
buscam a transformação social. É necessário também como mencionamos na secção
anterior construir mediações entre o objetivo estratégico e o estágio atual da economia
solidária.
A construção destas mediações implicam em reconhecer que a economia solidária
está imersa numa sociedade capitalista e num contexto neoliberal onde se acentua a
polarização entre as classes sociais, sendo a distribuição crescentemente desigual da
renda e principalmente da riqueza3 uma de suas características essenciais.
As lutas dos trabalhadores na defesa de seus interesses cotidianos dizem respeito
em geral à distribuição de renda. A economia solidária poderia agregar a luta pela
distribuição da riqueza acumulada pelos capitalistas. Isto daria um caráter de luta de
classes conjugado ao interesse de expansão da economia solidária.
Uma das formas é interromper os fluxos de recursos públicos que subsidiam o
capital privado canalizando-os para a economia solidária. 4 Outra é captando parte dos
rendimentos de capital para economia solidária ou setor público através de impostos
sobre o patrimônio, como por exemplo, o imposto sobre as grandes fortunas que está na
constituição brasileira e nunca foi regulamentado.
Com isto queremos dizer que não basta a economia solidária reivindicar apoio do
Estado, mas também deve indicar de onde devem vir os recursos para financia-la.
Um aliado fundamental para as lutas mais gerais, mas também específicas da
economia solidária são os movimentos de sem terra e pequenos agricultores. As múltiplas
formas de associação e cooperação camponesa devem ser assimiladas como economia
solidária e portanto ser beneficiárias de recursos obtidos nas formas descritas acima
A luta camponesa contra o agro-negócio tem, além da disputa pelos fatores de
produção terra e capital, dimensões emancipadora e ambiental. Emancipadora porque se
fortalece na medida que enfraquece um setor do capital profundamente integrado a

3
O Estado capta parte da mais valia e a canaliza para o apoio à acumulação do capital, ou retorna (e aí deixa
de ser mais valia) para a reprodução da força de trabalho sobre a forma de bens e serviços públicos.
4
A economia solidária quando se expande criando trabalho e renda com qualidade, reduz o exército industrial
de reserva e aumenta o poder de barganha dos assalariados.
-7-
grandes empresas do agro-negócio mundial, se contrapondo ao tudo pela exportação
com a produção de alimento para a população. A sustentabilidade ambiental da produção
diversificada camponesa é uma alternativa ao desastre ecológico representado pela
monocultura do agro-negócio.5
No que se refere aos assalariados em geral, interessa à economia solidária um
modelo de desenvolvimento puxado pelo mercado interno (que implica no aumento da
participação dos salários na renda), pois amplia a demanda para seus produtos.
A economia solidária pode ampliar sua legitimidade social na medida que
demonstrar que seu objetivo principal é a preservação dos coletivos de trabalho (Vieitez,
DalRi,....) das unidades produtivas, e desta forma contribui para estabilidade econômica.
Efetivamente, este objetivo induz um comportamento microeconômico avesso à
especulação e com foco no investimento produtivo.

A transformação destas questões, além das pautadas no documento da


conferência da economia solidária em reivindicações e eixos de luta, são disputas a
serem encaminhadas no quadro da sociedade capitalista. Elas têm caráter de classe
porque atinge os interesses imediatos do capital e acumula para os movimentos que
buscam a transformação da sociedade.
Um outro aspecto importante desenvolvido pela economia solidária é seu foco nas
relações de produção. Efetivamente as experiências post-capitalistas de caráter
burocrático alteraram as relações de propriedade, mas mantiveram as relações de
produção de forma que os trabalhadores se subordinaram ao comando da burocracia
designada pelo partido único no poder.
O comando burocrático além de desenvolver privilégios para a burocracia,
desresponsabilisa os produtores diretos, não mobiliza sua criatividade com reflexos na
quantidade e qualidade da produção.
A verdadeira autogestão por outro lado não se restringe as unidades produtivas,
diz respeito as decisões alocativas e distributivas no conjunto da economia. Assim da
mesma forma que numa sociedade socialista a autogestão não se deve restringir ao
âmbito da empresa, na sociedade capitalista a economia solidária só é realmente
progressista e tem chances de sair do quadro de semi-indigência que ainda se encontra,
se for articulada com os demais movimentos sociais que postulam a mudança radical da
sociedade.

5) Conclusão

5
A diversificação camponesa é compatível por exemplo, com o agrocombustível, a partir de articulações entre
este e a produção de alimentos. A existência de pequenas unidades de produção de biocombustível
articulada com uma logística que evita transporte a grandes distâncias podem se revelar eficazes além dos
benefícios ambientais. Naturalmente existe uma trilha tecnológica a desenvolver na convergência de saberes
tradicionais e científicos, na perspectiva de contrapor uma outra escala de produção à atual que responde
menos à eficiência e mais à tendência de concentração e centralização do capital. Que o digam os Bresciani
na produção de aço na Itália, como de resto a estrutura industrial da terceira Itália. Numa visão sistêmica de
produtividade, para além da clássica produção homem/hora. Seria interessante integrar os custos de capital
(Lojkine, )bem como fatos socioeconômicos como a grande parte do excedente apropriada por executivos e
acionistas que não se transformam em investimento produtivo.
-8-
O socialista francês da belle époque Jean Jaurès dá a pista de uma das formas
possíveis de contribuição da economia solidária para a transformação da sociedade
dizendo o seguinte:
“... todas as grandes revoluções foram feitas no mundo, porque a nova
sociedade antes de se afirmar havia penetrado por todas as fissuras, através de
suas menores raízes, no solo da antiga sociedade. O que fez a força das
heresias das grandes revoltas da consciência religiosa independente no décimo
segundo e décimo terceiro séculos, o que faz na seqüência a força da reforma, é
precisamente que ela surgiu ocupando uma parte da antiga igreja” (Jaurès J.
apub Lojkine J. pg 13 e 14).
Os revolucionários que iniciaram as experiências de mudança no início do século
XX tinham o foco no poder do Estado, a miragem da conquista do poder pelo grande e
decisivo golpe de força. Na construção da nova sociedade passado o entusiasmo e o
heroísmo das grandes batalhas, existe a dura e enfadonha tarefa de construir a nova
forma de produzir onde os revolucionários foram substituídos pelos especialistas, os
trabalhadores voltam para sua atividade alienada e as relações de produção não se
alteram. Pelo contrário se consolida a hierarquia, a racionalidade “técnica” que na falta de
outra é a racionalidade burguesa que consolida a divisão de trabalho entre os que
concebem e os que executam. Usam-se os “métodos bárbaros contra a barbárie” Como
dizia Lênin (Schmidt, 2005 ).
As cooperativas e outros arranjos produtivos não capitalistas eram considerados
ilusões dos socialistas utópicos. No período de transição da NEP na União Soviética o
cooperativismo era visto como espaço de disputa entre o poder soviético e as
ressurgências do capitalismo, provavelmente pela falta de prioridade atribuída na ação
dos revolucionários neste meio (Preobrajenski in Bertelli).
Se a economia solitária tiver uma perspectiva revolucionária, se forjar uma
identidade de classe dada pelo papel que pode ocupar na luta de classes, se inserindo no
movimento geral dos trabalhadores, que seja contestador do sistema capitalista, poderá
abarcar parcelas significativas da economia, constituindo no imaginário coletivo a
consciência da possibilidade da autogestão, desenvolvendo tecnologias alternativas às do
capital adaptadas a autogestão plena e respeitadora do meio ambiente.
Desta forma cria-se a possibilidade de uma mudança muito mais ampla que a
obtida pela experiência precedente que fracassou. Mudam-se as relações de propriedade,
mas também as de produção, velho sonho de Marx e Engels da sociedade de livres
produtores associados.
A economia solidária com esta perspectiva cria espaço para a desnaturalização
das relações mercantis na sociedade, premissa que está presente de forma implícita nas
análises de muitos marxistas (Hood E, 2001) e contribui decisivamente para refundação
da utopia socialista.
Neste momento da história da humanidade que a questão ambiental aparece
como decisiva para a própria sobrevivência da humanidade, já percebida pelos
movimentos sociais do campo, que como vimos são aliados naturais do movimento
economia solidária, este deve reforçar sua preocupação com esta questão já presente
nas suas pautas. Colocando-se como portadora de uma nova lógica de produção e
consumo, onde se supera a idéia da maldição dos recursos raros contrapostos à
necessidade de construir uma sociedade de abundância como condição de sua
-9-
emancipação futura, tarefa atribuída à humanidade por marxistas e liberais (Harribey J.M,
1998).
Como diz um dos fundadores do ecosocialismo, Michel Lowy, admitir o capitalismo
ambiental é a mesma coisa que conceber um tubarão vegetariano. A lógica mesmo deste
sistema, por mais que se pense formas de controlar sua agressão ao meio ambiente, o
empurra a secundarizar as questões ambientais, ainda mais em escala global. Um
exemplo disso é a monocultura do eucalipto desenvolvida pelas transnacionais
papeleiras, que capturam carbono na atmosfera mas destroem o meio ambiente onde se
localizam.
As convergências da economia solidária com os movimentos sociais dos
trabalhadores e camponeses abre espaço para novas alianças portadoras de
virtualidades transformadoras. Os intelectuais engajados neste movimento podem
contribuir desenvolvendo programas de pesquisa que vão desde a resolução de
problemas práticos da Ecosol, passando pela discussão de políticas públicas para o setor
até o estudo dos grandes debates históricos sobre cooperativismo. Esperamos que como
perspectiva geral destas pesquisas predomine a visão transformadora.

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